PARCERIAS PRIVADAS EM SISTEMAS DE SAÚDE – CONTRATAÇÕES QUE PODERIAM REFLETIR EM MAIOR AGILIDADE NO ATENDIMENTO DA POPULAÇÃO E NUMA POSSÍVEL REDUÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA.
PARCERIAS PRIVADAS EM SISTEMAS DE SAÚDE – CONTRATAÇÕES QUE PODERIAM REFLETIR EM MAIOR AGILIDADE NO ATENDIMENTO DA POPULAÇÃO E NUMA POSSÍVEL REDUÇÃO DA JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA.
Private Partnerships in Health Systems – Contracts that could reflect more agility in the service of the population and in a possible reduction of excessive judicialization.
Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxx Sá1 Larissa Tais Leite Silva2
Resumo
O excesso de ações judiciais relativos aos temas de saúde merece atenção e busca por alternativas para minimizar o problema de engessamento do orçamento público, e da morosidade do Poder Judiciário. Uma possibilidade seria a implementação de políticas públicas, através do incremento das parcerias privadas em serviços de saúde, com a finalidade de facilitar a obtenção de serviços e tecnologias, sempre mais ágeis quando se trata de contratações privadas. As parcerias privadas podem trazer grande evolução no atendimento de saúde da população brasileira, pois as inovações nessa área são diárias, e nem sempre o Poder Público consegue acompanhar a evolução tecnológica com a mesma rapidez que o privado. Quando se trata de uma área sensível e emergencial como a Saúde Pública, é necessário obter meios de garantir maior agilidade na prestação de serviços e a garantia do atendimento da população. E uma das formas encontradas é através das parcerias com prestadores privados, o que poderia inclusive reduzir a judicialização de ações em matéria de saúde, afinal, boa parte da demanda se refere a requerimentos de antecipação de serviços emergenciais, em razão da longa fila de espera, ou
1 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Positivo; Advogado; xxxxxxx@xxxxxxx.xxx.xx
2 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Positivo, Procuradora Federal; xxxxxxxxxxx.xx@xxxxx.xxx.
de fornecimento de novas tecnologias, ainda não disponíveis no sistema público. Xxxx demandas poderiam ser atendidas com maior agilidade e eficiência em caso de boas contratações com parceiros privados, sempre com vistas a oferecer maior flexibilidade e eficiência aos serviços de saúde.
Palavras-chave: Saúde. Judicialização. Parcerias Privadas. Health. Judicialization. Private Partnerships.
Abstract
The excess of lawsuits related to health issues deserves attention and search for alternatives to minimize the problem of plastering the public budget, and the slowness of the Judiciary. One possibility would be the implementation of public policies, through the increase of private partnerships in health services, with the purpose of facilitating the obtaining of services and technologies, always more agile when it comes to private contracts. Private partnerships can bring great evolution in health care for the Brazilian population, as innovations in this area are daily, and the Government is not always able to follow technological developments as quickly as the private sector. When it comes to a sensitive and emergency area such as Public Health, it is necessary to obtain means of ensuring greater agility in the provision of services and the guarantee of serving the population. And one of the ways found is through partnerships with private providers, which could even reduce the judicialization of health actions, after all, a good part of the demand refers to requirements for anticipating emergency services, due to the long waiting list , or the provision of new technologies, not yet available in the public system. Such demands could be met with greater agility and efficiency in the case of good contracts with private partners, always with a view to offering greater flexibility and efficiency to health services.
Introdução
Partindo do conceito amplo adotado pela Constituição da Organização Mundial da Saúde, na qual “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”, a legislação pátria busca atingir toda a população brasileira e garantir igualitário e suficiente atendimento médico. Contudo, nem sempre tal efetividade se apresenta na prática, com diversas falhas no fornecimento de serviços e medicamentos, o que reflete a crescente e infindável demanda judicial na área da Saúde.
Diversas alternativas têm sido buscadas para minimizar tal quadro, e garantir maior agilidade no atendimento à população. Uma delas foi a previsão legislativa para a contratação de parceiros privados na área da saúde. Embora já prevista em texto constitucional, a regulamentação legal apenas teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, de modo que as parcerias privadas ainda se mostram uma realidade recente no cenário nacional, mas com potencial de oferecer grande eficiência na prestação de serviços de saúde, desde que corretamente utilizadas pelos gestores.
O dever estatal não se baseia apenas em prestar serviço universal, integral e gratuito aos brasileiros, mas também em garantir que as funções voltadas à organização e ao funcionamento do sistema público de saúde sejam alcançadas por meio de formulação e aplicação das políticas públicas.
E, dentre tantas obrigações advindas da área de Saúde, uma das mais importantes deve ser a agilidade no atendimento da população, eis que de nada adianta a previsão de fornecimento de serviços ou medicamentos, mas não existirem meios adequados para seu atendimento em prazo hábil. Situações em que a demora excessiva prejudica o cidadão geram ações judiciais, que apenas refletem em piora nos serviços públicos, afinal obrigam o gestor a realizar gastos por determinação judicial, sem um prévio planejamento orçamentário. A necessidade de se buscar alternativas para a excessiva judicialização em matéria de saúde deve ter início em instrumentos já existentes na legislação nacional, como as parcerias privadas.
Parcerias privadas em Saúde – constitucionalidade reconhecida em ADI julgada em 2015.
O Direito à saúde é tratado no art. 6º da Constituição Federal, no capítulo de direitos sociais, e recebeu uma seção própria (Seção II – Da Saúde), em razão de sua importância constitucional. Apesar de todo o detalhamento e relevância que lhes são atribuídos, as ações e serviços de saúde não são privativos do Estado. São livres à iniciativa privada, que pode explorá-los economicamente, com a intenção de obtenção de lucro.
Quando prestados pela iniciativa privada, os serviços de saúde não são passíveis de outorga de concessão ou permissão. São atividades privadas, prestadas no exercício de sua livre-iniciativa, e não como instrumento de atuação do Estado.
Como forma de garantir o direito à saúde, há a previsão constitucional (art. 199) para que a iniciativa privada possa participar de forma complementar ao sistema único, observando os princípios e diretrizes deste, através de contratos ou convênios.
Para participarem de forma complementar ao SUS, as entidades privadas atuarão mediante contrato de direito público ou convênio, nos termos do art. 199, §1º da Constituição Federal. Nessas situações (facultativas), o Poder Público deverá remunerar o prestador privado com recursos públicos.
Embora a previsão de prestação de serviços por particulares já constasse nos artigos 197 e 199, §1º da Carta Magna, a constitucionalidade de parcerias privadas no setor de saúde foi objeto de grandes discussões doutrinárias e judiciais. Foi apenas em 2015 que, após importante decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADI 19233, houve a consolidação do modelo de parcerias privadas para a prestação de serviços de saúde no país.
Na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionava-se a Lei das Organizações Sociais (Lei nº 9637/98), que instituiu parcerias com o terceiro setor nas áreas sociais, como educação e saúde. A decisão, por maioria dos ministros da Corte, consignou que os serviços de saúde não devem ser prestados exclusivamente pelo Estado. Ao contrário, o texto
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923/DF.Tribunal Pleno, Rel. para o acórdão Min. Xxxx Xxx. Diário de Justiça da União, 17 dez. 2015.
constitucional também atribui aos particulares a colaboração para prestação de serviços, sempre sujeitos à fiscalização e controle estatais.
O voto do Ministro Xxx enfatizou que as Organizações Sociais já exerciam direito próprio ao atuar no campo da saúde. O que a lei previu foi uma atividade de fomento, para incentivar os particulares a aumentarem sua participação, cabendo aos agentes políticos eleitos definirem os limites e necessidade de atuação do Estado.
Tais previsões guardam respeito aos dispositivos constitucionais, razão pela qual a ADI foi julgada parcialmente procedente, apenas para dar interpretação conforme a Constituição, para determinar que o procedimento de licitação e contrato de gestão observem os princípios constitucionais e administrativos, sempre passíveis de controle pela Controladoria Geral da União e Ministério Público.
Com efeito, a prestação de serviços de saúde por entidades privadas é bastante comum em outros países, e se mostra exitosa. Não se trata de tornar o serviço público em particular, mas de uma parceria com a sociedade civil, para garantir mais opções aos cidadãos e trazer melhorias a este setor tão sensível e urgente, que é da saúde pública. O consensualismo e aderência às regras públicas trouxeram experiências animadoras em países como Alemanha, Canadá, França e Portugal.
“(...) o que faz do sistema bismarckiano um sistema estatal de saúde não é a natureza jurídica dos prestadores envolvidos, mas a garantia estatal de que todas as pessoas tenham seu direito respeitado, por meio de atendimento prestado via seguro de saúde.”
Também no sistema beverigeano convivem prestadores de serviços públicos e privados, embora nesse modelo de origem inglês, a garantia de saúde seja obrigação do próprio Estado, custeada mediante pagamento de impostos, tal como ocorre no Brasil.
4 XXXXXX, Xxxxxxxx. Prestação de serviços de assistência à saúde pelos municípios. 1.ed. Belo Horizonte: Forum, 2017, fl. 28
Nota-se, portanto, que o modelo implementado pelo Estado para a prestação de serviços de saúde não perde suas características em razão da natureza jurídica do prestador, se servidores públicos ou profissionais do setor privado. Os exemplos estrangeiros comprovam que é possível garantir a boa qualidade dos serviços de saúde mediante a contratação de prestadores privados, devendo, apenas, ser garantido o controle e regulamentação pelo Estado.
Portanto, as parcerias podem, e devem, ser realizadas com o terceiro setor, pois os serviços públicos de saúde não possuem a exclusividade estatal para a sua prestação.
A participação privada pode ocorrer por meio de contratos de direito público, ou por meio de convênios. Existem, ainda, outras modalidades garantidas por lei, tal como a Lei 9.637/98, que prevê a existência de Contratos de Gestão, a Lei 9.790/99, que estabelece os Contratos de Parceria, bem como a Lei 13.019/14 a qual estabelece os Termos de Colaboração, Termos de Fomento e Acordos de Cooperação.
É possível, ainda, a utilização de recursos públicos para incorporação de novas tecnologias, aquisição de equipamentos e construção de novas estruturas instrumentais voltados a prestação de serviços de saúde, devendo estar previstos no Plano de Trabalho ou Programa de Trabalho, realizado com a entidade privada, o qual deve observar a Lei 13.019/14, especialmente o art. 22, descrevendo a realidade que será objeto da parceria, as metas a serem atingidas, a previsão de receitas e despesas, a forma de execução, e a definição de parâmetros.
Acerca do assunto, analisaram Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx e Clarissa Bueno Wandscheer5:
Percebe-se, nesse contexto normativo, tanto do ponto de vista da legislação orçamentária quanto da legislação específica de cada modalidade de parceria com o terceiro setor na área da saúde (convênios em sentido amplo), que não apenas é possível, mas necessária, em muitos casos, a aplicação de recursos públicos repassados pelo Estado na aquisição de equipamentos que permitam a incorporação de novas tecnologias no tratamento prestado pelo SUS por meio de entidades do terceiro setor. Não se trata, obviamente, de avenças que tenham como objeto a compra de
5 MÂNICA F. B., Wandscheer, C. B. “Saúde e desenvolvimento humano: parcerias com o terceiro setor e incorporação de novas tecnologias ao SUS”. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol. 23 – n.2, 2018. Itajaí/SC, UNIVALI, fl. 703-724.
equipamentos, mas que prevejam, para a efetiva prestação de serviços assistenciais à população, o uso de recursos públicos para sua obtenção em prol da melhoria e da ampliação dos serviços disponibilizados pelo SUS.
Essa possibilidade de incorporação de novas tecnologias a partir dos convênios é bastante importante na prestação de serviços de saúde, pois agiliza o fornecimento de novas opções de tratamento ao cidadão, em área tão sensível e urgente.
E, exatamente por tratar de temas essenciais e, muitas vezes, emergenciais, o acesso à saúde tem sido objeto de uma grande demanda de ações judiciais, visando garantir acesso de cidadãos a novos tratamentos e medicações, ou mesmo garantir atendimento emergencial do rol de serviços previstos pelo Sistema Único de Saúde, quando não prestados no momento necessário.
Judicialização em matéria de Saúde – importantes decisões proferidas pelo STF em 2020.
A judicialização de temas relacionados à Saúde configura fenômeno recente no Poder Judiciário brasileiro, que teve início a partir da Constituição Federal de 1988, mas com evidente crescimento após o ano de 2005. Além do excesso de ações, causando problemas estruturais no Judiciário, há o aumento exponencial de gastos públicos e redirecionamento de valores para custear as condenações, antes destinados a outras políticas na área de saúde.
Conforme apontado pelo ministro Xxxxxxx Xxxxxxx em seu voto no RE 5664716,
“(...) os gastos do Ministério da Saúde com medicamentos e insumos para cumprimento de decisões judiciais passaram de cerca de R$ 2,5 milhões em 2005 para R$ 266 milhões em 2011, o equivalente a um aumento de mais de 10.000%2. Já em 2014, o valor despendido pelo Ministério da Saúde com determinações judiciais chegou a R$ 843 milhões.”
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal analisou dois temas com Repercussão Geral referentes aos temas de saúde (Tema 6 e Tema 500). Os julgamentos dos RE 566471 e RE 657718 se referiram aos pleitos de tutela
6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 657.718, Relator Min Xxxxx Xxxxxxx. Redator Min. XXXXXXX XXXXXXX Tribunal Pleno, Julgado em 22/05/2019 DJ 25/10/2019. Disponível em <xxxx://xxx.xxx.xxx.xx>. Acesso em 27 ago. 2020
jurisdicional para o fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo ou experimentais, que, a princípio, não são fornecidos pelo SUS, seja pelo não enquadramento pela Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), seja pela ausência de registro na ANVISA.
Como fundamento para a negativa no fornecimento, o Poder Público costuma invocar o princípio constitucional da legalidade orçamentária, eis que deve observar a previsão financeira existente para a realização de despesas. Alega não ser possível direcionar parte de sua verba para o atendimento de apenas um cidadão, deixando milhares descobertos, e que não poderia ser condenado ao fornecimento de determinada medicação à toda população pois não possui meios financeiros para tanto, devendo ser sopesado o direito individual do cidadão frente aos direitos de toda a coletividade.
A sensibilidade do presente assunto é tamanha que, no artigo “Os conflitos morais enfrentados pelos juízes em demandas de saúde: o caso dos Tribunais Federais Brasileiros”7 são apresentadas distinções gritantes nas análises realizadas em decisões tomadas pelos cinco Tribunais Regionais Federais.
Para o estudo, foram abordados três temas, os quais resumidamente são: 1) fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA; 2) atendimento preferencial em fila de espera, ante ao agravamento da enfermidade; e 3) promoção de custeio integral em hospital privado no exterior.
Em todos os temas analisados, constatam-se diferenças gritantes quanto ao entendimento de cada Tribunal Regional Federal, sendo, como exemplo, o pedido de fornecimento de medicamento sem registro na ANVISA: nos TRF1 e TRF3 predomina a tese de deferimento, ao passo que o TRF2 tende a indeferir o pleito. Por sua vez, os TRF4 e TRF5 possuem divergências internas, ou seja, idênticos pedidos podem ou não ser deferidos, a depender do magistrado que as analisar.
Para além da ausência de técnica jurídica nas decisões, o estudo em comento apontou que, por serem decididos com base em questões morais e filosóficas, o resultado dos julgamentos pode se mostrar bastante injusto em relação aos próprios demandantes. Não bastassem os problemas que
7 XXXXXXX, J. C. “Os conflitos morais enfrentados pelos juízes em demandas de saúde: o caso dos tribunais federais brasileiros. Revista de Direito Sanitário”, v. 19, n. 1, São Paulo/SP, 2018, p. 144-165.
acarretam aos cofres estatais e políticas públicas, o deferimento de pedidos de concessão de benefícios de alto custo, ou não previstos no rol do SUS, acaba por causar injustiças individuais, pois alguns autores tem a “sorte” de terem suas demandas acatadas, ao passo que outros, com idênticos pedidos, as tem indeferidas, a depender do entendimento pessoal dos julgadores.
Quanto ao fornecimento de medicação sem registro na ANVISA, recentemente o STF manifestou-se no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 657.718 nos seguintes termos:
Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 500 da repercussão geral, deu parcial provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro Xxxxxxx Xxxxxxx, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Xxxxx Xxxxxxx (Relator) e Xxxx Xxxxxxx (Presidente). Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União”, vencido o Ministro Xxxxx Xxxxxxx. Ausente, justificadamente, o Ministro Xxxxx xx Xxxxx. Plenário, 22.05.2019.8
Referida decisão demonstra que, em regra, não se deve conceder medicamentos sem registro na ANVISA, exceto quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil não mas que não tenha sido apreciado após o transcurso de 90 (noventa) dias (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. Outra importante decisão da Suprema Corte foi no Tema 6 (“Dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras de comprá-lo”). Nesse recente julgamento, embora ainda não finalizado, restou decidido pela maioria dos Ministros que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos de alto
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 657.718, Relator Min Xxxxx Xxxxxxx. Redator Min. XXXXXXX XXXXXXX Tribunal Pleno, Julgado em 22/05/2019 DJ 25/10/2019. Disponível em <xxxx://xxx.xxx.xxx.xx>. Acesso em 27 ago. 2020
custo não registrados na lista do SUS, com exceções para casos de extrema necessidade do medicamento e impossibilidade financeira do cidadão de arcar com os custos. Tais condicionantes ainda serão objeto de definição pela Suprema Corte, em nova sessão que definirá a tese de repercussão geral.9
As diversas decisões observadas refletem a singularidade do tema, que coloca em lados opostos o direito ao acesso à saúde, e o equilíbrio orçamentário, princípios e fundamentos jurídicos de tamanha importância que deveriam andar lado a lado, mas pela falta de dotação orçamentária, acabam por ficar em lados opostos.
Considerações finais
A concretização de direitos sociais deveria ser prioridade do Estado brasileiro, mas a sua efetivação depende muito da correta distribuição de recursos, os quais não são infinitos. Diante da finitude de recursos, não é viável a garantia indefinida de concessões de medicamentos e serviços de saúde aos cidadãos, pois são áreas de constante desenvolvimento tecnológico, a custos altos, especialmente quando ainda se tratam de tratamentos experimentais ou recém lançados nos mercados. Contudo, há diversas situações em que os medicamentos ou serviços estão previstos no rol do SUS, mas não são disponibilizados à população em tempo hábil, por falta de estrutura ou organização da rede local.
Em tais situações, a judicialização de demandas poderia ser evitada pela maior eficiência na prestação de serviços, eis que buscam apenas a garantia da prestação de serviços ou fornecimento de medicamentos de modo urgente.
A melhor solução para o atendimento aos indivíduos talvez não passe necessariamente pela judicialização das demandas que visam acesso a inovações na área de saúde, pois nem sempre os julgamentos com base em questões morais dos magistrados se mostram justos. A análise de decisões proferidas pelos Tribunais Regionais Federais em matérias de saúde demonstrou a disparidade de entendimentos entre os julgadores, eis que não embasadas em critérios objetivos, mas em fundamentos morais ou éticos, que
9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, <xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxx/xxx/xxxXxxxxxxXxxxxxx.xxx? idConteudo=439095&caixaBusca=N#:~:text=Imprensa,-Not%C3%ADcias%20STF&text=O
%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,Sistema%20%C3%9Anico%20de%20Sa
%C3%BAde%20(SUS)> acesso em 27/08/2020
mudam de acordo com a abordagem pessoal do julgador. Tais decisões, para além de ocasionarem impactos nas políticas públicas, acabam por acarretar injustiças aos jurisdicionados, que vivem em verdadeira “loteria jurídica”, eis que suas demandas ficam à mercê da sorte na distribuição de suas ações.
O acesso à saúde deve ser objeto de sérios estudos de políticas públicas, a serem desenvolvidas pelo Estado através de abordagens e profissionais de diversas áreas, mas especialmente voltadas à garantia de atendimento de recursos à população em geral, e não apenas àqueles que podem recorrer ao Poder Judiciário. Tal acesso pode ser melhor efetivado utilizando-se das possibilidades trazidas pelas parcerias privadas, mediante acesso mais ágil a novas tecnologias, mas sempre sendo observado o princípio da reserva do possível, segundo o qual o Poder Público atua através de políticas públicas, da distributividade dos recursos e da efetividade do serviço.
As parcerias privadas podem trazer grande evolução no atendimento de saúde da população brasileira, pois as inovações nessa área são diárias, e nem sempre o Poder Público consegue acompanhar a evolução tecnológica com a mesma rapidez que o privado. Deve-se ter em conta que, em razão dos inúmeros princípios e normas a serem observados para qualquer contratação pública, o Estado muitas vezes se torna lento ou ineficiente. Embora existam problemas de gestão pública, nem sempre a demora nas contratações e compras decorre apenas de falta de gerenciamento ou mau dimensionamento pelos gestores; há diversas situações em que o estrito cumprimento às leis por si só ocasiona prejuízos. Vejamos como exemplo uma situação de contratação de médicos: acaso exista um pedido de exoneração por servidor público, o ente responsável deverá abrir novo concurso público para a nova contratação. Ainda que o certame seja ágil e sem intercorrências, em razão da necessidade de observação de todos os prazos legais e tempo necessário para a correção de provas e análise documental, dificilmente haveria uma contratação em menos de três ou quatro meses. Essa previsão pode até soar bastante razoável para concursos públicos, mas a população não poderia aguardar tantos meses para um atendimento médico, em que, a depender da doença, tal prazo poderia ser fatal.
Além dos problemas de prazos para contratação de mão-de-obra, é certo que também a aquisição de medicamentos ou equipamentos é bem mais
ágil quando realizada diretamente por particulares do que através do Poder Público, que sempre precisará realizar, no mínimo, um procedimento prévio para justificar a dispensa de licitação.
Quando se trata de uma área sensível e emergencial como a Saúde Pública, é necessário obter meios de garantir maior agilidade na prestação de serviços e a garantia do atendimento da população. E uma das formas encontradas é através das parcerias com prestadores privados.
Embora existam riscos nas parcerias, em razão dos possíveis desvios de finalidade ou de recursos públicos, é necessário ponderar que as contratações privadas também trazem grande agilidade no atendimento da população. Há inegáveis vantagens nas parcerias previstas, razão pela qual, o que se deve fazer é intensificar as formas de controle, para que não ocorram os atos de improbidade administrativa, mas que seja garantida a prestação de serviços por particulares, nas hipóteses que se mostrarem mais interessantes.
Resta claro que a agilidade nas contratações refletiria melhor prestação de serviços à população, e, possivelmente, auxiliaria na redução de demandas judiciais na área da Saúde. Embora existam ações judiciais que buscam o fornecimento de medicamentos não incorporados pelo SUS, o que não seria proporcionado pelo Estado, há igualmente muitas demandas que visam apenas a prestação de serviços em momento hábil, com rapidez e eficiência. Em casos como esses, a melhor gestão de recursos públicos seria suficiente ao atendimento da população, diminuindo o número de ações em tramitação. Xxxx demandas poderiam ser atendidas com maior agilidade e eficiência em caso de boas contratações com parceiros privados, sempre com vistas a oferecer maior flexibilidade e eficiência aos serviços de saúde.
Referências:
XXXXXX, Xxxxxxxx. Prestação de serviços de assistência à saúde pelos municípios. 1.ed. Belo Horizonte: Forum, 2017
MÂNICA Xxxxxxxx, Wandscheer, Xxxxxxxx. “Saúde e desenvolvimento humano: parcerias com o terceiro setor e incorporação de novas tecnologias ao SUS”. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol. 23 – n.2, 2018. Itajaí, SC, UNIVALI, fl. 703-724.
Supremo Tribunal Federal: Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923/DF.Tribunal Pleno, Rel. para o acórdão Min. Xxxx Xxx, julgado em 17 dez. 2015.
Supremo Tribunal Federal: Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 657.718, Relator Min. Xxxxx Xxxxxxx. Redator Min. XXXXXXX XXXXXXX Tribunal Pleno, Julgado em 22/05/2019, DJ 25/10/2019.
XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. “Os conflitos morais enfrentados pelos juízes em demandas de saúde: o caso dos tribunais federais brasileiros”. Revista de Direito Sanitário, v. 19, n. 1, 2018. São Paulo/SP, p. 144-165.