O ABUSO DO PODER DE DIREÇÃO DO EMPREGADOR NOS CONTRATOS DE EMPREGO DE ATLETA DE FUTEBOL
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O ABUSO DO PODER DE DIREÇÃO DO EMPREGADOR NOS CONTRATOS DE EMPREGO DE ATLETA DE FUTEBOL
Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx
SUMÁRIO: I. INTRODUÇÃO. II. O PODER DO
EMPREGADOR. 2.1. Poder de direção. 2.2. Poder disciplinar. III. ARBITRARIEDADES NO CONTRATO DE ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. 3.1. O
abuso do poder diretivo pelo clube-empregador.
3.2. As consequências jurídicas resultantes do abuso do direito pelo clube-empregador. IV. CONCLUSÃO. V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
I. INTRODUÇÃO.
O futebol exerce indiscutível fascínio na maior parte da população do país, sendo o esporte mais popular, onde desfruta de grande popularidade.
Distante do romantismo vivido em décadas passadas, como nos anos de 1950, quando o país sediou pela primeira vez a Copa do Mundo da FIFA, o esporte se profissionalizou e passou a movimentar grandes fortunas. São inúmeros os produtos comercializados relativos a clubes, seleções nacionais, atletas, enfim, relacionados com o futebol, adquiridos globalmente por uma população ávida por consumo.
Atualmente, os principais atletas deste esporte são estrelas que firmaram contratos milionários com seus clubes e com inúmeros patrocinadores que garantem não apenas seu sustento, mas sim, de suas próximas gerações.
A exposição midiática, as grandes fortunas, a fama, o glamour com que suas vidas são retratadas acalentam em crianças e adolescentes o sonho de tornar-se um astro deste esporte. No entanto, este quadro não se conforma à dura realidade vivenciada pela maioria dos jogadores de futebol no país. De acordo com pesquisa divulgada na imprensa, no ano de 2012, 82% dos atletas profissionais de futebol receberam remuneração inferior a dois salários mínimos. De outra parte, somente 2% dos atletas auferiram renda mensal superior a vinte salários mínimos nacionais.1
Acresça-se a esse quadro as dificuldades
1 Disponível em: xxxx://xxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxx- realidade-no-brasil-82-dos-jogadores-de-futebol-recebem-ate- dois-salarios-minimos-6168754.html, acesso em 14/06/2014.
Xxxxxx Xxxxx Xxxxx: Mestre e doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR. Professor licenciado de Direito do Trabalho da UNIBRASIL. Professor do curso de pós-graduação da ABDCONST. Advogado trabalhista em Curitiba.
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxx em Direitos Fundamentais e Democracia pela UNIBRASIL. Advogado trabalhista em Curitiba.
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geradas pelo desemprego precoce, fruto de um calendário esportivo desorganizado e despreocupado com as pequenas agremiações e seus atletas empregados que disputam competições somente em dois ou três meses por ano. Além disso, torna-se cada vez mais corriqueiro – mesmo aos grandes clubes – os atrasos e a inadimplência às verbas salariais dos empregados, inclusive dos atletas, que muitas vezes convivem com mora salarial de dois a três meses.
Cabe, portanto, desmitificar esse imaginário popular forjado sobre a vida e o trabalho de quem vive desse esporte. A verdade é que no proclamado país do futebol a realidade aponta para o exercício deste ofício em condições precárias de trabalho.
De todo modo, independente de os mitos criados em torno dos atletas profissionais de futebol no Brasil, o contrato de trabalho celebrado entre estes e a agremiação a que se vinculam segue – ou deveria seguir – as disposições regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e as peculiaridades inerentes ao exercício desta profissão, conforme a Lei 9.615/98, popularmente conhecida como “Lei Pelé”.
O Direito do Trabalho alicerçou-se na premissa de que o empregador – porque dono dos meios de produção – detém o poder- direito de determinar as regras fundamentais de organização na unidade produtiva. Assim, o estado capitalista concedeu ao empregador um poder sobre os empregados, muitas vezes exercido em excesso.
Nessa perspectiva, não se mostra exagerado asseverar que as relações de emprego dos atletas profissionais de futebol sofrem mais acentuadamente com o autoritarismo
do empregador, muitas vezes, resultando em comportamento abusivo, incorrendo em dano moral ou em assédio moral.
O objetivo deste artigo reside em demonstrar como um ato aparentemente pautado no exercício regular do poder de direção do empregador pode se caracterizar como abusivo, gerando consequências jurídicas importantes ao empregado, atleta profissional de futebol. Para cumprir esta finalidade se versará, mesmo que sucintamente, sobre o poder do empregador e acerca do que constitui abuso do direito do clube de futebol. Ao fim e ao cabo restarão apontadas as principais consequências jurídicas da ação abusiva por parte do clube.
II. O PODER DO EMPREGADOR2
Por poder entende-se “... toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”3, ou, segundo Xxxxxxxx: “poder é essencialmente o que reprime” e pressupõe uma relação de força que tem na repressão seu mecanismo essencial.4 Isso não quer significar que possa ser exercido pelo simples uso da força. Ao contrário. O poder é expresso pela autoridade demonstrada. Autoridade esta que “suscita obediência voluntária”5 dos sujeitados e que, segundo XXXXXX, serve de fundamento de
2 Esta seção foi extraída de parte de artigo publicado anteriormente por Xxxxxx Xxxxx XXXXX, sob título “A normalização do trabalhador brasileiro pelo poder disciplinar do empregador” em obra coletiva, cf.: XXXXX XXXXX, W (coord.). Trabalho e Regulação no Estado Constitucional. Curitiba: Juruá, 2010, pp. 305-339.
3 XXXXX, X. Economia e sociedade, p. 33.
4 XXXXXXXX, X. Em defesa da sociedade, p. 21.
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5 XXXXXX, X. A cultura do novo capitalismo, p. 58.
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legitimidade ao poder6.
Se existe algo que padece de controvérsia é a presença nas relações de emprego de um poder conferido ao empregador. A doutrina trabalhista brasileira assente com este fato, assim como fornece os fundamentos jurídicos e sociológicos que o justificam7. Salvo exceções, o tema é abordado como premissa ordenadora do sistema, com raras elaborações teóricas questionando essa necessidade de atribuir-se a um dos sujeitos da relação de emprego um poder quase soberano sobre o outro. Pode-se asseverar que o poder na relação de emprego foi atribuído ao empregador por opção do estado capitalista. Prestaram-se os teóricos a justificá-la, sem, contudo, mencioná-la, já que compreendem o poder do empregador como inelutável, inevitável e perene8.
De outro lado, o tema a respeito da denominação do poder do empregador é polêmico. A despeito de as diversas posições encontradas na doutrina brasileira9 compreende-se o poder do empregador em duas subespécies, que representam duas formas em que se manifesta: o poder de direção e o poder disciplinar.
6 XXXXXX, op. cit., p. 139.
7 As principais teorias criadas para justificar os fundamentos do poder do empregador podem ser resumidamente encontradas em: XXXXX, N. A, op. cit.
8 XXXXXXX, X. Poder e sujeição..., passim.
9 Xxxxxxxx Xxxxxxx XXXXXXX e Xxxx Xxxx XXXXXXXX buscaram concentrar todos os meandros em uma única expressão, que sintetizasse suas formas de manifestação. Ao primeiro seria “poder empregatício” ou “poder intra- empresarial” (XXXXXXX, M. G. Curso de Direito do Trabalho,
p. 629). Para MESQUITA “poder hierárquico” (XXXXXXXX, X.
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J. Direito Disciplinar do Trabalho). De outro lado, há inúmeros autores que apresentam o poder do empregador fracionado, composto por subespécies, que seriam facetas decorrentes de sua forma de manifestação. Podem ser citados nessa linha Xxxxxxx XXXXX e Xxxxx XXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx XXXXXX, entre outros.
2.1. Poder de direção
Segundo Xxxxxxx XXXXXX, o desejo de controlar os gestos, o tempo, enfim, a rotina que envolve o trabalhador é uma tendência que acompanha o capitalismo moderno e teve seu apogeu com o taylorismo, que tentou trazer cientificidade à organização do trabalho.10
Para Xxxxxx Xxxxx XXXXXX, o poder de direção “é a capacidade, oriunda do seu direito subjetivo, ou então da organização empresarial, para determinar a estrutura técnica e econômica da empresa e dar conteúdo concreto à atividade do trabalhador visando a realização das finalidades daquela”11. Como ressalta Aldacy Xxxxxx XXXXXXXX, esta manifestação de poder compreende a prerrogativa do empregador (ou de quem fizer suas vezes) de emitir ordens ou comandos sobre o trabalho a ser despendido pelos empregados, que lhe devem obediência12.
O artigo 2º da CLT incutiu o poder diretivo no conceito de empregador, ao defini-lo como quem “... assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”13. Assim, evidencia-se que o poder de direção compreende a faculdade de impor regras aos empregados no que concerne à prestação de trabalho. Do mesmo modo, cabe ao empregador adotar meios de controle sobre o trabalhador, a fim de averiguar o correto cumprimento de suas ordens. E, no final, é lhe atribuído o direito de sancionar o empregado faltoso.
10 XXXXXX, X. Comunidade, p. 36.
11 XXXXXX, X. X. Do poder diretivo na empresa, p. 97.
12 XXXXXXXX, X. X. O poder punitivo trabalhista, p. 29.
13 BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 09 de ago. 1943.
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Para Xxxxxx Xxxxx XXXXX, o poder diretivo do empregador exterioriza-se por: “a) ordens e proibições; b) controle; c) sanções;”, sendo estas atreladas ao poder disciplinar. 14
Entende-se como mais adequado, repita-se, enquadrar o poder de direção como manifestação da capacidade de organização e controle do empregador, eis que a possibilidade de impor punições ao empregado ultrapassa os limites da finalidade do poder diretivo. É bom mencionar que a legislação brasileira considera para aplicação de sanções ao empregado as faltas praticadas, mesmo que não possuam relação com a prestação de trabalho, extrapolando assim as divisas do poder de direção.
2.2. Poder disciplinar15
Os doutrinadores de Direito do Trabalho, de forma geral, não divergem da existência de um poder disciplinar do empregador, concebendo-o como a maneira de obrigar o empregado a sujeitar-se ao poder diretivo. Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxx o define como “... a capacidade concedida ao empregador de aplicar sanções ao empregado infrator dos deveres que está sujeito por força de lei, de xxxxx xxxxxxxx ou do contrato”. Sua finalidade seria “... manter a ordem e a harmonia no ambiente de trabalho”16. Entretanto, não se limita a isso, pois a “punição visa, então, tornar real um controle eficaz da observância dos comandos pelos destinatários, em nome de um interesse
posto como da coletividade e não individual do empregador”17. Logo, sua finalidade seria dar concretude ao poder de direção do empregador.
Surge uma contradição. A justificativa jurídica da existência de um poder disciplinar seria a necessidade de fazer-se atingir a finalidade do contrato de emprego mantido, ou seja, a prestação de trabalho pelo empregado. A partir disso é que o empregador teria a prerrogativa de aplicar sanções aos trabalhadores, na perspectiva de manter o ambiente de trabalho organizado e harmonioso. Nesse aspecto, as penalidades também teriam um caráter pedagógico em relação ao empregado faltoso, e, exemplar em função dos demais. Se o objetivo é legitimar e conferir efetividade ao poder diretivo, e esse por sua vez restringe-se ao tempo e modo da prestação de trabalho, não há sentido na legislação estatal pretender regrar a vida pessoal do empregado.
É exatamente o que ocorre. O trabalhador teve sua subjetividade “sequestrada”18, pois interioriza o dever de obediência, o que rompe com as divisas do ambiente e dos horários de trabalho, e o leva para sua vida particular, para regulamentar seu modo de pensar, de agir, enfim, a maneira em que se comportará na sociedade.19 Tudo isso em função de seu empregador e sob os auspícios do exercício de seu poder disciplinar.
Mais do que simples dever de obediência, suplantando a noção de subordinação objetiva20, o empregado é colocado em
14 XXXXXX, M. T. Direito de resistência..., p. 138.
15 Para os fins deste artigo mostra-se irrelevante discorrer sobre o poder disciplinar do empregador, seu conceito, suas etapas e a maneira que ele se exterioriza no direito do trabalho brasileiro. Sobre o poder disciplinar ver XXXXXXXX,
M. Vigiar e punir. Sobre a manifestação do poder disciplinar do empregador no art. 482 da CLT ver: XXXXXXX, R. M. Modernidade e contrato de trabalho... e XXXXX, op. cit.
16 XXXXXX, X. X. Curso de Direito do Trabalho, p. 603.
17 XXXXXXXX, op. cit., p. 87.
18 XXXXX XXXXX, X. Direito, economia, democracia e o sequestro da subjetividade dos juslaboralistas. Revista do TRT da 9a Região, Curitiba, p. 147-166, 2001.
19 XXXXXXXX, op. cit., p. 70.
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20 É majoritário na doutrina juslaboralista que a subordinação do empregado ao empregador decorre do ajuste
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posição de inferioridade jurídica diante de seu empregador. Trata-se de verdadeira dominação pessoal e coletiva, significando a tentativa de normalização da classe trabalhadora.
Ao reportar-se às relações de emprego dos atletas profissionais de futebol esse poder arbitrário se revela de modo mais acentuado. É fato público e notório que no Brasil tais trabalhadores são recrutados nas classes subalternas, normalmente, sendo provenientes de famílias de baixíssima renda. Ainda muito jovens abandonam os estudos, não raramente com incentivo de seus próprios pais, e se submetem a toda sorte de sacrifícios em prol da concretização do sonho de criança, o que potencializa, de um lado, sua submissão e, de outro, o exercício abusivo do poder de direção pelo empregador.
III. A ARBITRARIEDADE NO CONTRATO DE ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL.
Nos contratos de trabalho de atleta profissional de futebol até pouco tempo atrás se ignorava o princípio da liberdade de trabalho. Isso em decorrência da antiga Lei do Passe que atrelava o trabalhador ao clube, impedindo-o de exercer sua profissão, se assim desejasse. Para
tanto, bastava não renovar o contrato do atleta e inibir sua transferência à outra agremiação esportiva.
Esse instituto (passe) implicava a coisificação da pessoa humana, transformando o atleta num objeto que podia ser comprado, emprestado, transferido, etc. Embora a chamada Xxx Xxxx tenha extinguido o passe remanesce nos empregadores a mentalidade proprietária de outrora, instigada pela manutenção legal de vínculos econômicos, do mesmo modo que permanecem as expressões adotadas no meio futebolístico como emprestar, comprar e vender pessoas.
3.1. O abuso do poder diretivo pelo
clube-empregador.
Sem dúvida, revela-se perigosa a combinação da mentalidade proprietária dos empregadores com a sujeição excessiva dos atletas, imposta pela legislação. É válido recordar que mesmo com o fim do passe, a legislação brasileira manteve a vinculação do empregado aos clubes, pois estes são os detentores dos direitos decorrentes do vínculo desportivo e normalmente possuidores dos direitos econômicos relacionados ao atleta.
Não se devem contestar os avanços
[...] muito jovens abandonam os estudos, não raramente com incentivo de seus próprios pais, e se submetem a toda sorte de sacrifícios em prol da
concretização do sonho de criança, o que potencializa, de um lado, sua submissão e, de outro, o exercício abusivo do poder de direção pelo empregador.
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contratual, portanto, é jurídica, e refere-se ao objeto da prestação de trabalho. Assim, é objetiva.
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promovidos no país pela Lei Pelé ao extinguir as regras relacionadas ao passe do atleta de futebol. No entanto, a necessidade de autorização do antigo clube – normalmente concedida quando as questões econômicas foram solucionadas – para que o atleta possa firmar novo contrato de trabalho constitui-se em evidente afronta ao princípio da liberdade de trabalho, previsto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal. Mais do que isso. Acentua a submissão do empregado ao arbítrio do empregador, potencializando o já natural autoritarismo no ambiente de trabalho.
Nessa perspectiva, são cotidianos os atos abusivos praticados pelos empregadores. Dissimulados no simples exercício do poder diretivo afrontam a dignidade do trabalhador, que não pode ser tratado como objeto do contrato de trabalho, mas sim como sujeito de direitos.21
Dentre estas práticas lesivas à dignidade do atleta vislumbra-se com grande relevância o afastamento do profissional do grupo principal de trabalho para treinar em separado. Nessa situação o atleta é mantido em isolamento do grupo de profissionais que se encontram em atividade, com carga reduzida de treinos físicos, sem participar de treinamentos táticos e consequentemente sem jogar.
Esta ação por parte do empregador evidencia-se importante porque aparenta ser legítima, mascarando-se no exercício de seu poder de direção. Objetarão seus defensores que o atleta não possui garantia contratual de participar dos jogos e que se mantidos os salários não haveria qualquer prejuízo. No entanto, está a se incorrer em grave abuso do direito.
21 XXXXXXXX, X. X. Direito humano e fundamental ao trabalho..., p. 255.
Para Xxxxxxx Xxxxx de MENDONÇA o abuso do direito seria uma espécie do gênero “ato ilícito” e “se manifesta nos momentos em que há violação a um dos seguintes requisitos:
a) finalidade social de um direito subjetivo;
b) finalidade econômica de um interesse juridicamente protegido; c) boa-fé; d) bons costumes; (...)”22
Em igual sentido Xxxxxxxxx Xxxxxx xx XXXXXX assevera que a “teoria do abuso de direito constitui um triunfo da ética no campo jurídico. A rigor, no abuso de direito, há licitude e direito, mas são vulneradas as pautas de exercício dos mesmos, no modo previsto no ordenamento jurídico. Há um desvio do fim moral ou econômico-social que o Direito persegue quando tutela as faculdades dos indivíduos”.23
Embora não utilize propriamente o termo “abuso”, mas sim, “desvio” do direito, Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX o identifica nas situações em que “... o titular do direito faz uso indevido de suas atribuições, objetivando finalidades diversas daquelas previstas em lei, já que age apenas com o propósito de molestar a contraparte.” 24
Os autores acima referidos abordam o tema do abuso do direito na perspectiva das teorias finalísticas que se fundam na existência de um desvio de finalidade na prática de um ato considerado a priori como lícito.
Nesse passo, pode-se afirmar que a
intenção perseguida pelo empregador ao isolar o
22 MENDONÇA, R. N. Do abuso do direito das ações possessórias como ato antissindical, p. 56.
23 XXXXXX, X. X. A boa-fé no contrato de emprego, p. 40.
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24 BARACAT, E. M. A boa-fé no direito individual do trabalho, p. 203.
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atleta do grupo principal de trabalho distinguirá se a conduta será reputada como exercício regular do direito ou como abuso do poder diretivo do empregador. Tem-se como ilustração da primeira situação a alteração do contrato com vistas à recuperação do condicionamento físico do atleta para depois reintegrá-lo ao grupo principal. De outra parte, aqueles atos praticados com intuito de pressionar o atleta a firmar novo contrato de trabalho ou mesmo com caráter punitivo a alguma ação do profissional devem ser compreendidos como abuso do direito por parte do empregador, por afrontar claramente a boa-fé contratual e por trazer prejuízos econômicos ao empregado em face de impedi-lo de perceber direito de arena e de expor sua imagem ao grande público.
Em outra perspectiva, sem analisar subjetivamente a finalidade do ato do empregador, pode-se asseverar que o afastamento do atleta profissional de futebol do grupo principal constrange seu direito fundamental ao trabalho e, portanto, o ato em si – independente da intenção em que é praticado – constitui-se em conduta ilícita por parte do empregador. Não se deve olvidar que a Constituição Federal estabeleceu no seu artigo 6º o direito ao trabalho como direito fundamental ao mesmo tempo em que elevou a valorização social do trabalho como um dos pilares da república.25
Evidentemente que qualquer ação do empregador – mesmo pautada, em princípio, no exercício regular do poder diretivo – que venha a impedir ou, de algum modo, a constranger o direito ao trabalho do empregado deve ser reputada ilícita, sendo irrelevante a finalidade do ato praticado.
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25 XXXXXXXX, op. cit., pp. 36-37.
De outra parte, não se deve desprezar que o abuso do direito por parte do clube empregador acarretará consequências jurídicas à relação empregatícia.
3.2 As consequências jurídicas resultantes do abuso do direito pelo clube- empregador
Incontestavelmente, o abuso do direito pelo empregador deve implicar consequências jurídicas em favor do atleta profissional de futebol. Sem prejuízo de exaurir os efeitos do desvio de conduta patronal, diante da rica realidade que perpassa um contrato de emprego, podem ser tecidas algumas hipóteses.
A primeira delas vislumbra-se na possibilidade de resolução do contrato de emprego por iniciativa do atleta profissional por justo motivo, diante da falta cometida pelo empregador. Cumpre observar que na ausência de regulamentação específica da Lei 9.615/98 (Lei Pelé) restam aplicáveis aos contratos de emprego as hipóteses de resolução do contrato por justa causa, previstas nos artigos 482 e 483 da CLT. Assim, verificada a gravidade da falta cometida pelo empregador e, se assim desejar, o trabalhador estaria autorizado a postular em Juízo o rompimento de seu contrato de emprego, com o consequente pagamento de haveres, incluindo multa rescisória.
Deve-se ter em mente que nem sempre o trabalhador terá interesse na extinção do contrato de emprego, sendo natural sua pretensão em fazer-se cessar à lesão ao seu direito, mas preservando a relação empregatícia. Nesse aspecto, poderia lançar de remédios jurídicos visando sua reintegração ao plantel principal ou, mesmo, para buscar medida inibitória, com a finalidade de impedir o empregador de dar continuidade ao processo persecutório.
Independente de a estratégia adotada
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pelo atleta profissional de futebol, certamente ele possuirá também direito à reparação pelos danos sofridos, de ordem material, normalmente, resultando de prejuízos econômicos impostos pela atitude abusiva do empregador, ou danos morais. Xxxxxx, não se pode negar também que estes atos configuram, em verdade, situação típica de assédio moral.
Xxx pretender ingressar no debate doutrinário e jurisprudencial a respeito do assédio moral, mostra-se válido ressaltar que a relação contratual do atleta profissional de futebol não está imune de condutas maléficas, na forma de ataques psicológicos habituais, direcionados a determinada pessoa, com a nítida intenção de prejudicá-la. Ao contrário, revela-se campo propício para esta espécie de abuso por parte do empregador.
Entende-se por assédio moral “um conjunto articulado de armadilhas preparadas, premeditadas, repetitivas e prolongadas. Os comportamentos hostis ocorrem repetidas vezes e por um período de tempo estendido. Sua prática é permeada de intencionalidade no sentido de querer prejudicar, anular ou excluir um ou alguns alvos escolhidos”.26
Apreende-se da definição duas formas de manifestação do fenômeno: (i) assédio moral perverso, aquele praticado por um agente, simplesmente porque a maldade lhe apraz; (ii) o assédio moral estratégico, a ação que almeja um resultado.
Evidencia-se que o afastamento do trabalhador do desempenho de suas atividades normais para treinar em separado do grupo principal, com a finalidade de puni-lo ou de pressioná-lo, constitui-se
em violência psicológica que afetará sua autoestima, ofendendo a sua dignidade. Tal situação merecerá reparação por dano moral, independente de sua repercussão, diante da evidente prática de ato ilícito por parte do empregador, consequência do exercício abusivo de seu poder diretivo.
Nesse sentido, vale citar caso paradigmático julgado pelo Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, em que o São Paulo Futebol Clube foi condenado a pagar indenização por danos morais ao seu ex-atleta Xxxxxxx Xxxxx, exatamente por tê-lo afastado do grupo principal e o colocado para treinar em separado. Na referida decisão restou reconhecido que o clube cometeu ato ilícito ao abusar do poder diretivo do empregador. 27
IV. CONCLUSÃO.
Muito distante do mito forjado no imaginário popular as relações de emprego dos atletas profissionais de futebol são marcadas, em sua maciça maioria, pela precariedade nas condições de trabalho. Aliás, mais de 80% dos atletas recebem menos de dois salários mínimos mensais.
Resultado do amálgama da mentalidade proprietária dos empregadores e de uma legislação que ainda precisa aprimorar mecanismos de resistência ao empregado, as relações contratuais envolvendo este profissional são impregnadas pelo autoritarismo, pelo exercício de um poder quase absoluto pelo empregador.
As peculiaridades destas relações jurídicas
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26 XXXXXX, X. X. X. Assédio moral/organizacional: uma análise da organização do trabalho, p. 32.
27 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região. Autos nº 00221.2007.069.02.00.2. Des. Rel. Neli Barbuy Cunha Monacci. Disponível em: xxxx://xxxxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/ consultas/acordaos/consacordaos_turmas_htm_v2.php?id=200 81106_20080735210_r.htm, acesso em 17/06/2014.
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as tornam campo propício para o exercício abusivo do poder diretivo por parte do clube- empregador. Não são raras as vezes que o atleta é coisificado, sendo tratado como objeto que pode ser comprado, emprestado, ou no termo eufemístico adotado pela legislação específica, cedido.
Não se deve perder de vista que se trata de contrato de emprego que tem no vendedor da força de trabalho, a despeito de as particularidades da atividade profissional empreendida, um ser humano, um trabalhador.
Nessa seara deve-se compreender qualquer conduta praticada pelo empregador que venha a restringir o direito ao trabalho deste trabalhador como censurável, devendo ser reprimida por ofender os princípios da liberdade de trabalho, do direito ao trabalho e da valorização social do trabalho, todos previstos na Constituição Federal.
Além disso, os atos praticados pelo empregador com a finalidade de humilhar, punir ou pressionar o atleta profissional, mesmo que revestidos a priori de legitimidade conferida pelo vazio normativo, isto é, condutas em princípio não vedadas pela legislação heterônoma, constituem-se em abuso do poder de direção do empregador.
É nesse aspecto que se insere o isolamento o afastamento do empregado do grupo principal para, isolado, treinar em separado dos demais profissionais. Trata-se, sem dúvida, de ato abusivo do poder de direção do empregador caracterizando-se também como exemplo clássico de assédio moral.
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Essas espécies de condutas merecem ser repelidas pelo Poder Judiciário. As medidas cabíveis nessa hipótese podem oscilar entre a resolução do contrato de emprego, por iniciativa do empregado, ou a obtenção de tutela inibitória para impedir a perseguição ao trabalhador, além
de ser possível a determinação judicial para reintegração ao grupo principal de trabalho.
Também caberá a reparação pelos danos materiais e morais sofridos. Os primeiros relacionados aos prejuízos econômicos ocasionados pela alteração do contrato de emprego por determinação do empregador, além de ser passível a condenação do clube em lucros cessantes ou pela perda de uma chance, a depender da situação concreta. De outra parte, o trabalhador também poderá reclamar indenização pelos danos extrapatrimoniais causados pelo ato ilícito do empregador.
Por fim, vale recordar que em regra a vida e o trabalho do atleta profissional de futebol nada têm de glamourosos. Não se deve descurar que estes trabalhadores – na imensa maioria – são tão hipossuficientes economicamente quanto os demais trabalhadores que buscam a prestação jurisdicional do Estado pela Justiça do Trabalho. De igual modo, mesmo aqueles que compõem o seleto conjunto de atletas bem remunerados
– número inferior a 2% do total de jogadores profissionais no país, em levantamento de 2012
– submetem-se a um ambiente de trabalho autoritário, antidemocrático, onde se obrigam a conviver com o corriqueiro exercício abusivo do poder diretivo do empregador. Enfim, há muito por avançar na busca pela democratização das relações de emprego no país, incluindo as celebradas entre os atletas profissionais de futebol e seus empregadores.
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artigo inédito