VÍNCULO EMPREGATÍCIO DOS ENTREGADORES DE APLICATIVO1
VÍNCULO EMPREGATÍCIO DOS ENTREGADORES DE APLICATIVO1
EMPLOYMENY LINK OF APPLICATION DELIVERS
Xxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Apolinário2
Resumo: O presente artigo tem, como escopo, a análise do vínculo trabalhista dos entregadores de aplicativo sob demanda, intermediadas pelas plataformas digitais, em especial aquelas prestadoras de serviços de delivery. As empresas contratantes procuram afastar os requisitos empregatícios da relação firmada com os entregadores, por meio das plataformas digitais, esquivando-se de quaisquer encargos trabalhistas, qualificando os entregadores como empregados autônomos, os qualificando como “cooperados”. Assim, diante da ausência de regulamentação específica dessa modalidade de trabalho, a relação de trabalho em questão foi estudada a partir dos requisitos legais constantes na Consolidação das Leis do Trabalho e da análise de jurisprudências acerca do tema, bem como da ação civil pública, proposta pelo Ministério Público do Trabalho/SP, em face dos aplicativos de entrega de mercadorias.
Palavras-chave: Entregadores. Plataformas Digitais. Vínculo Empregatício.
Abstract: The scope of this article is to analyze the employment relationship of on- demand application deliverers, intermediated by digital platforms, especially those that provide delivery services. The contracting companies seek to remove the employment requirements from the relationship signed with the delivery personnel, by means of digital platforms, avoiding any labor charges, qualifying the delivery personnel as self-employed employees, qualifying them as “cooperative”. Thus, in the absence of specific regulations for this type of work, the work relationship in question was studied based on the legal requirements contained in the Consolidation of Labor Laws and the analysis of jurisprudence on the topic, as well as public civil action. , proposed by the Public Ministry of Labor/SP, in view of goods delivery applications.
Key-words: Deliveries. Digital Platforms. Employment Link.
1 Introdução
O presente trabalho analisa a relação de trabalho entre os entregadores de mercadorias via aplicativos e as respectivas empresas contratantes, visando constatar se existe ou não um vínculo empregatício nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.
1 Artigo/Trabalho de Conclusão do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH. Orientação: Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx.
Em que pese alguns entendimentos diversos na doutrina, para se configurar o vínculo trabalhista, a CLT determina os requisitos essenciais constantes nos arts. 2º e 3º, ou seja, a subordinação, a onerosidade, a pessoalidade, a prestação por pessoa física, bem como a não eventualidade.
Na sociedade tecnológica e informacional da atualidade, o serviço de entrega por aplicativos tornou-se algo essencial. O avanço tecnológico possibilitou o surgimento dos aplicativos móveis, mais conhecidos como Apps e, com isto, surgiram as empresas de entrega de vários produtos, em especial, de alimentos.
Tais empresas atuam na prestação de serviços digitais na área de transporte e, por meio de aplicativos gratuitos instalados em celulares, permite-se que usuários encontrem restaurantes e estabelecimentos, onde solicitam suas refeições.
Por outro lado, as entregas são realizadas por entregadores que se cadastram nestas plataformas de entregas. Os entregadores cadastrados nesse aplicativos não cobram a corrida diretamente do usuário consumidor, pois este paga o valor final, cobrado via cartão de crédito. Já o entregador recebe, posteriormente, uma remuneração diretamente da empresa contratante, observando-se, na formação dos preços, uma relação entre as ofertas de entregadores e a demanda dos usuários consumidores, bem como da duração e distância da entrega.
Por certo que o usuário consumidor do aplicativo o faz, além da comodidade, por acreditar que a relação com o entregador será intermediada por uma empresa estruturada, séria, que valida e chancela que determinada pessoa está qualificada para prestar aquele serviço, independente da natureza jurídica da relação entabulada entre empresa e entregador.
Assim, a partir do estudo realizado, percebe-se que não se sustenta a tese de que não há qualquer relação de subordinação entre as empresas dos aplicativos e os entregadores, além da hipossuficiência econômica, jurídica e técnica desses últimos. Ainda que se tente subtrair da seara trabalhista, como, por exemplo, banir do sistema os entregadores, que não atendam aos critérios estabelecidos previamente para a plataforma, ou a inserção de as cláusulas unilaterais registradas nos “termos e condições” para uso do aplicativo, verifica-se que fazem parte de um contrato meramente adesivo.
É necessário regular essa relação, pois existe um nível de subordinação entre os entregadores e as empresas por aplicativos. Aquele, por exemplo investe
na compra de um veículo mais ágil e essa pode desligá-lo sem maiores explicações, restando sem proteção nenhuma quanto aos seus direitos trabalhistas.
Assim, além de formalmente não se reconhecer o vínculo laboral nas relações entre os entregadores e as empresas de aplicativos, o que se observa, na prática, é a instabilidade jurídica e, por vezes, a imposição de óbices infundadas sobre a execução de tais atividades, os quais sobressaltam, inclusive, aos interesses previamente firmados entre as partes.
Assim, apesar de não ter uma legislação específica, já existem decisões que reconhecem o vínculo trabalhista entre as empresas de aplicativos e os entregadores, por preencherem todos os requisitos presentes no art. 3º da CLT.
A grande discussão na Justiça do Trabalho, entretanto, é identificar qual o vínculo entre as duas partes e, para solucionar o impasse, especialistas apontam a necessidade de uma regulamentação própria, sendo urgente que o legislador o faça.
2 Relação de trabalho e vínculo empregatício: conceitos e características
2.1 Da relação de trabalho: natureza jurídica
Em linhas bem gerais, o Direito Público é o conjunto de normas que regula as atividades e as funções entre Estado, particulares e servidores. Já o Direito Privado é o conjunto de normas que disciplinam as relações privadas, estabelecidas entre particulares. Por fim, o Direito Misto é o conjunto de normas jurídicas que possuem natureza pública e privada como, por exemplo, a hipótese da regulamentação das relações dos produtores e consumidores ou dos empregados e empregadores.
Assim, a natureza jurídica da relação de trabalho é dividida em Direito Público, Privado ou Misto. XXXXXX (2010, p.129) afirma:
No Direito do Trabalho observam-se diversas normas de caráter cogente, ou seja, com natureza de ordem pública. Isso, no entanto, não significa que o Direito do Trabalho seja considerado Direito Público, pois, não regula, de forma preponderante, a atividade estatal, nem o exercício de seu poder de império. O caráter imperativo de certas normas jurídicas, apenas significa a relevância para a sociedade, na sua observância.
Conforme XXXXXXX (2010, p.45,46),
Nesse debate teórico, o Direito do Trabalho já foi classificado como componente do Direito Público por autores de distinta especialização jurídica. Prepondera, hoje, entretanto, a classificação do ramo justrabalhista no segmento do Direito Privado. Há autores, contudo,
que consideram esse ramo jurídico inassimilável a qualquer dos dois grandes grupos clássicos enquadrando-se em um terceiro grupo de segmentos jurídicos, o Direito Social.
Com efeito, XXXXXX (2010, p. 92) analisa tal assunto, e conclui que “os conceitos poderão ser reunidos em três categorias, intituladas subjetiva, objetivas ou mistas, conforme o pensamento filosófico, político ou social dos autores e o momento histórico da sua elaboração”.
Apesar de haver uma interferência clara de direito público na relação de trabalho, a melhor doutrina classifica a sua natureza jurídica como sendo de direito privado, pois, não se pode afirmar que a relação de trabalho pertença ao direito público, porque a vontade das partes ainda compõe grande parte das regras da relação de trabalho e o Estado não regula, de maneira predominante essa matéria, mas, tão somente, estabelece parâmetros mínimos que as partes devem seguir.
2.2 Do vínculo empregatício
A relação de trabalho é um gênero e a relação de emprego é uma espécie. Toda relação de emprego é uma relação de trabalho, mas nem toda relação de trabalho é uma relação de emprego. Na relação de emprego, há um vínculo jurídico estabelecido entre as partes, o empregado pessoa física de um lado e, do outro, o empregador, que pode ser uma pessoa física ou jurídica. Para a existência desse vínculo, que une o empregado ao empregador na execução de uma obra ou prestação de serviços, deve haver a presença dos requisitos, que estão constantes na CLT, em seu art. 3º.
O vínculo empregatício é a relação que existe entre o empregador e o empregado, configurada pela existência de alguns requisitos legais. Isso quer dizer que nem sempre que uma pessoa presta serviço à outra há um vínculo empregatício. Portanto, esse trabalhador não terá todos os direitos previstos na CLT. O início dessa relação se dá com a anotação na Carteira de Trabalho e o contrato será regido pela CLT, garantindo-se, assim, ao empregado seus direitos trabalhistas. XXXXXXXXX (2017, p.21) afirma:
Já a relação de emprego é mais específica e estabelece o vínculo de emprego e empregador; nesse caso, o trabalhador tem, obrigatoriamente, sua carteira de trabalho assinada e seu contrato de trabalho redigido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O contrato de trabalho com vínculo de emprego caracteriza o que chamamos contrato individual de trabalho.
É de extrema importância que os requisitos sejam cumpridos, para que o vínculo trabalhista ocorra de fato.
2.2.1 Caracterização do vínculo empregatício e suas formas de contratação
Em que pese alguns entendimentos diversos da doutrina, para se configurar o vínculo trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determinou alguns requisitos essenciais e que estão constantes nos arts. 2º e 3º.
Com a reforma trabalhista, aprovada em 11 de novembro de 2020, além das tradicionais, carteira assinada, trabalho temporário, trabalho parcial, estágio e jovem aprendiz, foram estabelecidas novas novas formas relação de trabalho, tais como:
a) Terceirizados para atividade-fim: o empregador pode contratar equipe e funcionários de empresas terceirizadas para executar qualquer função dentro da empresa. Para PIPEK; XXXXX; XXXXX (2017, p.12), a “terceirização do trabalho é o processo pelo qual uma empresa contrata outra instituição para realizar determinada atividade”.
b) Trabalhadores remotos: São os trabalhadores que atuam fora da empresa e em home office. As regras para esta contratação são estabelecidas em acordo individual entre empresa e profissional, sendo o seu controle realizado por produtividade. Caso necessite o comparecimento do empregado na empresa, isso não descaracterizará o home office, conforme esclarecem FINCATO;STURMER (2019, p.15):
O comparecimento do empregado às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a sua presença não descaracteriza o tele trabalho. Por ser um tipo de trabalho especial, a prestação de serviços na referida modalidade deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho, que especificará as atividades a serem realizadas pelo empregado.
c) Trabalhadores intermitentes: O profissional recebe por jornada ou hora de serviço, com direito a férias, FGTS, INSS e 13º proporcionais e registro em carteira. O cálculo do valor exato será baseado no salário compatível com o cargo. XXXXX;XXXXX;XXXXX (2017, p.44) afirmam:
No trabalho intermitente, o empregado é regularmente contratado, com registro em carteira, com todos os direitos garantidos, mas em um sistema mais flexível de trabalho. No trabalho intermitente, as empresas poderão contratar um empregado para trabalhar esporadicamente e pagá-lo apenas pelo período durante o qual prestou seus serviços, ou seja, pelo tempo efetivamente trabalhado.
d) Trabalhadores Eventuais (freelances): É a prestação de serviços esporádica e de curta duração. A contratação é realizada sem vínculo empregatício, e o pagamento é realizado pelos serviços prestados em comum acordo, nos termos da lição de AMARO (2020):
De modo geral, o contrato eventual é caracterizado como aquele em que o trabalhador presta serviço de maneira esporádica, sem que haja vínculo empregatício entre ele e a empresa, ou seja, sem contrato ou carteira assinada.
e) Trabalhadores autônomos: As empresas podem contratar profissionais liberais, podendo os mesmos prestar o serviço mesmo sem ter empresa aberta. Este trabalhador pode ser considerado um freelance, porém, será contratado como pessoa física e não jurídica. O trabalhador assume os riscos do serviço e não é subordinado a nenhum tomador de serviço. Para PIPEK; XXXXX; XXXXX (2017, p.47), “o trabalhador autônomo é aquele profissional que exerce sua atividade sem vínculo empregatício, por conta própria, de forma eventual e não habitual, e assumindo os riscos de sua atividade econômica”.
Com a reforma trabalhista de 2020, a legislação evoluiu para acompanhar as relações de trabalho e tanto o trabalhador como o empregador, em algumas situações, podem se beneficiar com a flexibilidade nos contratos.
2.2.2 Dos requisitos formadores do vínculo empregatício
Os elementos fáticos-jurídicos necessários à configuração do vínculo empregatício estão positivados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sendo eles a prestação por pessoa física ou natural, a pessoalidade, a onerosidade, a subordinação e a continuidade ou não eventualidade.
De acordo com o art. 3º da CLT, tem-se o vínculo empregatício quando presentes esses cinco quesitos do vínculo: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
Conforme salienta XXXXXXX (2014, p. 44), “os requisitos da relação de emprego são cumulativos. Sendo assim, a falta de um deles descaracteriza o vínculo empregatício”. Nesse mesmo sentido, PRAZERES (2018, p. 53) ao ensinar que “a relação de trabalho ocorre quando algum dos requisitos do art.3º da CLT não é preenchido, ou seja, basta que um, e apenas um, daqueles critérios não seja suprido para que tenhamos uma relação de trabalho”.
O trabalho por pessoa física ou natural é requisito para que se configure o vínculo empregatício. O elemento da pessoalidade, é analisada a partir das substituições feitas ou não à pessoa do prestador, pois é intransferível a prestação assumida pelo empregado, sendo ele completamente pessoal. XXXXXXX (2019, p.43) afirma:
Por fim, cumpre relembrar que todo empregado será sempre pessoa física e nunca pessoa jurídica, pois uma relação de pessoa jurídica para pessoa jurídica pode se estabelecer na esfera cível ou até mesmo comercial, mas nunca trabalhista.
No elemento da onerosidade, o objetivo é a contraprestação econômica pelo trabalho, sendo que os serviços devem ser remunerados. O direito ao pagamento é indisponível.
De acordo com este requisito, o trabalho voluntário é suficiente para que se retire o caráter empregatício da relação, lembrando que este tipo de combinado deve estar previsto no Contrato de Trabalho e estar totalmente de acordo com as demais regras legais. Para XXXXXXX (2019, p.44) “não existe vínculo de emprego voluntário, ou seja, gratuito. Toda prestação de emprego presume uma contraprestação salarial”. Assim, na onerosidade, há o percebimento de remuneração em troca dos serviços prestados pelo empregador, nos termos da lição de PRAZERES (2018, p.55):
O salário é, sem dúvida, fator de grande importância no contrato de trabalho, pois o dever do empregado é prestar os serviços, ao passo que do empregador é pagar os salários. É a parte onerosa como resultado da prestação dos serviços, tendo em vista que não existe contrato de trabalho gratuito.
Já no elemento da subordinação, o empregado trabalha sob a dependência do empregador. O empregado assume compromisso de serviço por meio de contrato, ficando subordinado às determinações do empregador, e deverá acatá-las com zelo e qualidade. Existe poder de direção do empregador e a subordinação é técnica, econômica e jurídica. Desse modo, a subordinação consubstancia-se na submissão às diretrizes do empregador, que determina o lugar, a forma, o modo e o tempo da execução da atividade. PRAZERES (2018, p.55) afirma:
A CLT, usa a expressão “dependência”. Entretanto, o que prevalece é a subordinação jurídica do empregado ao empregador, tendo em vista que o empregador tem sempre o poder de aceitar ou não o resultado dos serviços prestados pelo empregado, o qual deverá ser desenvolvido segundo as determinações técnicas do empregador ou
seu preposto, pois não cabe ao empregado escolher onde e como vai trabalhar no ambiente de trabalho.
Por fim, na continuidade ou não eventualidade, o serviço é prestado de forma habitual e o Contrato de Trabalho de trato sucessivo. O empregado tem, em sua função, uma rotina de trabalho em qualquer dia da semana.
Na não eventualidade, o contrato gera uma continuidade na prestação de serviço, o que mantém uma regularidade no desenvolvimento da atividade em benefício do empregador, conforme ensina ALMEIDA (2019, p.43):
O presente item não se caracteriza somente pela diariedade do serviço prestado, mas sobretudo pela expectativa que o empregador tem pertinente ao retorno do empregado ao local de labor. Assim, havendo essa expectativa de que seu empregado voltará em determinado dia à empresa, estará caracterizada a habitualidade.
Com isso, para se caracterizar o vínculo trabalhista, faz-se necessário o preenchimento dos requisitos da pessoalidade, pessoa física, onerosidade, subordinação, continuidade ou não-eventualidade, devendo cada caso ser analisado sob a ótica de tais pressupostos para a caracterização do vínculo de emprego.
3 Dos entregadores de aplicativos: relação de emprego ou trabalhador autônomo?
3.1 A linha tênue entre trabalhador autônomo e empregado celetista
As empresas, detentoras dos aplicativos, reconhecem os entregadores como “colaboradores”, mas, antes de classificar tal relação, é importante observar as diferenças entre os regimes de trabalhador autônomo e celetista.
O trabalhador autônomo é aquele que exerce sua atividade profissional sem vínculo empregatício e, em sua rotina de trabalho, organiza, sem qualquer subordinação, sua atividade econômica. Consoante explana o jurista Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, conceituando o autônomo como “aquele que exerce, habitualmente e por conta própria, atividade profissional remunerada, explorando, assim, em proveito próprio, sua força de trabalho mesma”.
O trabalhador celetista é aquele cuja relação de emprego é regida pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, independentemente de o empregador ser do setor público ou privado. Estes trabalhadores possuem os direitos trabalhistas assegurados e a carteira profissional assinada.
Já as novas modalidades de trabalho descritas possuem, como característica, a existência de uma aproximação entre o trabalhador autônomo e o empregado celetista, o que causa grandes controvérsias quanto ao seu real enquadramento, ocasionando um crescimento no número de trabalhadores descobertos de seus direitos trabalhistas.
A redação da CLT, resultante da reforma trabalhista de 2019, explanada no novel art. 442-B determina que “ a contratação do autônomo, cumpridas por todas estas formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no artigo 3º desta Consolidação”. Diante disso, pode-se dizer que, ao trabalhador autônomo, consolidam-se relações jurídicas que não se encontram, em princípio, sob a proteção da legislação trabalhista, dando ensejo ao que se denomina “fraude de pejotização”, mascarando uma típica relação de emprego.
3.2 O serviço de delivery e os entregadores por aplicativos
O serviço de delivery é contratado por clientes que realizam os seus pedidos pelos aplicativos - Apps, sem necessidade de se deslocarem de suas casas para adquirir qualquer produto de que necessitam, que lhe são entregues pelos entregadores, caracterizado pela comodidade e segurança. Tal serviço abrange motoqueiros e ciclistas que transportam alimentos em suas bags. Eles cadastram-se nos Apps e, após confirmação do seu cadastro, podem iniciar as entregas, sendo que as empresas não fornecem nenhum material para o desempenho de tal função, ou seja, o entregador deverá arcar com todos os encargos decorrentes do serviço.
As empresas de delivery elaboram termos de uso para que os entregadores assinem e concordem, ficando claro que as empresas não têm responsabilidade por qualquer prejuízo ou danos decorrentes ou relativos a atividades de entrega. Trabalham de segunda-feira a domingo sem qualquer contrato, em jornadas que podem ultrapassar as 24 horas seguidas, arriscando-se entre carros e ônibus, sem garantias ou proteções legais e, muitas vezes, por menos de um salário mínimo.
Assim, as plataformas digitais disponibilizam, aos entregadores, um contrato constituído de forma unilateral, conforme a vontades das empresas, não sendo possível discutir as cláusulas. Os “Termos e Condições” de uso das plataformas exigem que os trabalhadores se cadastrem na condição de autônomo, afastando, com isso, qualquer obrigação empregatícia.
Foi realizada uma pesquisa pelo site Terra em 2019, que demonstra que 3,8 milhões de brasileiros têm, nos Apps, a sua principal fonte de renda, motivo pelo qual se submetem às precárias condições de trabalhos impostas pelas empresas detentoras dos aplicativos.
Em 2019, as empresas de aplicativos já eram os maiores empregadores do Brasil, com 3,8 milhões de pessoas vivendo do trabalho dessas plataformas, mesmo não tendo o reconhecimento de qualquer vínculo ou relação trabalhista.
3.3 Do vínculo de emprego entre os entregadores e as empresas contratantes, detentoras dos aplicativos
O reconhecimento do vínculo de emprego pressupõe a existência dos cinco elementos elencados no art. 3º, da CLT, que são: trabalho por pessoa física, pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação, sendo que a ausência de um ou mais requisitos enseja a descaracterização do vínculo.
Hoje, os entregadores são considerados trabalhadores autônomos, por exercerem suas atividades profissionais sem vínculo empregatício (= por conta própria) e com assunção de seus próprios riscos. A prestação se dá de forma eventual e não habitual, conforme explica XXXXXXX (2019, p.43):
A CLT não se aplica a trabalhadores autônomos, já que esse tipo de trabalhador autônomo requeira o reconhecimento de seu vínculo de emprego, fato esse extremamente corriqueiro nos dias de hoje, pois em virtude da alta carga tributária imposta na contratação de empregados alguns empregadores contratam efetivos empregados e mascaram essa relação de emprego denominando-os, dentre outros, de autônomos, deverá fazê-lo na Justiça Laboral.
Entretanto, as condições fáticas, às quais os entregadores são submetidos, nem sempre atendem às características que revestem o trabalho autônomo, ou seja, dentre outras, a liberdade e independência de desenvolverem suas atividades e a fixação livre do preço do serviço por parte do prestador.
Todavia, o vínculo existente entre os entregadores e as empresas dos aplicativos atendem todos aqueles requisitos necessários para o reconhecimento do vínculo empregatício:
a) os entregadores cumprem as ordens que lhe são impostas pelo empregador (= empresas de aplicativos), caracterizando, assim, a subordinação;
b) a prestação de serviço é realizada de maneira contínua, em que existe a expectativa de continuidade da relação existente entre empregado e empregador, caracterizando, assim, a habitualidade;
c) há a contraprestação recíproca entre empregado e empregador, em que o entregador presta o serviço e o empregador lhe paga uma contraprestação em dinheiro, caracterizando-se a onerosidade;
d) o entregador, quando não pode fazer o serviço, não o faz substituir por outro, caracterizando-se, com isso, a pessoalidade; e,
e) por fim, os entregadores, contratados para prestar os serviços, são pessoas físicas e não jurídica, caracterizando o requisito de ser pessoa física.
3.3.1 Os entregadores por aplicativos e a subordinação trabalhista por algoritmo
Com o surgimento de novas modalidades nas relações de trabalho, surgem, também, discursões acerca de como interpretar e aplicar a subordinação jurídica, que é um dos requisitos para se configurar o vínculo empregatício.
Em relação aos entregadores, os patrões são as empresas detentoras dos aplicativos, que ditam as regras e as obrigações. Assim, depois de programadas as entregas, aqueles ficam impossibilitados de agirem livremente, pois são monitorados pelos aplicativos, situação jurídica denominada “subordinação por algoritmo”, conforme explica XXXXXX (2016):
De forma semelhante à dos trabalhadores de depósito que utilizam sistemas automatizados de direção, os trabalhadores de plataforma são designados para a próxima tarefa pelos algoritmos do aplicativo, que também são projetados para medir a velocidade e a dedicação do trabalhador na realização das tarefas, incluindo o cálculo da pontuação e das avaliações que os clientes atribuem aos trabalhadores, Mas pontuações ou desempenho abaixo dos padrões do algoritmo podem levar à exclusão do trabalhador da plataforma e, portanto, ao “desligamento”, facilitado pelo suposto status de autônomo desses trabalhadores.
Após tal programação, os trabalhadores precisam estar conectados e disponíveis para obedecer aos comandos e ordens enviadas pelos aplicativos. Essas ordens devem ser obedecidas e cumpridas, já que os trabalhadores recebem avaliações, quem podem ser positivas ou negativas conforme seu desempenho.
Apesar de restar bem evidenciada a tentativa dos empregadores de mascarar qualquer relação empregatícia, não há, pois, como descaracterizar o não
reconhecimento de tal vínculo entre os entregadores delivery e as empresas de aplicativos, já que todos os requisitos legais foram demonstrados.
3.4 O tema na jurisprudência: um estudo de caso
Relativamente ao tema, já existem decisões tanto que reconhecem quanto que negam o vínculo empregatício entre os entregadores e as empresas de aplicativos de entrega. A maioria das jurisprudências ainda negam tal vínculo, ao argumento de que o requisito da subordinação não está presente na prestação dos serviços Todavia, já existem decisões reconhecendo tal relação, como a descrita na jurisprudência a seguir:
RAPPI BRASIL. SERVIÇO DE ENTREGAS. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO ENTRE OPERADORA DA
PLATAFORMA E ENTREGADOR. Existe vínculo empregatício entre a operadora da plataforma virtual Rappi e os entregadores. Há pessoalidade, haja vista a necessidade da realização de cadastro pessoal e intransferível, não podendo o trabalhador substabelecer a execução do serviço (entrega) a outrem. Há onerosidade, porquanto a relação não se assenta na graciosidade, existindo entre as partes direitos e obrigações de cunho pecuniário. Não-eventualidade, há fixação jurídica do trabalhador perante a tomadora, com continuidade na prestação de serviços, o qual, por sua vez, é essencial ao desenvolvimento da atividade econômica vendida pela empresa (comércio e entrega de bens). Em relação à subordinação, na economia 4.0, "sob demanda", a subordinação se assenta na estruturação do algoritmo (meio telemático reconhecido como instrumento subordinante, consoante art. 6º, CLT), que sujeita o trabalhador à forma de execução do serviço, especificamente, no caso da Rappi, impondo o tempo de realização da entrega, o preço do serviço, a classificação do entregador, o que repercute na divisão dos pedidos entre os trabalhadores. Presentes os requisitos da relação jurídica empregatícia. Recurso autoral provido. (TRT- 210009633320195020005 SP, Relator: XXXXXXXXX XXXXXXXX
XXXXX XXXX, 14ª Turma – Cadeira 1, Data de Publicação: 05/03/2020)
O caso acima refere-se à pretensão de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx ao reconhecimento do vínculo empregatício com a empresa do aplicativo, ação que foi distribuída para a 5ª Vara do Trabalho de São Paulo, cujo juízo julgou improcedentes os seus pedidos. Recorrendo a parte ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, os Magistrados da 14ª Turma do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho reconheceram o vínculo empregatício, na ocupação de motociclista.
É necessário destacar a evidente finalidade da atividade empresarial: serviço de entrega realizado por entregadores por meio das plataformas digitais, pois, o
aplicativo é apenas um instrumento para que se atinja tal finalidade. Na hipótese de um serviço exclusivamente digital, os entregadores teriam que realizar um cadastro com seus dados e, para a prestação dos serviços, era fornecido um cartão corporativo pré-pago de uso intransferível, além de ser necessário, para iniciar o aplicativo, que fosse enviado uma foto de próprio xxxxx.
Os entregadores, com isso, teriam que estar à disposição da empresa de segunda a sexta-feira, das 12:00 às 19:00, havendo a orientação de dias e horários para a prestação do serviço, e, caso a taxa de aceitação de pedidos fosse baixa, haveria punição com a redução de pontuação e o bloqueio de novos pedidos. Também haveria punição no caso de reclamação de clientes, não entrega de produtos, restando tais fatos demonstrados pelo então reclamante, evidenciado que ele não possuía plena autonomia para exercer livremente o seu trabalho.
Ante a verificação de todos os elementos, ficou reconhecido o vínculo empregatício entre Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx e a Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda.
4 Das ações civis públicas propostas pelo Ministério Público do Trabalho do Estado de São Paulo – MPT/SP em face das empresas de aplicativos
Diante deste cenário de incertezas trabalhistas, o MPT/SP propôs ação civil pública (ACPCiv 1001058-88.2018.5.02.0008) em face dos aplicativos Loggi Tecnologia Ltda e L4B Logística LTDA., por entender que elas atuam com ilegalidade ao se omitirem sobre o vínculo de trabalho com os motoboys, que “os condutores profissionais são marionetes de um aplicativo” e que o desiquilíbrio no mercado promove dumping social3 sobre a empresas tradicionais, conforme a Lei Federal 12.529/2011, que estrutura a concorrência.
Em fevereiro de 2019, o MPT/SP propôs uma outra ação civil pública, agora contra o IFOOD, pelo mesmo motivo: burlar a relação de emprego. Os procuradores do trabalho pediram o reconhecimento do vínculo e uma indenização por dano moral coletivo.
Em resposta, as empresas asseveram que os condutores autônomos não são contratados por eles, mas aderem à plataforma voluntariamente. A empresa
3 Dumping social é uma prática dos empregadores para usar de mão de obra mais barata do que a normalmente disponível em seu local de produção.
apenas presta serviços de intermediação digital para os condutores autônomos e, deles, recebe uma comissão, visto que cria um ambiente de negócio virtual para que os tomadores de serviços possam contratar diretamente aqueles para o transporte de pequenas cargas. Assevera que a mera intermediação de mão de obra é lícita e, portanto, o pleito de declaração de relação de emprego e abstenção de contratação de autônomo estará contrário a lei.
O MPT/SP reconhece que tais trabalhadores possuem todos os requisitos da relação de emprego, previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, e não podem ser contratados ou mantidos como autônomos, por meio de contratos de prestação de serviço, de parceria ou qualquer outra forma de contratação civil ou comercial. Além disso, a ausência do risco pela atividade empresarial face à desconsideração do vínculo empregatício acaba por gerar uma concorrência desleal em relação às demais empresas, o chamado dumping social.
5 O suposto cooperativismo social entre os empregados e as empresas de aplicativos
Com o grande crescimento do serviço de delivery, automaticamente surgem milhares de vagas de emprego para estes trabalhadores. Com a ilusão de se tornar “seu próprio patrão” e trabalhar no horário desejado, as empresas de aplicativos manipulam o real contexto já descrito neste artigo, utilizando novos termos do universo empreendedor, como “colaboradores e/ou autônomos independentes”.
Quando os entregadores se auto titulam como “seus próprios patrões”, se esquecem de que estão assumindo os riscos de um negócio que não os pertence, que não possuem livre iniciativa e, nem tampouco, o valor da sua hora trabalhada.
Na prática, tudo funciona do mesmo modo que qualquer trabalhador com vínculo empregatício. O entregador, ao ter a facilidade de se cadastrar no aplicativo e a flexibilidade de horários, se vê refém de tais plataformas, e, quando começam a receber punições por dispensarem entregas ou reclamações por parte dos clientes, percebem que não existe aquela liberdade que lhe foi prometida ao se cadastrar no serviço.
Não obstante se poder caracterizar os entregadores por aplicativos realmente como “colaboradores”, pois eles integram a equipe de trabalho e ajudam
as empresas a cumprirem as suas metas, percebe-se que tal termo não passa de uma manipulação de mercado, para simplesmente negar-lhe os direitos trabalhistas.
6 Considerações finais
No presente artigo, buscou-se demonstrar que o novo modelo de prestação de serviços por aplicativos, realizado pelos entregadores, deve ter o vínculo de emprego reconhecido. As entregas realizadas por estes entregadores tornaram-se cada dia mais presentes na vida das pessoas, atendendo a uma necessidade de mercado.
Muito embora as empresas sustentem a inexistência dos requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT para caracterização do vínculo empregatício, alegando que o entregador seria considerado autônomo, não há, por parte das plataformas digitais, capacitação que seja capaz de tornar o entregador completamente independente. Não é possível, pois, se romper com a estrutura dogmática do Direito Do Trabalho, que tem, como consequência, os conceitos clássicos dos elementos exigidos para reconhecimento do vínculo empregatício, a saber, a pessoalidade, a habitualidade, a onerosidade, a pessoalidade e ser realizado por pessoa física.
As tentativas de classificação desses entregadores como autônomos se resumem a uma tática fraudulenta para afastar o vínculo de emprego pois, a CLT estabelece que o trabalhador autônomo pode recusar realizar atividade demandada pelo contratante. Ao contrário, tal fenômeno não ocorre na hipótese do presente estudo, visto que está presente a subordinação dos entregadores às empresas de aplicativos, já que, ao se negarem a realizar qualquer entrega, podem sofrer diversas penalidades.
Há muita fragilidade em tal relação pelo não reconhecimento do vínculo empregatício, devendo-se destacar que se trata, inclusive, de um ofício com alto risco de acidentes, além da submissão a condições precárias de trabalho e ausência da garantia de recebimento de seus direitos trabalhistas.
Por fim, o que se espera é que o vínculo empregatício entre os entregadores e as empresas dos aplicativos seja reconhecido, fazendo com que os deveres previstos na legislação sejam cumpridos pelos empregadores. A CLT garante diversos direitos aos trabalhadores e deve recair sobre o Poder Judiciário a obrigação de reconhecer este vínculo e a decretação da nulidade de cláusulas
contratuais que possam apresentar qualquer tipo de ameaça aos direitos trabalhistas consolidados.
Assim, apesar de ainda gerar resistência na jurisprudência trabalhista o reconhecimento de tal vínculo empregatício, já existem decisões a favor, como a descrita neste artigo, bem como está presente a atuação do Ministério Público do Trabalho, o que poderá se reverberar por todo o sistema do Direito do Trabalho.
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