CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE À LUZ DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO E DA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO: ALTERNATIVAS À SUA ADEQUAÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE À LUZ DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO E DA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO: ALTERNATIVAS À SUA ADEQUAÇÃO
Xxxxxxx Xxxxx Damasceno1 Marília Verônica Miguel2 Natureza do Trabalho³
RESUMO
Desde a Reforma Trabalhista, há uma nova figura contratual no Brasil: o contrato de trabalho intermitente. Sua regulamentação, parte da pretensa modernização das leis do trabalho às demandas do mercado, deve ser analisada em seu potencial de contrariedade aos princípios constitucionais do valor social do trabalho e da valorização do trabalho humano. Assim, a partir do método hipotético-dedutivo, objetivou-se entender se tal violação ocorreu e como. A esse fim, foi indicado como os princípios mencionados condicionam o ordenamento jurídico nacional em sua criação normativa e o conteúdo que remetem nessa vinculação. Após isso, e para entender o contexto que deu origem a esse tipo contratual, foram evocadas as mudanças históricas e econômicas que o justificam e a forma como é previsto no Direito Comparado – visto não ser figura inédita em outros países. Por fim, concluiu-se pela inadequação da atual redação do contrato de trabalho intermitente ao ordenamento jurídico brasileiro, sendo propostas medidas que o tornem coerente, garantindo atendimento às necessidades econômicas sem ferir os direitos sociais do trabalho obtidos ao longo de séculos de reivindicações.
Palavras-chave: Contrato de trabalho intermitente. Valor Social do Trabalho. Valorização do Trabalho Humano. Acumulação Flexível. Reforma Trabalhista.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO, 1 O PROTAGONISMO JURÍDICO E POLÍTICO DOS
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO, 1.1 Valor Social do Trabalho e Valorização do Trabalho Humano. 2 BREVE HISTÓRICO DO CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE. 3 O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE BRASILEIRO. CONCLUSÃO, REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Entre os princípios impressos na Constituição Federal de 1988 e que regem a República Federativa do Brasil, têm grande protagonismo aqueles que se remetem ao trabalho, protegido como valor social e assim valorado pelos arts. 1º, IV e 170 da Carta Política.
1Aluno do Curso de Direito da Fundação de Ensino Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, Marília, São Paulo; 2Professora Ma. do Curso de Direito da Fundação de Ensino Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, Marília, São Paulo;
³ Trabalho de Conclusão de Curso em Direito apresentado à Fundação de Ensino Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, Mantenedora do Centro universitário Eurípides de Marília, para obtenção do grau de bacharel em Direito.
Ao assim serem erigidos, percebe-se que o constituinte denotou ao trabalho um caráter de essencialidade à organização da sociedade brasileira, visto que primado de sua ordem conforme o art. 193 do texto constitucional.
Nesse contexto, é natural que uma mudança significativa do arcabouço jurídico trabalhista atraia olhares e exames de potenciais prejuízos ou avanços: com a Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017, não poderia ser diferente.
E no elenco dos temas por ela trazidos, a inédita disposição do contrato de trabalho intermitente em âmbito nacional é aquele que se propõe analisar.
É de se questionar como a sua redação e aplicação na vida do trabalho implicam em descumprimento dos princípios acima mencionados e até que ponto eles, os próprios princípios constitucionais, teriam o condão de limitar a produção legiferante sobre esse contrato.
Ao mesmo tempo, e para entendê-lo de maneira mais aprofundada, tem-se como imperioso o perscrutar das conjecturas que levaram à inclusão desse tipo contratual ao nosso ordenamento: para esse fim, elementos históricos, sociológicos e econômicos, além da experiência internacional – em Direito Comparado – são fundamentais tanto para divisar o lastro desse contrato como para intentar prognósticos de seus desdobramentos.
Por fim, confrontar esse espécime junto aos princípios do próprio Direito do Trabalho e do entendimento jurisprudencial até então disponível podem fornecer argumentos a fim de verificar a sua compatibilidade normativa com o ordenamento jurídico pretérito à sua redação.
Tudo isso é útil para entender como – e se – o contrato de trabalho intermitente é compatível com a ordem jurídica nacional e, não o sendo, como pode se tornar.
Assim, utilizando-se do método hipotético-dedutivo, almejasse-se que a presente discussão tenha a mesma relevância que deve ser atribuída àquelas que se propõem a verificar qualquer uma das figuras que integram o panteão das reformas que se pretendem liberais e que, a esse fim, põem em risco caras garantias trabalhistas.
1 O PROTAGONISMO JURÍDICO E POLÍTICO DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO
Previstos respectivamente no ar. 1º, IV da CF e no caput do art. 170, o valor social do trabalho e a valorização do trabalho humano são previsões constitucionais que embasam o ordenamento jurídico pátrio de tal forma – e com tamanho protagonismo – que são erigidos, em ordem, como princípio fundamental da República Federativa e como princípio da ordem econômica e financeira nacional.
E a possibilidade de atribuí-los tal proeminência é viabilizada quando do questionamento de como os princípios influem no ordenamento jurídico constitucional em sua força normativa e política, temática para a qual autores diversos contribuíram.
Entre eles, elenca-se Dworkin (apud GRAU, 2014, p. 153) que, à discussão das normas, atribuiu-as dois sentidos possíveis: normas como diretrizes, que objetivariam pautas de cunho econômico, político ou social, e princípios, que têm por fim um imperativo de justiça e de honestidade, em âmbito moral.
Ao contextualizar tal entendimento à nossa ordem constitucional, GRAU (2014, p. 156) aplicou o conceito de princípios justamente àqueles do art. 1º – incluindo de pronto o valor social do trabalho – assim como a valorização do trabalho humano do art. 170, caput da Carta Política.
Logo, para fins interpretativos, ao viabilizá-los como princípios nesses parâmetros, tem-se o condão de reconhecer a sua gravidade como vetores da moral e da justiça social que devem nortear a ordem jurídica constitucional.
Na repercussão política, por seu turno, ainda é possível citar Xxxxxxxxx (1999, p. 1091) que, em sua tipologia de princípios, elenca – entre vários grupos – aqueles denominados como políticos constitucionalmente conformadores.
Para o autor, esses explicitam valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, condensando as concepções nucleares da assembleia ao passo que determinam a ideologia que inspirará toda a Constituição, definindo o cerne do seu papel político.
E, assim como o sentido empregado por Xxxxxxx (apud GRAU, 2014, p. 197-198) afeta a interpretação jurídica da Constituição, a explanação feita por Xxxxxxxxx refletirá o plano político pensado pela Carta.
Nesse aspecto, a implicação interpretativa, segundo o próprio autor, será a de se levar em conta esses preceitos quando da atuação de todos os órgãos encarregados de instrumentalizar o direito e aqui – nota-se – tanto na interpretação dos aplicadores, como na intepretação daqueles que o produzem por seus atos normativos.
Em outros termos, é dizer que o valor social do trabalho e a valorização do trabalho humano devem ser respeitados não só como princípios garantidores da justiça, em valor moral, mas também como uma escolha política nuclear do Estado feita pelo constituinte, tornando claro aquilo que ele prezou como fundamento da República Federativa.
No entanto, como nos indica o Xxxx Xxxx (2014, p. 161), a interpretação constitucional dos princípios deve ser dinâmica – em razão da variação das realidades no tempo e no espaço,
no contexto histórico e cultural – e não estática, de forma que não se deve abstrair à realidade dos fatos àquilo previsto.
A esse ponto, e a fim de aplicar a indiscutível importância normativa e política dos princípios em análise, fundamental escopo nos oferece Xxxxx (apud XXXXXX e BRANCO, 2020, p. 104), para quem os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes de modo a serem comandos de otimização que leva em conta a possibilidade jurídica junto à possibilidade real.
Desse modo, o valor social do trabalho e sua valorização, como princípios nucleares que inspiram a noção de justiça e moral, devem ser aplicados conforme a realidade da atualidade, ao passo que não se deve fazer levar pelos ventos arbitrários que os possam influir pelo momento.
Deve-se, antes, ponderar pelas e nas possibilidades jurídicas apontadas por Xxxxx que, no contexto político, acabam por serem aquelas limitações postas pelos princípios como elementos conformadores, na concepção de Xxxxxxxxx acima exposta.
Nesse contexto, ao se entender a essencialidade jurídica e política inerente dos princípios, é de se questionar até que ponto modificações na estrutura normativa trabalhista, viabilizadas pela Reforma Trabalhista de 2017 , e entre elas o contrato intermitente, projetam- se como potencial afronta aos fundamentos constitucionais da República Federativa em relação ao trabalho.
E a fim de assim discorrer, importante é a anterior qualificação do conteúdo de tais princípios para que, com base neles, verifique-se aquilo proposto por essa nova figura contratual.
1.1 Valor Social do Trabalho e Valorização do Trabalho Humano
Restando clara a elevação do valor social do trabalho e a valorização do trabalho humano como princípios que regem a ordem jurídica e política constitucional e como a presença deles é notada em sua estrutura, resta inquirir sobre o conteúdo desses, a sua materialidade, o que por eles é pregado e deve ser lembrado como escolha política nuclear.
E para entender o conteúdo, imperioso é entender os processos históricos que assim os formaram e erigiram. A esse ponto, nota-se que o sentido construído ao longo do tempo tem íntima ligação aos direitos fundamentais, ainda mais quando visto que tais princípios devem ser assim entendidos, como nos adverte Xxxxxxx (2007, p.13).
Em apertada síntese, recorda-se que os direitos fundamentais, divididos pedagogicamente em dimensões, tiveram, após a primeira delas – a das liberdades civis –,
progressão aos direitos sociais que, uma vez conquistados em grande parte pelas revoluções dos trabalhadores e pela consolidação das democracias europeias ocidentais a partir da segunda metade do século XIX, foram finalmente compreendidos nas Cartas Políticas do México de 1917 e da Alemanha de 1919 (SILVA, 2005, p. 548).
E o direito do trabalho assim se firmou como importante aliado não só da dignificação do homem, mas também como instrumento de viabilização da democracia: em uma sociedade capitalista, onde historicamente se experimentou a não coincidente simultaneidade de renda e poder, o trabalho assalariado, como mecanismo de redistribuição dessa renda, significou – e significa – a oportunidade para muitos de terem sua participação no espaço público garantida, de possuírem voz (GODINHO, 2007, p.14), ao passo que também serve como elemento estabilizante para a manutenção do próprio sistema capitalista (XXXXX, 2005, p. 548).
E frisa-se que isso se diz sobre o direito do trabalho (GODINHO, 2007, p. 15), e não somente do trabalho: justamente em razão da normatização de diretrizes para a fenomenologia da força de mão-de-obra humana é que se fez caminhar do trabalho servil ao assalariado, explicitando como acaba sendo um instrumento de redistribuição de renda – e logo de poder e participação pública – ao longo dos séculos.
Logo, não se trata somente do trabalho como fato, mas sim de como ele é previsto em uma sociedade a fim de propiciar meios que dignificam quem o operaliza.
Nesse sentido, indubitavelmente se encara o trabalho como um valor social: através da renda que por ele é proporcionada e que, por seu turno, garante a participação de mais agentes no espaço público tem-se, em última análise, o trabalho como arauto do ideal da própria democracia.
Assim, abrir mão daquilo que o firma como tal ou tentar minar sua expressão é dirimir o próprio sistema democrático.
Tanto o é que, no contexto constituinte de 1988, os princípios do valor social do trabalho e da valorização do trabalho humano foram pensados em conjunto com outros de caráter mais generalista, como a dignidade da pessoa humana, da subordinação da propriedade à sua função socioambiental e a justiça social, pilares democráticos (GODINHO, 2007, p. 17).
E conclusão mais lógica não haveria: por meio de um direito do trabalho que tenha regulamentações justas e responsáveis, viabiliza-se a dignificação do trabalhador – fim do próprio trabalho – ao passo que torna a sociedade mais justa em oportunidades e participações no espaço público e, a fim de se cumprir com o princípio intergeracional, social e ambientalmente sustentável.
A verificação dessa assertiva tem exemplo claro ao previsto no caput do art. 170 da Constituição Federal: esse, ao prescrever como fundamento da ordem econômica a valorização do trabalho e a livre iniciativa, poderia sugerir que o trabalho não possui tamanho protagonismo na ordem jurídica nacional, tendo em vista que os dois compartilham o mesmo espaço.
A esse desdobramento cabe recordar o ensinado por Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx que, ao se debruçar sobre os princípios da ordem econômica nacional desse dispositivo, sugere que a influência do valor do trabalho humano tem primazia em relação àquela da iniciativa privada trazida pelo mesmo dispositivo:
A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. (SILVA, 2014, p. 800)
Em paralelo a essa abordagem, xxxx Xxxx (2017, p. 198) que a livre iniciativa somente expressa um valor social quando não tomada em apartado, mas sim em conjunto com o valor social do trabalho.
Logo, a influência desses princípios deve reger o campo político, enquanto politicamente conformadores, mas também o econômico, visto que objetiva norteá-lo: têm como fim a garantia da própria democracia em uma sociedade com igualdade de acesso às oportunidades.
Ir contra isso é atinar a um retrocesso social que, sabidamente, é mundialmente vedado pela interpretação do previsto à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da ONU, em seu artigo 30 (ONU).
Por óbvio que não se presume haver uma abolição de toda a base de direitos fundamentais do trabalho por essa nova figura contratual. No entanto, em não se abolindo ainda há espaço para a violação e precarização das proteções fundamentais, significando ainda um potencial retrocesso social, razão para um olhar bem atento e que atente a não banalização de direitos conquistados ao longo das décadas.
2 BREVE HISTÓRICO DO CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE
A fim de entender como o contrato de trabalho intermitente pode denunciar uma precarização do trabalho em âmbito nacional, é crucial recordar que, apesar de ser figura recente em nosso ordenamento jurídico trabalhista – e estrear essa figura contratual no contexto da América Latina (LARAIA, 2018, p. 184) –, ele já foi previsto em outros ordenamentos.
E é a partir da previsão legal e experimentação social desses que é possível notar certa proximidade legiferante e influência à normatização brasileira – útil ao prognóstico de como ele pode vir a se desenvolver – ou distanciamento em escolhas legislativas diversas que, igualmente, é útil ao pensar esse tipo contratual naquilo que poderia ser em âmbito nacional.
Todavia, em anterioridade à verificação dessas regulamentações é de essencial importância entender o contexto econômico-social que ensejou e demandou o surgimento do contrato nos moldes flexíveis, e entre eles o intermitente, bem como a resposta dos países a essas demandas de mercado.
Para isso, remonta-se ao processo produtivo pensado e desenvolvido por Ford desde o início do século XX: influenciado por outros nomes relevantes ao tema da eficiência industrial, como Taylor, objetivava não só um aumento radical de produtividade do trabalho através da decomposição de cada processo das linhas de montagem e de gerência, como também pretendia espelhar a produção em massa ao consumo em massa, criando, em última análise, um novo tipo de sociedade (HARVEY, 1996, p.122).
Em termos práticos, isso significa dizer que ao ter instituído – em 1914 – uma jornada de oito horas de trabalho e cinco dólares como retribuição, o fordismo não colimava apenas incutir disciplina ao trabalhador da linha de alta produtividade: antes, como nos adverte Xxxxxx (1996, p. 122), propunha com esse modelo disponibilizar renda e tempo de lazer suficiente para que o mesmo trabalhador consumisse os produtos advindos da fabricação em grande escala que, a fim e a cabo, incentivasse produções cada vez maiores das corporações industriais.
Por óbvio que a implementação desse sistema sofreu alguns percalços, em especial no período entre as duas Grandes Guerras: quer seja nos Estados Unidos ou na Europa, principiais centros do capitalismo, havia preconceitos tanto em relação às funções profundamente destacadas quanto, e principalmente, em relação à forma como ele se regulamentaria.
Isso nos adverte Xxxxxx (1996, p. 124-129) que, ao explanar a temática, indica que a Grande Crise iniciada em 1929 demonstrou a insuficiência dos mercados em se autorregularem para a funcionalidade desse sistema que demanda, em essência, um aumento
de produção fomentado por aplicações de capitais que expectam uma constância de expansão produtiva suficiente para retribuí-los e incentivar novos aportes que visarão outros investimentos.
Tanto o foi que a resposta para o amadurecimento do sistema fordista, segundo o autor, só veio quando esse somou esforços ao sistema econômico pensado por Xxxxxx: os pesados investimentos de capital fixo só poderiam ter retornos satisfatórios a partir da intervenção estatal em ciclos econômicos que combinavam políticas fiscais e monetárias (XXXXXX, 1996, p. 129).
Essa nova concepção veio a dar frutos no pós-guerra, período iniciado a partir de 1945: propiciada a partir de “uma base sólida de práticas de controle de trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder-político econômico” (XXXXXX, 1996, p. 119), tinha-se uma grande expansão do modelo que, em termos gerais, poderia ser traduzido como a garantia de estabilidade para o crescimento econômico dos países que o adotavam.
Todavia, o prognóstico de desenvolvimento desses grandes países industrializados não duraria tanto tempo. Em meados da década de 1960, o fordismo e keynesianismo já mostravam sinais de anacronismos: sem a necessidade de alta produção para recuperação dos países devastados pela Segunda Guerra Mundial, iniciou-se a saturação do mercado interno da Europa e do Japão. Os Estados Unidos, por sua vez, conseguiriam manter parte desse sistema em razão dos esforços empreendidos na Guerra do Vietnã, mas – e à semelhança dos seus pares – sofreria com a expansão desse mesmo modelo em países do Terceiro Mundo, em especial a América Latina, nos quais grandes corporações galgavam maiores lucros em vistas de um forte controle do trabalho ser, não raro, desrespeitado (XXXXXX, 1996, p. 136).
Com isso, a inflexibilidade dos investimentos de capital fixo que o sistema fordista demandava acabava por frustrar os resultados esperados, causando sérios episódios de ondas inflacionárias nos países que tentavam manter a lógica fordista a partir de uma política monetária frouxa o suficiente para sustentá-lo (XXXXXX, 1996, p. 136).
E o desmantelamento desse período conhecido como a “era de ouro do capitalismo” (XXXXXX, 2020, p. 23) foi aperfeiçoado com a crise energética do petróleo encetada pela OPEP em 1973, levando o mundo a uma realidade mais fluída e mais incerta, pondo fim à estabilidade antes articulada por poderes estatais e do capital (XXXXXX, 1996, p. 119).
Essa nova perspectiva fez com que o sistema capitalista reclamasse uma radical reestruturação em vistas de sobrevivência: a volatilidade do mercado – causada pelo aumento da competição e a indissociável diminuição da margem de lucro nesse processo – resultou na imposição de flexibilidade das operações (XXXXXX, 1996, p. 143).
Nesse contexto, o modelo japonês adotado no pós-Guerra – também conhecido como toyotismo – ganhou atenção dos países ocidentais por prometer uma eficiência mercadológica mais adequada à realidade que se concretizara (ANTUNES, 1998, p. 90) já que:
1) É uma produção mais diretamente vinculada aos fluxos de demanda;
2) É variada, bastante heterogênea e diversificada;
3) Fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade e flexibilidade de funções, na redução das atividades improdutivas, dentro das fábricas e na ampliação e diversificação das normas de intensificação da exploração do trabalho;
4) Tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento do tempo de produção e funciona segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque, que no toyotismo, devem ser mínimos. Enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era produzido no seu interior, na fábrica toyotista somente cerca de 25% é produzido no seu interior. Ela horizontaliza o processo produtivo a “terceiros” grande parte do que anteriormente era produzido dentro dela. (ANTUNES, 1998, p. 90)
Prevê-se, logo, que a flexibilização dos processos de produção inevitavelmente perpassa o mercado de trabalho – e em especial a organização industrial – que teve, com essa plasticidade, uma diminuição de contratos de trabalho regulares, inclusive nos postos centrais, substituídos por contratos em que a força de trabalho pode entrar facilmente e ser demitida sem custos quando o cenário de mercado assim demandar (XXXXXX, 1996, p. 144). Em outros termos: contratos de trabalho sem um controle mais rígido.
Surgiu, assim, um novo proletariado fortemente marcado pela precarização de proteções trabalhistas e a intensificação da exploração do trabalho de grupos mais vulneráveis, em especial naqueles países do Terceiro Mundo (ANTUNES, 1998, p. 93) que não possuíam tradições industriais (XXXXXX, 1996, p.144).
E essa desestabilização da força de trabalho permitiu aos empregadores o exercício de novas pressões ao controle do próprio trabalho que, a fim e a cabo: marginalizam os extremos dos grupos etários (ANTUNES, 1998, p. 93); fazem com que os vulneráveis – como estrangeiros – sejam forçados a formarem pequenos negócios informais ou domésticos e que as mulheres sejam incentivadas a substituírem postos antes ocupados por homens, mas em caráter de trabalho parcial e com menor remuneração equivalente (XXXXXX, 1996, p. 146).
Ou seja, viabilizam uma fragmentação de uma unidade da classe trabalhadora que se heterogeniza e se torna ainda mais complexa (ANTUNES, 1998, p. 93).
A articulação desses elementos culmina em um solapamento da organização trabalhadora industrial e, como resultado intrínseco, da força sindicalista, transformando a
base objetiva da luta de classe entre capital e trabalho (XXXXXX, 1996, p. 145), enfraquecendo a força que antes era a trincheira de proteção das previsões trabalhista e uma das colunas políticas do modelo fordista (XXXXXX, 1996, p. 141).
E é nesse fértil cenário de desregulamentação que diversas modalidades contratuais puderem ser pensadas. Deve-se questionar como cada um dos países, a partir da realidade que se mostrava, decidiu por regulamentar – ou não – uma das figuras de trabalho surgida a partir da década de 1980 e objeto do presente estudo: o contrato de trabalho intermitente. Assim, por meio da atividade estatal, as distorções já promovidas por esse contexto econômico poderiam ser, nele, parcialmente refreadas ou afloradas.
Como apontado por Laraia (2018, p. 184-193), verifica-se a antecedência da Alemanha na instituição desse espécime contratual em 1987 sob o nome de arbeit auf abruf3, na Lei de Promoção do Emprego, sendo seguida pelo Reino Unido que o batizou de zero-hour contract4.
Na Itália, foi denominado como lavoro interimitente5 e instituído em 2003 com a proposta de tornar menos rígidas as modalidades contratuais, sofrendo grandes críticas que renderam alterações em 2015 (COLUMBU, 2019, p. 95). Portugal acabou adotando esse espécime após a aprovação do Código do Trabalho, de 2009 e, recebido mais recentemente pela Espanha, essa o denominou trabajo fijo discontinuo6 ao aprovar o Estatuto dos Trabalhadores, texto reformista de 2015 (BARZOTTO, 2017, p. 139).
Em linhas gerais, tem-se por óbvio que todos propõem a flexibilização da jornada de trabalho visando possibilitar a diminuição do tempo da prestação da força laboral conforme demandado pelo sistema capitalista (GODINHO, 2019, p. 673) que, por seu turno, fará com que o trabalhador passe a receber o equivalente por essas horas trabalhadas (BARZOTTO, 2017, p. 139).
Em específico temos que, na Inglaterra, ao se ansiar por uma maleabilidade exacerbada do contrato de trabalho, pelo art. 27 do Employment Rights Act de 1996 (XXXXX, 2018, p. 57), instituiu-se uma modalidade intermitente tida como sinônimo de “escravidão moderna”: sua regulamentação não prevê período limite para o trabalhador permanecer à disposição do empregador ao passo que permite a convocação ao trabalho sem uma antecedência mínima – que seria essencial a um planejamento prévio do próprio trabalhador –
3 Trabalho a pedido
4 Contrato zero hora.
5 Trabalho intermitente.
6 Trabalho fixo descontínuo.
além de dar ao próprio empregador o arbítrio de determinar as horas de trabalho sem um padrão constante (BARZOTTO, 2017, p. 139).
Em questão etária, acaba sendo mais desenvolvido somente pelos jovens com menos de 25 anos e os idosos acima de 65 anos, grupos que geralmente encontram dificuldades de serem alocados no mercado de trabalho formal, e para os quais o trabalho intermitente é pensado mais como uma forma de complementação de renda já que, raramente, o é como forma de contratação única (COLNAGO, 2017, p. 1087).
Logo, o modelo inglês propicia uma relação de trabalho tão instável, insegura e precária que sequer oportuniza tornar-se forma única de sustento do trabalhador, em efeito deletério flagrado pela preterição de grande parte da população economicamente ativa que o lega aos trabalhadores mais jovens e mais velhos que, justamente, são um dos principais alvos das pressões de mercado, como há pouco visto.
Nesse cenário, a expectativa lusitana, às vésperas da regulamentação que se deu já no século XXI, era a de que esse tipo contratual era o resultado do efeito global da “erosão da relação de trabalho típica” que atine a uma versatilidade do contrato de trabalho que é conquistada por uns à custa de limitações para outros (XXXXXXX, 2012, p. 69).
E isso porque a contratação por volume de trabalho em proporção à produção demandada pelas empresas permite o aumento de postos de trabalho não necessariamente pela criação de novos postos, mas também pela repartição daqueles já existentes, ou seja, pela fragmentação da base dos trabalhadores – também antes comentada – que, além de facilitar a espiral de contratação a termo com o mesmo trabalhador, fragiliza o vínculo contratual causando uma precarização do trabalho (XXXXXXX, 2012, p.71).
Como forma de atenuar esses impactos, Portugal optou por delimitar a forma como esse contrato pode ser prestado. Em síntese, pelo art. 157 do Código do Trabalho, é permitido somente nas atividades que, em sua natureza, sejam descontínuas ou de intensidade variável, tornando um contrato específico e não genérico em relação às atividades de mercado.
Além disso, prevê a possibilidade de intercalação entre o período de prestação por um ou mais períodos de inatividade, vedada a contratação por prazo certo ou temporário (PORTUGAL, 2009, Art. 157, 2), no que se pretende inutilizar esse espécime como meio fraudulento.
O período de prestação, em recente alteração de 2019 ao art. 159, é previsto de ser em pelo menos cinco meses por ano dos quais ao menos três devem ser consecutivos (PORTUGAL, 2019, Art. 2º).
E, durante o período de inatividade, o trabalhador tem direito a compensação retributiva em valor estabelecido pelo sindicato ou, em não havendo regulamentação, de no mínimo 20% daquilo que receberia em atividade, além de poder exercer outra atividade – desde que informando o empregador – tudo conforme o art.160 do mencionado diploma.
Sua formalidade demanda que seja escrito e com indicação da jornada de trabalho ou dias de trabalho durante o ano sendo que, na falta, o art. 158 prevê que será tido como contrato de trabalho comum.
Todavia, por reconhecer que algumas funções possuem maior previsibilidade de demanda do que outras (XXXXX, 2017, p. 57), o mesmo Código do Trabalho permite, além dessa contratação por turnos intercalados, a contratação à chamada, desde que respeitada a antecedência de 30 dias de comunicação – quando o trabalhador exercer outra atividade – ou em 20 dias – em não possuindo nenhuma outra (PORTUGAL, 2009, Art. 159, 3).
A Itália, por seu turno, também dispõe de alguns requisitos objetivos para a escolha pelo contrato intermitente: ele só é permitido, regra geral, em se cumprindo as exigências indicadas pelas negociações coletivas dos sindicatos ou por específica tabela disposta pelo Ministério do Trabalho. A exceção estaria no caso das contratações de trabalhadores menores de 24 anos ou maiores de 55 anos, em vistas de estimularem a admissão dessas parcelas que, corriqueiramente, sofrem por sua pouca experiência profissional – caso do primeiro grupo – ou, em razão da idade, têm dificuldade de reingresso no mercado de trabalho (COLUMBU, 2019, p. 99).
De mais a mais, e a fim de evitar a espiral de contratação a termo, a legislação italiana preconiza um limite temporal: o mesmo empregador não pode superar quatrocentos dias de trabalho ao longo de três anos com o mesmo trabalhador. Novamente, comporta exceção: dessa vez aos setores de turismo, serviços públicos e espetáculos em geral, tudo conforme o art. 13 do Decreto Legislativo 81/2015.
E, por fim, o artigo 14 do mesmo decreto impede o uso dessa modalidade para substituir os trabalhadores em greve, para empresas que tiveram demissão coletiva dos trabalhadores da mesma função nos últimos seis meses e para aqueles que não foram certificadas em cumprimento das medidas de segurança requeridas por elas em legislação própria.
Ao fim dessas descrições, e longe de se esgotar esses três modelos de contrato intermitente ou todos os demais já legislados – além de se ater à ideia de que todos comportam críticas duras e necessárias – finalmente se impõe a reflexão de como a escolha legislativa pode – ou não – atenuar os prejuízos causados pelas transformações observadas
após o colapso do fordismo e ascensão do modelo de produção aos moldes japoneses, momento denotado por Xxxxxx (1996, p. 140) como de acumulação flexível.
Aqui, insta-se como indispensável afastar qualquer ideia romântica a respeito do modelo fordista em detrimento desse novo período, mas se deve admitir, por todo o exposto, a precarização que essa nova fase incute aos contratos de trabalho.
Longe de tê-lo sido por motivos altruísticos, o modelo de Ford possibilitou certa previsibilidade do tempo de trabalho e de lazer ao trabalhador, possibilitando ainda uma organização industrial e sindical forte que se opunha a eventuais rompantes de desregulamentações e que se organizava de maneira mais orgânica. Ao mercado, propunha – mesmo que de forma provisória – estabilidade de investimentos, definidor de seus momentos de ápice e também o motivo de seu declínio, como visto.
Na acumulação flexível, o trabalhador passa a ser peça descartável pela capacidade de se fazer substituir facilmente, além de contar com grande instabilidade em relação a sua remuneração, tempo de trabalho e demais direitos conquistados historicamente e já elencados. Tanto o é que no modelo inglês, aqui elencado, o contrato de trabalho intermitente –
fruto desse meio – é um exemplo indubitavelmente eloquente da disrupção do controle de trabalho antes tido como coluna política no modelo fordista: a tida “escravidão moderna” joga o trabalhador aos interesses voláteis do capital e de seu empregador, trazendo o fardo da precarização de direitos trabalhistas.
Em paralelo, salta aos olhos as diferenças entre essa postura e aquela lusitana: a última, além de ter a vantagem de já ter observado a experiência anglo-saxã, se propõe a refrear as nocivas e notórias distorções de uma plasticidade do controle de trabalho sem freios estatais acima denunciadas.
Observa-se, inclusive, que um dos principais objetos de crítica dessa nova fase econômica, o desmantelamento dos sindicatos – anteriormente visto – sofre um menor prejuízo em Portugal: além de delimitar o contrato intermitente às atividades que possuem flutuações produtivas por sua natureza – o que impediria uma fragmentação de toda a base do trabalho industrialmente organizado –, a remuneração do período da inatividade é justamente regulamentado por xxxxx xxxxxxxx e, em não o sendo, permite uma estabilidade mínima na remuneração retributiva de 20% o que, de toda forma, prevê a diminuição da instabilidade de um modelo econômico tão marcado por ela.
A Itália, por sua vez, também propõe atenuar as distorções ao delimitar períodos, matéria que só pode ser tratada pelo sindicato – reforçando a unidade da base dos
trabalhadores – ou pelo Ministério do Trabalho, incentivar faixas etárias e não tender a aprofundar a perda do poder sindical quando esse se engaja em greves por melhores direitos.
Resta questionar a que corrente o Brasil, em 2017, passou a se vincular e, se nesse condicionamento, prestou-se a ser coerente com sua previsão trabalhista até então vigente, para assim, em posteridade, questionar-se sobre a coerência com os princípios constitucionais tratados no primeiro tópico.
3 O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE BRASILEIRO
O contrato de trabalho intermitente brasileiro surgiu em 11 de novembro 2017, quando da Reforma Trabalhista instituída pela Lei 13.467/2017 que o previu ao art. 443, caput e §3º e art. 452-A, ambos da CLT.
Nos debates legislativos que lhe deram forma, desde o Projeto de Lei nº 3.785/2012 – posteriormente apensado ao de nº 6.363/2005 e alterado pelo Projeto de Lei da Câmara 38/2017, que deu origem à Reforma –, foi entendido que não legislar sobre essa matéria seria ir contra a modernização corrente do mundo, o que significaria aprisionar “tanto os trabalhadores quanto as empresas, prejudicando o desenvolvimento do país” (BRASIL, Câmara dos Deputados, 2012).
Se o pretendido foi alcançado, resposta pode ser dada pela análise do texto que nos foi
legado:
Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.
[...]
§ 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria. (BRASIL, 2017)
Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.
§ 1o O empregador convocará, por qualquer meio de comunicação eficaz, para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, com, pelo menos, três dias corridos de antecedência.
§ 2o Recebida a convocação, o empregado terá o prazo de um dia útil para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa.
§ 3o A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.
§ 4o Aceita a oferta para o comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem justo motivo, pagará à outra parte, no prazo de trinta dias, multa de 50% (cinquenta por cento) da remuneração que seria devida, permitida a compensação em igual prazo.
§ 5o O período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes.
§ 6o Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas:
I – remuneração;
II – férias proporcionais com acréscimo de um terço: III – décimo terceiro salário proporcional;
IV – repouso semanal remunerado; e V – adicionais legais.
§ 7o O recibo de pagamento deverá conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma das parcelas referidas no § 6o deste artigo.
§ 8o O empregador efetuará o recolhimento da contribuição previdenciária e o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, na forma da lei, com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações.
§ 9o A cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador. (BRASIL, 2017)
Em linhas formais, a disposição legal preconiza que a sua celebração se dará em forma escrita e em todos os postos de trabalho – com exceção dos aeronautas –, de modo a não ser necessário possuir qualquer pré-requisito de sazonalidade da função a ser ocupada pelo empregado ou da atividade da empresa.
Em relação ao seu conteúdo material, Xxxxxxx (2019, p. 673) sintetiza que esses dispositivos acabam por representar uma restrição às garantias que a ordem jurídica previa ao trabalhador, entregando-o a uma profunda insegurança.
E essa instabilidade decorrente de uma desregulamentação de direitos já nos fornece, sem grandes dificuldades, resposta sobre a corrente à qual o Brasil se alinhou ao legislar sobre o assunto: seguiu àquela inglesa (XXXXX, 2017, p. 57), justamente conhecida por ser uma modalidade de “escravidão moderna” (BARZOTTO, 2017, p. 139).
Mas a fim de averiguar se o pressagiado afastamento das garantias trabalhistas de fato ocorreu, deve-se analisar como esse espécime contratual se adequa – ou não – ao contexto normativo de nosso ordenamento jurídico, tarefa que demanda uma análise da base principiológica trabalhista e normativa, levando em conta também julgados a esse respeito.
De início, e à luz dos princípios trabalhistas, tem-se que em ao menos dois esse tipo contratual encontra grandes obstáculos.
O primeiro deles é em relação ao princípio da proteção, protetivo ou tutelar. Conhecidamente tido como núcleo do direito do trabalho em sua missão de estabelecer uma igualdade jurídica entre o empregado e o empregador, prevê que esse possui superioridade econômica em relação àquele (LEITE, 2019, p. 138). Assim, consubstancia-se em uma cadeia de proteção jurídica ao mais vulnerável – o empregado –, sendo pensado com fins de atenuar o desiquilíbrio fático (GODINHO, 2019, p.233).
A ofensa a ele direcionada o é quando do compartilhamento – em termos práticos – dos riscos da atividade econômica entre empregador e empregado: conforme o art. 452-A, §5º da CLT, e ao contrário dos outros tipos contratuais que preveem o tempo à disposição do empregador como forma de remuneração, nesse contrato o empregado só receberá pelas horas que trabalhar, e se for convocado, de modo que, em não sendo o caso de chamada, o período de inatividade resta não pago.
Isso faz com que ele acabe por empreender junto ao empregador, mas, diferentemente dele, não o faz com as garantias estruturais e jurídicas intrínsecas à empresa: antes, põe em cheque a viabilidade das próprias verbas de natureza alimentar, suportando indevida e injustamente as flutuações mercadológicas que influem a atividade empresarial (CRUZ, 2017, p. 152).
É uma sistemática que acaba por desmantelar a lógica da relação empregatícia do art. 2º e 3º da CLT: as funções estritamente segmentadas de assunção do risco da atividade cabível somente ao empregador se confundem à realidade contratual do empregado nessa nova disposição.
Prejudica-se, portanto, o objetivo teleológico ao qual o princípio protetivo se debruça visto que ignora as diferenças econômicas entre as partes da relação empregatícia e, ao partilhar do risco, favorece o empregador ao onerar o empregado.
Em segundo plano, atina-se à questão de trabalho a partir da convocação, desdobramento do sistema just in time advindo do toyotismo (ANTUNES, 1998, p. 90), em relação ao princípio da continuidade da relação de emprego.
Pensado como meio de integrar o trabalhador ao aparato empresarial de forma minimamente estável, esse tem crucial importância no objetivo social das próprias previsões laborais, o de assegurar melhores condições à força de trabalho (GODINHO, 2019, p. 245).
E isso, para Godinho (2019, p. 245), acontece pelos efeitos lógicos de uma relação de contínua: a permanência permite o avanço dos direitos sociais impressos em legislações e negociações coletivas – já que estabelece uma base mais sólida para a sua expansão –, permite o investimento educacional e profissional do empregador em favor de seus empregados que se
traduzirá em retorno financeiro ao próprio empregador e funcionará como mecanismo de afirmação social do indivíduo que terá lastro econômico e jurídico contínuo para se alocar e se posicionar nas relações sociais da comunidade que integra.
Juntamente a isso se recorda o dito ao item 1: em vistas de, na sociedade capitalista, a renda ser fator historicamente determinante à participação política (GODINHO, 2007, p.14), uma relação de emprego contínua que produz renda nesse mesmo caráter entrega ao trabalhador a garantia de sua participação no espaço público, sendo forte instrumento de manutenção de um sistema democrático que, como um dos fins, beneficia o próprio capitalismo ao lhe proporcionar elemento estabilizante o suficiente para que se perpetue (SILVA, 2005, p. 548).
No entanto, ao se ter chamada somente quando há demanda do mercado, elimina-se qualquer expectativa de continuidade, de forma que a lógica articulada de estabilização para o empregado e, em última análise para a sociedade democrática, resta fundamentalmente ruída nessa nova disposição.
E menos não se esperaria de um tipo contratual que descende das conjecturas capitalistas da acumulação flexível (XXXXXX, 1990, p. 140) que propiciou “uma das mais claras manifestações da superexploração do trabalho humano, pois equipara o trabalhador a uma máquina descartável” (LEITE, 2019, p. 698).
Já sob o plano regulamentário, têm-se iguais barreiras à adequação desse tipo contratual possibilitando-se, até mesmo, um agravamento da precarização.
E isso se diz como desencadeamento da atual sistemática celetista pós-reforma e da tendência capitalista das últimas décadas: esse tipo contratual, no §6º do art. 452-A prevê uma série de parcelas que devem ser discriminadas. A seu respeito, a doutrina nacional vem entendendo ser um mero rol exemplificativo (BARZOTTO, 2017, p. 140) podendo ainda existir outras verbas decorrentes de negociações coletivas, já que – no sistema reformado – a negociação coletiva prevalece sobre a lei, pelo art. 611-A da CLT.
Todavia, o que essa posição acaba por não se atentar é que, em paralelo à possibilidade de se ter um acréscimo de direitos, viabiliza-se a minoração qualitativa daqueles já existentes.
E isso assim o é em vista do rol do art. 611-A da CLT permitir a negociação – favorável ou desfavorável – de previsões basilares como a remuneração, o enquadramento do grau de insalubridade e a prorrogação de jornada nesses ambientes (BRASIL, 2017, Art. 611- A), todos, sem um controle valorativo posterior do Judiciário já que, a própria CLT, ao art. 8º,
§3º previu somente um controle formalístico dos negócios jurídicos:
[...]
§ 3o No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva. (BRASIL, 2017)
Desse modo, além de um trabalho já precarizado pela incerteza de trabalho frequente, incorre-se ainda no risco de ser um tipo banalizado à luz do controle normativo das condições básicas como salubridade do ambiente em que se trabalha e a remuneração em contrapartida.
E esse prognóstico só encontra respaldo porque esse tipo contratual se ambienta no contexto que justamente lhe deu origem: nesse novo período de acumulação flexível, onde se sucateia o controle do trabalho pelo enfraquecimento da base de organização do trabalho – a sindical – as pressões do capital acabam por tornar esses grupos vulneráveis (XXXXXX, 1996, p. 145) a tal ponto que os empregadores têm cada vez mais poder negocial em detrimento à diminuição daquele pertencente à classe trabalhadora que, ao fim, não poderá sequer contar com o respaldo legal do teor material do transacionado, em vistas de a atual legislação balizar a atuação do Judiciário ao mero “princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”.
Já a nível constitucional, grassam as repercussões das incompatibilidades, das quais analisaremos em ao menos três pontos que, por sua vez, atraem outros desdobramentos.
De primeiro, observa-se afronta à garantia do salário mínimo instituída ao artigo 7º, IV da Carta Política: o artigo 452-A da CLT, ao dispor que o contrato de trabalho intermitente especificará o valor da hora do trabalho, e essa pautada, ao menos, naquela correspondente ao do salário mínimo, não prevê a capacidade do trabalhador em alcançar esse mínimo retributivo ou qualquer remuneração, como o é em contratos de recebimento compatível ao trabalho, v. g., o contrato de trabalho parcial.
Logo, a intermitência que batiza esse tipo contratual acaba por marginalizar o empregado em uma situação de profunda insegurança à sua efetiva remuneração (GODINHO, 2019, p. 673).
E isso leva a segunda afronta, aquela ao princípio da dignidade da pessoa humana do art. 1º, III da CF: o comando legal do art. 452-A, I da CLT de se apresentar somente quando chamado, segundo Laraia (2018, p. 197), tem o potencial de gerar estresse e prejuízo na vida pessoal do trabalhador, suscitando-lhe não poucos questionamentos se o recebido será suficiente para o pagamento de contas, quando será o próximo salário, se haverá algum
respaldo em caso de acidente ou de licença maternidade, ou qualquer outra contingência que lhe seria assegurada pela proteção previdenciária.
Em terceiro, instruem Xxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxxx (2019, p. 1.307) que a multa prevista no artigo 452-A da CLT, em caso do trabalhador descumprir a convocação, faltando injustificadamente, atrai descompasso com o texto constitucional, não sendo compatível com o princípio da função social da empresa, ao passo que caracteriza uma redução do salário do trabalhador, vedada pelo artigo 6º, VI da CF.
E apesar de flagrantes todas essas anomalias sistêmicas propiciadas por esse tipo contratual, quando passamos à verificação das decisões dos tribunais, despontam decisões divergentes, apoiando ou indo contra ele.
Aquelas que não o aceitam geralmente apelam aos princípios que teriam por fim frear a precarização do trabalho, conferindo a esse espécime uma aplicação excepcional em atividade descontínua, e não para atender demanda permanente ou regular (TRT 15, 2020).
Outras, seguindo esse mesmo sentido no grau colegiado regional acabam por sofrer reforma quando postas ao crivo do Tribunal Superior do Trabalho. Exemplo disso foi o caso dos autos 0010454-06.2018.5.03.0097 nos quais, ainda na decisão do TRT da 3ª Região, teve- se pela anulação do contrato intermitente em prol da defesa dos direitos do trabalhador que exercia função contínua. Todavia, a análise em sede de Recurso de Revista entendeu que a decisão daquele colegiado não atendia à literalidade da lei, que excepciona a aplicabilidade desse contrato somente aos aeronautas (TST, 2020).
Logo, tem-se que os próprios tribunais tendem a discordar sobre a interpretação literária e aquela de caráter teleológico.
Ao fim de todas essas incongruências principiológicas e normativas, não é difícil analisar se a pretensão legislativa de legar uma espécie contratual que propiciaria o desenvolvimento nacional e promoveria as capacidades humanas foi cumprida.
É claro que se promoveu um retrocesso de direitos fundamentais conquistados ao longo do tempo (XXXXXXX, 2019, p. 673) o que, segundo Xxxxxxxxx (2002, p. 336) é inaceitável em vista da classe dos direitos fundamentais não poder retroagir, mas só avançar na proteção dos indivíduos. Para o autor, já é inconstitucional “qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros”, de modo que, apesar da inovação legislativa, esta se encontra maculada por desrespeito à norma suprema e aos princípios e regulamentados trabalhistas em particular.
Assim, restaria suscitar, em caráter conclusivo, como se viabilizaria a compatibilização desse tipo contratual às normas aqui apresentadas, assim como aos princípios constitucionais valorativos do trabalho.
CONCLUSÃO
Ao fim da verificação de sobre como o contrato de trabalho intermitente se adequa ou não aos princípios constitucionais do trabalho, emerge ao debate algumas conclusões úteis não só à análise dessa relação como também às modificações que a tornaria mais coerente ao ambiente normativo trabalhista.
Em primeiro, ao ter sido questionado o alcance e vinculação dos princípios do valor social do trabalho e da valorização do trabalho humano previstos aos arts. 1º, IV e 170 da CF, assumiu-se o papel de centralidade por eles encarnados enquanto imperativos de justiça e honestidade – conforme proposto por Xxxxxxx e aplicado por Xxxx – além de conformadores da ordem política e jurídica – já na ótica de Xxxxxxxxx –, de modo a serem entendidos como comandos que devem ser seguidos quando da criação e instrumentalização do Direito.
À criação também se remeteu a prática do legislador que visa à atualização normativa: nesse sentido, sabendo-se que a redação desse contrato surgira sob a justificativa de pretensa modernização econômica, deveria ter sido formulada dentro das balizas fornecidas pelo constituinte. Assim, inovaria normativamente, atendendo às demandas da realidade, mas dentro das possibilidades jurídicas providas pelo próprio texto constitucional, conforme conceituado por Xxxxx. Do contrário, haveria o risco de se incorrer em inconstitucionalidade.
E a fim de determinar se houve o atendimento desses parâmetros, inquiriu-se sobre o conteúdo desses princípios, e que deveria ser respeitado conforme a discussão levantada ao ponto 1.1: nele, previu-se que os arts. 1º, IV e 170 da CF consubstanciam-se como direitos fundamentais forjados a partir de conquistas históricas de cunho revolucionário e social que, como fim último, acabam por viabilizar o sistema democrático.
Em termos práticos, e como indicado por Xxxxx, significa dizer que o valor do trabalho humano tem primazia na ordem econômica – e isso até mesmo sobre a iniciativa privada – de forma que ela, como representante da ordem capitalista, deve se pautar em priorizá-los sobre os da economia de mercado.
Essa priorização, indubitavelmente, também acaba por vincular o ordenamento normativo à vedação ao retrocesso social extraído do art. 30 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A esse ponto, e a fim de saber o que representa a concretização desses princípios constitucionais de cunho social que não devem retroceder, conclui-se que a análise da base principiológica do sistema trabalhista anterior à Reforma, a interpretação teleológica desse sistema e as previsões constitucionais sobre o trabalho acabam por fornecer, ao mesmo tempo, o sentido concreto dos princípios do valor social do trabalho e da valorização do trabalho humano enquanto ofertam os parâmetros para se auferir detidamente se foram ou não observados pela inovação trazida pelo contrato intermitente.
A essa medida, e como perscrutado ao longo da explanação, a redação desse contrato feriu princípios próprios do trabalho e previsões constitucionais que, segundo a lógica que aqui se empreende, é ir contra a expressão dos princípios que valoram o trabalho ao passo que denuncia os limites ultrapassados quando da criação dessa norma.
E como constatação disso se recorda que o princípio protetivo foi aviltado por esse contrato em vistas dele possibilitar sobrecarga ao empregado. Além de prestar o seu tempo, a sua pessoalidade e estar sob as ordens do empregador, passa também a empreender junto com ele no risco da atividade: só laborar e receber quando há demanda significa dizer que irá suportar as flutuações do mercado junto a quem tradicionalmente deve empreender sem ele, o empregador.
Cria-se uma incongruência entre a norma pré-existente e ainda vigente – a dos arts. 2º e 3º da CLT – e a realidade: a primeira indica que é do empregador o risco da atividade e, na prática, o contrato intermitente propicia o compartilhamento desse risco entre as partes.
De forma idêntica também se tem incompatibilidade com o princípio da continuidade da relação de emprego, já que a característica marcante desse é a previsibilidade da continuidade ou da duração do trabalho enquanto o contrato intermitente é contrário dessa lógica.
E sobre o manto daquilo que foi normatizado, lembra-se que as aviltações grassam. Exemplificativamente, há a grande problemática do art. 611-A da CLT que, em um poder sindical cada vez mais fragilizado, põe em risco importantes seguranças controles do trabalho e, como fim último, a própria dignificação da pessoa humana (art. 1º, III da CF), além da possibilidade de multa ao empregado se expressar como redução indevida do salário (art. 6º, VI da CF).
Há, portanto, notório descompasso entre o ordenamento jurídico nacional, principalmente em seus princípios constitucionais, e o contrato de trabalho intermitente.
Já quando visto em relação a outros ordenamentos jurídicos, é possível reter aproximações que escoam em prognósticos do que ainda pode agravar esse contrato: pela
regulamentação ter se espelhado na inglesa, é de se esperar que os resultados lá observados também se articulem aqui.
A isso, além do enfrentamento aos princípios e às previsões constitucionais, é de se esperar uma precarização que atraia a alcunha de “escravidão moderna” e acaba por legar essa espécie a quem está à margem do mercado de trabalho, sem que seja suficiente para obtenção de renda para sobrevivência desses.
Logo, é claro que além de ser contra os princípios do valor social do trabalho, da valorização do trabalho humano e propagar um retrocesso social, essa proposta sequer pode atender àquilo a que se destinava: modernizar o trabalho e viabilizar o crescimento econômico em vistas de não oportunizar um mínimo para que os trabalhadores o tenham como meio de sobrevivência.
Diante de todos esses problemas, e a partir da análise que levou a verificação deles, pode-se pensar em vias de compatibilização desse tipo contratual ao fim econômico a que se destina e à previsão normativa em que deve ser parte harmonizada.
Em primeiro, o fim econômico não deve ser ignorado: como visto, e em diferença ao modelo fordista, a acumulação flexível exprime volatilidade de mercado e um sistema just in time que viabiliza uma concorrência que exige alta mobilidade de estrutura organizacional da produção.
Ao trabalho, essa volatilidade acaba por se traduzir em uma excessiva incerteza que o torna descartável e suas forças de defesa desmanteladas, retroalimentando uma constante pressão de maior flexibilização dos controles do trabalho que o tornariam cada vez mais precarizados e, o trabalho, hiperexplorado e descartável.
Assim, pode parecer que nessa nova era econômica há somente duas possibilidades: atender aos seus mandados ao excluir direitos, como o fez em parte o contrato de trabalho intermitente, ou, e a fim de resguardar essas garantias, ignorar o momento econômico, manter o controle de trabalho mais rígido – como no fordismo – e assim, como efeito colateral, correr
o risco de se ter uma economia obsoleta e fragilizada o bastante em sua estrutura que inviabiliza a própria geração de emprego.
Não devemos nos pautar pelos extremos: há a via de se pensar nesse contrato para que atenda às modificações da realidade do trabalho e modernize a economia sem que, com isso, haja a subjugação à lógica de mercado que ignora os direitos e garantias sociais. Há a possibilidade, apontada por Xxxxx, de atender à relação jurídica-real.
Dois pontos de alteração, que já contam com paralelos, nos poderia ser útil: uma remuneração mínima em períodos de inatividade e a excepcionalidade para determinadas áreas econômicas.
A remuneração em tempos de inatividade pode ser vista em Portugal e, conforme a previsão lusitana, é um mínimo previsto em lei que pode ser majorado por negociação coletiva. De uma só vez seria possível: 1) garantir um refreamento da incerteza que atinge o trabalhador, remunerando-o na inatividade, mesmo que menos, mas ainda o fazendo; 2) criar um ambiente em que essa remuneração acabe por atrair sua utilização por todas as parcelas etárias, e não somente as dos extremos como no caso inglês que torna o contrato inócuo; 3) afastar o risco de empreendimento compartilhado entre empregador e empregado, visto que o empregado está recebendo, mesmo na inatividade e não compartilhando com sua subsistência os riscos da atividade do empregador; 4) reforçar o protagonismo da base sindical que pode regulamentar majorando esse mínimo, evitando assim o sucateamento da organização dos trabalhadores que, como fim último, acaba por refrear as pressões da acumulação flexível que levaria a perda de poder negociador para as possibilidades do art. 611-A da CLT.
Ao mesmo tempo, temos na excepcionalidade uma marca de países que tiveram mais cautela na previsão desse contrato, como é o caso do próprio Portugal, e para a qual parte da jurisprudência nacional já indica ser da maior coerência teleológica com a natureza brasileira do Direito do Trabalho.
A excepcionalidade pela natureza da função, munida de limitações – como a italiana – de dias determinados para a contratação nessa modalidade, tornaria possível se evitar um desvirtuamento desse tipo contratual, tornando-o adstrito às áreas para as quais realmente seja interessante e estratégico, promovendo assim o desenvolvimento para o qual inicialmente se propôs enquanto respeita o princípio da continuidade da relação de emprego que havia sido prejudicado pela atual redação desse tipo contratual, em vista da natureza do negócio determinar uma previsibilidade de sua demanda.
Ao fim, tem-se por óbvio que a complexidade do mercado divisaria novas dificuldades que necessitam de novas respostas do Direito do Trabalho, mas, enquanto isso não acontece, o que já temos em relação a esse tipo contratual nos permite indicar essas modificações pelas quais não se nega a acumulação flexível já presente, mas não se sujeita a ela: não se pretendendo uma imutabilidade da realidade impressa na lei anterior, mas não permitido que as modificações econômicas solapem o que já é de direito do trabalhador, conquista de séculos de luta e de reinvindicações justas e que garantem um sistema democrático.
Assim, pelas previsões principiológicas e normativas anteriores serem a expressão dos princípios constitucionais de valorização do trabalho humano e do valor social do trabalho, com o proposto poder-se-ia ter um contrato de trabalho intermitente que seja compatível com eles e que evite o retrocesso social.
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