PREFÁCIO DE MANOEL GUSTAVO NEUBARTH TRINDADE, ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DOS CONTRATOS
PREFÁCIO DE XXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DOS CONTRATOS
Xxxxxxxx Xxxxxx*
O
livro que tenho a honra de prefaciar, do meu Amigo e Colega Prof. Manoel Neubarth Trindade, gravita em torno de cinco tópicos básicos: 1) a ca- racterização do contrato, na sua conexão com as “falhas de mercado”; 2) a caracterização das “fa-
lhas de mercado”; 3) o fenómeno do “poder de mercado”; 4) o conceito de “custos de transacção”; 5) o problema das “externa- lidades”.
Talvez valha a pena, num prefácio que se pretende seja sintético e útil, reflectir o que cada um desses pontos significa, e implica, no âmbito da Análise Económica do Direito1.
No fundo, é como se quiséssemos identificar persona- gens antes de iniciarmos a leitura de um enredo.
1. CONTRATO
* Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
1 Sobre os tópicos seguintes, ver em especial os vols. 6 (“Contract Law and Econom- ics”) e 9 (“An Introduction to the Law and Economics of Regulation”) de Xx Xxxxx, Xxxxxx (org.) (2009-2012), Encyclopedia of Law and Economics, Second Edition, 10 vols., Cheltenham, Xxxxxx Xxxxx; Xxxxxxxx, Xxxxx & Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx (orgs.) (2019), Encyclopedia of Law and Economics, New York, Springer; AA.VV. (2018), The New Palgrave Dictionary of Economics. Third Edition, London, Palgrave Macmillan; Xxxxx, Xxxxxxx X. (2019), Economic Foundations of Law. Third Edition, London, Routledge; Bag, Sugata (2018), Economic Analysis of Contract Law, Incom- plete Contracts and Asymmetric Information, Cham, Palgrave Macmillan; Xxxxxx, Xxxxxx X. (2018), Contemporary Issues in Law and Economics, London, Routledge; Mathis, Klaus & Xxxxxxxxx Xxx (orgs.) (2019), New Developments in Competition Law and Economics, Cham, Springer; Xxxxxx, Xxxx (2015), Fundamental Principles of Law and Economics, London, Routledge.
Ano 8 (2022), nº 1, 737-752
A Análise Económica do Direito tem uma noção de “contrato” que diverge ligeiramente daquela que é preferida pela doutrina jurídica: para aquela abordagem interdisciplinar, “con- trato” será um programa de colaboração que especifica acções a serem tomadas, em resposta a contingências (ocorridas no futuro ou reveladas no futuro) que sejam relevantes para essa colabo- ração e para o respectivo equilíbrio interno.
Esse contrato só será completo se as contingências esti- verem exaustivamente previstas, e cobertas por estipulações; se- não, será um contrato incompleto, no sentido de deixar sem re- gulamentação prévia contingências que os contratantes conhe- cem, e cuja ocorrência os contratantes sabem que afectará, na falta dessa regulamentação, o programa de colaboração que é o núcleo do contrato.
Como a colaboração é um objectivo nascido da comple- mentaridade das posições das partes no contrato, ambas visam ficar melhor, em resultado do contrato, do que o estavam antes dele: e é por isso que, buscando-se o resultado do benefício mú- tuo, existe um incentivo económico para contratar.
Diz-se que um contrato que maximize esse resultado vi- sado é eficiente; e, atendendo à métrica da “análise de bem-es- tar”, diz-se, mais especificamente, que é “Pareto-eficiente”, que- rendo isso significar que não é possível, no quadro dos interesses em jogo num determinado contrato, melhorar a utilidade total esperada em resultado dele.
O contrato é – como o sustenta também o Direito – um encontro de vontades; mas essas vontades “jurígenas” não dis- pensam o apoio num quadro externo de definição de posições – titularidades, direitos, padrões de valor ou de medida – e de pro- messa de adjudicação potencialmente coerciva, caso a colabora- ção programada degenere em patologia incontrolável pelas pró- prias partes no contrato (sem excluir o apoio em vias não-legais de favorecimento do respeito pelos contratos, como é o caso das normas sociais, ou dos mecanismos de reputação e de
ostracização).
Aquele apoio externo formal (ou “heteronomia” contra- tual) não se esgota na adjudicação, na imposição de condutas específicas, ou de remédios, sanções ou indemnizações, pois se espraia ainda para aspectos de segurança e justiça dos mercados, de fornecimento de padrões oficiais de pesos e medidas, de es- tabelecimento do curso legal da moeda, de preservação dos ca- nais de comércio internacional.
Por outro lado, negociar e celebrar um contrato exige es- forço, tempo e custos: custos de busca do parceiro, de busca dos termos ideais, de análise das implicações normativas e instituci- onais, de ponderação dos custos de oportunidade ínsitos na adopção de relações exclusivas em detrimento das opções de mercado, ou ainda de ponderação de custos e benefícios dos “in- vestimentos de confiança”, aqueles dos quais depende o sucesso do contrato (apesar de não serem eles próprios o objecto do con- trato).
Mesmo as partes que optem por suspender as negocia- ções num ponto ideal de equilíbrio marginal entre benefícios e custos estarão ainda confrontadas com o esforço de manutenção do consenso, e de preservação das condições de reconhecimento jurídico (o que implica sobretudo deveres formais, mas também alguns deveres substanciais como o do respeito pelas fronteiras imperativas que existam).
Esses custos são directamente proporcionais à complexi- dade do clausulado, à indefinição normativa quanto às titulari- dades e legitimidades das partes (dificultando a compreensão, por uma parte, da “ameaça de retirada” pela outra parte), ao des- fasamento temporal das prestações, e ao desequilíbrio entre es- tas.
O encontro de vontades defronta-se, ainda, com as difi- culdades adicionais da heterogeneidade das partes, da assimetria informativa, da margem de retenção estratégica de informação “privada” – e até de indução em erro – que aquela assimetria
proporciona, tudo isto somado à extensão das contingências re- levantes para a onerosidade, ou até para a sobrevivência, do con- trato, e que serão tanto maiores quanto mais longa a duração pre- vista para ele.
Este tipo de custos e dificuldades explica, em larga me- dida, porque é que o cumprimento dos contratos é tão impor- tante, porque é que esse cumprimento é de certo modo sacrali- zado em princípios como o da “preferência pelo contrato”, ou o do “pacta sunt servanda”: é que, cortadas as amarras do mercado
– ao menos parcialmente –, em favor de um programa de cola- boração que é dominado pela relatividade, senão mesmo pela exclusividade, cada um dos envolvidos fica ao mesmo tempo na posição privilegiada de ser o primeiro beneficiário da conduta da contraparte, mas também na posição perigosa de poder ser a primeira vítima dessa mesma conduta.
Tipicamente, se uma das partes já obteve a vantagem principal visada pelo contrato e se encontra na posição de deve- dora da contrapartida pela vantagem obtida, a mera ameaça de incumprimento deixa transparecer a vulnerabilidade da parte que é credora dessa prestação; e algo de semelhante sucede se a parte vulnerável o é porque contratou a prestação de um bem ou serviço que não está disponível no mercado, estando, portanto, à mercê do (in)cumprimento da contraparte que pode traduzir-se na frustração total dos seus interesses.
São situações conhecidas como “holdup contratual”, e elas explicam, por si mesmas, muita da disciplina normativa que constitui a “heteronomia” contratual.
Todos estes problemas, e a própria necessidade de apoio externo, nascem dos custos de completamento do contrato, que determinam a predominância dos referidos contratos incomple- tos – contratos nos quais faltam estipulações autónomas que se- riam vantajosas para uma das partes, ou ambas, ou nos quais fal- tam remédios ou sanções susceptíveis de promoverem o cumpri- mento eficiente dos deveres contratuais, ou falta a estipulação
do equilíbrio em contingências previsíveis e cruciais para a pre- servação do vínculo.
Isso pode resultar de considerações estratégicas, unilate- rais ou bilaterais, pode resultar de juízos de improbabilidade, pode resultar de insusceptibilidade jurídica de invocação de eventos que, não obstante, sejam factualmente relevantes, ou pode resultar de pura procrastinação externalizadora (as partes prescindem da previsão custosa de contingências futuras, em fa- vor de uma renegociação, ou de uma adjudicação retrospectiva, comparativamente mais baratas, porque “ex post” já estará iden- tificada a contingência relevante).
Essa externalização “para a frente” será tanto mais viável quanto mais sofisticada for a interpretação dos contratos – na medida em que esta preenche também aquilo que a estipulação contratual deixou incompleto, ou ambiguamente especificado.
E será tanto mais segura quanto mais o quadro jurídico estabelecer os remédios e sanções (ou a execução específica) que podem responder à frustração dos objectivos do contrato, inclu- indo aqueles que provenham já de falhas da negociação ou do clausulado – porque um tal quadro é o principal incentivo ex- terno ao próprio cumprimento das obrigações assumidas, e só não o é mais porque as partes podem querer preservar a “válvula de escape” do incumprimento eficiente, ou porque se apercebem atempadamente dos riscos da “overreliance”, o “excesso de con- fiança no contrato”.
Por outro lado, a Análise Económica do Direito tende a favorecer uma visão dinâmica do fenómeno contratual, como um processo evolutivo e variável, aberto a reconsiderações, a re- negociações, a reequilíbrios, e a todo um universo “relacional” de interacções estratégicas – reconhecendo que, não obstante to- das as precauções e todas as garantias e todas as “ofertas de re- féns” traduzidas em “investimentos de confiança”, os desequilí- brios e assimetrias não se esgotam nos momentos de negociação e celebração, e persistem, ou surgem de novo, ao longo da vida
da relação contratual – ou até, excepcionalmente, depois do final dessa relação.
Isto sem, no entanto, ignorar as vantagens estratégicas que podem advir para as partes, e para a “vida do contrato” em geral, da adopção de formas contratuais rígidas e fechadas à re- negociação, e por isso menos expostas ao oportunismo das par- tes ou à interferência de terceiros.
Sem esquecer, ainda, que a adjudicação não é um mero sucedâneo da vontade das partes em termos de completamento do clausulado – sendo muitas vezes a expressão das balizas im- perativas que anulam efeitos contratuais, total ou parcialmente, quando outros valores se sobrepõem à autonomia privada, e se conclui que as estipulações transgrediram os limites da indispo- nibilidade, ou utilizaram a via contratual em ostensivo detri- mento de valores de justiça, seja entre as partes, seja relativa- mente a terceiros, ou em atentado à ordem pública.
Nesses casos, a “heteronomia reguladora” transcende ob- jectivos de mera governança contratual (externalizada), e a or- dem jurídica recobra a proeminência que, na ordem social, lhe é reconhecida como garante da legalidade, da justiça e da segu- rança em todos os domínios da intersubjectividade.
2. FALHAS DE MERCADO
A ideia de que o mercado, para além de ser, em termos teóricos, uma manifestação do poder do mecanismo de preços, é na prática um alocador eficiente de recursos entre todos os seus intervenientes – é uma ideia que os factos têm ocasionalmente desmentido.
Normalmente não se atribuem as “falhas de mercado” a deficiências do mecanismo de preços: mais frequentemente, elas são atribuídas à circunstância de não haver um verdadeiro mer- cado (entenda-se, mercado competitivo), ou à circunstância de o mercado não ser suficientemente activo ou “denso”, ou ao facto
de ele estar distorcido por factores anti-competitivos que inter- ferem com as propriedades alocativas do mecanismo de preços. Nalguns casos, admite-se que simples “afinações” insti- tucionais, como por exemplo o incremento da informação dis- ponível para esbater assimetrias informativas, bastarão para re- mover “cirurgicamente” essas falhas, devolvendo o mecanismo de preços à sua plenitude funcional (as condições “canónicas” da atomicidade, da fluidez, e da liberdade de entrada e saída do
mercado).
Noutros casos haverá que reconhecer que alguns factores “naturais” ou congénitos num determinado mercado não se re- solvem com uma intervenção limitada ou temporária, recla- mando-se então soluções institucionais permanentes, que pro- movam a eficiência e a justiça alocativas que o mecanismo de preços esteja permanentemente impedido de alcançar: soluções extra-mercado, avultando entre elas a intervenção do Estado e a regulação – no pressuposto de que estas sejam (e nem sempre são) mais eficientes promotoras do “óptimo de Pareto” do que o é o mercado, mesmo o mercado “com falhas”.
Uma permanente suspeita acompanha a invocação das “falhas de mercado”: é que a sua invocação reiterada, até ao li- mite da banalização, poderá não ser mais do que o pretexto para a justificação das soluções extra-mercado; sendo que esse pre- texto se revela tanto mais lógico e oportuno quanto mais se ad- mitir a existência de “falhas de intervenção”, ou seja quanto mais dúvidas houver quanto ao balanço custo-benefício das interven- ções extra-mercado, caso em que a multiplicação infinita de “fa- lhas de mercado”, reais ou fictícias, servirá para empolar, por comparação, os benefícios da regulação ou do intervencionismo. As “falhas de mercado” são, em suma, e noutros termos, atestados de menoridade dos mercados – justificações prontas para rectificações assentes numa lógica extra-mercado, ou mesmo anti-mercado, como o são os critérios paternalistas de
justiça distributiva.
E a melhor demonstração de que assim é, devemo-la ao “Teorema de Coase” e seus corolários, demonstrações de que a prevalência de soluções de mercado é muito mais universal do que o sugerem os constrangimentos institucionais, muitos deles resultantes de inadequações normativas, ou de simples precon- ceitos ideológicos anti-mercado; e demonstrações de que a pos- sibilidade de equilíbrio num “mercado de direitos”, e a conse- quente “optimização Paretiana”, depende da verificação de re- quisitos elementares, e usualmente triviais.
Aceitando-se o legado da revolução Coaseana, concluir- se-á que as falhas de mercado serão menos numerosas do que o concebia a visão tradicional da “Welfare Economics” (dita “Pi- gouviana”, ou de “internalização por impostos e subsídios”); e que, além disso, as falhas que subsistam serão em princípio mais benignas e tratáveis – sendo que mesmo as mais refractárias po- derão eventualmente afigurar-se como menos nocivas do que as “falhas de intervenção” que se manifestem nos remédios regula- tórios ou políticos que sejam propostos para elas.
Em todo o caso, há circunstâncias estruturais que tornam fúteis os esforços de erradicação directa das falhas de mercado, avultando entre elas a “concentração natural do mercado” (os monopólios e oligopólios “naturais”, ou resultantes de econo- mias de escala, que não são redutíveis ao “price-taking” atomís- tico) e as dificuldades estruturais de controle de acesso a recur- sos comuns, ou “bens públicos impuros” (que entravam a defi- nição de direitos individuais e de legitimidades de agir, e acar- retam a ameaça da “tragédia dos comuns”).
3. PODER DE MERCADO
A ideia de “poder de mercado”, de “price-making” ou não-atomicidade, é central na área do “antitrust”, porque surge normalmente associada à noção de “concentração horizontal”, ou seja, de redução do número de competidores que, mais do que
assegurarem a verificação da atomicidade, asseguram a preser- vação do motor do mercado, que é a concorrência, e através dela a tendência para a descida de preços e de incremento sustentado do “excedente de bem-estar” dos consumidores – o triunfo úl- timo, em termos utilitaristas, da própria liberdade económica.
Sendo assim, as fusões e aquisições entre ex-concorren- tes parecem aumentar o poder de mercado das entidades delas resultantes (que se tornam empresas maiores), reduzir a concor- rência e, salvo algumas excepções, frustrar os ganhos de bem- estar dos consumidores, devolvendo parte desses ganhos, por “captura”, ao lado da oferta – o que é negativo em termos da referida avaliação utilitarista, porque desvia o resultado agre- gado da optimização Paretiana.
Daqui nasce o ânimo regulatório do “antitrust”, a von- tade de prevenir, ou reprimir, concentrações de mercado que se- jam tidas como susceptíveis de aumentarem o “poder de mer- cado”, traduzido essencialmente na capacidade de influenciar o nível de preços de equilíbrio (o “price-making”), de capturar o excedente de bem-estar em disputa nas trocas, em detrimento do ganho dos consumidores – um ânimo regulatório que se tornou mais explícito na “análise económica” das concentrações, a qual, explicitando e quantificando critérios (o Herfindahl-Hirschman Index (HHI), por exemplo), veio temperar a rigidez mecânica do “antitrust” tradicional.
Em contrapartida, algumas das ideias tradicionais sobre “poder de mercado” estavam já revistas e ultrapassadas na vira- gem para o nosso século, em larga medida por influência da Es- cola de Chicago: as velhas representações do monopólio entra- ram em crise, e só restavam os problemas regulatórios impostos pela existência de monopólios naturais em domínios de baixa elasticidade da procura; e quanto aos oligopólios, aceitava-se crescentemente a ideia da instabilidade estrutural dos cartéis, re- comendando meios de prevenção e repressão mais leves do que aqueles que tinham estado presentes na génese do “antitrust”.
Daí que a evolução, na análise do “poder de mercado”, se tenha dado no sentido da flexibilização, arrancando de pre- sunções estruturais altamente sensíveis, e de casos “prima fa- cie”, até à admissão de excepções e contra-exemplos assentes numa análise mais fina e complexa do mercado, considerando o impacto casuístico da concentração horizontal, e assentes na possibilidade de ilisão das presunções – permitindo, ao invés, a ponderação da totalidade das circunstâncias tidas por relevantes. Algo de presunção estrutural subsiste, contudo, na insis-
tência na caracterização do mercado, de forma mais estática do que dinâmica (número de concorrentes, quota de mercado de cada, margens, elasticidades), para se chegar à definição opera- tiva de “poder de mercado” – ainda que, insiste-se, crescente- mente diluída em considerações sobre a elasticidade da procura como contrabalanço do “poder monopolístico”, e considerações sobre efeitos pró- e anti-competitivos das concentrações: reco- nhecendo-se com maior amplitude que há muito mais do que a mera concentração do mercado como causa da determinação de preços em ambiente oligopolista ou oligopsonista, podendo ocorrer coordenação “cartelizadora” – “price fixing”, combina- ção de quotas, segmentação geográfica, dissuasão da batota – num largo espectro de concentração, começando na mais ténue, em larga medida graças à evolução tecnológica (que facilita tanto a coordenação como a detecção da batota entre carteliza- dos).
Mesmo fora da hipótese-limite do “poder de monopólio”, o “poder de mercado” pode resultar de uma agressividade co- mercial unilateral que pouco tem a ver com concentração estru- tural, e esta concentração pode, por seu lado, conduzir tanto à cartelização como à batota e à guerra da concorrência oligopo- lística – sendo que o cartel é já, de certo modo, uma federação preventiva à sombra da ameaça de guerra entre “price-makers”, que, uma vez declarada, conduz, na melhor das hipóteses, ao sub-óptimo dos equilíbrios de Nash, e, na pior hipótese, à
destruição mútua.
Sendo assim, reforça-se a convicção, originada em Chi- cago, de que não se deve confiar demasiado em indícios estrutu- rais estáticos para se concluir pela presença de um “poder de mercado” que constitua uma ameaça à concorrência, e por essa via esteja destinado a lesar a “optimização Paretiana” que um mercado idealmente promoverá.
O conceito de “poder de mercado” permanece, portanto, em aberto, exposta à evolução doutrinária.
4. CUSTOS DE TRANSACÇÃO
Os “custos de transacção” são os entraves “friccionais” que impedem a realização plena dos cálculos optimizadores for- mulados em abstracto: são a distância que vai de uma trajectória desenhada “ceteris paribus” para a trajectória real, que se desvia daquela sob o peso dos custos da sua própria consumação.
Entre um mundo “não-friccional” (muitas vezes desig- nado, caricaturalmente, como “Coaseano”) e o mundo real vai, portanto, a distância dos “custos de transacção”.
Xxxxxx Xxxxx já tivera a intuição de que os custos de transacção do mercado são a determinante para a existência de empresas, formas de organização integradas verticalmente para precisamente pouparem “in-house” nos custos inerentes ao fun- cionamento “horizontal” do mercado; e extrapola o conceito para o contexto mais amplo do funcionamento optimizador de todos os mercados e de todas as bilateralidades, reconhecendo que o maior entrave à universalização da solução negociada como mecanismo optimizador consiste nos custos positivos (isto é, não-zero) de toda a solução negociada: se a negociação (a transacção) for mais cara do que o valor negociado, esse valor deve ser prosseguido por meios não-negociais; e mesmo que não seja mais cara, a existência desses custos impedirá a optimização que abstractamente consegue vislumbrar-se.
Uma das mensagens da Análise Económica do Direito passou a ser – sem surpresa – que a redução, ou mesmo remoção, dos custos de transacção é um dos objectivos principais, senão o principal, da Análise Económica do Direito na sua vertente nor- mativa; sendo a caracterização e detecção desses custos uma das missões mais proeminentes da Análise Económica do Direito na sua vertente descritiva.
Na primeira das vertentes, a normativa, é evidente que o primeiro convocado é o próprio Direito, ao qual é cometida a dupla missão de remover custos que ele próprio gera (pense-se no peso institucional / burocrático da vida jurídica), e de redese- nhar direitos e titularidades por forma a minimizar o impacto dos custos de transacção que sejam irremovíveis – diríamos, por ou- tras palavras, que é cometido ao Direito simplificar a engrena- gem (privatizando-a, por exemplo, um dos corolários do Teo- rema de Coase), e olear a engrenagem minimalista que deva, não obstante, permanecer.
Aquele que confia nos mercados, nos contratos, nas em- presas, pode e deve começar por assumir as premissas analíticas de Xxxx Xxxxx, que ainda hoje predominam no “mainstream” neoclássico.
Mas cedo perceberá que esse cânone analítico se distan- cia da realidade – e que a principal distância corresponde à con- sideração dos custos de transacção: onde estão, no modelo clás- sico, os custos de obtenção e processamento de informação? os custos de busca de produtos e de factores de produção? os custos de busca de parceiros negociais ou empresariais? os custos de negociação? os custos de mobilização do Direito aplicável? os custos de configuração e instalação de salvaguardas contra ris- cos subjectivos e objectivos? os custos de externalização e inter- nalização em ambientes de risco colectivo, de interdependência e de acesso partilhado a recursos comuns? os custos de gover- nança e monitorização dos programas de colaboração?
O que é, em suma, abstractamente eficiente, pode tornar-
se menos eficiente, ou mesmo abertamente ineficiente, pela in- terposição de “fricções” e “viscosidades” inerentes à própria de- manda da eficiência.
Estamos, em pleno, no mundo do “second best”, do mundo em que a solução abstractamente sub-óptima é promo- vida, na prática, a solução óptima, por ser ela que corresponde ao melhor balanceamento de custos e benefícios, a partir do mo- mento que prestamos a devida atenção à totalidade dos custos realmente envolvidos em cada decisão económica, despromo- vendo a abstracção do “first best”.
5. EXTERNALIDADES
As externalidades são impactos da actividade económica de uns sobre a esfera de interesses e de direitos de outros, sem que, entre uns e outros, tenha havido um acordo prévio a legiti- mar a totalidade desses impactos.
A interdependência, a interpenetração, a proximidade uns dos outros no seio de uma “sociedade de risco”, torna inevi- tável que toda a actividade privada extravase para um espaço comum, impactando aqueles que se aproveitam do acesso a esse espaço comum; e pode ainda extravasar para espaços privados, se estruturalmente, e juridicamente, for difícil controlar o acesso a esses outros espaços.
Externalidades negativas (como por exemplo a poluição) são aquelas que se traduzem em custos sociais superiores aos custos privados do externalizador, verificando-se por isso uma falta de incentivo inicial à moderação, ou erradicação, da mar- gem externalizadora.
Externalidades positivas (o investimento individual em educação, por exemplo, ou a vacinação voluntária) são as que se traduzem em benefícios sociais superiores aos benefícios priva- dos do externalizador – de que resulta haver sub-incentivo à pro- dução desses benefícios, se a parte social do benefício não puder
traduzir-se em contrapartida remuneradora do externalizador, em incremento do benefício individual deste.
Uma das funções dos contratos – tanto os contratos “stricto sensu” como os pactos constituintes das democracias, de matriz contratualista – é o de estabelecerem a fronteira “inferior” do consentimento a esses impactos: sendo “externalidade” tudo o que se situa para lá dessa fronteira, isto é, tudo o que não foi consentido ou pactuado previamente, ainda que – em termos Co- aseanos – não se possa excluir que, a menores custos de transac- ção, pudessem ter sido consentidos esses impactos, ou pactuada a compensação pagar a quem sofra tais impactos.
Na outra fronteira, a fronteira “superior”, deixam de se considerar “externalidades” os impactos indisponíveis, inego- ciáveis – aqueles que colectivamente representam um perigo, e, portanto, são intoleráveis e convocam a reacção penal ou admi- nistrativa; ou os impactos positivos que colectivamente repre- sentem um benefício tão grande que não se admita que a sua produção fique à mercê da contingência da negociação, mesmo da negociação eficiente.
As externalidades, lembremo-lo, são tidas como potenci- ais geradoras de “falhas de mercado”, na medida em que provo- cam a clivagem entre custo e benefício privado, por um lado, e custo e benefício social, por outro, impedindo que a interacção livre de sujeitos privados – o mercado – promova espontanea- mente a solução socialmente mais eficiente, o “óptimo de Pa- reto”.
Na verdade, vimos já que a solução Xxxxxxxx contorna o conceito de “externalidades” para restringir o próprio universo das “falhas de mercado”; e a razão está no próprio âmago do “Teorema de Coase”, que presume que aquilo que tradicional- mente se designava por externalidades, a conotar uma unilatera- lidade entre “externalizador” e “vítima”, na maior parte das ve- zes é, antes, uma embate de planos maximizadores e igualmente legítimos, em plena bilateralidade de efeitos, a sugerir como
solução aquela que, na presença de uma definição adequada de direitos e de legitimidades, e na ausência de custos de transacção elevados, estamos habituados a observar nas trocas de mercado, elas próprias reflexo de uma contraposição objectiva de interes- ses que cedem mutuamente nos seus planos maximizadores até atingirem o compromisso do preço (e quantidade) de equilíbrio. E daí que, por ascendente dessa mudança de paradigma analítico, se conceba hoje, sem mais drama ou surpresa, que é possível a solução privada para problemas de externalidades (ou, conceda-se, pseudo-externalidades), bastando criar-se um “mer- cado de direitos”, especificamente um mercado de “direitos de externalizar negativamente” ou de “direitos de cobrar por exter- nalidades positivas”, através do estabelecimento de quotas, e da arquitectura política do “cap and trade” que acompanha a “cri-
ação de mercados”.
Essa solução, como as mais tradicionais do “command- and-control” ou da “tributação pigouviana”, assegura a concili- ação dos objectivos de convergência do custo privado com o custo social, por um lado, e por outro lado a preservação da ac- tividade produtiva que deu origem à externalização negativa (igualmente importante quando não se atingiu a fronteira da in- disponibilidade, e portanto não há – ainda – razão para se pena- lizar a actividade), com a vantagem de não envolver no processo o poder público, o qual por definição estará mais exposto a limi- tação e a assimetria informativa do que os próprios interessados, e envolvidos, na negociação dos direitos de externalizar (além de tender a eternizar-se, asfixiando a iniciativa privada e one- rando-a com as suas necessidades de financiamento através da receita tributária).
6. REMATE
Passados em revista, sumariamente, estes pontos de refe- rência do livro que prefaciamos (contrato, falhas de mercado,
poder de mercado, custos de transacção e externalidades), é al- tura de remetermos o leitor para o texto propriamente dito, assi- nalando que o leitor assistirá, de seguida, à interacção entre eles, levada a cabo, com método, detalhe e sofisticação, por um autor talentoso.
É como se tivéssemos procedido à descrição breve, e es- tática, de um conjunto de cinco planetas, e o texto subsequente se ocupasse com o exame das leis de gravitação e inércia que os coloca em movimento, e faz deles um verdadeiro, e dinâmico, sistema planetário.
O leitor não deixará de ficar admirado com a naturali- dade e desenvoltura com que o autor encara o difícil desafio de erigir um todo coerente a partir desses cinco pontos básicos, com a complicação adicional de o fazer a partir de uma perspectiva interdisciplinar, a da Análise Económica do Direito; e não me- nos admirado ficará com a forma elegante e didáctica como um tal desafio intelectual é superado.
Eu, que tenho tido a felicidade de acompanhar a trajec- tória académica do Prof. Xxxxxx Xxxxxxxx Trindade pratica- mente desde o começo, fico na esperança de que ele faça uso dos seus inúmeros talentos intelectuais e culturais para continuar a cultivar, em simultâneo, diversas áreas do saber jurídico, e jurí- dico-económico – como sempre o tem feito, sempre ao mais ele- vado nível; mas que também use esses talentos para regressar em breve a estes temas do contrato, quiçá aventurando-se então pela complicação adicional (que é também um investimento de elevado retorno) do tema do “contrato relacional”, um tema que será a sequência lógica deste magnífico estudo.
Vai longo o prefácio, e por esse facto peço desculpa ao autor e ao leitor.
Tendo eu, por única defesa, o entusiasmo que a leitura desta obra me causou, o leitor verá, já a partir da próxima página, que estou perfeitamente justificado.