AESTHETIC DISCRIMINATION IN THE EMPLOYMENT CONTRACT
DISCRIMINAÇÃO ESTÉTICA NO CONTRATO DE EMPREGO
AESTHETIC DISCRIMINATION IN THE EMPLOYMENT CONTRACT
Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxx de Lacerda1
Xxxxxx Xxxxxxxx do Vale2
Viviane Christine Martins Ferreira3
RESUMO: Trata-se de artigo que tem por objeto de estudo a discriminação estética no contrato de emprego, tema atual e relevante para a prática trabalhista, para o estabele- cimento de parâmetros de conduta para empregados e empregadores, no cotidiano dos vínculos de direito material, bem como para a pesquisa acadêmica, considerando todos os paradigmas teóricos que precisam ser resgatados e discutidos no estabelecimento de diretrizes constitucionalmente fundamentadas para o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Discriminação Estética. Relação de Emprego. Direitos Funda- mentais. Intimidade. Vida Privada. Direito de Liberdade.
ABSTRACT: This article has as its object of study the aesthetic discrimination in the employment contract, a current and relevant topic for labor practice, for the establishment of parameters of conduct for employees and employers, in the daily life of substantive law bonds, as well as for academic research, considering all the theoretical paradigms that need to be revived and discussed in the establishment of constitutionally grounded guidelines for the theme.
KEYWORDS: Aesthetic Discrimination. Employment Relationship. Fundamental Rights. Intimacy. Private Life. Right to Freedom.
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Os direitos à privacidade e intimidade como direitos subjetivos dos empregados; 3 – Possibilidade de limitação ao direito à privacidade na relação de emprego e controle estético do trabalhador; 4 – Jurisprudência trabalhista e discriminação estética; 5 – Notas conclusivas; 6 – Referências bibliográficas.
1 Procuradora do trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região; professora adjunta da Uni- versidade Federal da Bahia; mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo; professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, CERS, UCSAL, Unifacs e das Escolas Judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões. Lattes: xxxx://xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000. E-mail: xxxxxxxxxxxxxxxxxx@xxx.xxx.xx.
2 Juíza do trabalho no TRT da 5ª Região; mestra em Direito pela UFBA; doutora pela PUC-SP; pós- doutorado pela Universidade de Salamanca; professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Ematra-5, Cers, Cejas, Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões. Lattes: xxxx://xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000. Orcid: xxxxx://xxxxx. org/0000-0001-6085-5404. E-mail: xxxxxxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx.xx.
3 Juíza do trabalho no TRT da 5ª Região; pós-graduada em Direito Constitucional do Trabalho. Lattes: xxxx://xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000. Orcid: xxxxx://xxxxx.xxx/0000-0000-0000-0000. E-mail: xxxxxxx_00000@xxx0.xxx.xx.
O
1 – Introdução
presente artigo tem por objeto de estudo a discriminação estética no contrato de emprego, tema atual e relevante para a prática trabalhista, para o estabelecimento de parâmetros de conduta para empregados e
empregadores, no cotidiano dos vínculos de direito material, bem como para a pesquisa acadêmica, considerando todos os paradigmas teóricos que precisam ser resgatados e discutidos no estabelecimento de diretrizes constitucionalmente fundamentadas para o tema.
Em um primeiro momento, há uma breve digressão sobre os direitos à inti- midade e vida privada, estabelecendo distinções e aproximações, com o escopo de firmar a tese de que se trata de direitos fundamentais a serem observados na relação de emprego e sobre os quais não há a possibilidade de renúncia, por parte do empre- gado, porquanto são direitos personalíssimos. Em um segundo item, são fixados os critérios para solução de conflitos entre princípios e direitos constitucionais, como delineados por Xxxxxx Xxxxx e defendidos por todos os neoconstitucionalistas.
No terceiro e último item, discorre-se sobre a jurisprudência da discrimi- nação estética e seus fundamentos, com o intuito de fincar as premissas teóricas utilizadas pelos tribunais para embasamento de decisões e criação eventual futura de precedentes.
As metodologias utilizadas, precipuamente, foram a pesquisa bibliográ- fica e a pesquisa documental, em face da utilização de jurisprudência oriunda do Tribunal Superior do Trabalho para ratificação da tese ora sufragada.
2 – Os direitos à privacidade e intimidade como direitos subjetivos dos
empregados
O contrato de emprego é uma relação firmada entre particulares, dotada de grande poder, concentrado unicamente na figura do empregador, detentor do direito de propriedade, autonomia privada ou liberdade de empresa; entrementes, no outro polo, há o empregado, igualmente possuidor de direitos fundamen- tais de cidadania, que valem na relação de emprego como direitos subjetivos e são assim denominados direitos laborais inespecíficos, exatamente porque específicos seriam aqueles direitos emanados diretamente na Constituição para os trabalhadores e empregadores, e os inespecíficos teriam como destinatários todos os cidadãos, inclusive o cidadão trabalhador.
A terminologia “cidadania na empresa” foi adotada pelo professor Xxxx Xxxx Xxxxxxxx, quando explica em sua obra que hoje se assiste a uma “recom- posição constitucional do contrato de trabalho, com a acentuação de sua raiz antropocêntrica e da sua ligação íntima com a pessoa humana e os seus direitos”4.
4 ABRANTES, Xxxx Xxxx. Contrato de trabalho e direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 62.
Aludidos direitos de cidadania são, ao mesmo tempo também, dos trabalhadores e, “por isso, se tornam verdadeiros direitos de matriz juslaborista, em razão dos sujeitos e da natureza da relação jurídica em que são feitos valer”5.
Dentre os direitos de cidadania, merecem destaque os direitos de inti- midade e privacidade, ambos com sede legal no art. 5º, inciso X, da CRFB/88, que na literalidade asseguram a inviolabilidade da intimidade e da vida privada das pessoas, ressaltando a possibilidade de indenização por dano material ou moral decorrente da violação dos ditos direitos. Por seu turno, o Código Civil, quando tratou dos direitos de personalidade, asseverou, em seu art. 21, que “a vida privada da pessoa natural é inviolável”.
A Consolidação das Leis do Trabalho, reformada em 2017, passou a prever em seu art. 223-C que a pessoa física tem diversos bens juridicamente tutelados, dando destaque para a intimidade, assegurando a possibilidade de reparação por danos morais e patrimoniais, no art. 223-B, caso haja violação de tal direito personalíssimo.
Voltando os olhos ao Direito estrangeiro e mirando em um país que normalmente serve de inspiração quando o assunto é alteração de normas tra- balhistas, observa-se, no artigo 16.1 do Código do Trabalho de Portugal (Lei nº 7/2009), que “o empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada”. Quanto à previsão legal no cenário mundial, o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem prevê que “ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação”.
Retornando ao cenário legislativo brasileiro, percebe-se que a Carta Política de 1988 estatuiu a proteção à vida privada e à intimidade, e essa dupli- cidade de termos redunda no inevitável questionamento sobre se o legislador constituinte desejou resguardar proteções distintas ou se utilizou de simples reforço de linguagem. Analisando ambos os termos empregados pela Constitui- ção e outras normas que tratam dos referidos direitos de personalidade, Xxxxx Xxxxxxx conclui que a doutrina revela a fungibilidade que caracteriza o uso de ambos os termos, sendo certo que alguns preferem empregar o termo direito à intimidade, enquanto outros optam pela expressão direito à vida privada6.
À guisa de traçar um critério diferenciador entre a vida privada e a pú- blica, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx advoga que a questão chega a ser óbvia, já que “vida privada é toda aquela que não é pública” e que naquela se incluem
5 Idem, p. 61.
6 XXXXXXX, Xxxxx. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 28-29.
“a vida familiar, doméstica, sexual e afectiva, bem como o estado de saúde das pessoas”, mas recorda que o âmbito material da vida privada “não pode ser resu- mido a uma única fórmula, de onde constem todos os aspectos merecedores da tutela do direito”7. O referido autor8 igualmente explica que a opção legislativa pelo uso dos termos “vida privada” e “intimidade” levou a doutrina alemã a distingui-las, utilizando a teoria das esferas, sendo a esfera íntima aquilo que deve ser resguardado de todos, que “fica inacessível a terceiros e protegido da curiosidade alheia”, sobretudo o que diz respeito a “aspectos da vida familiar, a comportamentos sexuais, a práticas e convicções religiosas e ao estado de saúde das pessoas. A esfera íntima, em regra, recebe proteção absoluta. Por sua vez, a esfera privada diria respeito aos hábitos de vida, à vida da pessoa e ao resguardo do domicílio e ao que nele acontece. A “esfera da vida privada é apenas relativamente protegida, podendo ceder em caso de conflito com outro direito ou interesse público”9. Já a esfera pública diz respeito a “todos os factos e situações do conhecimento público, que se verificam e se desenvolvem pe- rante toda a comunidade e que por esta podem ser genericamente conhecidos e divulgados”10.
Explicam Xxxxxxx e Vale que, em relação à explicação da diferença entre vida privada e intimidade, prevalece na doutrina brasileira a teoria dos círculos concêntricos, elaborada por Xxxxxxxx Xxxxxx, no final da década de 1950. Com base em tal teoria:
“a esfera privada (o círculo da vida privada em sentido amplo) encerra três círculos concêntricos (camadas dentro de camadas): o círculo da vida privada em sentido estrito (a camada superficial), que contempla o círculo da intimidade (a camada intermediária), no qual se acomoda o mais denso desses três compartimentos, o círculo do segredo (núcleo).”11
Para além da teoria que se possa adotar12, é certo que o empregado, ao se vincular ao contrato de emprego, carrega para dentro deste mesmo contrato todos os seus direitos subjetivos de cidadania, que servem como limites ao poder diretivo próprio do empregador e, nesse contexto, é correto afirmar que
7 XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx. Direitos de personalidade – anotações ao Código Civil e ao Código do
Trabalho. Coimbra: Almedina, 2006. p. 55.
8 Idem, p. 56.
9 Ibidem.
10 Idem, p. 57.
11 XXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx; VALE, Xxxxxx Xxxxxxxx do. Curso de direito constitucional do tra- balho. São Paulo: LTr, 2021. p. 344.
12 Como bem pontifica Xxxxx Xxxx, “bien se parta de una diversidad de manifestaciones de un único derecho, bien se opte por una pluralidad de derechos referidos a situaciones conexas, lo que importa es advertir la existencia de una categoría general o de una forma única de garantía jurídica” (XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, Madrid: Tecnos, 2014. p. 328).
o empregado deve ter o seu direito à privacidade respeitado pelo respectivo empregador como regra, não como exceção. Essa mesma ideia é defendia pelo professor Xxxx Xxxx Xxxxxxxx, que, explicando a amplitude e alcance do artigo 16 do Código do Trabalho português, afirma que “a reserva da intimi- dade da vida privada deve ser a regra, não a exceção, apenas se justificando a sua limitação quando interesses superiores (v.g., outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) o exijam”13.
Como já afirmado ao norte, quando o debate gira em torno da eficácia de direitos fundamentais na relação de emprego, o grande problema enfrentado pelo intérprete reside justamente em se deparar com a circunstância de que ambos, empregado e empregador, são detentores de tais direitos e, no âmbito concreto, inevitavelmente haverá colisão dos referidos direitos fundamentais. Por essa razão, é necessário estabelecer algum critério para resolver o embate entre direitos fundamentais, o que será objeto de digressão no próximo tópico.
3 – Possibilidade de limitação ao direito à privacidade na relação de emprego e controle estético do trabalhador
Conforme analisado em linhas anteriores, a esfera da privacidade é ape- nas relativamente protegida, podendo, portanto, sofrer limitações, quando em colisão com outros direitos fundamentalmente albergados pela Carta Política.
Tal como previsto na Constituição de 1988, o direito à privacidade se constitui em princípio e, dessa forma, seguindo os passos certeiros de Xxxxxx Xxxxx, deve ser tratado como um mandado de otimização. É dizer, deve ser satis- feito em sua maior potencialidade14. Se, no entanto, por um lado, o princípio da privacidade deve ser observado na maior medida possível no âmbito da relação de emprego, como um grande limitador ao poder diretivo do empregador, de outra banda, não se pode ignorar que este igualmente é possuidor dos direitos fundamentais à propriedade, à liberdade de empresa ou autonomia privada e, no cenário concreto do contrato de emprego, tais direitos fundamentais colidem inevitavelmente.
Observe-se, de forma exemplificativa, a empresa que tem a necessidade de estabelecer um dress code para os empregados e as empregadas. É importante afirmar que haveria algum limite ao exercício do poder diretivo do empregador, modus in rebus.
13 ABRANTES, Xxxx Xxxx. Direitos fundamentais da pessoa humana no trabalho, em especial, a reserva da intimidade da vida privada (algumas questões). Coimbra: Almedina, 2014. p. 24.
14 XXXXX, Xxxxxx. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90.
Robert Alexy15 assevera que é possível resolver a colisão de princípios constitucionais estabelecendo uma fórmula ao estilo alemão, de forma bem di- dática, na qual dois princípios se chocam e o resultado depende eminentemente das precedentes condicionantes, ou seja, das condições apresentadas concreta- mente para o caso sob análise. Seguindo o raciocínio do referido autor, há uma estreita conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade, sendo certo que, quando há colisão de tais bens constitucionalmente protegi- dos, o julgador necessariamente deve observar as máximas da “adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito)”16.
Por outro lado, o Código de Processo Civil de 2015 passou a prever, em seu art. 489, § 2º, que, em havendo colisão de direitos fundamentais, o ma- gistrado deve “justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as pre- missas fáticas que fundamentaram a conclusão”. Em outras palavras, o Estado- legislador absorveu o que a doutrina sustentava há anos, ou seja, o paradigma de que o julgador deve necessariamente percorrer todas as fases indicadas ao norte quando estiver analisando o conflito firmado entre direitos individuais.
Enfim, retornando à questão prática incialmente suscitada, é correto afirmar que o empregador poderia fixar um dress code, desde que a vestimenta fosse adequada ao ambiente de trabalho e não ofensiva aos empregados e em- pregadas. Seria considerada ofensiva, portanto, a vestimenta que não guardasse relação com o trabalho (falta de adequação), que de alguma forma permitisse indignidade ao ser humano ou ofendesse qualquer direito fundamental.
Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx aduz que o direito à privacidade somente deve cessar perante “factos e circunstâncias que fundam direitos de outras pessoas e quando um interesse superior o exija, em termos tais que se torne inexigível a sua manutenção”17. E prossegue afirmando que se deve ser “intransigente quando esteja em causa a esfera íntima da pessoa em causa e menos exigente quando estejam em causa factos que integram a sua esfera privada”18.
Nesse trilhar, seria hipoteticamente ofensivo e, portanto, discriminató- rio, o empregador proibir o uso de véus da religião islâmica, uso de terços ou turbantes religiosos, pois tal proibição conflitaria não só com a autodetermina-
15 Idem, p. 99-103.
16 Idem, p. 116-117.
17 DRAY, op. cit., p. 57.
18 Idem, p. 58.
ção própria do direito à privacidade e a estética, mas também com o direito à
liberdade religiosa, figurando como uma discriminação por motivo múltiplo19.
Todavia, se a empresa for de tendência e o empregado trabalhar em atividade não neutra, a saber, que esteja relacionada à tendência empresarial, o princípio da autonomia privada deverá ter um peso maior quando da análise do caso concreto20. Mesmo em tal hipótese, será obrigatório observar a segunda etapa quando da análise da colisão de princípios protegidos constitucionalmente, tendo em mira que o empregador sempre deverá observar o meio menos gra- voso para limitar o direito fundamental do empregado e deve ainda averiguar se havia realmente necessidade de invadir o direito.
Quanto a esta peculiaridade, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxx en- sina que, em se tratando de organização religiosa em sentido estrito, que é empresa de tendência, o “nível de comprometimento exigido do empregado de uma igreja ou culto com o seu empregador justifica até mesmo restrições a comportamentos”21, afirmando que, embora tais comportamentos “não sejam ilícitos do ponto de vista do ordenamento estatal, são considerados pela orga- nização religiosa como violadores de seus princípios”22. O referido autor cita um exemplo bastante preciso para justificar o seu ponto de vista:
“uma igreja pentecostal cuja doutrina se oponha ao desbaste dos cabelos femininos pode impor às suas empregadas, que também perten- cem à comunidade religiosa, que se abstenham de cortar os cabelos. Se tal exigência partisse de um empregador comum, possivelmente seria tomada como uma restrição indevida à liberdade de autodeterminação da imagem e jamais forneceria justificação racional para embasar o exer- cício do poder disciplinar empresarial. No caso específico dessa igreja, porém, a realização do sistema de valores que compõe o seu ideário e que legitima a sua fundação justifica a imposição da regra.”23
19 O Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, promulga a Convenção Interamericana contra o Racis- mo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013, que em seu artigo 1.3 estabelece: “discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada”.
20 Nesse sentido: VALE, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx do. Direitos fundamentais dos trabalhadores nas empresas de tendência. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx do (Org.). Temas avançados de direitos humanos – estudos em homenagem à professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. São Paulo: LTr, 2020. p. 409-428.
21 XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. A liberdade religiosa do empregado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 27.
22 Ibidem.
23 Idem, p. 27-28.
Outro limite já reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é o previsto na Súmula nº 443, que entende como discriminatória a despedida de empregado portador doença grave que suscite estigma, em claro direcionamento em relação à discriminação estética, visível ao simples olhar, como, por exemplo, as doenças que causam aumento brusco ou queda brusca de peso, as que causam queda de cabelo (câncer e alopecia feminina, por exemplo), as que transformam a pele do trabalhador ou da trabalhadora em derme vítrea e esbranquiçada (hipoteticamente, tuberculose), bem assim as enfermidades causadoras de escaras.
Um ponto que merece destaque é o debate em torno do controle extra- contratual do empregado pelo empregador, sendo certo que normalmente a parte estética do trabalhador é algo que transcende os limites do contrato de emprego. Assim, em regra, haverá vedação ao empregador limitar o uso de barba, bigode, cavanhaque, cortes de cabelo, uso de vestimenta e controlar o peso dos empregados, quando nenhuma das hipóteses guarda vinculação com os objetivos empresariais, pois “o controle deverá limitar-se à fiscalização desse objetivo (limitação teleológica), de maneira que apenas as atividades relacionadas com a prestação direta dos serviços poderão ser controladas”24.
Em relação ao uso de uniforme, o empregador não poderá exigir que empregadas mulheres usem roupas mais decotadas, objetificando o corpo femi- nino, porque isso se constitui em clara ausência de razoabilidade no ambiente de trabalho. A proibição oposta igualmente se constitui verdadeira, pois também se distancia da razoabilidade vedar o uso de roupas curtas e decotadas, sem que tal conduta guarde estreita relação com o exercício profissional25.
Nesse mesmo trilhar, o uso de barba, cavanhaque e bigode diz respeito à privacidade do empregado e não pode ser limitado pelo empregador, quando não houver qualquer razoabilidade ou pertinência com o exercício da profissão. Assim, seria possível, em hipótese, defender a restrição ao direito fundamental quando houvesse alguma limitação sanitária, como, por exemplo, em relação aos empregados que trabalham na cozinha.
Nesta senda, a restrição ao uso de cabelo mais comprido por empre- gados do sexo masculino se constitui em ato absolutamente desprovido de razoabilidade, tendo-se que é possível o uso de touca (juízo de necessidade) para alcançar o mesmo objetivo, que é deixar o ambiente de trabalho hígido e oferecer segurança alimentar aos consumidores. Deste entendimento não discrepa a jurisprudência juslaboral, como se verá adiante.
24 XXXXX, Xxxxxx Xxx. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTr, 2000. p. 178.
25 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Direitos da personalidade nas relações de trabalho – limitação, relativi- zação e disponibilidade. São Paulo: LTr, 2017. p. 73.
4 – Jurisprudência trabalhista e discriminação estética
É imperiosa a análise de decisões já proferidas em torno da discrimi- nação estética para a compreensão das fronteiras e dos caminhos percorridos na construção de parâmetros jurídicos que avaliem as tensões entre o direito à privacidade e intimidade, de um lado, e o exercício do poder de gestão do empregador, de outro lado.
Quanto à discriminação como elemento de diferenciação ilícita racial, vale trazer decisão proferida em dezembro de 2020 pela 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho e que teve como Relatora a Ministra Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, em processo movido contra empresa que possuía um guia de padro- nização visual para funcionárias(os) e no qual não constavam pessoas negras. Eis a ementa do julgado:
“I – AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE RE- VISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. DE- MONSTRADA POSSÍVEL VIOLAÇÃO DOS ARTS. 186 E 927 DO CÓDIGO CIVIL, IMPÕE-SE O PROVIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO PARA DETERMINAR O PROCESSAMENTO DO RECURSO DE REVISTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVI- DO. II – RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CONSOANTE SE INFERE DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL REGIONAL, A RECLAMADA POSSUI UM GUIA DE PADRONIZAÇÃO VISUAL PARA SEUS EMPREGADOS, NO QUAL NÃO CONSTAM FOTOS DE NENHUM QUE REPRESENTE A RAÇA NEGRA. QUALQUER DISTINÇÃO, EXCLUSÃO, RESTRIÇÃO OU PREFERÊNCIA BASEADA EXCLUSIVAMENTE NA COR DA PELE, RAÇA, NACIONALIDADE OU ORIGEM ÉTNICA PODE SER CON- SIDERADA DISCRIMINAÇÃO RACIAL. NO CASO, A FALTA DE DIVERSIDADE RACIAL NO GUIA DE PADRONIZAÇÃO VISUAL DA RECLAMADA É UMA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO, AINDA QUE INDIRETA, QUE TEM O CONDÃO DE FERIR A DIGNIDADE HUMANA E A INTEGRIDADE PSÍQUICA DOS EMPREGADOS DA RAÇA NEGRA, COMO NO CASO DA RECLAMANTE, QUE NÃO SE SENTEM REPRESENTADOS EM SEU AMBIENTE LABORAL. CUMPRE DESTACAR QUE NO ATUAL ESTÁGIO DE DESENVOL- VIMENTO DE NOSSA SOCIEDADE, TODA A FORMA DE DISCRI- MINAÇÃO DEVE SER COMBATIDA, NOTADAMENTE AQUELA MAIS SUTIL DE SER DETECTADA EM SUA NATUREZA, COMO A DISCRIMINAÇÃO INSTITUCIONAL OU ESTRUTURAL, QUE AO
INVÉS DE SER PERPETRADA POR INDIVÍDUOS, É PRATICADA POR INSTITUIÇÕES, SEJAM ELAS PRIVADAS OU PÚBLICAS, DE FORMA INTENCIONAL OU NÃO, COM O PODER DE AFETAR NEGATIVAMENTE DETERMINADO GRUPO RACIAL. É O QUE SE EXTRAI DO CASO CONCRETO EM EXAME, QUANDO O GUIA DE PADRONIZAÇÃO VISUAL ADOTADO PELA RECLAMADA, AIN- DA QUE DE FORMA NÃO INTENCIONAL, DEIXA DE CONTEM- PLAR PESSOAS DA RAÇA NEGRA, TENDO EFEITO NEGATIVO SOBRE OS EMPREGADOS DE COR NEGRA, RAZÃO PELA QUAL A PARTE AUTORA FAZ JUS AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, NO IMPORTE DE R$ 10.000,00 (DEZ MIL REAIS). RECURSO DE REVISTA CONHECIDO E PROVIDO.”26
No acórdão acima transcrito, observa-se que a decisão do Tribunal Superior do Trabalho, que reformou o acórdão que havia negado direito à indenização por dano moral, norteou-se em padrões de proteção de direitos humanos sedimentados em fontes jurídicas internacionais, elegendo como primeiro fundamento o princípio da não discriminação, inscrito no art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948; além do art. 1º da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, de 1965, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Presidencial nº 65.810/1969. O julgado destacou, su- cessivamente, o art. 1º da Convenção nº 111 da OIT e, posteriormente, os arts. 3º, inciso IV, e 5º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, sendo referidos em plano infraconstitucional o art. 1º da Lei nº 9.029/1995, além do art. 1º do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010.
Na fundamentação, enfatizou o órgão julgador, em um primeiro plano, a ilicitude dos fatos à luz das fontes de direito internacional; em um segundo momento, direcionou o foco para as normas constitucionais e apenas em um terceiro ínterim para normas infraconstitucionais, a revelar recurso metodoló- gico que prestigia direitos humanos e fundamentais, extraindo, como critério para o acolhimento do pedido indenizatório, o reconhecimento da discriminação indireta. Ao identificar que a empresa possuía um guia de padronização visual para empregados em que não constavam fotos de representes negros, a decisão concluiu pela ocorrência discriminatória, uma vez que a falta de diversidade racial no aludido guia revelava uma forma de discriminação indireta, hábil a ser qualificada como ofensiva à dignidade humana e à integridade psíquica de pessoas negras, como no caso da reclamante daquele processo, que não se sentia representada em seu ambiente laboral.
26 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1000390-03.2018.5.02.0046. Ministra Relatora Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; Órgão julgador: Segunda Turma; Data de publicação: 4/12/2020.
Trata-se de hipótese de discriminação estética porque a empresa fixou uma diferença e a fez acompanhar de uma hierarquização, com demérito de pessoas negras, uma vez que não representadas em documento de padrão vi- sual de trabalhadores. O referido documento, no âmbito daquela empregadora, fixava uma espécie de manual, com elementos estéticos, para a apresentação de trabalhadores em serviço, não indicando em seus padrões as pessoas negras e suas variadas representações estéticas de afirmação de beleza, valorização de cultura ou ancestralidade, a exemplo de cabelos black power, tranças, dreads, turbantes, entre outros.
O guia, efetivamente, estabelece condição excludente que caracteriza discriminação, permitindo concluir que a deliberada ausência de representa- ção transmite mensagem da falta de espelhamento identitário e estético para pessoas negras. A decisão é consentânea com os paradigmas constitucionais ao reconhecer o potencial denegatório sob viés racial, a partir do elemento da falta de representação, pois outra não é a consequência simbólica da ausência de pessoas negras em documentos de padrão visual da empresa, para os empre- gados negros, senão a de exclusão e não pertencimento. Em síntese, portanto, há um entrelaçamento de discriminação estética e racial, no caso concreto.
Nestes termos, é ampliada a perspectiva de tutela antidiscriminatória representada pelo julgado, na medida em que não se dirige à discussão da intencionalidade discriminatória, descartando investigar a ocorrência de fato discriminatório específico, mas mira o enfrentamento de discriminação sob dimensão sutil. Assim, o estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira justifica redirecionar a atenção à capacidade dinâmica de renovação do racis- mo, que assume novas formas de disseminação, incluindo manifestações sutis, qual a discriminação institucional que, não sendo perpetrada por indivíduos, é praticada em nível das instituições, privadas ou públicas, de forma intencional ou não, mas com potencial de afetar negativamente determinado grupo racial.
A situação do processo permite verificar a ocorrência de racismo gende- rizado de que fala a autora portuguesa Grada Kilomba27 ao se debruçar sobre episódios cotidianos de racismo, enunciando que o racismo, em sua feição cotidiana, é dinâmico e não mais se apresenta em ocorrência explícita, sob intermédio de ofensa direta ou injúria, mas como fragmento ou constelação de eventos que submete a pessoa negra, de forma continuada, a experimentar a condição de ser colocada como diferente, como o outro, anormal, exótico, não integrado, sendo-lhe negada a subjetividade em exercício pleno porque excluída a possibilidade de reconhecimento institucional, no caso, materializada
27 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 80.
pela ausência de representação de pessoa negra em guia que organiza padrão visual para a empresa.
A decisão, portanto, ao estabelecer como critério de avaliação a discri- minação indireta, por repercussão do fato sobre grupo racial negro, atualiza o entendimento da jurisprudência, em sintonia com a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas, incorporada à ordem jurídica nacional pelo Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Além disso, fixa precedente a contribuir para enfrentamento de discriminações múltiplas.
Avança o julgado também para valorizar o caráter multiétnico e pluricul- tural do Brasil, reconhecido pela Constituição Federal, e fortalece o conceito de discriminação, com escólio no artigo 2º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a partir do qual se pode interpretar o conceito de discriminação como qualquer diferenciação, exclusão ou restri- ção baseada em critérios proibidos, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liber- dades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro, abrangendo todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável.
Posteriormente, em fevereiro de 2022, foi prolatado outro acórdão, pela Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, reconhecendo a ocorrência de discriminação estética por fixação de regra proibindo o uso de cavanhaque para trabalhadores em atividade de segurança patrimonial, nos seguintes termos:
“A) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA INIBITÓRIA. SERVIÇO DE VIGILÂNCIA. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO AO SERVIÇO COM CABELO E BARBA APARADOS. CONDUTA DISCRIMINATÓRIA. CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. Demonstrado no
agravo de instrumento que o recurso de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT, dá-se provimento ao agravo de instrumento, para melhor análise da arguição de violação dos arts. 1º, III, 3º, IV, e 5º, X, da CF, suscitada no recurso de revista. Agravo de instrumento provido.
B) RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA INIBITÓRIA. SERVIÇO DE VIGILÂNCIA. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO AO SERVIÇO COM CABELO E BARBA APARADOS. CONDUTA DISCRIMINA-
TÓRIA. CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL
COLETIVO. Discriminação é a conduta pela qual se nega à pessoa – em face de critério injustamente desqualificante – tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada. O princípio da não discriminação tem por finalidade precípua assegurar a proteção, a resistência, sendo denegatório de conduta que se considera gravemente censurável. Portanto, labora sobre um piso de civilidade que se considera mínimo para a convivência entre as pessoas. A conquista e afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, natu- ralmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural – o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. As proteções jurídicas contra discriminações na relação de emprego são distintas. A par das proteções que envolvem discriminações com direta e principal repercussão na temática salarial, há as proteções jurídicas contra discriminações em geral, que envolvem tipos diversos e variados de empregados ou tipos de situações contratuais. Embora grande parte desses casos acabe por ter, também, repercussões salariais, o que os distingue é a circunstância de serem discriminações de dimen- são e face diversificadas, não se concentrando apenas (ou fundamental- mente) no aspecto salarial. Por outro lado, releva ponderar que, para a configuração do dano moral coletivo, exige-se a constatação de lesão a uma coletividade, um dano social que ultrapasse a esfera de interesse meramente particular, individual do ser humano, por mais que a conduta ofensora atinja, igualmente, a esfera privada do indivíduo. No caso dos autos, apesar de o TRT ter consignado que apenas um único empregado foi dispensado por tratamento discriminatório, decorrente da sua recusa em retirar o cavanhaque, assentou também que o ‘Regimento Interno da Divisão de Vigilância e Segurança Patrimonial – DIVIG, da Universidade Federal de Uberlândia, estabelece que um dos deveres dos membros da divisão é se apresentar ao serviço corretamente uniformizado, cabelo e barba aparados’. Tais circunstâncias demonstram que a referida disposi- ção normativa indica restrição discriminatória quanto à imagem pessoal dos empregados do setor de vigilância, postura que não condiz com o nosso Ordenamento Jurídico (arts. 1º, III, e 3º, IV, da CF). Com efeito, o fato de apenas um único empregado ter se insurgido contra a exigência prevista no Regimento Interno da Divisão de Vigilância e Segurança
Patrimonial – DIVIG, da Universidade Federal de Uberlândia, não retira o caráter discriminatório da norma interna. Dessa maneira, verifica-se cabível a indenização por dano moral coletivo, a ser revertida ao FAT, como medida punitiva e pedagógica em face da ilegalidade perpetrada. Recurso de revista conhecido e provido.”28
Merece registro que este acórdão direciona a análise para a circunstância de que a discriminação foi identificada porque destinada à pessoa trabalhado- ra, por critério injustamente desqualificante e tratamento incompatível com o padrão jurídico esperado. A decisão acolheu pedido de indenização por dano moral coletivo a partir da denúncia de trabalhador dispensado depois de se insurgir contra restrição quanto à sua imagem pessoal, pela proibição de se apresentar com cavanhaque. Embora a notícia de fato tenha sido individual, a atuação do MPT se legitima porque a situação assume potencialidade de vio- lação de direitos e interesses difusos e coletivos, uma vez que a determinação imposta ao trabalhador decorreu de norma interna empresarial, entendida como discriminatória, que estabeleceu política continuada, generalizada e duradoura de restrição à liberdade de identidade por escolha de estética e aparência.
Ao contrário do primeiro julgado transcrito, alicerçado em normas internacionais, prevaleceu a fundamentação dirigida a reconhecer a força nor- mativa dos princípios e a incidência direta de normas constitucionais, sendo especificamente citados os arts. 1º, inciso III; 3º, inciso IV; 5º, incisos II, V e X, todos da Constituição Federal de 1988, além dos arts. 11 e 12 do Código Civil.
Além da distinção técnica quanto ao suporte normativo, observa-se que esta segunda decisão elegeu, como critério norteador para reconhecimento da discriminação estética, a densificação dos princípios da razoabilidade e da dignidade, em expressão de liberdade de autoafirmação física e psíquica. Pri- ma facie, o julgado se aproximaria de tutelas jurídicas individuais e de caráter negativo, próprias da primeira geração de direitos fundamentais; entrementes, com a extensão de proteção em dimensão coletiva, por meio do reconheci- mento de potencialidade lesiva a uma pluralidade de trabalhadores, confere juridicidade a interesses de ordem coletiva, associados à segunda geração ou dimensão de direitos.
O acórdão restabelece, em padrões contemporâneos, direitos de liberda- de, mediante articulação dos fundamentos de autoafirmação e individualidade com as premissas de proteção de um piso de civilidade considerado mínimo para a convivência entre as pessoas. Este patamar mínimo não se limita à in- tangibilidade física e psíquica, mas tem por escopo: a) reconhecer a individu- alidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conectadas ao
28 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 0001257-47.2014.5.03.0071. Relator Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; Órgão julgador: Terceira Turma; Data de publicação: 11/3/2022.
plano cultural; b) fortalecer a compreensão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de maneira que o trabalhador, ao se subordinar em relação de trabalho, não renuncia à sua dignidade ou direitos. Por conseguinte, a ilicitude empresarial que não se restringe à esfera proibitiva em ambiente de trabalho, mas tem reflexos que invadem fronteiras privadas do indivíduo, limitando, para a pessoa trabalhadora, o direito fundamental de construir e dispor de sua própria imagem nas interações relacionais existentes para além do trabalho.
Por fim, o julgado densifica o princípio da razoabilidade, estabelecendo parâmetro de aferição a partir da conexão, ou não, entre a limitação do direito individual (autoafirmação) com o desempenho do trabalho. Assim, compara- tivamente, se é possível cogitar que a manutenção de unhas artificialmente pontiagudas pode dificultar a colocação de luvas, ou execução de atividades que exijam habilidade ou destreza manual, não se pode dizer o mesmo quanto ao uso de barba, bigode, cavanhaque e corte de cabelo para a atividade profissional em segurança, nenhuma relação possuindo a manutenção dos pelos faciais com o desempenho profissional de empregado em serviço patrimonial e de vigilância.
Desse modo, a ausência de razoabilidade é verificada pela falta de co- nexão entre a restrição ao exercício do direito e a natureza do trabalho, seja quanto a aspectos de segurança do trabalho, aptidão do trabalhador ou quali- dade da prestação de serviço em benefício do empregador. Não constatada a correspondência lógica entre a restrição do direito e o desempenho da atividade, considera-se desmedida a exigência, de modo que a determinação de proibição de pelos faciais e exigência de corte de cabelo para a aparência pessoal viola a personalidade e qualifica discriminação estética, dado o obstáculo que representa à construção da imagem, direito fundamental da pessoa trabalhadora e do qual não se despoja no âmbito do contrato de trabalho.
Por conseguinte, o reconhecimento de discriminação estética pela restri- ção aos pelos faciais, a exemplo de barbas, bigodes ou cavanhaques, ratifica a compreensão contemporânea das assimetrias de status cultural em sociedade, dirigindo-se, pois, também à superação de modelos mentais que conduzem à formação de estereótipos que classificam desigualmente pessoas ou grupos sociais.
Nessa ordem de ideias, o segundo julgado é paradigmático como faci- litador da compreensão da dimensão psicológica de estereótipos, modulados a partir da repetição de associações em processos de socialização, culturais e relacionais, conduzindo à simplificação de representações mentais. Vinculando- se à ideia de associação mental formada por processos cognitivos acumulados, como esclarece Xxxxxxx José Moreira29, a formação de estereótipos deriva de
29 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020. p. 368.
procedimento comum de categorização e faz parte da operação de processos cognitivos que se articulam com a circulação de informações e representações da sociedade. Logo, na medida em que o julgado desafia a superação de exigência vazia em conteúdo que a justifique, termina por contribuir para desestruturar julgamentos preconceituosos ou que correlacionem valores depreciativos ao uso de pelos faciais, mas também de elementos estéticos quais “piercings”, tatuagens, entre outros. O estereótipo não somente promove a incorporação de modelos mentais que podem supor falsa generalização, mas também dificulta a circulação de novos valores culturais aptos a criar categorias mentais de representação, em direção inclusiva e não discriminatória, que confira status social em padrões dignos, respeitosos, inclusivos e isonômicos em relação aos grupos sociais negativamente estereotipados.
Anteriormente, em setembro de 2018, foi publicado outro acórdão no qual foi reconhecida a discriminação estética por excesso de peso, oriundo da Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, ipsis litteris:
“INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. As
premissas do acórdão recorrido, a partir da análise da prova produzida, permitem concluir que ficou configurado o assédio moral sofrido pela re- xxxxxxxx, situação que lhe causava abalo de ordem emocional (tratamento grosseiro e desrespeitoso no ambiente de trabalho). Para acolher a versão recursal de que não ficaram configurados os requisitos caracterizadores da responsabilidade civil seria necessário o revolvimento dos fatos e provas dos autos, inviável em recurso de revista a teor da Súmula nº 126 do TST. Agravo de instrumento a que se nega provimento. II – AGRAVOS DE INSTRUMENTO EM RECURSOS DE REVISTA. RECLAMADA E RECLAMANTE. MATÉRIA COMUM. ANÁLISE CONJUNTA. LEI Nº 13.015/2014 E INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40 DO TST. XXXX- XXXX À VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. INDENIZAÇÃO POR
DANO MORAL. VALOR ARBITRADO. Demonstrada a viabilidade do conhecimento do recurso de revista da reclamante por provável violação do art. 5º, V, da Constituição da República. Agravo de instrumento da reclamante a que se dá provimento para melhor exame do recurso de revista no qual se pretende a majoração da indenização por danos morais. Prejudicado o agravo de instrumento da reclamada no qual se pretende a redução do montante da indenização por danos morais. III – RECUR- SO DE REVISTA. LEI Nº 13.015/2014. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40 DO TST. ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. RECLAMANTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. VALOR
ARBITRADO. No caso dos autos, constata-se que o valor arbitrado em R$ 15.000,00 a título de indenização por danos morais não observou o princípio da proporcionalidade. Além da gravidade dos infortúnios e
da extensão dos danos, importa ponderar a culpa da reclamada que, ao contrário do que diz o TRT, não foi mediana, mas gravíssima. A empresa não zelou pelo ambiente de trabalho de maneira mínima, com o fim de impedir que sua preposta tratasse a reclamante de maneira reiteradamente abusiva, gerando, nas palavras da própria Corte Regional, indescritível constrangimento, vergonha e humilhação. A autora sofreu persistente assédio moral por parte da preposta durante todo o contrato de trabalho. No cotidiano do ambiente laboral a autora era insultada, menosprezada, sofria com pressões psicológicas desproporcionais, era perseguida em virtude de estar acima do peso e pelas limitações geradas em decorrên- cia das doenças sofridas. À reclamante eram constantemente atribuídos adjetivos constrangedores, de maneira agressiva, aos gritos, na frente dos demais funcionários. Em tese seria possível enquadrar a conduta da preposta até mesmo na hipótese de discriminação (tratamento abusivo em razão de condição pessoal da reclamante – gordofobia). Dada a gravidade dos fatos, a reiteração ostensiva durante todo o contrato de trabalho, e o grau de culpa gravíssimo da empresa, deve ser majorado o valor arbitrado a título de indenização por danos morais para R$ 30.000,00 (trinta mil reais). Recurso de revista a que se dá provimento.”30
Analisando a decisão referida, observa-se, especificamente quanto ao assédio moral, a manutenção do entendimento consolidado em jurisprudência quanto à sua caracterização por comprovação de conduta lesiva insidiosa e sistemática contra a dignidade e integridade psíquica da trabalhadora, por meio de exposição continuada a comportamento hostil em ambiente de trabalho, tornando-o degradante. O julgado, porém, avança no sentido de destacar que a conduta se consubstancia em discriminação estética e gordofobia.
Embora não expressamente mencionada no acórdão de origem a dis- criminação estética, o fenômeno foi identificado no julgamento do Recurso de Revista, na medida em que os insultos sofridos pela trabalhadora, que configuram assédio moral, foram decorrentes do seu suposto excesso de peso. Esta circunstância originou uma adjetivação agressiva e humilhações diante de colegas de trabalho, plasmando abusividade no exercício do poder diretivo e fiscalizatório por parte do empregador ou seus prepostos.
Xxxxxx também ser pontuado que, na decisão sob exame, para além de nomear a espécie de discriminação sofrida pela trabalhadora – gordofobia – entendeu a Corte se tratar de hipótese de condenação módica ou irrisória em decisão de origem, considerando gravíssima a ofensa para majorar a indeni-
30 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 0001036- 93.2014.5.09.0072. Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx; Órgão julgador: Sexta Turma; Data de publicação: 14/9/2018.
zação por dano moral, de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) para R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
Com efeito, a gordofobia é um neologismo criado para nomear conduta caracterizada pela aversão e preconceito com pessoas gordas, que são julgadas como inferiores, desprezíveis ou repugnantes por estarem acima do peso con- siderado padrão pela sociedade ou pela medicina. Em ambiente de trabalho, tem potencial para criar estereótipos sob estigma de incompetência, lentidão, inaptidão para o trabalho, entre outros, dados os padrões extremados de pro- dutividade impostos à sociedade.
Na medida em que a decisão indica hipótese de discriminação estética denominada como gordofobia, o acórdão qualifica o sistema de justiça, em termos de direito antidiscriminatório, atualizando órgãos de julgamento quanto à identificação das modalidades contemporâneas de segregação, incluindo aque- la destinada às pessoas consideradas gordas. A propósito, vale lembrar que o processo de reconhecimento de hipóteses discriminatórias e de sua juridicidade é construído tanto no campo extraprocessual, a partir de demandas da socie- dade a determinar alterações legislativas por meio de processos políticos, mas também atravessado pela atuação do Poder Judiciário, provocado a apresentar respostas a partir da judicialização de demandas conflituosas em relações da sociedade, instando o sistema de justiça ao debate sobre as formas modernas de exclusão de pessoas.
Saliente-se que, no caso da gordofobia, os organismos de saúde vêm ampliando a produção de conhecimento para fixar que o aumento de peso não ocorre somente por falta de disciplina ou de responsabilidade pessoal, impu- tando à pessoa falta de autocuidado, mas por efeitos biológicos, metabólicos e genéticos, caracterizando-a como doença crônica e incurável, de natureza multifatorial31. Acentua-se, pois, a necessidade de respeito e acolhimento, de prolação de decisões judiciais pelo sistema de justiça e de ações por parte da iniciativa pública e privada em direção inclusiva em ambientes e processos de trabalho.
Nessa linha de interpretação, ampliando a definição do termo gordofobia, conceituado como repúdio ou aversão preconceituosa a pessoas gordas, que ocorre nas esferas afetiva, social e profissional, acrescenta a Academia Brasi- leira de Letras que a prática reforça o sofrimento de pessoas que não atendem a padrões estéticos socialmente aceitos, desumaniza e torna público o corpo
31 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Who European Regional Obesity Report, 2002. Disponível em xxxxx://xxxx.xxx.xxx/xxxx/xxxxxxxxx/xxxxxx/00000/000000/0000000000000-xxx.xxx. Acesso em: 30 maio 2022.
gordo em preconceito disfarçado de preocupação com a saúde, ou travestido de elogio ou preocupação32.
Apesar de não considerado o instrumento na sua fundamentação, porque posterior, os elementos indicados no acórdão autorizam admitir a possibilidade de utilização do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, de 2021, como ferramenta de apoio à sustenta- ção jurídica das decisões, com o escopo de superar condutas discriminatórias, quais a gordofobia33, especialmente porque verificado o impacto diferenciado em desfavor de mulheres, configurando hipótese de discriminação indireta.
Cite-se que pesquisa sobre obesidade e gordofobia feita pela SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) e pela Abeso (Asso- ciação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica) revelou que 85,3% das pessoas com obesidade já sofreram preconceito pelo excesso de peso, sendo o ambiente de trabalho aquele em que ao menos 54,7% das pessoas ouvidas confirmaram ter sofrido mais episódios de constrangimento por razão do peso, bem como que 53,3% dos participantes relataram ter sofrido estigma semanal por conta do peso, e 20,9% relataram sofrer constrangimento diário. A pesquisa ainda chamou a atenção para a circunstância de que o apontamento da obesidade como responsabilidade individual influencia em busca de atendi- mento de saúde, de modo que mais de 30% das pessoas tentam emagrecimento apenas por conta própria, sem suporte de profissionais de saúde e nutrição, e que as mulheres compuseram 89% de respondentes34.
Destarte, conclui-se que o estereótipo que desqualifica pessoas a partir de preconceitos por excesso de peso afeta desproporcionalmente mulheres, influenciando em experiências discriminatórias que podem ser expressas tanto no acesso a postos de trabalho como também em cotidiano de assédio no curso do contrato de emprego, ampliando a importância do suporte do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero como ferramenta metodológica de valorização de interpretação do direito, à luz de tratados e convenções in- ternacionais que acentuam gênero de pessoas destinatárias da tutela, dado o desafio de concretização de princípios da dignidade e igualdade entre mulheres e homens em diferentes cenários.
32 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Gordofobia. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/ nossa-lingua/nova-palavra/gordofobia. Acesso em: 30 maio 2022.
33 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, 2021. Disponível em: xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/xxxxxxxxx-00-00-0000-xxxxx. pdf. Acesso em: 30 maio 2022.
34 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA O ESTUDO DA OBESIDADE E DA SÍNDROME METABÓ- LICA (Abeso); SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (Sbem). Obesidade e a gordofobia – percepções 2022. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx. br/ebook_gordofobia.pdf. Acesso em: 30 maio 2022.
Além disso, aproximando o Poder Judiciário da observação da realidade a partir de conhecimento produzido em outros ramos das ciências humanas, permite-se visibilizar desigualdades e assimetrias que determinam impacto diferenciado, quando analisado sob as lentes de gênero, especialmente con- siderando que sobre as mulheres pesam estereótipos de gênero que associam competência e qualificação profissional à apresentação estética e pessoal. Por contribuição cultural de uma sociedade capitalista e patriarcal, a competência feminina ainda está associada à imagem de uma mulher magra, loira, de cabelos lisos e olhos azuis, retratada das capas de revistas às propagandas em mídias diversas. Sucesso e competência, para as mulheres, portanto, também tem cor, altura e peso ideais.
Os julgados avaliados avançaram, na medida em que sufragaram a aplica- ção direta de princípios e normas constitucionais, utilizaram tratados e normas internacionais como fontes jurídicas e ampliaram o entendimento de situações de discriminação, para reconhecimento da dimensão indireta do fenômeno sobre grupos sociais, a partir de marcadores de diferença socialmente construídos.
Todavia, ainda é campo aberto e em disputa a fixação de critérios nor- teadores de interpretação judicial para confronto entre o direito à intimidade, privacidade, autoafirmação e poder de gestão na dimensão de controle estético sobre a pessoa trabalhadora, que não renuncia à sua subjetividade quando da adesão ao emprego, ampliando-se, na interpretação e aplicação do direito, desafios para reconhecimento de hipóteses discriminatórias contemporâneas, sutis, renovadas ou atualizadas, que servem a impedir ou inviabilizar reco- nhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de oportunidades entre pessoas, de direitos humanos e fundamentais em âmbitos político, econômico, social, cultural, civil, trabalhista ou qualquer outro, a abranger as mais distintas formas de discriminação.
5 – Notas conclusivas
Isto posto, é possível estabelecer as seguintes conclusões:
1. O empregado, ao se vincular ao contrato de emprego, carrega para dentro deste mesmo contrato todos os seus direitos subjetivos de cidadania, que servem como limites ao poder diretivo próprio do empregador e, nesse contexto, é correto afirmar que o empregado deve ter o seu direito à privacidade respeitado pelo respectivo empregador como regra, não como exceção.
2. A esfera da privacidade é apenas relativamente protegida, podendo, portanto, sofrer limitações, quando em colisão com outros direitos fundamen- talmente albergados pela Carta Política.
3. É possível resolver a colisão de princípios constitucionais estabe- lecendo uma fórmula ao estilo alemão, de forma bem didática, na qual dois princípios se chocam e o resultado depende eminentemente das precedentes condicionantes, ou seja, das condições apresentadas concretamente para o caso sob análise. Seguindo o raciocínio do referido autor, há uma estreita conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade, sendo certo que, quando há colisão de tais bens constitucionalmente protegidos, o julga- dor necessariamente deve observar as máximas da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito).
4. O Código de Processo Civil de 2015 passou a prever, em seu art. 489,
§ 2º, que, em havendo colisão de direitos fundamentais, o magistrado deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentaram a conclusão.
5. O estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira justifica redire- cionar a atenção à capacidade dinâmica de renovação do racismo, que assume novas formas de disseminação, incluindo manifestações sutis, qual a discrimi- nação institucional que, não sendo perpetrada por indivíduos, é praticada em nível das instituições, privadas ou públicas, de forma intencional ou não, mas com potencial de afetar negativamente determinado grupo racial.
6. O reconhecimento de discriminação estética pela restrição aos pelos faciais, a exemplo de barbas, bigodes ou cavanhaques, ratifica a compreensão contemporânea das assimetrias de status cultural em sociedade, dirigindo-se, pois, também à superação de modelos mentais que conduzem à formação de estereótipos que classificam desigualmente pessoas ou grupos sociais.
7. Não constatada a correspondência lógica entre a restrição do direito e o desempenho da atividade, considera-se desmedida a exigência, de modo que a determinação de proibição de pelos faciais e exigência de corte de cabelo para a aparência pessoal viola a personalidade e qualifica discriminação estética, dado o obstáculo que representa à construção da imagem, direito fundamental da pessoa trabalhadora e do qual não se despoja no âmbito do contrato de trabalho.
8. O processo de reconhecimento de hipóteses discriminatórias e de sua juridicidade é construído tanto no campo extraprocessual, a partir de demandas da sociedade a determinar alterações legislativas por meio de processos polí- ticos, mas também atravessado pela atuação do Poder Judiciário, provocado a apresentar respostas a partir da judicialização de demandas conflituosas em relações da sociedade, instando o sistema de justiça ao debate sobre as formas modernas de exclusão de pessoas.
9. Os julgados avaliados avançaram, na medida em que sufragaram a aplicação direta de princípios e normas constitucionais, utilizaram tratados e normas internacionais como fontes jurídicas e ampliaram o entendimento de situações de discriminação, para reconhecimento da dimensão indireta do fe- nômeno sobre grupos sociais, a partir de marcadores de diferença socialmente construídos. Todavia, ainda é campo aberto e em disputa a fixação de critérios norteadores de interpretação judicial para confronto entre o direito à intimidade, privacidade, autoafirmação e poder de gestão na dimensão de controle estético sobre a pessoa trabalhadora, que não renuncia à sua subjetividade quando da adesão ao emprego, ampliando-se, na interpretação e aplicação do direito, desafios para reconhecimento de hipóteses discriminatórias contemporâneas, sutis, renovadas ou atualizadas, que servem a impedir ou inviabilizar reco- nhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de oportunidades entre pessoas, de direitos humanos e fundamentais em âmbitos político, econômico, social, cultural, civil, trabalhista ou qualquer outro, a abranger as mais distintas formas de discriminação.
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Recebido em: 27/06/2022 Aprovado em: 19/12/2022