DEPARTAMENTO DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO
ESPECIALIDADE EM CIÊNCIAS JURÍDICAS UNIVERSIDADE AUTÓNOMA DE LISBOA “LUÍS DE CAMÕES”
A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO NO ÂMBITO DA COLIGAÇÃO CONTRATUAL ENVOLVENDO CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Direito
Autor: Xxxxx Xxxxxx
Orientador: Professor Doutor Xxxxxxx Xxxxx Número do candidato: 20151981
Outubro de 2020 Lisboa
A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO NO ÂMBITO DA COLIGAÇÃO CONTRATUAL ENVOLVENDO CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
Dissertação apresentada à Comissão Científica do Departamento de Direito como exigência parcial para obtenção do Grau de Mestre em Direito em Ciências Jurídicas, sob orientação do professor Doutor Xxxxxxx Xxxxx.
APROVADO EM: _/ /
Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxx
Membro da Banca
Membro da Banca
Outubro de 2020 Lisboa
DEDICATÓRIA
À minha esposa Xxxxxxxxx, mulher virtuosa, cuja vivacidade e doçura do coração me completam, inspiram e animam.
Aos meus filhos, Xxxxx, Xxxxx e Xxxxxx, que D’us lhes conceda a longevidade dos justos.
Aos meus pais, Xxxxxx e Xxxxx, que me ensinaram que da humildade e de um bondoso coração saem os caminhos da vida.
Aos meus sogros, Xxxx e Xxxxxx Xxxxx.
AGRADECIMENTOS
Devo meus sinceros agradecimentos ao Professor Doutor Xxxxxxx Xxxxx, a quem admiro pelo brilhantismo e simplicidade, pela consecução do presente trabalho, o qual não viria à luz sem o seu auxílio e disponibilidade em orientar-me.
Agradeço a minha amada esposa Xxxxxxxxx pelo permanente incentivo, apoio e companheirismo. A sabedoria e generosidade do seu coração a tornam a verdadeira mulher virtuosa, cujo valor está acima do de pérolas. Nas precisas palavras do Rei Xxxxxxx: “Muitas são as mulheres de valor, mas tu a todas sobrepujas” (Provérbios, 31:29)
Agradeço aos meus filhos Xxxxx, Xxxxx e Xxxxxx pelo ininterrupto esforço de trilharem a senda dos justos.
Agradeço aos meus pais, Xxxxxx e Xxxxx, pelos ensinamentos da retidão e pelo permanente apoio incondicional e absoluto.
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a analisar a possibilidade de uma concessionária, diante do descumprimento do Poder Concedente de suas obrigações, invocar, a seu favor, a exceção do contrato não cumprido contra uma empresa terceira, com a qual mantenha relação contratual que objetive a aquisição de insumo necessário à prestação do serviço público, sempre que o Poder Público permanecer em mora. A indagação torna-se especialmente relevante, considerando que os contratos administrativos (incluindo-se aí o contrato de concessão), caracterizam-se por serem dotados de um regime específico, em que o contratante público possui um conjunto de poderes de autoridade sobre o particular, que visam, em última instância, resguardar o princípio geral da prevalência do interesse público. Pela mesma razão, isto é, visando a garantia do interesse público, as concessionárias de serviço público estão subordinadas a uma série de princípios, tais como o da modicidade e continuidade. Desse conjunto de normas e princípios, decorre, em muitos casos, a impossibilidade de o particular invocar a seu favor, contra o Poder Público, a exceção do contrato não cumprido. É o caso, por exemplo, de quando a paralisação do serviço implicar grave prejuízo para a realização do interesse público. Daí, então, a indagação sobre a possibilidade de oposição da exceptio contra as demais partes que integram a união de contratos envolvendo a concessão. O trabalho terá como pontos a serem abordados os aspectos gerais e princípios clássicos que regem os contratos; a análise do princípio da exceção do contrato não cumprido e dos seus requisitos para aplicação; a definição dos contratos coligados e identificação de suas espécies; noções gerais acerca dos contratos administrativos e peculiaridades do contrato de concessão de serviço público e, por fim, a análise da possibilidade de exceção do contrato não cumprido nos contratos coligados ao de concessão de serviço público. O presente trabalho procura fazer um apanhado geral da conceituação doutrinária e entendimento jurisprudencial português e brasileiro sobre o assunto, na busca de um melhor entendimento acerca do tema.
Palavras-chave: concessionária de serviço público; impossibilidade de interrupção do serviço público; coligação contratual; exceção do contrato não cumprido.
ABSTRACT
The present work proposes to analyze the possibility of an utility company, due to the noncompliance of the Granting Authority with its obligations, invoking, in its favor, the exception of the breach of contract against another third party company, with which it maintains a contractual relationship that aims at the acquisition necessary input for the provision of public service, as long as the Government remains on arrears. The inquiry becomes especially relevant, considering that the administrative contracts (including the concession contract there), are characterized by having a specific regime, in which the public contractor has a set of powers of authority over the individual, which aim, ultimately, to safeguard the general principle of the prevalence of public interest. For the same reason, that is, aiming to guarantee the public interest, public service concessionaires are subjected to a series of principles, such as the principle of moderation and continuity. From this set of rules and principles, it follows, in many cases, that it is impossible for the individual to invoke, in his favor, against the Public Power, the exception of the breach of contract. This is the case, for example, when the interruption of the service entails serious damage to the realization of the public interest. Hence, then, the question about the possibility of opposition of the exception against the other parties that are part of the union of contracts involving the concession. This work will approach the general aspects and classic principles that rule the contracts: the analysis of the principle of exception of the breach of contract and its requirements for application; the definition of related contracts and identification of their species; general notions about the administrative contracts and peculiarities of the public service concession contract and, finally, the analysis of the possibility of exception of the breach of contract in the contracts related to the public service concession. This paper seeks to provide a general overview of the doctrinal conceptualization and understanding of Portuguese and Brazilian jurisprudence on the subject, in search of a better understanding of this subject.
Keywords: public service concessionaire; impossibility to interrupt the public service; contractual coalition; exception of the breach of contract.
Sumário
Índice de Esquema Ilustrativo 10
1. Aspectos gerais dos contratos 20
1.2. Princípios contratuais 24
1.2.1. Autonomia privada ou autonomia da vontade 24
1.2.1.1. Manifestação da vontade 27
1.2.4. Função social dos contratos 33
1.2.5.1. Venire contra factum proprium 42
1.2.5.2. Supressio, surrectio e tu quoque 44
2. Exceção do contrato não cumprido 45
2.3.1. Existência de um vínculo contratual sinalagmático 50
2.3.1.1. Contratos plurilaterais 53
2.3.1.2. Cláusula solve et repete 54
2.3.2. Simultaneidade das prestações 55
2.4. Exceptio como exceção material dilatória 64
3.2. Espécies de formação da coligação contratual (“união com dependência”) 75
3.2.2. Coligação natural (ou necessária) 77
3.2.3. Coligação voluntária (expressa ou implícita) 78
3.3. Contratos Coligados x Contrato Único x Contrato Misto 81
3.4. Contratos coligados x Redes contratuais 84
3.5. Consequências Jurídicas 85
3.5.1. Interpretação dos contratos coligados 86
3.5.2. Qualificação dos contratos 92
3.5.3. Derrogação do regime jurídico típico 94
3.5.4. Plano da validade e eficácia 95
3.6. A exceção do contrato não cumprido na união de contratos (contratos coligados) 98
CAPÍTULO IV 107
4. A exceção do contrato não cumprido no âmbito da coligação contratual envolvendo concessionária de serviço público 107
4.1. Noções gerais sobre os contratos administrativos 107
4.2. Contratos de concessão de serviço público 114
4.2.1. Breve histórico 114
4.2.2. Conceito 115
4.2.3. Elementos do contrato de concessão 117
4.2.4. Princípios atinentes à exploração do serviço público 119
4.2.5. Natureza Jurídica das relações entre concessionária e poder concedente 122
4.2.6. Natureza Jurídica das relações entre concessionário de serviço público e os utentes 124
4.2.7. Natureza das demais relações jurídicas subjacentes ao contrato de concessão de serviços públicos 128
4.2.8. Equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão 130
4.3. A exceção do contrato não cumprido nos contratos coligados ao de Concessão de Serviço Público 133
4.3.1. A problemática 133
4.3.2. A coligação contratual 135
4.3.3. A exceptio 137
5. Conclusão 141
Referências Bibliográficas 149
Bibliografia 149
Legislação 158
Jurisprudência 161
Índice de Esquema Ilustrativo
Esquema ilustrativo n.º 1 – Caso de coligação voluntária, em que uma
das partes é figurante em um dos contratos coligados, mas está alheio à coligação. 86
Abreviaturas
Art.– Artigo N.º – Número
DL – Decreto-Lei Ed. – Edição
Ss. – Seguintes Vol. – Volume Consult. – Consulta
P. – Página ou Páginas
Siglas
CCP – Código de Contratos Públicos. CC – Código Civil.
CPC – Código de Processo Civil.
CPA – Código do Procedimento Administrativo. CA – Código Administrativo.
CDC – Código de Defesa dos Consumidores.
ERSAR - Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos. AMT - Autoridade da Mobilidade e dos Transportes.
ERSE - Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos.
Introdução
O princípio da autonomia privada estabelece que as partes são livres para contratar e livres para dispor com quem e sobre o que contratarão. Todavia, uma vez entabulado o negócio jurídico, válido e eficaz, as partes não podem se recusar a cumpri-lo. Essa irreversibilidade do compromisso assumido traduz o significado do princípio da força obrigatória dos contratos, também conhecido como princípio da força vinculante dos contratos, expresso pelo brocardo latino pacta sunt servanda1. Daí dizer-se que “o contrato faz lei entre as partes”2.
Portanto, as partes, uma vez tendo pactuado, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, permanecem vinculadas ao acordado, devendo, dessa forma, cumprir todas as condições, deveres e obrigações nele estabelecidas. O exercício da liberdade de contratar exige das partes a responsabilidade quanto aos efeitos das obrigações assumidas3.
“Nos contratos bilaterais”, segundo as lições de Xxxx Xxxxx, “as obrigações das partes são recíprocas e interdependentes: cada um dos contratantes é simultaneamente credor e devedor um do outro, uma vez que as respectivas obrigações têm por causa as do seu cocontratante, e, assim, a existência de uma é subordinada à da outra parte”4. Dessa forma, inexistindo o cumprimento da prestação por uma das partes, pode a outra invocar a seu favor a exceção do contrato não cumprido.
Trata-se do direito de uma das partes poder recusar a exigibilidade da sua prestação, em face da outra parte não haver adimplido a parte que lhe cabia. A exceção do contrato não cumprido constitui, portanto, um meio de defesa indireta contra a pretensão da outra parte. O seu objetivo não é a resolução do contrato e isenção do excipiente do dever de cumprir a prestação que lhe cabia, mas apenas o direito de recusar, momentaneamente, a prestação que lhe cabe, todo o tempo em que a outra parte não cumprir a sua parte5.
A doutrina, como se verá adiante, entende que para a oposição da exceção do contrato não cumprido, faz-se necessária a existência dos seguintes quatro requisitos: (i) vínculo sinalagmático; (ii) simultaneidade das prestações; (iii) inadimplemento; (iv) boa-fé.
1 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. Vol. 3, p. 48-49.
2 GONTIJO, Maisa Xxxxxxxxx Xxxxx – Análise do Princípio da Boa-Fé Objetiva Estatuído no Artigo 422 Do Código Civil Brasileiro. p. 11. [em linha]. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2009. 125 f. Dissertação do Programa de Pós-graduação em Direito. [Consult. 29 NOV. 2014]. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxxxxxxx.xx/xxxxx/Xxxxxxx_XxxxxxxXX_0.xxx.
3 Ibidem.
4 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx – Instituições de Direito Civil. Vol. 3, p. 67.
5 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx – O contrato e seus princípios. p. 88.
Voltando ao estudo dos contratos, veremos que o princípio da relatividade ou res inter alios acta funda-se na ideia de que os contratos somente produzem efeitos em relação às partes que manifestaram sua vontade, não vinculando terceiros estranhos à essa relação6. No período clássico esse princípio, pode-se assim dizer, era absoluto. Não se cogitava a produção de efeitos externos ao contrato e às partes contratantes. Em outras palavras, o contrato não poderia vincular, beneficiar ou prejudicar terceiros7, de cuja relação negocial não puderam manifestar e expressar sua vontade.
Com a evolução da sociedade e o incremento da complexidade das relações entre pessoas surge o fenômeno da união dos contratos, que, de acordo com a doutrina, pode ser classificado em três espécies: união extrínseca; união alternativa; união com dependência (ou união interna)8.
Especificamente para efeitos do presente estudo, importa-nos analisar a união com dependência (ou união interna), que se caracteriza pela existência de uma relação de sujeição e dependência entre dois contratos, de maneira tal que a validade e vigência de um esteja intimamente ligada à validade e vigência do outro9.
Na união com dependência (ou na “coligação contratual”, como também se refere a doutrina a este tipo), há um nexo de carácter funcional, uma unidade de função e de interesse negocial, que vincula os contratos, acarretando a produção de efeitos ou consequências jurídicas novas, além daquelas próprias de cada um dos contratos. Ou seja, os contratos deixam de ser analisados, interpretados e produzirem seus efeitos de maneira individual e autônoma, passando a integrar um único conjunto econômico, com um único objetivo a ser alcançado. Nas palavras de Xxxx xx Xxxxxxxxxxx, há “uma unidade contratual com pluralidade de tipos” e não “uma pluralidade de contratos unidos funcionalmente”10.
A união de contratos com dependência surge a partir da ideia da evolução das relações econômicas na sociedade que, indiscutivelmente, tornaram-se complexas, diante da necessidade de otimização da eficiência e dos resultados, assim como redução dos riscos. Os contratos precisaram acompanhar essa evolução, deixando para trás a visão clássica individualista, em que seus efeitos restavam restritos às partes contratantes, para uma nova
6 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. p. 47.
7 GONTIJO, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 11
8 INOCÊNCIO, Xxxxxx Xxxxxx – Manual dos Contratos em Geral. p. 475/476.
9 Ibidem.
10 VASCONCELOS, Xxxxx Xxxx de – Contratos Atípicos, Colecção Teses. p. 218/219.
forma, em que estão inseridos em operações econômicas complexas e interligadas, dando origem, assim, às redes contratuais11.
Com efeito, interessa-nos analisar se o instituto da exceção do contrato não cumprido seria aplicável no âmbito da união de contratos com dependência (ou união interna), especialmente nas relações contratuais envolvendo uma concessionária de serviço público.
A grande questão que, em primeiro lugar, deverá ser analisada, é quanto ao cabimento da oposição da exceção do contrato não cumprido no âmbito dos contratos coligados entre particulares, sob a égide do direito privado. Será preciso, antes de tudo, analisar se nessa relação negocial, composta por contratos autônomos entre si, que estão vinculados a uma operação econômica global, entrelaçados num único conjunto econômico, com um objetivo comum a ser alcançado, possui os requisitos necessários para aplicação da exceptio.
Essencialmente, será preciso analisar, em maior profundidade, se é possível constatar a existência de um equilíbrio contratual do sistema, que demande a proteção da exceção do contrato não cumprido. Veremos que, a partir do momento em que há uma relação de interdependência entre os contratos, todos com uma única finalidade econômico-social, que transcende a individualidade de cada contrato e que constitui a razão de ser de sua união, naturalmente, forma-se dentro desse sistema contratual um equilíbrio sistemático-contratual, um vínculo “sinalagmático supracontratual”12. Havendo o desequilíbrio de um dos contratos – por exemplo, o inadimplemento de uma das parcelas das relações jurídicas – afeta-se todo o sistema e não apenas aquele contrato individual e específico.
Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxx justificam a possibilidade da exceção do contrato não cumprido nos contratos coligados por identificarem nestes o que chamam de “sinalagma trilateral”13. Isso porque, nesse tipo de sistema contratual, há três intervenientes que assumem obrigações interdependentes entre si, todas elas intrinsecamente limitadas ao sucesso de uma outra atribuição a cargo de parte diversa da beneficiária da primeira.
Uma vez superada essa questão, quanto à possibilidade da exceptio ser invocada no âmbito da união de contratos regidos por normas de direito privado, analisaremos a possibilidade da sua aplicação no âmbito de relações contratuais coligadas envolvendo concessionárias de serviço público.
11 ITURRASPE, Xxxxx Xxxxxx – Contratos conexos: grupos y redes de contratos. p. 9.
12 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – A exceção do contrato não cumprido. p. 198
13 XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxx; MÚRIAS, Xxxxx – Sobre o conceito e a extensão do sinalagma. In TELLES, Xxxxxxxxx Xxxxxx – Estudos em Honra do Professor Doutor Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx. p. 399.
Nesse aspecto, faremos breves considerações acerca dos contratos administrativos e o surgimento do instituto da concessão, distinguindo-o dos demais contratos de natureza eminente privada.
Veremos que o contrato administrativo se caracteriza por possuir um regime específico, em que o contratante público é dotado por um conjunto de poderes de autoridade, exercíveis por ato administrativo, destinados a assegurar a permanente adequação da relação contratual com o interesse público que justificou a sua constituição14. Trata-se, assim, de uma figura dogmática autônoma, submetida à jurisdição autônoma, que se diferencia dos contratos de direito privado celebrados pela Administração.
A relação jurídica administrativa é, portanto, a relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo, que estabelece uma série de direitos e deveres recíprocos entre Administração Pública (qualquer pessoa de direito público ou mesmo particular investido de direito público) e qualquer outra pessoa – seja ela de direito público ou privado. Em outras palavras, trata-se de uma relação jurídica entabulada entre, no mínimo, duas pessoas, sendo uma delas sempre a Administração Pública, em que que atuem no exercício de poderes ou deveres públicos, conferidos por normas de direito administrativo e com vistas à realização de um interesse público legalmente definido.
E nessa relação, tem-se que uma das partes – a Administração Pública –, ocupa uma posição de supremacia em relação à outra parte e pode exercer poderes de autoridade, em decorrência do interesse público envolvido. Por essa razão, é que a outra parte está sujeita a um conjunto de deveres e limitações especiais, como, por exemplo, o dever de manter contínua e regularmente a prestação do serviço de interesse público.
Já o contrato de concessão, espécie de contrato administrativo, caracteriza-se pela delegação, pela Administração Pública, ao particular, do exercício de atividades públicas15. Com as concessões, o estado mantém a titularidade da prestação do serviço, mas não a desenvolve diretamente.
Assim, o Estado deixa de aportar recursos públicos para o seu desenvolvimento, e deixa de assumir os riscos inerentes ao negócio, na medida em que cabe ao particular a execução do serviço em nome próprio e por sua conta e risco, submetendo-se, todavia, à normas especiais,
14 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx-Xxxx – Conceito e critérios de qualificação do contrato administrativo: um debate académico com e em homenagem ao Senhor Professor Xxxxxxx Xxxxxxx: do artigo 178.º do CPA ao artigo 1.º, n.º 6, do CCP: uma alteração do paradigma. In XXXXXXX, Xxxxx – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxx. p. 760.
15 ANJOS, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx xxx – Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Água e os Consumidores: Questão da Jurisdição Competente. Cedipre Online. p. 14.
regulação e fiscalização por parte da Administração Pública, que pode, inclusive, intervir na sua atividade, dependendo do caso16.
Pode-se afirmar, então, que o contrato de concessão de serviço público é a convenção por meio qual uma pessoa coletiva de direito público (o concedente) encarrega uma empresa privada (a concessionária) de prestar um determinado serviço público por sua conta e risco, sendo remunerado através do preço cobrado aos utentes, destinatários finais do serviço17.
O concessionário não possui, apenas, deveres contratuais junto à Administração Pública, mas também possui deveres regulamentares junto aos utentes terceiros (apesar de não serem integrantes do contrato de concessão), que são os beneficiários e destinatários finais dos serviços prestados.
A prestação do serviço público é regida por uma série de princípios que objetivam a satisfação dos interesses públicos, já que é tarefa do Estado prover à satisfação de necessidades essenciais e contribuir para o bem estar e a qualidade de vida de todos, tais como os princípios da universalidade, igualdade, continuidade, adaptabilidade, qualidade, segurança, transparência18 e bom funcionamento19.
É, portanto, por exemplo, em razão do princípio da continuidade que o concessionário de serviço público não pode, em caso de inadimplemento das obrigações do Poder Público invocar a seu favor, de forma indiscriminada e sem uma prévia avaliação das circunstâncias do caso concreto, a exceção do contrato não cumprido, para interromper a prestação do serviço público.
De fato, no caso da legislação portuguesa, relativamente à garantia do concessionário de recebimento do preço, veremos que o mesmo somente poderia invocar a exceção do contrato não cumprido contra o Poder Concedente, nos termos do art. 327.º do Código de Contratos Públicos, isto é, desde que a sua recusa em cumprir não implique grave prejuízo para a realização do interesse público; ou de ser colocada manifestamente em causa a viabilidade económico-financeira do cocontratante ou se revelar excessivamente onerosa a obrigação, devendo, nesse último caso, ser “ponderados os interesses públicos e privados em presença”20.
16 FILHO, Xxxx Xxxxxx – Serviço Público: conceito, privatização. Revista Jus et Fides. p. 115.
17 ANJOS, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx dos – Op. Cit. p. 17/18.
18 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx – Lei dos serviços públicos essenciais, anotada e comentada. p. 72.
19 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx – A proteção do consumidor de serviços públicos essenciais. Estudos de Direito do Consumidor. p. 343.
20 Artigo 327.º do CCP: Exceção de não cumprimento invocável pelo cocontratante 1 - Nos contratos bilaterais, quando o incumprimento seja imputável ao contraente público, o cocontratante, independentemente do direito de resolução do contrato que lhe assista, nos termos do disposto no artigo 332.º, pode invocar a exceção de não cumprimento desde que a sua recusa em cumprir não implique grave prejuízo para a realização do interesse público subjacente à relação jurídica contratual. 2 - Se a recusa de cumprir pelo cocontratante implicar grave prejuízo para
Ainda sobre as peculiaridades envolvendo o contrato administrativo de concessão, que traduzem o poder de regulação e fiscalização por parte da Administração Pública, o concessionário não pode aumentar o preço da tarifa do serviço por ele prestado, de forma autônoma e unilateral. Isso porque, no âmbito das concessionárias de serviço público, a regulação do preço consubstancia importante mecanismo de regulação por parte da Administração Pública21, razão pela qual este é determinado segundo critérios pré-estabelecidos pela mesma, constantes do contrato de concessão; de regulamento próprio; por convenção administrativa multilateral ou pela entidade reguladora22.
Note-se que a concessão de serviço público tem como uma das características a existência de uma relação trilateral, composta pelo concessionário, Poder concedente, e pelo consumidor do serviço público, personagem este que não integra o contrato de concessão, mas que, em última análise, é o destinatário final e a razão de ser da concessão23.
Além dessa relação trilateral, existem uma série de contratos que gravitam ao redor do contrato de concessão de serviço público, celebrados unicamente no intuito de a ele servir que, regidos por normas de direito privado. Cabe, então, a indagação: esses contratos, que são pressupostos para que o concessionário de serviço público possa desenvolver sua atividade, podem ser considerados como integrantes de uma união contratual com o contrato administrativo de concessão? E mais, caso sejam considerados como integrantes de uma união contratual, seria possível que uma das partes opusesse a exceção do contrato não cumprido em um contrato, em razão do inadimplemento da prestação da outra parte no outro contrato?
Imagine-se, por exemplo, o contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado pela concessionária de serviço público de transporte ferroviário e a empresa de fornecimento de energia elétrica, com único e expresso intuito de que a segunda proveja energia elétrica necessária para desenvolvimento da atividade da primeira.
a realização do interesse público nos termos do disposto na parte final do número anterior, aquele apenas pode invocar a exceção de não cumprimento quando a realização das prestações contratuais coloque manifestamente em causa a viabilidade económico-financeira do cocontratante ou se revele excessivamente onerosa, devendo, nesse último caso, ser devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença. 3 - O exercício pelo cocontratante do direito de recusar o cumprimento da prestação depende de prévia notificação ao contraente público da intenção de exercício do direito e dos respetivos fundamentos, com a antecedência mínima de 15 dias, se outra não for estipulada no contrato. 4 - Considera-se que a invocação da exceção de não cumprimento não implica grave prejuízo para a realização do interesse público quando o contraente público, no prazo de 15 dias contado da notificação a que se refere o número anterior não reconhecer, mediante resolução fundamentada, que a recusa em cumprir seria gravemente prejudicial para o interesse público.
21 GOUVEIA, Xxxxxxx – Os Serviços de Interesse Geral em Portugal. p. 43.
22 XXXXXXXXX, Xxxxx – A concessão de serviços públicos: uma aplicação da técnica concessória. p. 320/321.
23 ANJOS, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx dos – Op. Cit. p. 21.
E que o Poder Público autorize o aumento extraordinário do preço da tarifa de energia elétrica, em decorrência de situação inesperada inusitada e, de outro lado, fundado no princípio da universalidade, deixe de autorizar o correspondente aumento da tarifa do serviço transporte ferroviário (indispensável para custeio do aumento de energia elétrica) e não adote qualquer medida visando a recomposição do equilíbrio econômico financeiro do contrato.
A possibilidade de oposição da exceção do contrato não cumprido pela concessionária de serviço público em face do Poder Público, em razão do princípio da continuidade, como mencionado acima, não seria tão clara e demandaria a análise do caso concreto, já que a sua paralisação implicaria grave prejuízo para a realização do interesse público.
Nesse contexto, surge, então, o interesse na análise da questão: a exceptio poderia ser invocada pela concessionária de serviço público de transporte ferroviário contra a fornecedora de energia elétrica, como forma de se evitar o pagamento da tarifa de energia elétrica, em razão e ao fundamento da união dos contratos, todo o tempo que o Poder Público não reequilibrar econômica-financeiramente o contrato de concessão?
A questão, como visto, envolverá a análise da teoria dos contratos, do instituto da exceção do contrato não cumprido, do tema relativo à união de contratos, bem como concernente às concessionárias de serviço público, notadamente a natureza jurídica e o direito aplicável às relações entre Poder Concedente, Concessionário e terceiros que celebrem contratos com o concessionário. Ademais, envolverá a análise dos princípios atinentes à Concessão, tais como necessidade de não haver interrupção do serviço público, bem como à obrigação a necessidade de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, quando for o caso. E, por fim, a possibilidade do concessionário invocar a exceptio contra terceiros, como forma de se proteger do inadimplemento da Administração Pública.
Objetiva-se, sem a pretensão de esgotar a matéria, investigar as principais nuances sobre o tema para contribuir com o debate que se revela importante para os operadores do Direito e para a sociedade, indicando soluções para alguns dos principais problemas destacados neste projeto investigatório.
O tema é instigante e merece toda a atenção dos operadores do Direito, seja advogados, docentes, juristas ou estudantes, o assunto é atual e necessita de um aprofundamento para se descobrir o real alcance da exceção do contrato não cumprido no âmbito da coligação contratual, envolvendo uma concessionária de serviço público.
CAPÍTULO I:
1. Aspectos gerais dos contratos
1.1. Evolução Histórica
No Direito Romano, os contratos eram dotados do formalismo, solenidade esta que consubstanciava único requisito necessário à validade do ato jurídico. Assim, independentemente das causas que originaram o ato jurídico, por meio do qual uma das partes se obrigava à determinada prestação perante a outra, verificado o preenchimento desses requisitos formais, a obrigação tornava-se plenamente válida juridicamente24.
O Direito Romano distinguia contrato de pacto, sendo ambos espécies do gênero convenção25. Os contratos representavam convenções normatizadas, razão pela qual eram revestidas da proteção pela via da actio (podiam ter a execução reclamada judicialmente), e se dividiam em três espécies: “a) litteris, que exigia inscrição no livro do credor (denominado de codex); b) re, que se fazia pela tradição efetiva da coisa; e c) verbis, que se celebrava pela troca de expressões orais, como em um ritual religioso”26.
Por sua vez, os pactos consubstanciavam acordos, não previstos em lei e, portanto, sem qualquer forma solene de celebração, razão pela qual não contavam com a proteção pela via da actio27.
Nesse sentido, de acordo com as lições de Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, para os romanos, o contrato “era visualizado como um vínculo objetivo, mais propriamente servindo para designar as consequências do acordo, vale dizer, a vinculação obrigacional daí decorrente, e não como a manifestação de vontades opostas e convergentes ou a expressão da liberdade e autodeterminação individual: nada mais distante, portanto, da concepção subjetiva ou voluntarista acolhida no primeiro código moderno, o Code Napoléon, ao qual subjazia o brocardo ‘qui dit contractuel dit juste’, com a força de uma verdade indiscutível, colocado aí, em primeiro plano, o aspecto subjetivo do indivíduo”28.
O Código de Xxxxxxxx, por sua vez, disciplinava o contrato como mero instrumento para aquisição de propriedade, como uma garantia para os burgueses e as classes proprietárias,
24 ABRANTES, Xxxx Xxxx – A Excepção de não cumprimento do contrato: conceito e fundamento. 2.ª ed. Coimbra: Almedina. 2014. ISBN 978-972-40-4953-3. p. 13-15.
25 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 23.
26 NAVES, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx – Da Quebra da Autonomia Liberal à Funcionalização do Direito Contratual. In: FIUZA, Xxxxx; XX, Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx de; NAVES, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx –Direito civil: atualidades II: da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. p. 231 e 232
27 Ibidem.
28 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx – Crise e Modificação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro. p. 2.
mas com a ideia de que o contrato representava um acordo de vontades29. A transferência do bem, portanto, passava a ser dependente exclusivamente da vontade das partes.
A Revolução Francesa surge como um marco divisor entre os ideais do Estado absoluto e a nova visão do Estado Liberal, que passa a admitir a subjetividade do homem, expressa pelo individualismo e autonomia de agir. Nas lições de Xxxxxxx Xxxxxxxx:
A visão crítica da história e do desenvolvimento deste ramo disciplinar caminha até a Revolução Francesa, marco de indiscutível importância que realiza a substituição do Estado absoluto pelo Estado liberal, ou Estado de Direito que, entre outros primados, identificou o homem sob a matiz da subjetividade jurídica, cujo princípio fundamental exprime-se no individualismo e na autonomia de agir, e alicerça-se na triangulação da igualdade, da liberdade individual e da propriedade privada. Enfim, foi esse o momento histórico que fotografou um Direito Civil centrado no indivíduo, pois que ele se apresenta como a causa e a razão final da esfera jurídica (p. 93-114)30.
Surge, então, a noção de autonomia privada ou autonomia da vontade, como centro da teoria geral dos contratos, segundo a qual cabe às partes discutir livremente as suas condições, em situação de igualdade31. A expressão dessa autonomia da vontade é marcada pelo Código Civil de 1804, resultado da Revolução Francesa32.
Cabia, portanto, ao Estado, dentro desse contexto, simplesmente conciliar a autonomia de vontade dos indivíduos. Não eram consideradas as desigualdades econômicas ou sociais, mas, apenas, respeitadas as vontades das partes. Não é preciso dizer, assim, que os mais fracos eram dominados e oprimidos frente à vontade dos mais fortes, sob a justificativa de necessidade de obediência à vontade das partes. Como se vê, a igualdade era apenas formal, na medida em que, uma vez assegurada liberdade aos contratantes, tinha-se, como pressuposto, o equilíbrio da relação contratual, repita-se, independentemente das condições sociais e econômicas dos contratantes33.
Por óbvio, essa situação ensejava situações de injustiça e de desigualdade, favorecendo a concentração do poder econômico e aumentando o desnível social34. O Estado liberal,
29 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. p. 23.
30 HIRONAKA, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx – Tendências do Direito Civil no século XXI. in FIUZA, Xxxxx; XX, Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx de; NAVES, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx – Direito civil: atualidades II : da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. p. 93-114.
31 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 24. 32 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 12. 33 Ibidem.
34 Ibidem.
marcado pela não intervenção sobre o domínio econômico e prevalência da vontade das partes, não era mais capaz de regular as relações sociais.
Assim, com o fim da Primeira Guerra, o Estado liberal cedeu espaço ao Estado Social de Direito, no qual passa a “prevalecer o interesse público de uma população que aguarda prestações estatais, em oposição ao interesse individual que vigorava no Estado Liberal”35.
De acordo com Xxxxx Xxxx, o Estado de Direito Social caracteriza-se por:
a) a intervenção do estado na economia com o objetivo de manter o pleno emprego. por sua vez, essa intervenção é produzida através da criação de um setor público econômico; b) a prestação pública de um conjunto de serviços de caráter universal (preferencialmente em setores como a educação, a saúde, previdência e habitação), que pretendem garantir um nível mínimo de serviços à população. a isso se pode acrescentar, como sustenta, por exemplo, Xxxxxx Xxxxxx, que a responsabilidade estatal na manutenção desse nível mínimo deve ser entendido como um direito e não como uma caridade pública para uma minoria. precisamente, a seguridade social é uma das instituições mais representativas do estado de bem- estar (p. 165)36.
De fato, com o fim da Segunda Guerra, observa-se um movimento estatal no sentido de comprometimento com a responsabilidade solidária e ética social. O Direito passa a atender, não mais aos interesses individuais dos particulares contratantes, mas passa a levar em consideração as necessidades da sociedade como um todo. A intervenção estatal, portanto, mostra-se presente com o fito de assegurar a igualdade das relações entre os indivíduos, isto é, o equilíbrio entre as partes37.
Assim é que o contrato passa a servir e visar os interesses da coletividade, passando a desempenhar uma “função social”, e não apenas a se limitar a ser um simples instrumento que manifesta a vontade entre particulares isolados38.
No Estado Liberal “a assistência ou os benefícios eram encarados sob uma perspectiva de caridade”, ao passo que no Estado Social “as prestações públicas são construídas como uma conquista da cidadania”39. É nítido, pois, esse movimento do Estado no sentido de assegurar direitos sociais aos cidadãos, e, como consequência, garantir o ideal de igualdade material.
35 Idem – Op. Cit.. p. 13.
36 XXXX, Xxxxx Xxxxxx – Política, poder, ideologia e estado contemporâneo. p. 165.
37 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 13-14.
38 Ibidem.
39 XXXXXX, Xxxxx Xxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxx Xxxxxx de – Ciência Política e Teoria do Estado. p. 78.
Há, assim, uma notável mitigação da carga individualista e liberal da autonomia da vontade das partes, com um movimento de proteção da parte vulnerável e interesses sociais da coletividade. De acordo com Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx é por isso, inclusive, que se observa um movimento de substituição da expressão “autonomia da vontade” – marcada por essa carga individualista – pela expressão “autonomia privada”40.
O direito contratual deixa de se preocupar, assim, apenas com a relação e autonomia da vontade das partes contratantes, passando a enxergar, também, seus efeitos e repercussões na sociedade. Deixa-se, da mesma maneira, de se prezar tão somente pela igualdade formal, passando-se a objetivar a igualdade material dos contraentes. O Estado passou, dessa forma, a compensar as desigualdades sociais, atribuindo uma série de direitos e deveres às partes, como forma de se buscar o equilíbrio contratual41.
Nessa linha de evolução, surge o Estado Democrático de Direito, no qual a pessoa humana passa a ser o centro da proteção estatal; o ser ganha destaque e sobreposição ao ter. Nas palavras de Xxxxxxxxx, “o primado do ser sobre o ter, perseguido pela leitura constitucionalizada do direito civil, traduz-se na transformação da ética da liberdade por uma ética solidária, de co-responsabilidade, cooperação e lealdade”42.
Surgem os princípios da função social, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico, por meio dos quais os princípios já existentes sofrem uma releitura. Assim, não se torna mais admissível pensar na relação obrigacional tão somente como um vínculo entre devedor e credor. Os princípios do pacta sunt servanda e da eficácia relativa do contrato sofrem limitações pelos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da equivalência material do contrato43.
A teoria contratual contemporânea, dessa maneira, deixa de se basear apenas nos princípios liberais (autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos do contrato), como na visão tradicional. Nessa era de “socialização do direito civil”, surgem novos princípios, referidos como "princípios sociais contratuais" (princípio da função social do contrato, da boa- fé objetiva, da justiça contratual) 44.
40 GONTIJO, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 14.
41 Ibidem.
42 XXXXXXXXX, Xxxxxx XXXXXXXXX, Xxxxxx – Teoria do contrato: novos paradigmas. p. 62.
43 GONTIJO, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 15.
44 XXXXXXX, Xxxxx xxxxx. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com número 1198/12.0TBCVL.C1, 11 de fevereiro de 2014 [Em linha]. [Consult. 17 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/x0xx000000xx0x00000000x0000xx0xx/x00xx0x0x000000000000x00000x00xx?Xxxx Document
Tem-se, assim, que uma nova concepção acerca da teoria geral dos contratos, no sentido de que o contrato não pode ser mais concebido por uma visão individualista e singular da relação entre as partes contratantes, mas no sentido da sua utilidade para a comunidade45.
Segundo a definição de Xxxxxx Xxxxxxxxx, o contrato consubstancia um “acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos”46.
No Código Civil português, os princípios da boa-fé objetiva; da função social do contrato; e do equilíbrio econômico do contrato foram positivados respectivamente nos seguintes dispositivos: art. 227.º n.º 1, art. 239.º e art. 762.º, n.º 2 (boa-fé objetiva), art. 334.º (função social) e art. 437.º, n.º 1 (resolução do contrato por onerosidade excessiva, isto é, equilíbrio econômico do contrato).
No Código Civil brasileiro de 2002, tais princípios são encontrados respectivamente nos seguintes dispositivos: art. 422.º (boa-fé objetiva), art. 421.º (função social) e art. 157.º c/c arts. 478.º, 479.º e 480.º (resolução do contrato por onerosidade excessiva, isto é, equilíbrio econômico do contrato).
1.2. Princípios contratuais
1.2.1. Autonomia privada ou autonomia da vontade
O princípio da autonomia da vontade estabelece que as partes são livres para expressar suas vontades e contratar entre si, desde que não afrontem as leis, a ordem pública e os bons costumes. Trata-se do poder, referido por Xxxxxx Xxxxx, como “poder negocial”47, que a ordem jurídica reconhece aos contratantes de disporem sobre seus interesses, em regra econômicos, e preverem os efeitos do negócio jurídico que, livremente, entabularem48.
Segundo Xxxxxxx Xxxxx, a autonomia privada é a “esfera de liberdade da pessoa que lhe é reservada para o exercício dos direitos e a formação das relações jurídicas do seu interesse ou conveniência”49. Trata-se, em suma, do poder de autodeterminação da pessoa, com o reconhecimento de que ela pode criar, modificar ou extinguir relações jurídicas.
Em outras palavras, o princípio da autonomia privada estabelece que as pessoas possuem a liberdade para contratar com quem quiserem e sobre o que quiserem. Cabe, assim, às partes contratantes instrumentalizarem suas vontades, estabelecendo seus direitos e
45 Ibidem.
46 Apud TARTUCE, Xxxxxx – Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. p. 17.
47 REALE, Xxxxxx – O Projeto de Código Civil. p. 9.
48 PRATA, Ana – A tutela constitucional da autonomia privada. p. 11
49 Xxxx XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx Xxxx – Direito dos Contratos. p. 5.
obrigações. As partes são dotadas da faculdade de entabular contratos, prevendo, inclusive, situações não previstas e pré-estabelecidas em leis, dando origem, assim, aos contratos inominados.
De acordo com as lições do Prof. Xxxxxxx Xxxxxx, a autonomia da vontade consiste na liberdade que as pessoas possuem de contratar; de escolher com quem irão contratar; no direito de retratação, todo tempo que a proposta não chegar ao destinatário; de estabelecerem as disposições do contrato, que possuirá plena validade perante a lei, como instrumento capaz de vincular e gerar direitos e obrigações a ambas as partes50.
De acordo com Xxxxxx Xxxx Xxxxx, trata-se do “poder reconhecido aos particulares de autorregulamentação dos seus interesses, de autogoverno de sua esfera jurídica”51.
O princípio da autonomia da vontade serve de fundamento para a celebração dos contratos atípicos52. Os contratos atípicos são aqueles que resultam de um acordo de vontade entre as partes, não regulado expressamente pelo ordenamento jurídico, mas fruto da criação das partes, em razão das suas necessidades e interesses. Será sempre válido desde que as partes envolvidas sejam capazes e o objeto do contrato lícito, possível, determinado ou determinável53. O princípio da liberdade contratual encontra previsão no direito português, tendo sido introduzido na ordem jurídica no art. 405.º do Código Civil. E, de acordo com alguns autores, o princípio da autonomia privada, no direito português, possui assento constitucional, sendo inferido dos preceitos que consagram os princípios da igualdade (art. 13.º), da liberdade (art. 27.º, n.º 1), da propriedade (art. 62.º, n.º 1), da liberdade de trabalho (art. 53.º, n.º 3) e da
liberdade de empresa (art. 85.º, n.º 1)54.
No Direito brasileiro, a liberdade contratual encontra assento nos arts. 421.º e 425.º do Código Civil, ao disporem que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” e “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.
Ainda no ordenamento jurídico brasileiro, pode-se afirmar que o princípio da autonomia privada encontra guarida em sede constitucional nos dispositivos que asseguram o direito à livre iniciativa econômica (art. 170.º da CRFB) e às liberdades individuais (art. 5.º da CRFB).
50 XXXXXX, Xxxxxxx – Das Obrigações em Geral. p. 211/213.
51 Xxxx XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3. p. 41-42.
52 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 41.
53 Idem – Op. Cit.. p. 42.
54 RUÇO, Xxxxxxx xxxxx. – Acórdão da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra com número 995/05.8TBFND.C1, 03 de dezembro de 2009 [Em linha]. [Consult. 17 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/-/X0X00X0000X00XXX000000X00000XXX0
É evidente também que a autonomia privada sofre limitações de outros princípios (boa- fé, função social, ordem pública). Nesse sentido, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx leciona que “a liberdade de contratar não é absoluta, pois está limitada pela supremacia da ordem pública, que veda convenções que lhe sejam contrárias e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo”55.
Assim, a formação do contrato, no direito português, por exemplo, deve ser feita dentro dos limites da lei (art. 405.º do C. Civil), sendo nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, sendo certo que também será nulo, ainda, quando for contrário à ordem pública ou ofensivo aos bons costumes (arts. 280.º e 294.º do Código Civil português).
No caso da legislação brasileira, pode-se citar, ainda, como exemplos da mitigação do princípio da autonomia da vontade, a obrigatoriedade de celebração do contrato de seguro para obtenção do licenciamento de um veículo ou à vedação ao fornecedor de produtos ou serviços de “recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes” (art. 39.º, II do CDC).
No caso da escolha do outro contratante, pode-se citar como exemplo de mitigação desse princípio, os contratos públicos de concessão em regime de monopólio. Por fim, quanto ao conteúdo do contrato, a vontade das partes sofre limitações decorrentes das cláusulas gerais, sobretudo sobre aquelas que tratam sobre a função social do contrato e da boa-fé objetiva, da Lei de Defesa dos Consumidores (ou, no Brasil, Código de Defesa do Consumidor) e pela supremacia da ordem pública.
Note-se, ainda como exemplo, que os contratos de adesão representam efetiva mitigação ao princípio da autonomia da vontade das partes, na medida em que suas cláusulas são pré- estabelecidas, não havendo qualquer possibilidade de discussão pelo contratante quanto ao seu conteúdo. Nesses casos, a intervenção estatal revela-se essencial, a fim de se garantir o equilíbrio contratual e a igualdade material entre as partes.
A legislação brasileira, por exemplo, estabelece efetiva proteção nesses casos, prevendo nos arts. 423.º e 424.º do Código Civil, respectivamente, que “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente” e que “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”.
55 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx – Tratado Teórico e Prático dos Contratos. p. 71.
No mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor representa efetiva intervenção estatal, no sentido de se assegurar o equilíbrio das relações contratuais entre mais fortes e mais fracos (consumidores).
Essa relativização do princípio da autonomia privada resulta, nas palavras do Ministro Xxxx Xxxx, no “reconhecimento de que os contratos, além do interesse das partes contratantes, devem atender também aos ‘fins últimos da ordem econômica’”56. É por essa razão, inclusive, que nasce o instituto da revisão contratual, nas hipóteses de superveniente alteração das circunstâncias que deram origem ao negócio jurídico (teoria da imprevisão, teoria da base objetiva etc.).
O princípio da autonomia da vontade ou autonomia privada, pode ser definido, em poucas palavras, como o poder conferido às partes de escolha, seja com quem contratar, seja acerca do conteúdo que irá contratar, seja do próprio negócio a ser celebrado.
O princípio da autonomia da vontade está diretamente relacionado ao primeiro e, talvez, mais importante elemento para existência do negócio jurídico: A manifestação de vontade. A vontade se processa, num primeiro momento, na mente da pessoa – momento subjetivo, psicológico, da sua formação. A partir do momento em que a vontade é exteriorizada – fase objetiva –, por meio de uma declaração, esta se torna apta a produzir efeitos, na medida em que se torna conhecida.
Assim, pode-se dizer que não é a vontade propriamente dita que consiste em um requisito de existência dos negócios jurídicos, mas a sua manifestação57.
O Código Civil português, em seu art. 217.º, prevê, expressamente, a possibilidade de a declaração de vontade ser expressa ou tácita, ressaltando, ainda, que a declaração tácita é assim considerada quando pode ser inferida dos fatos que a revelam, com toda a probabilidade. Ademais, de acordo com o art. 218.º do mesmo diploma legal, admite-se o silêncio como forma de declaração de vontade, desde que esse sentido seja atribuído pela lei, uso ou convenção.
A título exemplificativo, no caso de contratos administrativos, o Código dos Contratos Públicos, em seu art. 395.º, 8, reconhece como “tacitamente recebida” a obra sempre que a mesma seja afeta pelo dono da obra aos fins a que se destina.
56 GRAU, Xxxx Xxxxxxx – A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 92.
57 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 72.
No direito brasileiro, a manifestação de vontade também pode se dar das duas formas: É expressa quando exteriorizada por escrito, verbalmente, mímica ou gesto, de forma inequívoca. E tácita quando a vontade do agente é inferida de sua conduta58 e somente terá validade quando a lei não exigir que seja expressa, conforme dispõe o art. 111.º do Código Civil brasileiro.
No que diz respeito ao silêncio, a legislação brasileira admite que seja interpretado como manifestação tácita da vontade, desde que “as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa” (CC brasileiro, art. 111.º). Admite-se, ainda, na hipótese de a lei o autorizar, como no caso da praxe comercial (CC brasileiro, art. 432), ou quando as partes assim o convencionarem em um pré-contrato59.
Não obstante, é certo que inúmeros vícios podem interferir nesse processo de livre manifestação da vontade, que podem incidir em dois planos: I) na própria vontade; ou II) na sua declaração.
Na primeira hipótese, há um vício da formação da vontade, seja por ausência de vontade, seja por ausência de liberdade na formação da vontade. Já na segunda, apesar de a vontade ter se formado adequadamente, algo interfere na sua exteriorização, de modo que a vontade real não corresponde à sua declaração.
Por essa razão é que, ocorrendo vícios da vontade ou na declaração de vontade, o negócio jurídico pode ser declarado nulo ou anulável, conforme o caso.
1.2.2. Obrigatoriedade
Como visto, de acordo com o princípio da autonomia privada, as partes são livres para contratar e livres para dispor com quem e sobre o que contratarão. Todavia, uma vez entabulado o negócio jurídico, válido e eficaz, as partes não podem se recusar a cumpri-lo. Essa irreversibilidade do compromisso assumido traduz o significado do princípio da força obrigatória dos contratos, também conhecido como princípio da força vinculante dos contratos, expresso pelo brocardo latino pacta sunt servanda60. Daí dizer-se que “o contrato faz lei entre as partes”61.
58 Ibidem.
59 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 73.
60 Idem – Op. Cit.. p. 48-49.
61 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 11.
O pacta sunt servanda estabelece, em outras palavras, que as partes, uma vez tendo pactuado, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, permanecem vinculadas ao acordado, devendo, dessa forma, cumprir todas as condições, deveres e obrigações nele estabelecidas. O exercício da liberdade de contratar exige das partes a responsabilidade quanto aos efeitos das obrigações assumidas62.
Nas palavras de Xxxx Xxxxx xx Xxxxx, “o princípio da força obrigatória do contrato contém ínsita uma ideia que reflete o máximo de subjetivismo que a ordem legal oferece: a palavra individual, enunciada na conformidade da lei, encerra uma centelha de criação, tão forte e profunda, que não comporta retratação, e tão imperiosa que, depois de adquirir vida, nem o Estado mesmo, a não ser excepcionalmente, pode intervir, com o propósito de mudar o curso de seus efeitos”63.
O princípio da obrigatoriedade dos contratos visa garantir a segurança nos negócios jurídicos, ao não admitir que o acordo entre as partes possa ser descumprido ou alterado pela vontade de uma delas, ou mesmo por um juiz. Assim, estando os contratos em consonância com os princípios de ordem pública e com os bons costumes, adquirem força obrigatória, insuscetível de posterior modificação unilateral ou mesmo judicial.
De acordo com a concepção clássica, as únicas limitações a esse princípio seriam as hipóteses de caso fortuito ou força maior (positivadas no art. 406.º do Código Civil português e art. 393.º e parágrafo único do Código Civil brasileiro).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o princípio da obrigatoriedade sofreu mitigações, sobretudo porque o cumprimento de muitos contratos se tornou inviável, em razão da guerra, considerada como uma situação extraordinária. Aliado a isso, o surgimento dos movimentos sociais contribuiu para essa suavização da obrigatoriedade.
Assim, passou-se a admitir, em caráter excepcional, a possibilidade de o Poder Judiciário intervir, com o objetivo de corrigir o desequilíbrio das prestações, decorrente de situações extraordinárias, não previstas entre as partes.
Passou-se a admitir a possibilidade de resolução do contrato, quando demonstrada a ocorrência de situações excepcionais ou imprevisíveis, que tornassem impossível ou
62 Ibidem.
63 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 15.
excessivamente onerosa a manutenção do ajuste celebrado. Essa teoria foi acolhida no art. 437.º, n.º 1 do Código Civil de português64 e no art. 478.º do Código Civil brasileiro65.
É preciso, todavia, que essa alteração das circunstâncias seja relevante a ponto de justificar a modificação ou mesmo a resolução do contrato. Esses fatos, além de supervenientes, devem ser extraordinários, imprevisíveis e graves e, obviamente, não fazerem parte dos riscos do próprio negócio. Nessas circunstâncias, e desde que verificado o desequilíbrio da relação contratual, admite-se, com base na onerosidade excessiva, a modificação ou resolução do contrato.
De acordo com as lições do Professor Xxxxxxx Xxxxxx, os requisitos para aplicação da exceção prevista no art. 437.º, n.º1, do Código Civil português são: “1) A existência de uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; 2) O carácter anormal dessa alteração; 3) Que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; 4) Que a lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; 5) E que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato”66.
E explica o professor, a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar são as chamadas “bases do negócio objetiva”, isto é, as circunstâncias que, efetivamente, motivaram a decisão das partes de contratar.
O caráter anormal dessa alteração representa o caráter de imprevisibilidade daquela determinada situação, tal como uma revolução, guerra, alterações legislativas inesperadas etc..
O terceiro requisito representa o desequilíbrio das prestações contratuais, isto é, a existência de uma verdadeira modificação no equilíbrio contratual anteriormente existente.
Quanto à necessidade dessa alteração representar ofensa à boa fé, isso significa dizer que, para aplicação desse instituto, necessário se faz que, em razão da modificação superveniente das circunstâncias, o direito ao crédito da outra parte se torne ilegítimo, em razão do desequilíbrio das prestações ocasionado. Portanto, a teoria não pode ser aplicada a contratos que já tiveram a execução promovida.
Por fim, essa alteração superveniente não pode se dar no âmbito dos riscos inerentes ao próprio negócio.
64 Art. 437º, n.º 1 Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que as exigências das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato
65 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
66 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx – Direito das obrigações. p. 124 e ss..
Nesse sentido, Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx afirma: “A alteração anormal é assim, não apenas a alteração extraordinária e imprevisível, mas ainda a alteração que desequilibra uma relação com particular intensidade. É este afinal o conteúdo útil do art. 437.º/1, ao prever que a exigência das obrigações afecte gravemente os princípios da boa fé” 67.
É latente, portanto, a manifesta ponderação de princípios: de um lado, os princípios da autonomia privada e o da obrigatoriedade, que impõem o estrito cumprimento das condições livremente pactuadas entre as partes, e, de outro, o princípio da boa-fé, que determina que as prestações devam ser proporcionais, de modo que nenhuma das partes seja colocada em posição de desvantagem em relação à outra68.
Por essa razão que, o contratante que, por exemplo, assume a qualidade de fiador e principal pagador de dívida de terceiro perante instituição financeira, em pleno ambiente econômico instável no país, conhecendo as condições de amortização da dívida – 540 (quinhentos e quarenta) prestações, em 45 (quarenta e cinco) anos – não pode invocar para si a onerosidade excessiva do contrato, com base na alteração das circunstâncias econômicas e pessoais por parte do devedor original, que justifica o inadimplemento das parcelas devido à crise econômica vivenciada do país.
Não há dúvidas de que, no momento em que a fiança fora assumida, a parte tinha pleno conhecimento das circunstancias econômicas e financeiras no país, bem como do longo tempo de duração do período de amortização da dívida, não se podendo considerar, portanto, como anómalo e imprevisível, o fato de que o devedor deixasse de ter condições financeiras de saldar seus compromissos. Nesse sentido é que, o Supremo Tribunal de Justiça, analisando caso idêntico, da relatoria do i. Xxxx Xxxxxxx Xxxxx (processo n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1), deixou de aplicar a teoria da imprevisão, mantendo-se hígidos os termos do contrato de fiança celebrado69.
Há que se observar, ainda, que, em se tratando de contratos administrativos, no caso da legislação portuguesa, aplicáveis as normas previstas no Código dos Contratos Públicos, em especial o art. Artigo 282.º, que trata sobre a reposição do equilíbrio financeiro do contrato.
67 ASCENSÃO, Xxxx xx Xxxxxxxx – Onerosidade excessiva por "alteração das circunstâncias". Revista da Ordem dos Advogados. [sl]. ROA – Revista da Ordem dos Advogados. Vol. 3, 2005, n.º 65 (dez 2005) [Em linha]. [Consult. 03 mar. 2019]. Disponível em xxxxx://xxxxxx.xx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxx/xxx-0000/xxx-00- vol-iii-dez-2005/doutrina/xxxx-xx-xxxxxxxx-ascensao-onerosidade-excessiva-por-alteracao-das-circunstancias/
68 XXXXX, Xxxxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número 876/12.9TBBNV-A.L1.S1, de
27 de janeiro de 2015 [Em linha]. [Consult. 08 mar. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/0x0000x00x000x0x00000xxx000x0x00?XxxxX ocument
69 Ibidem.
A a boa-fé objetiva, o equilíbrio e a função social do contrato consubstanciam tempero ao princípio da obrigatoriedade dos contratos70.
1.2.3. Relatividade
O princípio da relatividade dos efeitos do contrato ou res inter alios acta funda-se na ideia de que os contratos somente produzem efeitos em relação às partes que manifestaram sua vontade, não vinculando terceiros estranhos à essa relação71.
No período clássico esse princípio, pode-se assim dizer, era absoluto. Não se cogitava a produção de efeitos externos ao contrato e às partes contratantes. O contrato não poderia vincular, beneficiar ou prejudicar terceiros72, de cuja relação negocial não puderam manifestar e expressa sua vontade.
Nas palavras de Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, o princípio da relatividade dos contratos expressa, em síntese, “que a força obrigatória desse negócio jurídico é restrita às partes contratantes (res inter alios acta)”, de modo que apenas os contraentes tornam-se vinculados às obrigações contraídas. Portanto, o contrato é lei entre as partes e somente em relação a elas73.
É por essa razão, portanto, que esse princípio consubstancia óbice, inclusive, à atuação legislativa estatal, de modo a afastar a possibilidade da nova lei retroagir e atingir os efeitos do contrato anteriormente celebrado74.
De fato, o art. 928.º do Código Civil brasileiro de 1916 previa que “A obrigação, não sendo personalíssima, opera, assim entre as partes, como entre os seus herdeiros”. Ou seja, não sendo personalíssima, a obrigação operava entre as partes e seus sucessores. Por óbvio, essa regra já comportava exceções, como, por exemplo, no caso de seguros de vida; separações judicias consensuais, em que se estipulavam questões em favor de terceiros.
Essa visão, todavia, foi superada pela evolução do direito e o surgimento do princípio da função social do contrato, que passamos a tratar a seguir.
70 NERY JUNIOR, Nelson – Contratos no Código Civil – Apontamentos gerais. In FRANCIULLI NETO, Xxxxxxxx [et al.] – O Novo Código Civil: Estudos em homenagem ao Professor Xxxxxx Xxxxx. p. 424.
71 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 47.
72 GONTIJO, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx – Op. Cit.. p. 11
73 XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx da – Revisão dos contratos: do Código civil ao Código do consumidor. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. ISBN 8530906926. p. 24.
74 Ibidem.
1.2.4. Função social dos contratos
A concepção do princípio da função social dos contratos representou mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, na medida em que, passou-se a enxergar o contrato não mais como uma fonte de direitos e deveres exclusiva entre as partes, mas como um instrumento que pode beneficiar terceiros que não são partes no ajuste, mas que possuem com ele uma ligação direta ou indireta75.
Nesse sentido, prelecionam Xxxxxx Xxxxx e Cleide Fermentão: “Na nova concepção de contrato, frente ao CDC e ao novo CC, não mais importa somente a manifestação de vontade dos contraentes, devendo-se levar em conta, também, os efeitos deste na sociedade, bem como a condição econômica e social dos participantes da relação jurídica. Na busca deste novo equilíbrio, o direito terá um papel destacado na busca da delimitação imposta pela lei, que também será legitimadora da autonomia de vontade das partes, passando a proteger determinados interesses, agora não de cunho individual, mas de interesse social, valorizando a confiança do vínculo de contratação, as expectativas e a boa fé”76.
A função social dos contratos, revela destacar, desde já, não se confunde com o princípio da boa-fé objetiva. Isso porque, o princípio da boa-fé objetiva está diretamente relacionado ao vinculo que as partes possuem entre si (caráter endógeno), ao passo que a função social do contrato se relaciona ao vínculo que as partes possuem com a sociedade, isto é, aos efeitos que o contrato produz a terceiros estranhos à relação contratual (caráter exógena)77.
De acordo com as lições de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, “a função social do contrato consiste em abrandar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes). Já o princípio da boa-fé objetiva fica restrito ao relacionamento travado entre os próprios sujeitos do negócio jurídico”78.
O princípio da função social é uma cláusula geral de ordem pública79. Trata-se de um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que objetiva limitar o poder das partes de contratar, em prol do bem comum80. E justamente por se tratar de uma cláusula geral, o juiz,
75 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 48.
76 XXXXX, Xxxxxx. FERMENTÃO, Cleide Aparecida Xxxxx Xxxxxxxxx. – O pacta sunt servanda: cláusula rebus sic stantibus e o equilíbrio das relações contratuais na atualidade. Revista Jurídica Cesumar – Mestrado.
77 XXXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx da – A Boa-fé e a violação positiva do contrato. p. 119.
78 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx – O contrato e sua função social. p. 31.
79 TARTUCE, Xxxxxx – Os direitos da personalidade no novo código civil.
80 GAGLIANO, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx – Novo curso de direito civil: contratos: teoria geral. p. 55.
diante da análise do caso concreto, poderá atribuir a essa “função social” valores jurídicos, sociais, econômicos e morais.
A ideia de que a análise do contrato, assim como dos efeitos que este produz, não deve se limitar ao plano individual da relação das partes, deve-se à noção de que este acaba por repercutir na sociedade. Por essa razão, dispõe o princípio da função social, que é necessário ir além da vontade singular dos contratantes, e preocupar-se com o efetivo bem-estar coletivo.
Nesse sentido, o contrato estará de acordo com a função social quando os contratantes tiverem como referência os valores da solidariedade, da justiça social, da dignidade da pessoa humana, de valores ambientais etc.81.
No direito português, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, reconhecem a ideia de que o contrato deve atender à sua função social, com base na ideia inserta no art. 334.º do Código Civil português, que assim dispõe: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Nesse sentido, vale citar trecho do voto da lavra do eminente Xxxx Xxxxx Xxxxxxx do Supremo Tribunal de Justiça (processo n.º 05B687), que assim se refere ao princípio da função social do contrato: “Com o que dito fica, se quer dizer que, não repugna à nossa lei, nem à doutrina, nem à jurisprudência (e até onde se pôde levar a investigação relativamente àquela e a esta), a ideia relativamente inovatória da função social do contrato. "Fim social ou económico do direito» - diz o artigo 334.º!”
O Código Civil brasileiro de 2002, por sua vez, afastando-se da concepção individualista, passou a prever, de forma expressa, em seu art. 421.º, o princípio da função social do contrato, como norteador das relações contratuais, ao dispor que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Sobre esse dispositivo, Xxxxx Xxxxxx Diniz preleciona: “O art. 421.º institui a função social do contrato, revitalizando-o, para atender aos interesses sociais, limitando o arbítrio dos contratantes, para tutelá-los no seio da coletividade, criando condições para o equilíbrio econômico-contratual, facilitando o reajuste das prestações e até mesma sua resolução”82.
Apesar da redação do mencionado dispositivo referir-se à “liberdade de contratar” (liberdade de optar por contratar ou não), é evidente que o princípio da função social atua como
81 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx – Código civil anotado e legislação extravagante: atualizado até 2 de maio de 2003.p. 336.
82 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx – Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. p. 37.
limitador à “liberdade contratual”, isto é, à liberdade das partes de disporem livremente sobre o conteúdo do contrato. Ademais, a função social funciona como limitadora da liberdade contratual, mas não como sua razão de ser (a expressão “em razão de”, prevista no referido dispositivo legal, deveria ser suprimida)83.
O princípio da função social atua como limitador do princípio da autonomia da vontade, quando esta última estiver em conflito com o interesse social, tendo como escopo fazer subordinar a vontade das partes à ordem pública. Não há dúvidas, pois, de que esse princípio representa efetiva mitigação da visão clássica de que os contratantes tudo podem fazer.
É por conta desse princípio que terceiros alheios à relação contratual singular e individual das partes podem nela influenciar, quando são por ela direta ou indiretamente atingidos84.
De acordo com Xxxxxx de Xxxxx, o contrato cumpre sua função social quando fizer respeitar sua função econômica, que é a de promover a circulação de riquezas, jamais desprezando-se o elemento lucro. Assim, sempre que o contrato inibir o movimento natural do “comércio jurídico”, estará causando prejuízo à coletividade e descumprindo, assim, sua função social85.
Por fim, o princípio da função social dos contratos não se restringe a atuar como limitador da liberdade contratual das partes, como observa Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, mas deve ser considerado, igualmente, na interpretação, integração, e concretização das disposições contratuais pactuadas86.
1.2.5. Boa-fé
A evolução da teoria dos contratos, como visto, mitigou a visão do sistema jurídico antigo, que privilegiava, unicamente, a vontade das partes (princípio da autonomia da vontade) e da obrigatoriedade dos contratos. Com a introdução do princípio da boa-fé (e de outros conceitos jurídicos, como o da função social do contrato, da onerosidade excessiva etc.), o sistema jurídico deixou sua visão puramente individualista e passou a considerar, nas relações contratuais, princípios como o da eticidade, socialidade e operabilidade87.
83 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 29.
84 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit.. p. 13/14.
85 ASSIS, Araken de – Comentários ao código civil brasileiro: Do direito das obrigações. p. 85/86.
86 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx – O Direito Privado como um “Sistema em Construção”: As Cláusulas Gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista de informação legislativa. p. 5-22.
87 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 54.
O conceito de boa-fé possui dois sentidos: o da boa-fé objetiva e o da boa-fé subjetiva. O primeiro é visto como uma cláusula geral, uma norma de conduta, base orientadora e fundamento para solução dos conflitos de interesses. Já a boa-fé subjetiva, é tida como uma consciência de se adotar um comportamento de acordo com o direito e exigências éticas88.
“Neste último caso”, segundo Xxxxxxx Xxxxx, “a boa-fé reconduz-se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação. Algo de diverso sucede com o ditame da boa-fé, ele próprio uma regra jurídica que, inclusive, assume o alcance de princípio geral de direito”89.
Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, “o princípio da boa-fé se biparte em boa-fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé, e boa-fé objetiva, também denominada concepção ética da boa-fé”90.
De acordo com Xxxxxx Xxxxxxx, a boa-fé subjetiva está relacionada ao estado de consciência da pessoa, ao convencimento individual da parte. Em outras palavras, para sua aplicação deve-se considerar a intenção, o estado psicológico, a convicção da parte91.
Ainda segundo a autora, a boa-fé subjetiva refere-se a um estado de ignorância. É o caso, por exemplo, do casamento putativo; credor putativo; dentre outros.
O princípio da boa-fé objetiva, por sua vez, no âmbito dos contratos, pode ser compreendido como o dever das partes de agirem com honestidade e de cumprirem, de maneira criteriosa, todos os seus deveres assumidos, em decorrência da relação contratual entabulada. Esse dever surge já no momento das tratativas, avançando durante a formação e cumprimento do contrato92.
Trata-se de uma cláusula geral, que impõe aos contratantes um padrão de conduta pautado na probidade, retidão, honestidade, lealdade, obviamente, de acordo com os usos e padrões de cada localidade. Assim, nos litígios que envolvam a análise e interpretação dos contratos, o Estado-Juiz deve ter, como regra, a presunção da boa-fé das partes, ao invés da má- fé93.
Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxxxx, “Ontologicamente, a boa-fé objetiva distancia-se da noção subjetiva, pois consiste num dever de conduta contratual ativo, e não de um estado
88 XXXX, Xxxxx do relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número 2841/03.8TCSNT.L1.S1, de 17 de maio de 2012 [Em linha]. [Consult. 14 abr. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/00000000xxx0000x00000x0x0000000x
89 XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx – Direito das obrigações. p. 120.
90 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 56/57.
91 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx – A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. p. 411.
92 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 54/55.
93 Idem – Op. Cit.. p. 54.
psicológico experimentado pela pessoa co contratante; obriga a um certo comportamento, ao invés de outro; obriga à colaboração, não se satisfazendo com a mera abstenção, tampouco se limitando à função de justificar o gozo de benefícios que, em princípio, não se destinariam àquela pessoa. No âmbito contratual, portanto, o princípio da boa-fé impõe um padrão de conduta a ambos os contratantes no sentido da recíproca cooperação, com consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a existência jurídica do contrato celebrado”94.
Não há, pois, como se catalogar todas as hipóteses em que a boa-fé pode ser configurada, simplesmente porque esta se reveste de variadas formas, de acordo com as circunstâncias de cada caso. É justamente essa flexibilidade e imprecisão que garante a sua correta aplicação, na medida em que é dado ao julgador ou ao intérprete do contrato, a possibilidade de buscar o verdadeiro sentido e alcance do que restou estabelecido entre as partes95.
A boa-fé é um dos princípios que devem nortear o comportamento das partes em quaisquer contratos, seja na fase de celebração, seja na sua fase de execução, deve ser considerado, como maneira de se garantir a estabilidade e a tranquilidade sociais.
Nessa linha, Xxxxxxx Xxxxx preleciona que “Para traduzir o interesse social de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa-fé”96.
Boa fé objetiva significa, portanto, uma atuação refletida, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes97.
Assim, tem-se que, de acordo com o princípio da boa-fé, a relação obrigacional não se resume ao mero cumprimento da prestação e contraprestação devidas por credor e devedor, mas reflete elementos jurídicos autônomos que tornam a relação jurídica complexa. É nessa chamada relação intra-obrigacional complexa que se encontram os deveres acessórios da parte
94 XXXXXXXXX, Xxxxxx XXXXXXXXX, Xxxxxx – Op. Cit. p.122/123.
95 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx – A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. p. 412-413.
96 XXXXX, Xxxxxxx – Contratos. p. 42.
97 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx – Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. p. 107.
de agir de boa-fé98, de modo a não ensejar danos ao credor e tampouco implicar sacrifícios exagerados ao devedor.
A boa-fé emana uma série de deveres, chamados de acessórios ou secundários, dentre os quais o dever social de agir com lealdade, lisura, correção, esclarecimento, colaboração, em cada umas das diferentes situações jurídicas que venham a se apresentar ou em cada um dos atos jurídicos que a parte venha a praticar, conforme o caso99. Trata-se, pois, de uma cláusula geral que permite a análise, compreensão, interpretação e integração do vínculo contratual estabelecido entre as partes100.
De acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxx, o dever de esclarecimento impõe às partes a obrigação de informar umas às outras acerca de questões relacionadas ao ajuste contratual, de fatos que venham a ocorrer que possuam relação com o mesmo, assim como dos efeitos que possam ser causados, quando do cumprimento do contrato101.
O dever de lealdade, por sua vez, impõe às partes a obrigação de não praticar atos que subvertam a finalidade do negócio ou equilíbrio estabelecido entre as partes, na relação contratual, de modo a colocar uma das partes em posição de inferioridade, debilidade ou em situação de ignorância do alcance do contrato a ser entabulado102.
O dever de cooperação, de outro lado, representa o comportamento de se assumir uma posição de colaboração com a outra parte, ou seja, objetiva-se o interesse comum, ao invés da visão meramente individualista103.
Nas lições de Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, a boa-fé, classicamente, possui três funções, quais sejam, a interpretativa-integrativa; a limitadora; e a criadora de deveres. Em outras palavras, é por meio da boa-fé que a relação contratual deve ser interpretada, de modo a se alcançar a verdadeira vontade das partes; se verificar se não há, por qualquer abuso por qualquer uma das partes; assim como serão identificados os deveres implícitos, além das obrigações principais ou acessórias do contrato104.
Na legislação portuguesa, exige-se das partes a adoção de um comportamento pautado na boa-fé objetiva antes mesmo da efetiva assinatura do contrato, já no momento das
98 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e – Da Boa Fé no Direito Civil. p. 586 e ss.
99 XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx de; XXXXXX, Antunes – Código Civil Anotado. p.4-5.
100 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx – O dever de cooperação nas relações contratuais.
Revista dos Tribunais. p. 6.
101 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e – Op. Cit. p. 605.
102 XXXXXXXXXX, Xxxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número 03B573, 12 de junho de 2003 [Em linha]. [Consult. 17 mar. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/0/0000xxx0000000x000000xx0000xxx0x?XxxxXxxxxxxx
103 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx – O dever de cooperação nas relações contratuais.
Op. Cit. p. 3.
104 Ibidem.
negociações preliminares (art. 227.º do CC português); estendendo-se pela integração do contrato (art. 239.º do CC português); e culminando com o cumprimento das obrigações dele decorrentes (art. 762.º, n.º 2 do CC português)105. Cabe, assim, à ambas as partes procederem de boa-fé no âmbito da relação pré-contratual, contratual e pós-contratual.
No direito brasileiro, o Código Comercial de 1850, notadamente em seu art. 131.º, previa o princípio da boa-fé, mas como simples norma de interpretação dos contratos, nos seguintes termos: “sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.
O Código Civil brasileiro de 1916, que manteve uma diretriz liberal, de menor intervenção estatal e soberania da vontade das partes, não fazia referência expressa ao princípio da boa-fé objetiva, mas apenas à boa-fé subjetiva106. Assim, é que previa tal instituto no art. 221.º107, ao dispor sobre o casamento putativo; nos arts. 490.º e 491.º108 ao prever a posse de boa-fé; no art. 510109, ao dispor sobre os efeitos da posse; nos arts. 550.º e 551.º110, ao abordar sobre a usucapião; no art. 935111 ao se referir ao credor putativo; e no art. 1600112, ao falar sobre o herdeiro aparente.
105 XXXX, Xxxxx do relat. – Acórdão da 7ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 2841/03.8TCSNT.L1.S1, 17 de maio de 2012 [Em linha]. [Consult. 19 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/00000000xxx0000x00000x0x0000000x
106 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 55.
107 Art. 221. “Embora annullavel, ou mesmo nullo se contrahido de bôa fé por ambos os conjuges, o casamento, em relação a estes aos filhos, produz todos os effeitos civis até ao dia da sentença annullatoria”.
108 Art. 490. “É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede da aquisição da coisa, ou do direito possuído”.
Art. 491. “A posse de boa fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.
109 Art. 510. “O possuidor de boa fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos”.
110 Art. 550. “Aquele que, por trinta anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu imóvel, adquirir-lhe- á o domínio, independentemente de título de boa fé, que, em tal caso, se presumem; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para a inscrição no registro de imóveis”.
Art. 551. “Adquire também o domínio do imóvel aquele quem, por dez anos entre presentes, ou vinte entre ausentes, o possuir como seu, continua e incontestadamente, com justo título e boa fé”.
111 Art. 935. “O pagamento feito de boa fé ao credor putativo é válido, ainda provando-se depois que não era credor”.
112 Art. 1.600. “ São válidas as alienações de bens hereditários, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro excluído; mas aos co-herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito a demandar-lhe perdas e danos”.
A boa-fé objetiva foi introduzida no Código de Defesa do Consumidor de 1990, em seu art. 4.º, III113, como um princípio orientador das relações de consumo, e no art. 51.º, IV114, ao se tratar das cláusulas abusivas.
Em 2002, o Novo Código Civil brasileiro, passou a prever as três funções da boa-fé objetiva, de maneira expressa, em seus arts 113.º, 187.º e 422.º 115, ao dispor, respectivamente, que “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”; “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”; e “ Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
Como se vê, o art. 113.º do citado diploma legal prevê o caráter interpretativo- integrativo da boa-fé, ao dispor que, no momento da interpretação dos negócios jurídicos, e, em última instância, da expressão da vontade das partes, sejam considerados “a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Já o art. 187.º versa sobre o caráter limitador do princípio da boa-fé, com a previsão de limites identificadores de condutas eivadas de abuso de direito. Por fim, o art. 422.º exalta a função criadora de deveres, os mencionados deveres anexos ou acessórios à relação contratual.
Note-se, que, apesar do citado art. 422.º fazer menção à expressão “probidade”, não se está a falar de um novo conceito, mas simplesmente de reforçar a necessidade de respeito ao princípio da boa-fé objetiva, no sentido de se manter uma postura de honestidade e uma conduta criteriosa116.
Nesse sentido, é a lição de Xxxxxxxx Xxxxxxxxx:
113 Art. 4º “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”;
114 Art. 51. “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”;
115 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx – O dever de cooperação nas relações contratuais.
Op. Cit.. p. 4.
116 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 55.
Sob o ponto de vista dogmático, tem-se, por toda parte, atribuído à boa-fé objetiva uma tríplice função no sistema jurídico, a saber: (i) a função de cânone interpretativo dos negócios jurídicos; (ii) a função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal ; e (iii) a função restritiva do exercício de direitos.
Na primeira função, alude-se à boa-fé como critério hermenêutico, exigindo que a interpretação das cláusulas contratuais privilegie sempre o sentido mais conforme à lealdade e á honestidade entre as partes. A boa-fé impede, aí, por certo, interpretações maliciosas e dirigidas a prejudicar a contraparte, mas vai além, atribuindo à norma contratual o significado mais leal e honesto.
(...)
No que tange à segunda função, a boa-fé exerce o papel de fonte criadora de deveres anexos à prestação principal. Assim, impõe às partes deveres outros que não aqueles previstos no contrato, como o dever de colaboração para integral cumprimento dos fins contratuais, e assim por diante. Na verdade, os deveres anexos – também chamados acessórios, instrumentais, ou tutelares – variam de acordo com cada relação jurídica concreta da qual decorram, e a precisa identificação do seu conteúdo é, em abstrato, inviável. Isto não apenas os mantém a salvo de qualquer tipificação, mas também conserva o caráter aberto da cláusula geral de boa-fé objetiva.
(...)
A terceira função geralmente atribuída à boa-fé objetiva é a de impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança que deve imperar nas relações privadas. Trata-se de uma aplicação de boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo: vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conformem ao standards impostos pela cláusula geral. Aqui, a doutrina utiliza freqüentemente a expressão exercício inadmissível de direitos, referindo-se ao exercício aparentemente lícito, mas vedado por contrariar a boa-fé (p. 86-91)117.
De acordo com a doutrina especializada, o art. 422.º do Código Civil brasileiro de 2002 consiste em uma norma aberta, que acolhe o princípio ético de que as partes devem agir de acordo com a lealdade, confiança e probidade e, portanto, autoriza ao Estado-Juiz, na análise do caso concreto e considerando os usos e costumes do local, estabelecer qual deveria ter sido a conduta das partes naquela determinada situação118.
117 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx – A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. p. 86-91.
118 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 57/58.
É dessa maneira, portanto, que, após promover a análise individualista do caso, o Estado-Juiz pode determinar, de acordo com cláusula geral da boa-fé, se a conduta das partes se revestiu de legalidade ou não119.
Assim, ainda que o art. 422.º do CC brasileiro tenha se limitado a se referir às fases de conclusão e execução do contrato, é evidente que estão incluídas as tratativas preliminares, assim como as obrigações derivadas do contrato já executado120.
Nesse cenário, a simples aproximação pré-contratual das partes já exige delas um comportamento pautado na lealdade. Nas palavras de Xxx Xxxxxx, “a censura feita a quem abandona inesperadamente as negociações já em adiantado estágio, depois de criar na outra parte a expectativa da celebração de um contrato para o qual se preparou e efetuou despesas, ou em função do qual perdeu outras oportunidades. A violação a esse dever secundário pode ensejar indenização” 121.
Ainda no âmbito da função limitadora do princípio da boa-fé, encontram-se inseridas as hipóteses de venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque.
A proibição inserta no princípio do venire contra factum proprium traduz-se na vedação de que a parte venha a adotar conduta incoerente ou contraditória com seus atos praticados anteriormente. Trata-se de proteção de uma das partes frente ao comportamento que a outra pretende adotar, manifestamente contraditório ao ato anteriormente praticado por ela própria122. Isso porque, ao praticar determinado ato, a parte gera perante a outra parte uma legítima expectativa. A adoção do comportamento contraditório provoca surpresa e prejuízo à outra
parte, representando evidente violação aos princípios da lealdade e da confiança123.
Nesse sentido, a IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal brasileiro aprovou o enunciado 362.º, segundo o qual “a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187.º e 422.º do Código Civil”.
De acordo com as lições de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx: “Um dos grandes efeitos da teoria da boa-fé, no campo dos contratos, traduz-se na vedação de que a parte venha a observar
119 Ibidem.
120 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de – Extinção dos contratos por incumprimento do dever. p. 250.
121 Ibidem.
122 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 60.
123 Ibidem.
conduta incoerente com seus próprios atos anteriores. A ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes, e a boa-fé, ou quando o exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a boa-fé”124.
Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal consigna que são quatros os pressupostos necessários à configuração da proibição do venire:
Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente125.
Ou seja, de acordo com o princípio do venire, é vedado a uma pessoa exigir de outra um comportamento que ela mesma não teve. A incoerência das atitudes revela o comportamento contraditório e desleal, que deve ser coibido pela ordem jurídica. Nas palavras do juiz Xxxxxxx Xxxxxxxx, em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, “no venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado”126.
Assim, por exemplo, se a realidade do histórico da relação contratual locatícia havida entre as partes aponta para o absoluto silêncio da parte credora quanto ao pagamento dos reajustes anuais, isto é, se ao longo dos anos da relação locatícia, o locador veio recebendo as verbas locatícias, mês a mês, sem qualquer ressalva, ainda que sem o valor correspondente ao reajuste anual, essa postura conduz à legítima expectativa do locatário de aceitação e quitação
124 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx – O contrato e seus princípios. p. 87.
125 CAMEIRA, Nuno relat. – Acórdão da 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, 12 de novembro de 2013 [Em linha]. [Consult. 10 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/00000x000x00xx0000000x00000x000x?XxxxX ocument
126 XXXXXXXX, Xxxxxxx relat. – Acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 3220/07.3TBGDM-B.P1.S1, 25 de novembro de 2014 [Em linha]. [Consult. 10 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/-/X0XXXX00000X000000000X0X000XX0XX
desses valores. Daí porque o locador não pode surpreender o locatário, repentinamente com a cobrança da diferença correspondente aos reajustes anuais não pagos.
A proibição do comportamento contraditório, representa, portanto, a coerência das atitudes e condutas dos contratantes ao longo da relação. Assim, “mediante a invocação da boa- fé pode considerar-se inadmissível o exercício de um direito por existir uma ‘conduta contraditória’, quando o exercício do direito é contraditório com o anterior comportamento do interessado (o chamado ‘venire contra factum proprium’) e a outra parte se adaptou ao sentido desse comportamento anterior”127.
Supressio, surrectio e tu quoque
O instituto da supressio caminha lado a lado com o do venire contra factum proprium, ambos enquanto emanações do princípio da boa-fé objetiva. De acordo com as lições de Xxxxxxx Xxxxxxxx: “Diz-se suppressio a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé (...) Mais sucesso teve, por isso, a recondução da suppressio à proibição de venire contra factum proprium: o titular do direito abstendo-se do exercício durante um certo lapso de tempo, criaria, na contraparte, a representação de que esse direito não mais seria actuado; quando, supervenientemente, viesse agir, entraria em contradição.”128
Ainda em relação ao exemplo citado acima, do pagamento dos alugueis sem os reajustes anuais, se de um lado, em razão da vedação do comportamento contraditório, o locador não pode cobrar, posteriormente, os reajustes anuais do locatário, de acordo com a suppressio, essa situação de não oposição aos pagamentos mensalmente efetuados pelo locatário sem os reajustes anuais, conduz à perda desse direito pelo locador. Ou seja, “um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá sê-lo, por contrariar a boa-fé”129.
De outro lado, a surrectio consubstancia uma fonte de criação de direito subjetivo, em razão da prática continuada de determinados atos. É o caso, por exemplo, da promoção da distribuição de lucros em uma sociedade, em desacordo com as disposições constantes no seu respectivo contrato social. Essa situação pode gerar um direito das partes de continuar recebendo a distribuição de lucros na proporção tal qual vinha sendo feita130.
127 XXXXXX, Xxxx – Derecho justo: fundamentos de etica jurídica. p. 97.
128 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 797 e 808/809.
129 Idem – Op. Cit.. p. 797.
130 Idem – Op. Cit.. p. 797 e 808/809.
Nas palavras do já citado juiz Xxxxxxx Xxxxxxxx, em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, na suppressio “o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício”, já na surrectio “a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria”131.
Por fim, o princípio do tu quoque estabelece que uma das partes que eventualmente tenha descumprido determinada norma jurídica não pode exigir da outra o seu cumprimento. Assim, por exemplo, o condômino que instala na fachada do edifício, condensadora de ar condicionado, violando norma do condomínio, não pode exigir do outro condômino comportamento diverso132.
Nesse sentido, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o tu quoque “traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências resultantes dessa violação”133.
O princípio tu quoque possui íntima relação com o princípio da exceção do contrato não cumprido, expresso no brocardo jurídico da exceptio non adimpleti contractus. Passemos, então, à sua análise.
CAPÍTULO II:
2. Exceção do contrato não cumprido
2.1. Evolução histórica
O Direito Romano não desenvolveu uma teoria sistemática sobre o princípio da exceção do contrato não cumprido, sem sombra de dúvidas, em razão do forte apego ao formalismo e abstração dos contratos. Como visto anteriormente, no tópico 1.1 acima, os únicos tipos de contratos admitidos no Direito Romano eram caracterizados pela solenidade e abstração. Ou seja, uma vez observados os requisitos formais necessários – formas solenes e rituais –, o
131 XXXXXXXX, Xxxxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número
3220/07.3TBGDM-B.P1.S1, de 25 de novembro de 2014 [Em linha]. [Consult. 14 jan. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/-/X0XXXX00000X000000000X0X000XX0XX.
132 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 62.
133 XXXXXXXX, Xxxxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número
3220/07.3TBGDM-B.P1.S1, de 25 de novembro de 2014 [Em linha]. [Consult. 14 jan. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/-/X0XXXX00000X000000000X0X000XX0XX.
contrato era válido e as obrigações surgiam. De outro lado, sem a observância dessas formalidades necessárias, inexistia contrato, tampouco obrigação juridicamente válida134.
Não se buscava, assim, identificar a justa causa que ensejou o surgimento das obrigações entre as partes, para que, a partir dela, se pudesse exonerar o devedor do seu cumprimento. Analisava-se, tão somente, a mera ocorrência da formalidade, como criadora das obrigações entre as partes135. O princípio que vigorava à época, era da independência e autonomia das obrigações, que, repita-se, não poderiam estar ligadas por um nexo de interdependência recíproca136.
O formalismo, portanto, consubstanciava condição única, necessária para a validade de qualquer ato jurídico. Os contratos admitidos demandavam a solenidade e abstração. E nada mais. Verificada a presença do requisito da formalidade, a obrigação era juridicamente válida e o contrato nascia, não sendo necessária a observância de qualquer outro requisito, como, por exemplo, a intenção das partes ou mesmo o fato que levou as partes a celebrarem o ato jurídico (princípio da abstração) 137.
Pode-se afirmar, então, que o contrato era abstrato, na medida em que não possuía qualquer relação com o fato que levou as partes a contratarem. A ideia de interdependência das obrigações era inexistente naquele sistema138.
A evolução do Direito Romano, trouxe, sem, contudo, desenvolver qualquer teoria sobre o tema, uma ideia próxima ao que, posteriormente, veio ser conhecido como o princípio geral da interdependência das obrigações sinalagmáticas, por meio dos contratos reais e sinalagmáticos139.
Os contratos reais eram definidos pela entrega prévia da coisa, fazendo surgir, assim, a obrigação do devedor. Já os contratos sinalagmáticos (em noção que em nada se relaciona ao conceito atual de sinalagmático), designavam os contratos que geravam obrigações para ambas as partes. Essa reciprocidade de obrigações – que surgia apenas na criação da obrigação – não significava, todavia, interdependência entre elas140.
Era o caso, por exemplo, do contrato de compra e venda, em que as obrigações do vendedor e do comprador não poderiam surgir uma sem a outra. Em nenhum momento, todavia,
134 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit.. p. 14-15
135 XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Contratos Coligados. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. p. 113.
136 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit.. pág. 13.
137 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit.. pág. 13-15.
138 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit.. p. 15
139 Ibidem.
140 Idem – Op. Cit.. p. 13.
essa ideia de interdependência das obrigações era concebida na fase do cumprimento do contrato141.
No século II, por sua vez, de acordo com Xxxx Xxxxxxxx, é possível encontrar textos que consagravam o princípio da execução simultânea das obrigações contratuais. Assim, a entrega da coisa não podia ser exigida enquanto o preço não fosse pago, ou seja, o direito do vendedor era de retenção da coisa até o pagamento do preço. Já o direito do comprador residia na exceção de dolo (exceptio mercis non traditae ou exceptio doli), aplicável, por exemplo, no caso de um vendedor que envenenava um escravo antes da entrega ao comprador.
Importante notar, todavia, que essas “exceções” eram vistas como existentes por motivos de equidade e não em decorrência da ideia de conexão entre as obrigações142.
Ainda segundo o autor, é possível dizer que o direito romano clássico, de certa maneira, “pressentiu o meio de defesa que, alguns séculos mais tarde, viria a ser conhecido por exception non adimpleti contractus”, apesar de jamais ter elaborado uma teoria geral143.
Foram os pós-glosadores, todavia, que construíram a teoria geral da exceção do contrato não cumprido. Posteriormente, os juristas do Direito Canônico aperfeiçoando o instituto, desenvolveram a teoria de que, qualquer pessoa que assumisse um compromisso, empenhando sua palavra, deveria se manter fiel e cumprir o ajustado, sob pena de ver não cumprida a contraprestação contratada – interdependência das obrigações sinalagmáticas144. No período seguinte ao Direito Canônico, Xxxxxxx cria a teoria geral do instituto da exceção145.
O Direito Espanhol primitivo, a partir do século XIII, continha previsão de aplicação da teoria geral da exceção do contrato não cumprido no âmbito nos contratos bilaterais e especificamente no contrato de compra e venda146.
No século XV, era possível observar os principais traços da teoria da exceção do contrato não cumprido, com fundamento na equidade e justiça comutativa. Sua aplicação por parte da jurisprudência era ampla147.
No direito francês, todavia, a partir do século XVI até o século XVIII, percebe-se um desaparecimento do instituto da exceção do contrato não cumprido da doutrina e jurisprudência,
141 Idem – Op. Cit.. p. 16.
142 Idem – Op. Cit.. p. 16-17.
143 Idem – Op. Cit.. p. 17.
144 Idem – Op. Cit.. p. 19.
145 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Exceções substanciais: exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus). p. 147.
146 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 28.
147 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 20.
em razão da teoria da resolução do contrato não cumprido, também elaborada pelo Direito Canônico e confirmada por Bártolo148.
Em razão das necessidades econômicas da época essa última teoria ganha predominância na França, fazendo a primeira cair em esquecimento, como uma figura autônoma. A exceção, portanto, passou a ficar restrita a casos específicos, previstos em leis. O Código Napoleônico, assim, ignorou o instituto, limitando-se a reproduzir as soluções anteriormente dadas no direito romano, por exemplo, no caso de compra e venda149.
Posteriormente, Xxxxxx – um marco para o Direito Francês – desenvolve a teoria da exceção de inexecução, nos seguintes termos: “um meio de defesa baseado na boa fé facultando a quem quer que se encontre obrigado por virtude de uma relação sinalagmática sem que esteja vinculado a cumprir em primeiro lugar, e que consiste na recusa da prestação devida até a contraparte cumprir, por seu turno, a contraprestação que sobre ela recai”150.
De acordo com o autor, a exceção do contrato tem o fim de preservar o equilíbrio criado pelas partes no momento da assinatura do contrato. E se distingue do direito de retenção porque este último tem uma relação de conexão material entre a coisa retida e o crédito do retentor, enquanto a primeira decorre de uma relação de conexão jurídica entre as duas obrigações. Ou seja, sempre que houver o nascimento de duas obrigações de uma mesma relação jurídica, haverá espaço para a exceção151.
Nesse momento histórico, o direito francês passa a admitir a aplicação da teoria da exceção do contrato não cumprido em todas as relações que geravam obrigações recíprocas, oriundas de uma mesma fonte.
Já o Código Italiano de 1865 apenas previa a aplicação concreta do princípio da exceção do contrato não cumprido, no âmbito do contrato de compra e venda152.
O primeiro Código Civil português também não previa, de forma expressa, a exceção do contrato não cumprido como regra geral, limitando-se a prever o instituto no caso específico do contrato de compra e venda, em seu art. 1574. Não obstante, apesar do silêncio da lei, tal instituto era amplamente admitido pela doutrina e jurisprudência153.
148 Ibidem.
149 Idem – Op. Cit. p. 20-22.
150 Idem – Op. Cit. p. 23.
151 Idem – Op. Cit. p. 23-24.
152 Idem – Op. Cit. p. 26.
153 Ibidem.
No Direito Alemão, a partir do século XVI, a regra da exceção do contrato não cumprido era aplicável em todos os contratos sinalagmáticos, tendo sido consagrada pelo Código Civil alemão de 1900154.
Atualmente, os Códigos Latinos consagram expressamente o princípio da exceção do contrato não cumprido. É o caso, por exemplo, do Código Civil português (art. 428.º e seguintes) e, em se tratando de contratos administrativos, o Código dos Contratos Públicos português (art. 327.º); Código Civil italiano (arts. 1460.º e seguintes)155 e Código Civil brasileiro (art. 476).
2.2. Conceito
A exceção do contrato não cumprido é a faculdade que cada uma das partes detém, nos contratos bilaterais (sinalagmáticos), de recusar o cumprimento da sua prestação enquanto a contraprestação devida não for cumprida pela outra parte ou esta não oferecer o cumprimento simultâneo da contraprestação156. Em outras palavras, nenhuma das partes pode exigir o cumprimento da prestação sem que, antes, tenha cumprido a parte que lhe cabia.
“Nos contratos bilaterais”, segundo as lições de Xxxx Xxxxx, “as obrigações das partes são recíprocas e interdependentes: cada um dos contratantes é simultaneamente credor e devedor um do outro, uma vez que as respectivas obrigações têm por causa as do seu cocontratante, e, assim, a existência de uma é subordinada à da outra parte”157. Inexistindo o cumprimento da prestação por uma das partes, pode a outra invocar a seu favor a exceptio.
A exceção do contrato não cumprido constitui, portanto, um meio de defesa indireta contra a pretensão da outra parte. O seu objetivo não é a resolução do contrato e isenção do excipiente do dever de cumprir a prestação que lhe cabia, mas apenas o direito de recusar a prestação que lhe cabe (momentaneamente), todo o tempo em que a outra parte não cumprir a sua parte158.
Verifica-se, assim, a dupla função exercida pela exceção do contrato não cumprido: (i) de garantia, na medida em que protege o excipiente do devedor insolvente; (ii) coercitiva, pois funciona como forma de pressão e de coerção, para que o devedor cumpra com sua parte159.
154 Idem – Op. Cit. p. 27. 155 Idem – Op. Cit. p. 31. 156 Idem – Op. Cit. p. 35.
157 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 67.
158 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx – O contrato e seus princípios. p. 88.
159 XXXXX, Xxxx Xxxxxx da – Cumprimento e sanção pecuniária compulsória. p. 337/338.
A exceptio é, portanto, o direito que confere à parte a possibilidade de recusar a exigibilidade da sua prestação, em face do excepto não haver adimplido a parte que lhe cabia. Como se vê, em momento algum se debate o mérito do direito arguido, tampouco a existência das respectivas obrigações contraídas por cada uma das partes envolvidas. Mas, como dito, contesta-se a sua exigibilidade160.
Já no Direito português, o instituto da exceção do contrato não cumprido encontra previsão no art. 428.º e seguintes do Código Civil, nos seguintes termos: “Art. 428. n. 1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”. Observe-se, ainda, que, em se tratando de contratos administrativos, será aplicável o art. 327.º do Código dos Contratos Públicos.
No Direito brasileiro, referida regra encontra previsão no art. 476.º do Código Civil, que assim dispõe: “Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
A recusa do excipiente em cumprir a prestação que lhe cabia, por meio da oposição da exceptio, exige a existência de determinados requisitos, para que seja considerada regular e lícita. Vejamos, a seguir, esses pressupostos de admissibilidade.
2.3. Pressupostos
2.3.1. Existência de um vínculo contratual sinalagmático
A exceção do contrato não cumprido é oponível, apenas, no âmbito dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, ou seja, no âmbito das relações contratuais em que ambas as partes possuam obrigações recíprocas e interdependentes.
Nas palavras de Xxxx Xxxxxxxx, a configuração desse sinalagmatismo, necessário à oposição da exceção, se assenta na ideia de “interdependência entre obrigações que deles reciprocamente emergem para ambas as partes”161.
A exceptio, portanto, tem espaço naquelas relações em que há um vínculo de interdependência entre duas prestações, em que cada uma dessas prestações é contrapartida da outra; em que uma não nasce sem a outra e uma não se extingue sem a outra. É preciso, assim que haja uma prestação de um lado e, de outro, a sua respectiva contraprestação.
160 XXXXXXXXX, Xxxxxx – Direito civil. p. 83-85.
161 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 35.
Assim, por exemplo, se “A” contrata a empresa “B” para execução de uma obra, por um contrato de empreitada, e “B”, por sua vez, em dado momento, deixa de executar os serviços para os quais fora contratado, “A” poderá invocar a seu favor a exceptio, e deixar de pagar o preço correspondente ao período de inexecução, até que a prestação devida por “B” seja cumprida.
O mesmo ocorre nos contratos de compra e venda: o comprador pode se recusar ao pagamento do preço todo o tempo em que o imóvel não lhe for entregue nas condições em que prometido.
Tem-se, assim, que a exceptio é restrita aos contratos bilaterais (p. ex., contrato de locação, de empreitada, de compra e venda etc.), os quais geram obrigações para ambas as partes. Mas, não apenas isso, essas obrigações são interdependentes, possuem um vínculo de união, denominado sinalagma. É justamente essa correspectividade das obrigações que constitui o traço marcante desses contratos162.
Nos contratos bilaterais sinalagmáticos, sempre haverá uma prestação acompanhada da sua respectiva contraprestação. Assim, no caso de uma empreitada, a execução da obra é a prestação que enseja (a causa ou motivo determinante) da obrigação de pagar o preço.
Conforme assinala Xxxxxxx Xxxxxx, a exceção do contrato não cumprido, para que seja aplicável, exige não apenas a existência de obrigações para ambas as partes, mas a relação de interdependência e reciprocidade entre elas163.
Nesse sentido, a jurisprudência portuguesa é firme na afirmação de que, não havendo sinalagmatismo, não há como se invocar a exceptio. Confira-se: “A excepção de não cumprimento do contrato só opera relativamente às obrigações sinalagmáticas, e não pode invocar-se relativamente a quaisquer outras obrigações, ainda que dimanem do mesmo contrato e sejam de oposta polaridade”164.
Nesse aspecto, importa observar que o sinalagmatismo não necessariamente demanda uma equivalência real das prestações. Isto é, não é necessária a existência de um contrato bilateral, cujas prestações sejam recíprocas e equivalentes, com absoluta igualdade de valor real. É suficiente, apenas, que cada um dos contratantes veja, no momento da assinatura do contrato, equivalência dessas prestações165.
162 XXXXXX, Xxxx xx Xxxxx Xxxxxxx – Das Obrigações em Geral. p. 406.
163 XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx; XXXXXX, Xxxxxxx – Op. Cit. p. 406.
164 XXXXXXX, Xxxxxx relat. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com número
509/07.5TBCBR-B.C1, de 26 de maio de 2009 [Em linha]. [Consult. 25 jan. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/x0xx000000xx0x00000000x0000xx0xx/0xx0000000x0x000000000xx000xx0xx?Xxxx Document.
165 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 36-37.
Nas palavras de Xxxxxxxxxx, “não é necessário que (a contra-prestação) seja um equivalente, basta que tenha sido prometida como equivalente, ou seja, que deva ser isso segundo a intenção declarada pelas partes”166.
Portanto, nos exemplos acima, pouco importa se o custo para execução da obra era superior ou inferior ao que outra empresa cobraria do excipiente, ou se o preço estipulado pela venda do imóvel estava acima ou abaixo do valor médio do mercado. Uma vez que as partes, e desde que estavam cientes das condições no momento em que contrataram, ajustaram a correspondência das prestações, o fato é suficiente para configuração do sinalagmatismo e possibilidade de ser invocada a exceptio.
Dito de outra forma: não há necessidade de as prestações serem objetivamente equivalentes, sendo suficiente que as partes reconheçam essa situação, no momento do estabelecimento do vínculo contratual, isso porque impera a regra da livre estipulação contratual (princípio da autonomia da vontade)167.
Vale lembrar que os contratos sinalagmáticos caracterizam-se pela existência de obrigações mútuas entre as partes. Os contratantes são simultaneamente devedores uns dos outros, ou seja, ambos são credores e devedores do outro, ao mesmo tempo, de modo que podem exigir e serem exigidos quanto ao cumprimento de suas respectivas prestações168.
A doutrina identifica dois aspectos do sinalagma, quais sejam, o genético e o funcional. No primeiro caso, a interdependência das prestações é verificada na origem, na raiz, na formação do contrato. Ambas obrigações surgem em decorrência do mesmo fato jurídico e constituem a razão de ser da obrigação contraída pela outra parte, em uma evidente relação de interdependência e reciprocidade das obrigações169.
Assim, se uma das obrigações for declarada nula, nos termos do art. 401.º, n.º 1 do Código Civil português170, isso é, por impossibilidade originária da prestação, a nulidade se estenderá a todo o contato.
No aspecto funcional do sinalagma, a relação de interdependência é verificada no momento do cumprimento das prestações. Ambas as prestações devem ser cumpridas de forma paralela e correspondente. É, “precisamente nesta dependência funcional”, segundo Xxxxxx
166 XXXXXXXXXX, Xxxxxx – Tratado de derecho civil: Derecho de obligaciones. p. 161
167 XXXXXX XXXXXX, Ruy Rosado de – Projeto do código civil: as obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais. p. 18-31.
168 XXXXXXX XXXXXX, Xxxx Xxxxxx de – Xxxxxx e venda, troca ou permuta. p. 63.
169 XXXXXX, Xxxxxxx – Op. Cit. p. 397.
170 Art. 401, n.º 1: “A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico”.
Serpa, “que se permite a recusa de uma prestação tanto que a outra não se mostre disposta a realizar a que lhe incumbe”171.
Ainda na análise do requisito do sinalagma, não se pode deixar de referir-se aos ditos contratos bilaterais imperfeitos. Tratam-se dos contratos que, originalmente somente geram deveres a uma das partes, mas, no decorrer da relação contratual, fazem surgir obrigações a outra parte, sendo estas desvinculadas da relação de reciprocidade típica do sinalagma.
Podemos citar, a título de exemplo, os contratos de comodato e de depósito: originariamente, são constituídas obrigações apenas a uma das partes. Todavia, durante a execução do contrato, podem surgir obrigações a outra parte, como na hipótese do depositário ou comodatário ter incorrido em despesas (em razão do comodato ou do depósito), fazendo surgir ao depositante ou comodante a obrigação de indenizá-lo172.
Essa obrigação de indenização ou reembolso pelas despesas ou prejuízos incorridos em razão do contrato, constitui crédito superveniente e acessório ao contrato. Não há simultaneidade, sinalagmatismo, tampouco qualquer nexo causal entre essas prestações. Como se vê, não há uma prestação a sua respectiva contraprestação. As obrigações de uma das partes são eventuais e surgem de forma acidental ao objeto do contrato, muitas das vezes, inclusive, em razão de fatos posteriores à celebração do negócio173.
Por essa razão é que, essa categoria de contratos não faz parte do universo dos contratos bilaterais, não admitindo, portanto, a oposição da exceptio, repita-se, em razão da ausência do requisito do sinalagmatismo, consistente na correspectividade que liga as obrigações principais do contrato174.
Em suma, “a excepção de não cumprimento é, pois, a faculdade que, nos contratos bilaterais, tem por objectivo sancionar o dever de cumprimento simultâneo das obrigações compreendidas no sinalagma”175. Ausente o sinalagmatismo, inviável a oposição da exceção do contrato não cumprido.
Os contratos plurilaterais são aqueles que possuem mais de duas partes, cada uma delas assumindo a sua obrigação perante todas as demais. Apesar da pluralidade de partes, há uma
171 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 248.
172 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 40.
173 XXXXXX, Xxxxxxx – Op. Cit. p. 317/318.
174 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 41/42.
175 Idem – Op. Cit. p. 48.
convergência de interesses para um objetivo comum. Nesse tipo de contrato, admite-se a oposição da exceptio, desde que observado o vínculo sinalagmático176.
Em outras palavras, o demandado ao adimplemento poderá recusar a sua prestação se a prestação (ou prestações) da outra parte for essencial ao fim objetivado pelo contrato. Não é o que ocorre se a prestação inadimplida for de menor importância, hipótese em que não será possível a oposição da exceptio177.
É o caso, por exemplo, do contrato de sociedade (arts. 980.º e ss. do Código Civil português178). Se um dos sócios descumpre com suas obrigações perante à sociedade, pode, esta, suspender o pagamento dos seus dividendos.
Nesse sentido, vale transcrever as lições de Miguel Serpa179: “Em dadas circunstâncias, desde que o inadimplemento da prestação de uma das partes torne inexeqüível o objetivo comum da sociedade, influindo sobre as prestações das outras partes, desde que se observe a presença de um vínculo sinalagmático, desde que a prestação não cumprida pode ser considerada essencial à obtenção do objetivo comum, quer porque as partes não a consideram exeqüível, de conformidade com o estabelecido no contrato, se nos afigura possível o emprego da exc. n. ad. cont. Cada parte pode recusar-se a adimplir a sua prestação, quando a parte ou as partes que peçam o adimplemento não tenham, de seu lado, cumprido a prestação que lhes incumba”.
Como se vê, mesmo nos contratos plurilaterais é possível a oposição da exceptio. Isso, todavia, sempre quando for possível verificar, além dos demais requisitos, a reciprocidade das prestações.
Cláusula solve et repete
No direito brasileiro, em razão do princípio da autonomia da vontade das partes, admite- se a validade de cláusula contratual solve et repete (pague e depois reclame), que restringe o direito das partes de se utilizarem da exceptio. Em outras palavras, na hipótese de as partes terem ajustado disposição nesse sentido, ainda que uma das partes esteja inadimplente, a outra não poderá recusar a prestação que lhe caiba180.
176 Idem – Op. Cit. p. 50-51.
177 Idem – Op. Cit. p. 99-100.
178 Art. 980º do Código Civil português: “Contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade”.
179 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 262/263.
180 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 190.
Referida cláusula não é muito usual, sendo encontrada em alguns contratos com a Administração Pública, visando a proteção desta última ou em contratos de arrendamento de imóveis residenciais. Nas relações de consumo, notadamente no direito brasileiro, não possui validade, por se tratar de cláusula abusiva que coloca o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51.º do CDC)181.
2.3.2. Simultaneidade das prestações
Além de sinalagmáticas, para que seja possível opor a exceptio, é imprescindível que as prestações sejam executadas simultaneamente, de modo que seja possível que uma parte recuse o cumprimento da sua obrigação enquanto a prestação da outra não for executada. Assim, é preciso que ambas as obrigações tenham alcançado o seu termo de vencimento e, portanto, sejam exigíveis182.
O dever de cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas recai sobre cada uma das partes, em razão da interdependência das prestações, do nexo causal que une as obrigações183.
Segundo as lições de Xxxxxx Xxxxxxxxx, “é mister que as prestações sejam simultâneas, pois, caso contrário, sendo diferente o momento da exigibilidade, não podem as partes invocar tal defesa”184 A atuação das partes, portanto, está condicionada à atuação da outra, nos limites do princípio da simultaneidade.
Nas palavras da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, “Em tese, verificada a reciprocidade e equivalência das prestações, que devem ocorrer simultaneamente – essência dos contratos bilaterais –, e autorizadoras da oposição de exceção de contrato não cumprido, cada um dos contratantes sujeita-se ao cumprimento estrito das cláusulas avençadas, sendo certo que, se uma das partes não cumpre a sua obrigação, na hipótese, – realizar a obra nos termos em que previsto no projeto e contrato respectivos –, pode a outra recusar ao cumprimento da sua, que seria o pagamento das parcelas restantes, sob o fundamento da inexecução do contrato, ou ainda, pela execução defeituosa, também abrangida pela norma prevista no art. 1.092 do CC/16 (correspondência: art. 476 do CC/02)”185.
181 Idem – Op. Cit. p. 191.
182 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 46.
183 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 80.
184 XXXXXXXXX, Xxxxxx – Op. Cit. p. 83/85.
185 XXXXXXXX, Nancy relat. – Acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça com número REsp 706.417/RJ, 13 de fevereiro de 2007 [Em linha]. [Consult. 18 mar. 2019]. Disponível em
Não havendo disposição contrária, as obrigações presumem-se simultâneas e exigíveis a qualquer tempo, nos termos do art. 777.º, n.º 1, do Código Civil português186.
Pode ocorrer, todavia, como prevê o n.º 2 do citado dispositivo187, do vencimento das obrigações serem distintos. Nesses casos, apesar do vínculo de interdependência das prestações, a exceção do contrato não cumprido não pode ser invocada pela parte obrigada a cumprir a prestação em primeiro lugar.
É o caso, por exemplo, do comprador que se obriga a efetuar o pagamento do preço somente após a entrega da coisa pelo vendedor. Por óbvio, este último não pode recursar-se, com base na exceptio, a efetuar a entrega da coisa pelo fato de o preço não ter sido pago, porque este não é exigível. Nesse sentido, o art. 428.º, n.º 1 do Código Civil português, a contrario sensu, dispõe que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
É fato, todavia, que, apesar do contratante obrigado a comprimir em primeiro lugar não poder invocar a seu favor a exceptio, o segundo poderá fazê-lo. Assim, no exemplo anterior, o comprador poderá recursar-se ao pagamento do preço enquanto não tiver sido feita a entrega.
Nessa linha, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é firme: “Tendo havido estipulação de prazos diferentes para o cumprimento das prestações, a limitação constante da parte inicial do art. 428.º, n.º 1, do CC, aplica-se, apenas ao contraente que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar, continuando a ser admissível para o outro o recurso à excepção de não cumprimento, não entrando em mora se não realizar a sua prestação enquanto a sua contraprestação não for realizada”188.
Havendo disposição legal ou contratual que estabeleça qual dos contratantes deverá cumprir em primeiro lugar a prestação devida, inviável que este invoque a exceptio, a seu favor, ao argumento de que a outra parte não satisfez a sua contraprestação.
Acerca da matéria, o Superior Tribunal de Justiça brasileiro também já posicionou o seu entendimento nos seguintes termos, em decisão assim ementada:
xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000000&xxx_xxxxxx ro=200401697885&data=20070312&formato=PDF
186 Art. 777º, n.º 1.: “Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela”.
187 Art. 777º, n.º 1.: “Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal”.
188 XXXXXXX, Granja da relat. – Xxxxxxx da 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 4871/07.1TBBRG.G1.S1, de 22 de janeiro de 2013 [Em linha]. [Consult. 02 abr. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/x0xx000x00x0000x00000xxx000xx00x?XxxxX ocument.
A exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o próprio contrato não determinar a quem cabe primeiro cumprir a obrigação. Estabelecida a sucessividade do adimplemento, o contraente que deve satisfazer a prestação antes do outro não pode recusar-se a cumpri-la sob a conjectura de que este não satisfará a que lhe corre. Já aquele que detém o direito de realizar por último a prestação pode postergá-la enquanto o outro contratante não satisfizer sua própria obrigação. A recusa da parte em cumprir sua obrigação deve guardar proporcionalidade com a inadimplência do outro, não havendo de se cogitar da arguição da exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é parcial e mínimo189.
Como toda regra, existem exceções à simultaneidade. O art. 429.º do Código Civil português190, por exemplo, traz a hipótese da parte obrigada ao cumprimento em primeiro lugar que, pode recursar-se à prestação, nos casos de perda do benefício do prazo.
A perda do benefício do prazo, no direito português, ocorre quando o devedor ficar insolvente ou, por culpa sua, diminuam as garantias do crédito ou não sejam prestadas as garantias prometidas, nos termos do art. 780.º, n.º 1 do Código Civil191. Nesses casos, o credor
– originariamente obrigado ao cumprimento em primeiro lugar –, poderá provar o vencimento da obrigação do devedor e invocar a seu favor a exceptio.
Justifica-se tal regra em razão da conduta reprovável do devedor de, por culpa sua, não prestar as garantias prometidas ou fazer diminuir suas garantias de crédito, ou dos riscos impostos ao credor, no caso da insolvência do devedor192.
Disposição semelhante encontra-se no Código Civil brasileiro, que dispõe que “Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la”.
189 XXXXXXXX, Xxxxx xxxxx. – Acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça com número REsp981.750/MG, 13 de abril de 2010 [Em linha]. [Consult. 10 abr. 2019]. Disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000000&xxx_xxxxxx ro=200702038714&data=20100423&formato=PDF.
190 Art. 429 do Código Civil português: “Ainda que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar, tem o contraente a faculdade de recusar a respectiva prestação enquanto o outro não cumprir ou não der garantias de cumprimento, se, posteriormente ao contrato, se verificar alguma das circunstâncias que importam a perda do beneficio do prazo”.
191 Art. 780º, n.º 1, do Código Civil português: “Estabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas”.
192 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 67.
Assim como na legislação civil portuguesa, a brasileira pretende, com este dispositivo, em nome do imperativo da justiça contratual, proteger o credor, diante da alteração das circunstancias da outra parte, apontam para uma alta probabilidade de inadimplemento da sua obrigação.
A simultaneidade é a regra para aplicação do princípio da exceção do contrato não cumprido, admitindo, como visto, exceções.
2.3.3. Inadimplemento
A exceção do contrato não cumprido pressupõe o inadimplemento das obrigações de ambos contratantes: o excipiente recusa-se ao cumprimento da sua prestação, quando o excepto a reclama, sem, todavia, ter executado a sua contraprestação193.
Como se vê, para que se opere a exceptio, a recusa da prestação pelo excipiente deve estar fundamentada no inadimplemento contratual da outra parte, sempre quando este último for exigível, ou seja, esteja vencido.
É preciso observar-se, todavia, que a exceção do inadimplemento somente terá espaço na hipótese de o descumprimento contratual da outra parte não ser definitivo, ou seja, na hipótese em que o excepto ainda tenha condições de cumprir com sua obrigação. Do contrário, a hipótese será de resolução do contrato194.
A exceção do contrato não cumprido, registre-se, não se confunde com a resolução do contrato, por descumprimento do credor. Nesta última, o réu afasta a própria existência do direito do autor, em vista da sua inadimplência. “Logo, a alegação de incumprimento do autor não é só exceção, é defesa que ataca o próprio direito alegado pelo autor”195.
Assim, no caso da exceção do contrato não cumprido, a parte retém licitamente a sua prestação, quando o não cumprimento pela outra parte não é definitivo. No entanto, se esse inadimplemento for definitivo, a parte pode eximir-se do cumprimento da sua obrigação e resolver o contrato. No caso da primeira, a parte retarda o cumprimento da sua obrigação. No caso da segunda, recusa-a definitivamente ou exige a sua restituição196.
Em outras palavras, na exceção do contrato não cumprido, se um dos contratantes deixa de cumprir com sua obrigação no tempo e modo devidos – mas o cumprimento ainda é possível
193 Idem – Op. Cit. p. 74.
194 Idem – Op. Cit. p. 75.
195 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de – Op. Cit. p.224/225.
196 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 45.
–, a outra parte pode recusar a contraprestação, enquanto perdurar essa situação de inadimplência. É o que dispõe o art. 428.º, n.º 1 do Código Civil português197 e o art 476.º do Código Civil brasileiro198.
Já no caso de resolução do contrato, diante do inadimplemento definitivo, a parte prejudicada pode rescindir o contrato, exigindo, quando é o caso, a restituição da prestação já efetivada. É o que dispõe o art. 801.º, n.º 2 do Código Civil português199 e o art 475.º do Código Civil brasileiro200.
Fica claro, portanto, que a exceptio possui caráter transitório e não consubstancia sanção ao excepto, mas uma forma de se manter o equilíbrio temporal das obrigações sinalagmáticas, e, ao mesmo tempo, de coagi-lo a cumprir sua prestação.
Nesse sentido, vale citar as lições dos doutrinadores Pires de Lima e Antunes Varela201: “A exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral”.
É esse, inclusive, o entendimento pacifico da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão da lavra do eminente Xxxx Xxxx Xxxxx: “A “exceptio non adimpleti contractus” é uma arma de defesa que obsta a que um dos contraentes possa subverter a justiça comutativa, possa exigir ao outro contraente a prestação sem realizar simultânea ou previamente aquela a que está vinculado. Dada a sua natureza e escopo, tal exceção emerge do próprio contrato bilateral”202.
A oposição da exceção de forma alguma pode ser interpretada como mora ou descumprimento contratual por parte do excipiente, cuja exigibilidade da sua prestação, ao contrário, fica suspensa203.
197 Art. 428. n. 1. do Código Civil português: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
198 Art. 476 do Código Civil brasileiro: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
199 Art. 801. n. 2. do Código Civil português: “Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”.
200 Art. 475 do Código Civil brasileiro: “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.
201 XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx; XXXXXX, Xxxx xx Xxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. p. 406.
202 XXXXX, Xxxx relat. – Acórdão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 21600/08.5YYLSB-A.S1, 9 de julho de 2015 [Em linha]. [Consult. 02 jan. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/xx00x00x00000x0x00000x00000000xx?XxxxX ocument
203 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 76.
De outro lado é certo que nenhuma das partes pode invocar a seu favor a exceptio “sem motivo justificado”. Nessa hipótese, a responsabilidade pela mora será imputada ao excepto. É o que dispõe o art. 813.º do Código Civil português204.
Nesse sentido, vale citar trecho do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, da relatoria do eminente Xxxx Xxxxx Xxxxx. Confira-se205: “A excepção do contrato não cumprido não pressupõe a culpa do devedor da contraprestação no seu atraso. A inexecução por parte deste pode ser-lhe imputável ou não, isto é, tanto pode ele constituir-se em mora (art. 804.º, n.º 2) como não. Ainda que o cumprimento lhe não seja imputável, antes obedeça a circunstâncias fortuitas, independentes da vontade, a exceptio é invocável pelo outro contraente. O contraente apenas não pode alegar a excepção se se encontrar ele próprio em mora accipiendi, o que acontece, nos termos do art. 813.º, quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”.
Tem-se, assim, que, não havendo justo motivo para recusa, a oposição da exceptio
importará na mora do excipiente.
Com relação ao inadimplemento parcial, é viável a oposição da exceção do contrato parcialmente cumprido (excpetio non rite adimpleti contractus). Na prática, esta encontra-se inserida na exceção do contrato não cumprido 206.
A exceptio também pode ser invocada nos casos de cumprimento defeituoso do contrato, isto é, nos casos em que a qualidade da prestação ou qualquer outra questão relevante ao negócio jurídico não tenha sido atendida. Em suma, nos casos em que a prestação é cumprida, mas não nas condições devidas, em que foi ajustada207.
A respeito do tema, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal é firme no sentido de “que a doutrina, tanto a contemporânea do Cód. de Seabra, como a actual, sustentam que também no caso de cumprimento defeituoso ou do não cumprimento parcial o contraente pode recusar a sua prestação, enquanto a outra não for rectificada ou completada: a excepção toma, nestes casos, a designação de exceptio non rite adimpleti contractus” 208.
204 Art. 813 do Código Civil brasileiro: “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”. 205 RAMOS, Fonte relat. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com número 142115/09.2YIPRT.C1, 14 de julho de 2010 [Em linha]. [Consult. 14 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/x0xx000000xx0x00000000x0000xx0xx/xx0x0x0000x0x000000000x000000x0x?XxxxX ocument
206 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de – Op. Cit. p.224/225.
207 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 82/83.
208 XXXXXXX, Xxxxxx relat. – Acórdão da 1ª Secção - Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte com número 00782/10.1BECBR, 20 de novembro de 2014 [Em linha]. [Consult. 25 fev. 2019]. Disponível em
Nesses casos, todavia, é preciso observar que a exceção do contrato não cumprido precisa obedecer aos critérios da proporcionalidade, razoabilidade e boa-fé, em relação à gravidade e extensão da inexecução da outra parte. Nessa linha, vale transcrever trecho do voto do eminente Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, do Supremo Tribunal de Justiça:
A excepção do não cumprimento do contrato, consagrada no art. 428.º do CC, é uma consequência natural dos contratos sinalagmáticos, pois, neles, cada uma das partes assume obrigações, tendo em vista as obrigações da outra parte, de sorte que se romperia o equilíbrio contratual, encarado pelas partes, se caso uma delas pudesse exigir da outra o cumprimento sem, por outro lado, ter cumprido o que se prestar a cumprir.
No caso de incumprimento parcial, o alcance da excepção de não cumprimento do contrato deve ser proporcional à gravidade da inexecução, o que só poderá implicar uma recusa parcial por parte do credor; isto é, o credor poderá tão só suspender, parcial e proporcionalmente, a prestação, segundo o princípio da boa fé que deve presidir a toda a temática do cumprimento das obrigações209.
Por óbvio, o alcance da exceptio nos casos de incumprimento parcial deve se dar na exata medida e proporção do descumprimento promovido pelo excepto.
Assim, imagine-se a hipótese de as partes terem celebrado um contrato de empreitada (e, portanto, um contrato bilateral ou sinalagmático), do qual resultam prestações e contraprestações interdependentes, quais sejam, a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço. Neste caso, não poderá o dono da obra recusar o pagamento integral das notas faturadas pelo empreiteiro, baseado no fato de que alguns poucos trabalhos nelas descritos não foram executados. É o que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça português, no Acórdão da lavra do eminente Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx (processo n.º 4913/05.5TBNG.P1.S1)210.
Tem-se, assim, que, no caso de inexecução parcial ou de execução defeituosa, a exceptio
somente poderá ser oposta na forma de uma recusa parcial. Isso porque não seria justo que uma
xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/00x0x0000x0xx00x000000x0000000x0/00000x0xx0000xx000000x00000000x0?Xxx nDocument
209 XXXXX, Xxxxxxxx relat. – Acórdão da 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 4913/05.5TBNG.P1.S1, 04 de fevereiro de 2010 [Em linha]. [Consult. 24 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/x000x000x0000xx0000000x0000000xx?XxxxX ocument
210 XXXXX, Xxxxxxxx relat. – Acórdão da 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 4913/05.5TBNG.P1.S1, 04 de fevereiro de 2010 [Em linha]. [Consult. 24 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/x000x000x0000xx0000000x0000000xx?XxxxX ocument
das partes opusesse a recusa integral da sua prestação, quando a outra parte tivesse cumprido, ainda que parcialmente a sua contraprestação.
Essa não é, entretanto, a solução dada pela legislação alemã, que admite a possibilidade de o excipiente recusar integralmente a prestação devida, em caso de descumprimento parcial, “desde que a recusa não seja contrária à boa fé”211.
De igual maneira, é requisito para que seja possível invocar a exceptio que o inadimplemento da outra parte seja grave, e que haja equilíbrio e proporcionalidade entre as prestações devidas pelas partes.
Não é suficiente, portanto, a ocorrência de qualquer tipo de falta, mas é necessária a verificação de que esta seja grave, para que se justifique a aplicação do referido instituto212. O inadimplemento do credor sendo de leve teor não pode ser utilizado como fundamento a justificar a oposição da exceptio213.
Assim, por exemplo, se o locatário for privado do gozo da coisa em termos meramente parciais, não poderá recusar o pagamento integral dos alugueis, com base na exceção do contrato não cumprido, que somente seria justificável se a privação da coisa fosse total214.
Em suma, o demandado a cumprir sua prestação somente pode invocar a seu favor a exceção do contrato não cumprido de forma proporcional ao descumprimento praticado pelo demandante (excepto).
2.3.4. Boa-fé
Assim como os negócios jurídicos devem estar pautados na boa-fé, a exceção do contrato não cumprido, também, deve estar subordinada à esta cláusula geral, que impõe às partes de agirem com honestidade e de cumprirem, de maneira criteriosa, todos os seus deveres assumidos, em decorrência da relação contratual entabulada.
211 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 85.
212 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 189.
213 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 311.
214 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 100.
No direito português, esse impositivo encontra-se insculpido nos arts. 227.º e 762.º, n.º 2, do Código Civil215, ao passo que, no direito brasileiro, encontra previsão no art. 422.º do respectivo Código Civil216.
Segundo Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, “sendo o instituto animado de um sopro de equidade, deve à sua invocação presidir a regra da boa-fé, não podendo erigir-se em pretexto para o descumprimento do avençado”217.
De acordo com as lições de Xxxxxxx Xxxxxxxx, “a exceção de contrato não cumprido deve ser sempre usada nos limites da boa fé, sem o que pode provocar um abuso do direito. Assim sucede quando uma pessoa recuse uma prestação vital para o credor, a pretexto de um pequeno atraso na contraprestação, quando nada leve a fazer crer a sua intenção de não cumprir, em definitivo”218.
Assim, tem-se que a boa-fé funciona como verdadeira limitadora da atuação da exceptio. No caso concreto, o juiz deve verificar se o exercício da exceptio representa violação da cláusula geral da boa-fé ou não, ou seja, verificar se a arguição da exceptio gerar a quebra do sinalagmatismo das prestações.
Nesse sentido, vale citar as lições de Xxxxxx Xxxxx que afirma que “A função do Juiz não termina quando, após ter ele adquirido certeza de que o excipiens se comporta sem malícia, nem mesmo quando ele haja igualmente sondado as intenções do autor, responsável por uma prestação incompleta. Cumpre que ele ascenda mais alto, que tome em consideração, na falta de convenções especiais, os usos, costumes da sociedade em que vivem os contratantes, a eqüidade no sentido largo da palavra” 219.
A exceptio, como forma de recusa de cumprir a prestação em razão do descumprimento da contraprestação devida pela outra parte, deve, portanto, ser pautada na boa-fé (objetiva e subjetiva), considerando-se os costumes da localidade, de maneira que seja possível avaliar a proporção da recusa do excipiente frente ao inadimplemento do excepto.
215 Art. 227, n.º 1, do Código Civil português: Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
Art. 762º, n.º 2, do Código Civil português: No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
216 Art. 422 do Código Civil brasileiro. “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
217 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 160.
218 CORDEIRO, Xxxxxxx Xxxxxxx – Tratado de Direito Civil IX: Direito das Obrigações, Cumprimento e não cumprimento. p. 141.
219 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 240.
E um exemplo muito claro disso, já abordado por nós em tópico anterior, diz respeito ao inadimplemento parcial. A recusa da prestação pela parte demandada a cumpri-la somente pode se dar de maneira proporcional ao descumprimento perpetrado pelo excepto.
Portanto, a exceção, sempre quando invocada, deverá se operar de maneira razoável e proporcional ao descumprimento da outra parte. Nesse sentido, entende a jurisprudência, “A boa – fé constitui um limite à alegação de tal excepção face ao cumprimento inexacto do contrato, podendo levar inclusivamente à sua negação, já que a parte da prestação recusada pelo excipiente deve ser proporcional à parte ainda não executada pelo contraente faltoso”220.
Nessa mesma linha, a jurisprudência brasileira afirma: “A recusa da parte em cumprir sua obrigação deve guardar proporcionalidade com a inadimplência do outro, não havendo de se cogitar da argüição da exceção quando o descumprimento do contrato é parcial e mínimo”221.
A boa-fé, como se vê, determina que as partes adotem uma postura de tolerância com a outra. Assim, não há como se admitir a recusa integral da prestação, frente o inadimplemento de parte mínima de obrigação devida pela outra parte.
Tem-se, portanto, que a oposição da exceptio de forma contrária à boa-fé representa manifesto abuso de direito e, portanto, a ilegitimidade do seu exercício. Nesse sentido, dispõem os arts. 334.º do Código Civil português222 e 187.º do Código Civil brasileiro223.
2.4. Exceptio como exceção material dilatória
Como visto, nos contratos bilaterais, cada uma das partes se obriga frente a outra a cumprir determinada prestação, de modo que, cada um dos contratantes tem o direito em relação à prestação do outro. Por força do sinalagmatismo, é certo que essas prestações possuem
220 XXXXXXX, Granja da relat. – Xxxxxxx da 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça com número 4871/07.1TBBRG.G1.S1, de 22 de janeiro de 2013 [Em linha]. [Consult. 02 abr. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/x0xx000x00x0000x00000xxx000xx00x?XxxxX ocument.
221 XXXXXXXX, Xxxxx relat. – Acórdão do Superior Tribunal de Justiça com número 2007/0203871-4, de 13 de abril de 2010 [Em linha]. [Consult. 04 mar 2019]. Disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx0000000&xxx_xxx istro=200702038714&data=20100423&tipo=51&formato=PDF
222 Art. 334º do Código Civil português: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
223 Art. 187º do Código Civil brasileiro: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
interdependência entre si, resultando daí que, se uma das partes inadimplir a sua prestação, poderá a outra, com base na exceptio, recusar a sua obrigação224.
Como se vê, é justamente por conta da interdependência das prestações que qualquer uma das partes podem, obviamente, se assim quiserem, opor a exceptio. Pode-se dizer que o demandado a cumprir a prestação possui um direito subjetivo, disponível, de ver a contraprestação ser cumprida simultaneamente à sua225.
Trata-se, pois, nas palavras de Xxxx Xxxxxxxx, de um “contra-direito” do demandado (do réu), que pode ou não por ele ser exercido, daí porque ser considerado uma “exceção”226.
Do ponto de vista doutrinário, as exceções podem ser classificadas em algumas categorias, dentre as quais destacamos a duas a seguir: (i) exceções processuais e materiais; e
(ii) peremptórias e dilatórias (vide art. 493.º do Código de Processo Civil português)227.
As exceções processuais definem-se por aquelas questões suscitadas pelo réu no âmbito do direito processual. São, por exemplo, as nulidades processuais, como ausência de intimação válida da parte; incompetência do Juízo, para processar e julgar o processo; etc. Nesses casos, o direito material invocado pelo autor não é atingido diretamente, mas, como dito, apenas a regularidade do processo228.
Já as exceções materiais dizem respeito às causas impeditivas, modificativas e extintivas invocadas pelo réu, em relação ao direito do autor. É o caso, por exemplo, do autor que pretende a condenação do réu ao pagamento de aluguéis e este último alega que os já quitou, antes mesmo do ajuizamento da ação229.
Quanto à segunda forma de classificação das exceções, as peremptórias definem-se pela recusa invocada pelo réu, de forma definitiva. Já no caso das dilatórias, a recusa não é definitiva e ação pode, inclusive, ser ajuizada novamente, em momento posterior230.
Essa forma de classificação das exceções encontra expressa previsão no art. 493.º do Código de Processo Civil português, que assim as define nos n.ºs. 2 e 3, que estabelece que “As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal” e que “As perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor”.
224 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 126.
225 Idem – Op. Cit. p. 127.
226 Ibidem.
227 Idem – Op. Cit. p. 129. 228 Idem – Op. Cit. p. 130. 229 Ibidem.
230 Ibidem.
São, portanto, exemplos de exceções dilatórias (cf. art. 494.º do Código de Processo Civil português), as alegações relativas à incompetência, absoluta ou relativa, do Tribunal; à nulidade do processo; à ilegitimidade de uma das partes; dentre outras.
De acordo com a definição do art. 493.º do Código de Processo Civil português, a exceptio poderia ser enquadrada como uma exceção peremptória. Todavia, a doutrina entende se tratar de uma exceção material, porque se funda em razões de direito material (e não processual) e dilatória, porque tem o condão de afastar, apenas, temporariamente o direito do autor231.
Nesse diapasão, Xxxx Xxxx Xxxxxxxx esclarece que a exceção “non adimpleti contractus” é exceção material (ou de direito material), porque fundada em razões de direito substantivo; é dilatória, porque não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente ou retarda232.
Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é pacífica ao afirmar que, “A exceção de não cumprimento é uma exceção dilatória de direito material que, uma vez invocada, obsta temporariamente a que o outro contraente possa obter a sua prestação”233.
A exceção do contrato não cumprido, portanto, é medida típica de defesa no processo judicial, por meio da qual o réu não nega o direito do autor, mas apenas lhe opõe um direito que, temporariamente, suspende a exigibilidade da sua obrigação234.
Cabe, assim, ao demandado comprovar a existência de uma obrigação interdependente à sua, que deixou de ser cumprida pelo demandante (excepto). De igual maneira, no caso de oposição da exceção do contrato parcialmente cumprido, cabe ao excipiente a prova desse incumprimento parcial.
A exceção do contrato não cumprido, pode, ainda, ser alegada no âmbito extrajudicial, antes mesmo do ajuizamento de uma ação. Assim, sendo uma das partes demandada ao cumprimento de uma prestação, sem que antes, contudo, o tenha feito o demandante, o primeiro poderá opor a exceptio, por meio de uma declaração receptícia, e recusar, assim, o cumprimento da sua contraprestação. Trata-se de um direito potestativo da parte suspender a exigibilidade da
231 XXXXXX, Xxxxxxx – Op. Cit. p. 321.
232 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 129 XXXXX, Xxxx Xxxxxx da – Op. Cit. p. 334.
233 XXXXX, Xxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número
21600/08.5YYLSB-A.S1, de 09 de setembro de 2015 [Em linha]. [Consult. 08 mar. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x0xx0xx0xx0x000000x0x000xx000/xx00x00x00000x0x00000x00000000xx?XxxxX ocument
234 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 47.
sua obrigação através de uma declaração receptícia235 (como ocorre, no caso da resolução extrajudicial, prevista no art. 436.º, n.º 1 do Código Civil português), no âmbito extrajudicial236. Nesse sentido, é firme a jurisprudência portuguesa, no sentido de que “Quando exercido extrajudicialmente, o direito potestativo de suspender o poder do seu devedor exigir a realização da contraprestação faz-se através de uma declaração negocial receptícia, à semelhança da resolução extra-judicial, prevista no art. 436.º n.º 1 do Código Civil. Daqui resulta que, uma vez chegada ao conhecimento do destinatário (art. 224.º do Código Civil), dá-se o efeito suspensivo da excepção de não cumprimento do contrato” e conclui “Já o exercício judicial da “exceptio”, não sendo de conhecimento oficioso, deve ser invocado, e a circunstância de o credor da prestação a haver declarado extrajudicialmente, não o dispensa do ónus de arguir
intraprocessualmente”237.
Portanto, o fato de o excipiente invocar a exceptio no âmbito extrajudicial, não afasta a necessidade de fazê-lo novamente ao ser demandado judicialmente ao cumprimento da sua prestação238.
2.5. Efeitos da exceptio
A exceção do contrato não cumprido, tratando-se de simples defesa dilatória239, tem como principal efeito a suspensão da exigibilidade da obrigação do demandado a cumpri-la (isto é, do excipiente), durante todo o tempo que excepto recursar-se ao cumprimento da contraprestação240.
A exceptio caracteriza-se, portanto, pelo seu efeito de dilação do tempo de cumprimento da prestação do excipiente até a satisfação da parte que compete ao excepto, como forma de manter o equilíbrio da relação contratual, nesse estado de mora de uma das partes.
235 “Declaração receptícia da vontade”, segundo definição de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, “é a que se dirige a pessoa determinada, com o escopo de levar ao seu conhecimento a intenção do declarante, sob pena de ineficácia. Ocorre com maior frequência no campo das obrigações, especificamente na revogação do mandato (...) e na proposta de contrato, que deve chegar ao conhecimento do oblato para que surja o acordo de vontades e se concretize o negócio jurídico (...)”.
XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 1, p. 312.
236 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx – Princípios de Direito dos Contratos. p. 802 e ss.
237 XXXXXXX, Xxxxx xxxxx. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com número 17498/11.4YIPRT.C1, de
29 de janeiro de 2013 [Em linha]. [Consult. 14 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/x0xx000000xx0x00000000x0000xx0xx/x0xx000x0x0xx00x00000x0000000xxx
238 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx – Op. Cit. p. 802 e ss.
239 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx – Op. Cit. p. 135.
XXXXXXX, Pontes de – Tratado de direito privado. Vol. 26. p. 100. XXXXX, Xxxxxxx – Contratos. p. 92.
240 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 111.
Assim, como já esclarecido anteriormente, a exceção consiste em um meio de defesa indireta, que visa a execução plena do contrato e não a resolução do ajuste e a isenção da parte do dever de cumprir a prestação que lhe cabia241. O contrato permanece hígido e íntegro entre as partes, suspendendo-se, temporariamente, todavia, a exigibilidade da prestação da parte demanda a cumpri-la, até que o demandante promova a execução da obrigação que lhe cabe242.
Na prática, esse efeito dilatório implica que o excipiente não incorrerá nos efeitos da mora, todo tempo em que perdurar o inadimplemento pelo excepto. Nas palavras de Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx: “(...) a lei permite a qualquer dos contratantes recusar a realização de sua prestação enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte, ou a oferta de seu cumprimento simultâneo. É, assim, lícita neste caso a recusa do cumprimento, o que impede a aplicação do regime da mora (arts. 804.º e ss.) e, naturalmente, o do incumprimento definitivo (art. 808.º), mesmo que tenha havido interpelação da outra parte. Se as duas obrigações forem puras a excepção de não cumprimento é, assim, sempre invocável, nem sequer podendo ser afastada mediante a prestação de garantias (art. 428.º, n.º 2)”243.
Em igual sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça português é pacífica. Confira-se: “É seguro que, quando se verificam os requisitos de admissibilidade da exceptio, quando esta é regular ou licitamente invocada, a recusa do excipiens em cumprir a sua prestação não o faz incorrer em mora, e não acarreta as consequências desta, maxime em matéria de juros. E isto quer se repute a exceptio como uma causa justificativa do incumprimento de quem a invoca, quer se entenda que nem sequer se está perante uma situação de incumprimento do excipiente (mesmo que justificado), mas antes em face de uma situação de inexigibilidade”244. De outro lado, é certo que a exceção do contrato não cumprido (e, juntamente com ela,
seus efeitos) é afastada através de três situações: (i) a prova de que a obrigação do excepto já foi adimplida; (ii) a comprovação de que cabia ao excipiente o cumprimento da prestação em primeiro lugar e que não se trata de caso de perda do benefício do prazo; e, por fim (iii) o oferecimento do cumprimento simultâneo245.
241 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx de – Prescrição e decadência. Tribuna da Magistratura. p. 3.
242 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 109.
243 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx – Op. Cit. p. 254.
244 XXXXXXXXXX, Xxxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com número 674/02.8TJVNF.S1, de
26 de novembro de 2009 [Em linha]. [Consult. 14 fev. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/0/0x0x0000x0x00xxx0000000x000x00x0?XxxxXxxxxxxx
245 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 79.
No caso desta última (“o oferecimento do cumprimento simultâneo”), prevista no art. 428.º, n.º 1 do Código Civil português246, a razão que a fundamenta é simples: nenhuma das partes possui a obrigação de adimplir com sua prestação em primeiro lugar. Portanto, nada mais justo do que admitir-se que o cumprimento de ambas as obrigações seja realizado de forma simultânea. Assim, se a oferta foi feita e o excipiente a recusar, desta vez é este último que incorrerá na mora prevista no art. 813.º do Código Civil português247, aplicando-se os preceitos dela decorrentes (art. 807.º do Código Civil português).
No caso de a obrigação do excipiente versar sobre a entrega de bem, este deverá permanecer sob a custódia do primeiro. Tratando-se de obrigação de entregar coisa certa e determinada, o excipiente também possuirá o direito de retenção, cabendo-lhe, todavia, a obrigação de guarda da coisa. Ou seja, deverá administrá-lo, respondendo pela sua existência e conservação. De igual forma, o excipiente não terá qualquer direito sobre eventuais frutos produzidos com a coisa (poderá, todavia, vender aqueles insuscetíveis de conservação, e transferir o produto da venda ao excepto, posteriormente, com a coisa). De outro turno, fará jus ao direito de reembolso das despesas havidas com a conservação da coisa248.
Vale registrar, ainda, que a oposição da exceptio, de acordo com Xxxx Xxxxxxxx, não tem o condão de interromper o decurso do prazo de prescrição do crédito daquele que a invocar (do excipiente)249. Isso porque, uma vez iniciada a contagem do prazo prescricional, este somente se suspende ou interrompe nas hipóteses previstas em lei, no caso do Código Civil português, respectivamente, nos arts. 318.º ao 322.º e arts. 323.º ao 327.º e, no Código Civil brasileiro, respectivamente, nos arts. 197.º ao 201.º e art. 202.º. E da análise dos mencionados dispositivos, não se verifica qualquer referência à hipótese da exceptio.
Esse entendimento justifica-se não apenas do ponto de vista legal, mas também do ponto de vista conceitual da exceptio. Tratando-se de um meio de defesa, e considerando que o excepto continua tendo a faculdade de cumprir a sua obrigação ou oferecer o cumprimento simultâneo, é absolutamente razoável que o prazo prescricional não seja suspenso ou interrompido250.
246 Art. 428º, n.º 1 do Código Civil português : “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
247 Art. 813 do Código Civil brasileiro: “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”. 248 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit.. p. 114-20.
249 Idem – Op. Cit. p. 112.
250 Idem – Op. Cit. p. 112-113.
CAPÍTULO III:
3. União de contratos
3.1. Espécies e conceito
A união de contratos, ou contratos coligados, de acordo com as lições do Professor Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, pode ser classificada em três espécies: união extrínseca; união alternativa; união com dependência (ou união interna)251.
A união extrínseca caracteriza-se pelo fato de dois contratos autônomos serem celebrados no mesmo momento ou circunstância, constando, por exemplo, por mera comodidade das partes, do mesmo instrumento jurídico. Neste tipo de união não há um interesse jurídico na união dos contratos, sendo ela meramente extrínseca, de modo que cada um dos contratos conserva a sua individualidade e suas próprias regras252. Não existe nenhum outro vínculo entre esses contratos, que não seja essa ligação circunstancial, meramente externa. Não há entre os ajustes qualquer associação interna, que faça com que um dependa do outro. A união é puramente aparente e sem interesse: cada negócio jurídico segue suas próprias regras e seu próprio destino, sem interferência do outro253.
É o caso, por exemplo, de partes que celebram “Contrato de Empreitada e Promessa de Arrendamento”, em que, no mesmo instrumento, estipulam (i) contrato de empreitada de um prédio; (ii) a promessa de arrendamento do mesmo, com início de vigência no primeiro dia subsequente ao da conclusão de obras, que seriam efetuadas pelo futuro locatário.
O referido instrumento, de acordo com esse conceito doutrinário, não pode ser considerado um único contrato (contrato misto). Isso porque, o objetivo das partes não é o arrendamento do imóvel em troca da realização das obras. E, sim, dois contratos distintos: um contrato de empreitada, visando a realização das obras no imóvel que se prometera arrendar; e outro, de promessa de arrendamento, destinado à futura concessão do gozo do imóvel, com início de vigência imediatamente após a conclusão das obras (este último contrato pressupunha a conclusão do primeiro)254. Os negócios jurídicos em questão devem, portanto, ser considerados por si só e tratados de acordo com suas próprias regras.
251 INOCÊNCIO, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit.. p. 475/476.
252 Ibidem.
253 Ibidem.
254 QUERIDO, Xxxxxx relat. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com número 2022/08.4TBFIG.C1, 08 de fevereiro de 2011 [Em linha]. [Consult. 29 mar. 2020]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/0xx0x000x0x00x00000000x0000000xx/x000x0x0xxxx000x00000000000x0x00?Xxxx Document
Xxxxxxxxx Xxxxxx cita, ainda, como exemplo de união extrínseca o contrato de trabalho com um porteiro, celebrado concomitantemente ao contrato de arrendamento da habitação que ele ocupará no prédio em que trabalhará como porteiro255.
A união alternativa, por sua vez, caracteriza-se pela celebração de dois contratos, em que as partes estabelecem que apenas um deles será válido, de acordo com a ocorrência ou não de determinado evento futuro. Observe-se que a verificação ou não dessa condição terá efeitos retroativos, de maneira que, com a sua ocorrência ou não, apenas um dos contratos será considerado válido desde o início. A união dos contratos, neste caso, portanto, é provisória e temporária256.
Parte da doutrina considera o arrendamento-venda como uma união alternativa de contratos. Isso porque, verificada a condição do pagamento dos alugueis considera-se celebrada a compra e venda; do contrário, se o arrendatário devolver a coisa antes do pagamento integral, considera-se celebrado, apenas, o arrendamento257.
Anote-se que a outra parte da doutrina critica a classificação do arrendamento-venda como uma união alternativa pelo fato de que, na hipótese de não verificada a condição, isto é, o inadimplemento quanto ao pagamento da integralidade dos alugueis, ambos os negócios jurídicos poderiam ser resolvidos258.
Por fim, a união com dependência (ou união interna) – que nos interessa para fins do presente estudo – caracteriza-se pela existência de uma relação de sujeição e dependência entre dois contratos, de maneira tal que a validade e vigência de um esteja intimamente ligada à validade e vigência do outro259.
De acordo com as lições do professor Xxxxxxxxx, “Ocorre na união com dependência uma inseparável ou inextrincável relação de sujeição e de existência jurídica entre dois vínculos contratuais, sendo que o vínculo contratual principal determina a celebração e a vigência de um outro que não existiria se o primeiro não ganhasse existência jurídica”.
Na união com dependência (ou na “coligação contratual”, como também se refere a doutrina a este tipo), há um nexo de carácter funcional, uma unidade de função e de interesse negocial, que vincula os contratos, acarretando a produção de efeitos ou consequências jurídicas novas, além daquelas próprias de cada um dos contratos. Ou seja, os contratos deixam de ser
255 INOCÊNCIO, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 475/476.
256 Ibidem.
257 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx – Alienação fiduciária em garantia e negócios afins: delimitação de fronteiras.
Lusíada. p. 85/86.
258 Ibidem.
259 INOCÊNCIO, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 475/476.
analisados, interpretados e produzirem seus efeitos de maneira individual e autônoma, passando a integrar um único conjunto econômico, com um único objetivo a ser alcançado. Nas palavras de Xxxx xx Xxxxxxxxxxx, há “uma unidade contratual com pluralidade de tipos” e não “uma pluralidade de contratos unidos funcionalmente”260.
A união de contratos com dependência surge a partir da ideia da evolução das relações econômicas na sociedade que, indiscutivelmente, tornaram-se complexas, diante da necessidade de otimização da eficiência e dos resultados, assim como redução dos riscos. Os contratos precisaram acompanhar essa evolução, deixando para trás a visão clássica individualista, em que seus efeitos restavam restritos às partes contratantes, para uma nova forma, em que estão inseridos em operações econômicas complexas e interligadas, dando origem, assim, às redes contratuais261.
Nesse sentido, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx se referiu aos contratos coligados (união com dependência) como sendo “fruto da hipercomplexidade das relações sociais e econômicas da atualidade, bem como da crescente especialização das atividades e divisão de trabalho. Operações econômicas que outrora podiam ser concretizadas por um único contrato, fosse típico ou atípico, agora, em virtude da maior complexidade destas e do envolvimento de um maior número de partes, exigem a celebração de diversos contratos interligados”262.
O fenômeno da união de contratos com dependência surge, portanto, com a evolução da complexidade e plurilateralidade das operações econômicas e da necessidade de estruturação dessas relações. Nessa linha, Xxxxxxx explica os contratos coligados (ou “união com dependência”) como “uma pluralidade coordenada de contratos, cada um dos quais responde a uma causa autônoma, tendo em conjunto a realização de uma operação econômica unitária e complexa"263.
Na união com dependência (ou nos “contratos coligados”) existe uma finalidade econômica comum entre as partes; há um fim econômico comum a ser perseguido, o que justifica a opção das partes por subordinar os distintos contratos uns aos outros264. Há, assim, um ponto de interligação ou nexo de convergência, direto ou indireto, material ou imaterial, ainda que, em algumas situações, identifique-se essa dependência em contratos tidos como principal e acessório265.
260 VASCONCELOS, Xxxxx Xxxx de – Op. Cit.. p. 218/219.
261 ITURRASPE, Xxxxx Xxxxxx – Op. Cit.. p. 9.
262 XXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Contratos Coligados – Op. Cit. p. 113.
263 XXXXXXX, Xxxxxxxxx – El negocio jurídico. p. 114.
264 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx – Novos rumos do direito contratual: Estudos sobre princípios de direito contratual e suas repercussões práticas. p. 12.
265 TARTUCE, Xxxxxx – Contratos Coligados e sua função social. Op. Cit.
Inexistindo qualquer vínculo de dependência entre os contratos, estes não serão considerados coligados (ou integrantes de uma “união com dependência”), ainda que tenham sido celebrados entre as mesmas partes. Ou seja, é preciso que os contratos sejam dependentes um do outro, ao ponto que, cada um deles, isoladamente seria desinteressante às partes266.
Note-se que, apesar desses contratos não se confundirem e, ao contrário, manterem a sua individualidade própria da forma mais plena, encontram-se vinculados de tal maneira que um é a causa do outro267. Ou seja, tratam-se de ajustes distintos, mas que são ligados por meio de um nexo funcional, de modo que se torna plenamente possível que um influencie o outro268, formando, assim, uma verdadeira rede contratual complexa.
Pode-se dizer, portanto, que a coligação contratual é representada pela pluralidade de contratos, que, apesar de manterem sua individualidade própria, encontram-se ligados entre si por um nexo funcional, que admite repercussões uns nos outros, constituindo, assim, uma unidade econômica. É essa dependência econômica que – veremos adiante, pode ser recíproca ou unilateral – permite que os contratos possam alcançar a sua finalidade econômica comum269.
A respeito do tema, vale citar que, na Argentina, por ocasião da XVII Jornada Nacional de Direito Civil, foi aprovado o seguinte enunciado: “Habrá contratos conexos cuando para la realización de un negocio único se celebran, entre las mismas partes o partes diferentes, uma pluralidade de contratos, vinculados entre sí, a través de una finalidad económica supracontractual. Dicha finalid puede verificarse jurídicamente, en la causa subjetiva u objetiva, en el consentimiento, en el objeto, o en las bases dei negocio”270.
No mesmo sentido, Xxxxx esclarece que há conexão contratual (“união com dependência”) quando vários sujeitos celebram dois ou mais contratos distintos que apresentam uma estrita vinculação funcional entre si por razão de sua própria natureza ou da finalidade global que os informa, vinculação que é ou pode ser juridicamente relevante271.
O professor Xxxxxx Xxxxxx, ao tratar sobre o tema, afirma que os contratos coligados (união com dependência) são aqueles que “(...) para além de sua função individual específica, apresentam juntos uma função ulterior. Em virtude de sua ligação, aqueles negócios estruturalmente independentes perseguem uma finalidade que ultrapassa a mera soma das
266 XXXXX, Xxxxxxx – Contratos. p. 121/122.
267 Ibidem.
268 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit.. Vol. 3, p. 92/93.
269 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx – Coligação negocial e operações negociais complexas. Boletim da Faculdade de Direito. p. 209 e ss..
270 XXXXXX, Xxxxxx – El efecto relativo de los contratos y la conexidad contractual. p. 13.
271 XXXXX, Xxx Xxxxx. Los contratos conexos: estudio de supuestos concretos y ensayo de una construcción doctrial. p. 273.
próprias finalidades individuais”272. Fica claro, dessa forma, que é em decorrência da sua interligação que a união com dependência faz com que os ajustes, apesar de autônomos, reflitam e repercutam uns sobre os outros.
Para que seja considerada uma união com dependência (ou simplesmente como contratos coligados), é necessário que haja (i) uma pluralidade de ajustes (não necessariamente envolvendo as mesmas partes) e, especialmente, (ii) que estes possuam, entre si, um vínculo de interdependência, que pode ser unilateral ou recíproco273.
Essa relação de interdependência ou de subordinação entre os contratos, que enseja a repercussão das vicissitudes de um sobre o outro, pode ser unilateral ou bilateral (ou recíproca)274. Será unilateral quando a validade e vigência de apenas um dos ajustes depender da do outro para existir, caso em que apenas um contrato tem predomínio e repercussão sobre o outro. Será bilateral, por sua vez, quando esse vínculo de subordinação for recíproco, de maneira que as alterações produzidas em um dos contratos repercutem diretamente no outro e vice-versa 275.
A coligação contratual, dessa maneira, implica que a análise e interpretação dos contratos ligados por esse vínculo de dependência não podem ser realizadas de forma isolada, mas, ao contrário, devem considerar o objetivo comum a que se pretendia alcançar com a formação da coligação.
Isso significa dizer que, “todas as normas e institutos dirigidos directa ou indirectamente ao conteúdo “económico” do contrato ( à avaliação económica das cláusulas, prestações ou obrigações, à avaliação económica do próprio contrato ou dos singulares contratos que compõem o complexo, à correlação económica de forças, aos equilíbrios e desequilíbrios económicos gerados em conclusão do contrato e no desenvolvimento da execução contratual, à própria utilidade ou inutilidade económica de sobrevivência autónoma de contratos singulares pertencentes ao complexo, etc.) devem ser objecto de uma aplicação unitária”276.
Segundo a doutrina de Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, a união de contratos pode ser decorrente da vontade das partes, por exemplo, por meio de uma declaração nesse sentido; de
272 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Contratos Conexos. p. 189.
273 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Contratos Coligados no Direito Brasileiro. p. 99.
274 Ibidem.
275 VASCONCELOS, Xxxxx Xxxx de – Op. Cit. p. 218.
XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx – Coligação negocial e Operações Negociais Complexas, Tendências fundamentais da doutrina e necessidade de uma reconstrução unitária. Op. Cit. p. 233 e ss.
276 Idem – Op. Cit. p. 255.
disposição legal; ou, ainda, das circunstâncias e efeitos essenciais dos contratos (um dos negócios funcionar como base negocial do outro)277.
De maneira similar, Xxxxxxxxx Xxxxxx preleciona que esse vínculo de interdependência entre os contratos pode ser estabelecido de três maneiras: por força de (i) disposição legal; (ii) natureza acessória de um dos contratos; ou (iii) disposição contratual, seja ela expressa ou mesmo implícita.
No caso de o vínculo estabelecer-se por disposição legal, classifica o autor, que a coligação é ex lege. Já quando o vínculo se forma em razão da natureza acessória de um dos contratos em relação ao outro, diz que a coligação é natural. E, por fim, quando as partes convencionarem, de forma expressa ou implícita, a relação de dependência de um contrato com o outro, fala em coligação convencional ou voluntária278.
Adotando, assim, a classificação doutrinária de Xxxxxxxxx Xxxxxx, passemos, a seguir, ao estudo das espécies de formação de coligação: (i) ex lege; (ii) natural; ou (iii) voluntária.
3.2. Espécies de formação da coligação contratual (“união com dependência”)
3.2.1. Coligação ex lege
A coligação ex lege representa o vínculo de dependência e subordinação estabelecido entre diferentes contratos, por expressa previsão legal, seja quanto à coligação propriamente dita, seja pela previsão de um ou mais efeitos da coligação279. Em outras palavras, a fonte da coligação entre contratos decorre da própria lei.
Um exemplo de coligação ex lege é o contrato de financiamento para consumo, no espaço jurídico europeu280. A Diretiva 87/102/CEE de 1986 da União Europeia, tratava expressamente sobre o tema, em seu art. 11.º, tendo sido incorporada pelo direito português através do Decreto-Lei n.º 359/91, em seu art. 12.º.
Posteriormente, a Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu do Conselho de 23 de abril de 2008 revogou a anterior, mantendo, ainda, a disciplina sobre a coligação entre o
277 Idem – Op. Cit. p. 233 e ss.
278 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 100.
279 Idem – Op. Cit. p. 104.
280 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx – Op. Cit. p. 93.
financiamento e o fornecimento para consumo, desta vez em seu art. 3.º281, norma esta incorporada no direito português, no art. 18.º do Decreto-Lei n.º 133/2009282.
Referida norma foi internalizada por diversos outros países da União Europeia, podendo-se citar o § 358.º do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), que, segundo tradução livre de Francisco Marino283, assim dispõe: “Contratos coligados [...]. (3) Um contrato tendo por objeto o fornecimento de mercadoria, ou a execução de outra prestação, e um contrato de mútuo ao consumo são coligados, se o empréstimo serve completamente ou em parte ao financiamento do outro contrato e os dois contratos constituem uma unidade econômica. Em particular, deve considerar-se existente uma unidade econômica se o próprio empresário financia a contraprestação do consumidor ou, no caso de financiamento por parte de terceiro, se o mutuante se serve da cooperação do empresário na preparação ou na conclusão do contrato de mútuo ao consumo”.
Outro exemplo de coligação contratual ex lege são os contratos de compartilhamento de infraestrutura, celebrados entre as operadoras de telefonia no Brasil, em que há expressa previsão na Lei n.º 13.116/2015. Nesse sentido, afirma Rodrigo Xavier Leonardo284: “Sob o viés jurídico, a interconexão entre redes é viabilizada por diversos contratos coligados que possibilitam a cada operadora de telefonia se utilizar, mediante contraprestação, das estruturas de tecnologia de outras operadoras de telefonia. [...] Trata-se, portanto, de um singular exemplo
281 Artigo 3.º da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu do Conselho de 23 de abril de 2008
n) «Contrato de crédito ligado»: um contrato de crédito nos termos do qual:
i) o crédito em questão serve exclusivamente para financiar um contrato de fornecimento de bens ou de prestação de um serviço específico e
ii) estes dois contratos constituem uma unidade comercial de um ponto de vista objectivo; considera-se que existe uma unidade comercial quando o crédito ao consumidor for financiado pelo próprio fornecedor ou prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiros, quando o mutuante recorrer aos serviços do fornecedor ou prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou caso os bens específicos ou a prestação de um serviço específico estejam expressamente previstos no contrato de crédito.
282 Artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 133/2009 de Portugal Contrato de crédito coligado
1 - A invalidade ou a ineficácia do contrato de crédito coligado repercute-se, na mesma medida, no contrato de compra e venda.
2 - A invalidade ou a revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado.
3 - No caso de incumprimento ou de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda ou de prestação de serviços coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor, não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exacto cumprimento do contrato, pode interpelar o credor para exercer qualquer uma das seguintes pretensões:
a) A excepção de não cumprimento do contrato;
b) A redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço;
c) A resolução do contrato de crédito.
283 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 217.
284 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx – Redes contratuais no mercado habitacional. p. 132-133.
de coligação em sentido estrito, pois há eficácia paracontratual delineada pela legislação federal que impõe tanto a contratação como a coordenação”.
A coligação contratual ex lege é, portanto, aquela que decorre da lei. É a norma jurídica quem atribuiu e expressa o vínculo de interdependência entre os contratos (que, muitas vezes, seria aferível da sua própria natureza) e, em muitos casos, inclusive, prevê os seus efeitos.
3.2.2. Coligação natural (ou necessária)
A coligação natural, de acordo com as lições de Xxxxxxxxx Xxxxxx, representa o vínculo de interpendência que nasce da relação acessória de dois contratos. Trata-se de uma figura atípica que reúne contratos distintos entre si, com causas autônomas e conteúdo adequado a cada tipo de contrato, vinculados para atender a uma finalidade comum.
Importante destacar que o conceito de coligação natural decorre da natureza acessória dos contratos componentes do conjunto contratual.
A coligação natural representa, assim, um vínculo causal entre dois ou mais negócio, com efeitos jurídicos próprios que acabam determinando natureza e estrutura diversas daquelas dos contratos singulares. Em outras palavras, o elemento associativo dos contratos encontra-se no plano do negócio, do sistema. Esse elemento não essencial do contrato constitui pressuposto para o funcionamento do sistema285.
Imagine-se, por exemplo, o caso de um contrato de empreitada em que, no curso da relação contratual, o empreiteiro decida celebrar um contrato de subempreitada. Este último possui uma relação de acessoriedade com o primeiro, evidenciando-se, assim, o vínculo de coligação natural286. Ou seja, o contrato de subempreitada possui uma relação de dependência direta com o de empreitada, em que o primeiro somente existe em razão do segundo.
Sobre a coligação natural dos subcontratos, Xxxx Xxxxxxxx (que a ela se refere como “coligação necessária”) cita os contratos de fabricação, fornecimento de produtos industrializados, arrendamento, locações (por exemplo, de andaimes). De fato, é manifesto o vínculo de subordinação e dependência do contrato base com os contratos acessórios, de modo que estes últimos apenas existem em razão do primeiro. Assim, esclarece o autor que, se eventualmente for reconhecida a ineficácia ou invalidade do contrato base, os seus efeitos irão
285 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx – Redes contractuales: Conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos frente a terceros. Revista de Direito do Consumidor. p. 34.
286 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 105/106.
se propagar ao subcontrato. Por sua vez, se a ineficácia ou invalidade for oriunda do subcontrato, seus efeitos não se propagarão ao contrato principal287.
Sobre a expressão “coligação necessária”, Xxxxxxxxx Xxxxxx tece algumas críticas, preferindo a expressão “coligação natural”. Segundo esclarece, a expressão “coligação necessária” fora criada por Xxxx, que a designava “como expressão derivada da natureza ou da função de um ou de ambos os contratos coligados”288.
Ocorre que, nem sempre a coligação decorrente da natureza acessória dos contratos será sempre “necessária”, isto é, decorrente da vontade das partes estabelecida desde a formação do vínculo. Existem situações em que esse vínculo de natureza acessória poderá surgir acidentalmente, no curso da relação contratual. É o caso, por exemplo, da já citado contrato de empreitada, em que, no curso da relação, o empreiteiro decide celebrar uma subempreitada. Neste caso, não é possível dizer que a coligação é “necessária”, como seria na hipótese de a subempreitada já vir prevista de forma expressa no contrato base. Por essa razão, é que prefere o autor, adotar a expressão “coligação natural” 289.
Pode-se dizer, portanto, que a relação de interdependência entre o contrato principal e o subcontrato é uma coligação natural. Além desta, pode-se citar como exemplos de coligação natural o contrato principal e os contratos de garantias, como o de hipoteca, fiança, penhor dentre outros; o contrato preliminar e o contrato definitivo290.
3.2.3. Coligação voluntária (expressa ou implícita)
A coligação voluntária é verificada nas hipóteses em que a relação de interdependência entre negócios jurídicos distintos não advém da natureza acessória, tampouco decorre da lei, mas da vontade das partes. É assim definida, portanto, a contrario sensu.
Essa vontade pode ser expressa, como na hipótese em que o próprio contrato possui cláusulas expressas e especificas dispondo sobre a coligação, ou implícita, quando, apesar de não haver referência expressa à essa situação, as circunstancias e o próprio fim objetivado pelos contratos permite essa interpretação. Neste caso, a coligação será deduzida a partir das circunstâncias em que foram celebrados os contratos, bem como do fim a que pretendem alcançar. A questão, portanto, será resolvida com base nas regras de interpretação dos contratos,
287 ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Contratos Coligados. Op. Cit. p. 117.
288 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 105.
289 Ibidem.
290 Idem– Op. Cit. p. 106.
sobretudo fazendo-se uso dos arts. 236.º e ss. do Código Civil291 (em se tratando de contrato administrativo, a questão deverá considerar, ainda, as normas aplicáveis previstas no Código dos Contratos Públicos, em especial na sua parte III).
Retomando o exemplo anteriormente citado, em relação ao contrato de financiamento para consumo, que no direito português consubstancia coligação ex lege, no direito brasileiro, segundo a doutrina de Xxxxxxxxx Xxxxxx, por sua vez, é classificado como coligação voluntária implícita.
É que, esclarece o mencionado autor, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro não faz menção expressa à coligação entre o financiamento e o fornecimento para consumo. Limita- se, todavia, a enquadrar o fornecedor e instituição financeira na definição ampla de “fornecedor” prevista no art. 3.º, § 2.º292.
O art. 52.º do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, a seu turno, fala em “fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor”, deixando claro, portanto, que o contrato de financiamento é um contrato tipicamente de consumo. Todavia, em momento algum o Código de Defesa do Consumidor brasileiro fala expressamente em coligação entre o fornecimento para consumo e o financiamento. Tampouco refere-se aos efeitos produzidos por esse tipo de coligação. Em suma, restou omisso em todos os aspectos, quanto à coligação desses contratos.
Não obstante, como já visto, é nítida a relação de interdependência entre os contratos de fornecimento para consumo (de bens ou serviços) e o de financiamento: a razão deste último é viabilizar o primeiro negócio. E, por essa razão, ambos negócios jurídicos devem ser interpretados de forma unitária e complexa.
Nesse sentido, a jurisprudência brasileira é pacífica no sentido de reconhecer a coligação entre o contrato de financiamento e o de compra e venda, quando a instituição financeira mantém vínculo com o vendedor. Confira-se, a título exemplificativo, trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
291 Artigo 236.º do Código Civil
(Sentido normal da declaração)
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
292 Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
(...)
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista
APELAÇÃO. CONTRATOS DE FINANCIAMENTO E COMPRA E VENDA DE MÓVEIS CONEXOS. AÇÃO DE RESCISÃO DOS CONTRATOS. CONTRATOS COLIGADOS. LEGITIMIDA DE PASSIVA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA RECONHECIDA. SENTENÇA REFORMADA.
APELAÇÃO PROVIDA, COMOBSERVAÇÃO. Celebrados contratos coligados de compra e venda de móveis e financiamento, sujeitam-se ao regime do Código de Defesa do Consumidor. Em razão da conexão contratual e dos preceitos consumeristas, o agente financiador também é parte legítima para responder à ação contra si também proposta.
(...)
Houve a congruência de dois contratos celebrados em autêntica simultaneidade, nascidos do mesmo móvel e com interesses comuns e econômicos para todos os envolvidos:(i) os compradores precisavam de dinheiro para a aquisição dos móveis;(ii) as vendedoras receberam o preço; e (iii) o agente financeiro realizou o empréstimo com retorno remunerado.
(...)
É indiscutível que o financiamento realizado entre os autores o banco réu-apelante visou a compra dos móveis. Daí vislumbra-se que os negócios jurídicos envolveram as três partes, a saber: fornecedor, consumidor e agente financeiro293.
Tem-se, portanto, que a coligação expressa pressupõe a existência de uma cláusula expressa que estabelece o vínculo de dependência entre um contrato. Já a coligação implícita exige a análise e interpretação mais aprofundada das circunstâncias em que foram celebrados os ajustes, para determinação do vínculo existente entre eles.
Por fim, é de se observar que cláusula que as partes estipulam, de forma expressa, a inexistência de coligação contratual (cláusula de separação), não possui valor absoluto, devendo ser confirmada através da análise e interpretação dos contratos. Ou seja, o Juiz deverá verificar a presença ou não de conflito da cláusula de separação com os demais termos e condições do contrato, que eventualmente possam apontar para uma efetiva coligação contratual294.
293 XXXXXX, Xxxxxxx de relat. – Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com número 1000884- 61.2018.8.26.0008, de 26 de novembro de 2018 [Em linha]. [Consult. 14 abr. 2019]. Disponível em xxxxx://xxxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxx/xxxxxXxxxxxxxxXxx.xx?xxxxxxXxxxxxxxxxX&xxXxxxxxxxx0000000- 61.2018.8.26.0008&cdProcesso=RI004TUUA0000&cdForo=990&tpOrigem=2&flOrigem=S&nmAlias=SG5TJ &cdServico=190201&ticket=29f5f9cdrbXDUsGCpBRZGjbDmGLf%2FMwTyeWqRiDkbRiCy4IUZbNOKN4F 0xYudKlvFM0nb4oEexavIFmX%2BgP99n01dlp92%2BGHI0iHgKWVoS2vkQg%2Fd2Uzp%2BGny%2BKR% 2BYOwYdiFAZdgnhdV3sWpU2yzuHeRvhBITONEPT7TfAKhOGxN1IBVi%2FH23joycAJRDvmlniuNgCYL g3MxvlWLJjdcV7Ytdm4Uf3enjEehwm7uMVGTX0JBO7cF%2FRvFb9RmsAkD
294 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 103.
Assim, identificando haver a coligação contratual, mesmo diante da previsão expressa da cláusula de separação, o Juiz deverá afastar a sua incidência. Essa medida justifica-se com base no já citado princípio da boa-fé.
Evidentemente, nos contratos de consumo ou de adesão, essa cláusula poderia ser considerada nula, em razão da sua abusividade. Essa declaração deverá ser feita pelo juiz da causa, diante das circunstancias do caso concreto, sobretudo, diante da verificação da existência de benefício de uma das partes em relação à outra, com tal previsão295.
Por fim, também é possível afastar a caracterização do vínculo de coligação, ainda que não haja expressa previsão da cláusula da separação, com base no comportamento das partes, ao longo da relação contratual, pois, como visto anteriormente, é vedado às partes valerem-se de comportamentos contraditórios. Assim, diante da aplicação do princípio do venire contra factum proprium e da suppressio, pode o juiz afastar a coligação dos contratos296.
3.3. Contratos Coligados x Contrato Único x Contrato Misto
Antes de prosseguir com o tema, necessário se faz uma breve distinção entre as espécies
(i) contrato coligado (“união com dependência”); (ii) contrato único; e (iii) contrato misto. Como visto anteriormente, os contratos coligados são identificados pela existência de uma pluralidade de negócios jurídicos dependentes entre si, celebrados pelas mesmas partes ou não. Já o negócio jurídico único, define-se pela existência de unidade contratual e pode ser classificado como unitário (ou simples) ou complexo, dependendo da existência ou não de
pluralidade de (i) sujeitos; (ii) objetos ou prestações; ou (iii) manifestações de vontade297.
Será, portanto, complexo, todo aquele negócio jurídico que seja composto por várias declarações de vontade; sujeitos; ou que preveja diversas prestações ou objetos. Note-se que, ao contrário dos contratos coligados, os contratos complexos são assim definidos pela condição complexa da operação, mas não pela existência de uma pluralidade de negócios298.
Figure-se como exemplo, a hipótese das partes celebraram negócio jurídico, por meio do qual A1 e A2 venderam a B1 e B2, pelo preço € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros), (a) 20% das cotas sociais da empresa X; (b) um imóvel rural com 138,03 hectares; e (c) direitos minerários inscritos na DNPM relativos à água mineral. Essa venda deveria ser paga em
295 Ibidem.
296 Idem – Op. Cit. p. 104.
297 MIRANDA, Pontes de – Tratado de direito privado. Vol. 3. p. 173-178.
298 Ibidem.
prestações, sendo uma parte em dinheiro (€ 4.150.000,00 em parcelas) e outra parte pela entrega de 10 casas em construção (€55.000,00 cada uma) e do posto de combustível Y, no valor de
€300.000,00 (considerando o seu fundo de comércio), tendo-se fixado, ainda, várias datas para os adimplementos parciais por ambas as partes, de obrigações mútuas299.
Note-se no exemplo acima, que a complexidade da operação é aferível prima facie e por si só, estando presentes todos os requisitos para a sua caracterização: pluralidade de partes (A1, A2, B1 e B2); existência de diversas prestações (parte em dinheiro; entrega de 10 casas em construção; posto de combustível; parte delas a serem entregues em diversas datas de vencimento); e diversos objetos envolvidos (preço € 5.000.000,00; 20% das cotas sociais da empresa X; um imóvel rural com 138,03 hectares; direitos minerários inscritos na DNPM relativos à água mineral). É evidente, portanto, tratar-se de um “negócio jurídico complexo”300.
Já os contratos mistos, segundo as lições do professor Xxxxxxxxx, são resultado da fusão de dois ou mais contratos; de partes de contratos distintos; ou da existência de aspectos próprios de outro contrato. Isto é, forma-se o contrato da conjugação de elementos de diversos contratos típicos. Pode-se dizer, assim, que o contrato misto ‘um contrato composto por diversos tipos contratuais301.
Em outras palavras, os contratos mistos caracterizam-se pela combinação de cláusulas elaboradas pelas partes, de forma livre, com cláusulas de um contrato típico. Trata-se, portanto, de um contrato unitário (ou simples), que não é integralmente típico, tampouco essencialmente atípico302, mas que reúne elementos de dois ou mais negócios previstos em lei303.
A possibilidade de formação de contratos mistos decorre da própria regra insculpida no n.º 2 do art. 405.º do Código Civil (em se tratando de contratos administrativos, observar-se as regras previstas no Código dos Contratos Públicos, em especial art. 32.º), onde se consagra a ampla autonomia da vontade contratual, de maneira que os contraentes podem, no mesmo contrato, reunir regras de dois ou mais negócios, obviamente, mantendo um processo unitário e autônomo de composição de interesses.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx Enei diferencia os contratos coligados dos contratos atípicos mistos, pois os primeiros “não correspondem à mera soma de prestações de natureza diversa a formar
299 RIBAS, Rogério relat. – Acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná com número 4095718, de 22 de março de 2006 [Em linha]. [Consult. 14 abr. 2019]. Disponível em xxxxx://xx- xx.xxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx/0000000/xxxxxx-xx-xxxxxxxxxxx-xx-0000000-xx-0000000-0
300 Ibidem.
301 INOCÊNCIO, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 469.
302 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Op. Cit. Vol. 3, p. 116.
303 XXXXXX, Xxxxxxx – Op. Cit. p. 279.
um único e particular contrato, mas à união de contratos que, embora preservando a sua individualidade estrutural, comungam de uma mesma finalidade econômica”304.
Xxxxxxxx Xxxxxx, por sua vez, diferencia os contratos mistos dos contratos coligados, esclarecendo que, no primeiro caso, o contrato resulta combinação de elementos de mais de um contrato típico, de modo a formar uma espécie contratual nova, não prevista em lei. Trata-se de um contrato, único, que, apesar disso, possui elementos de diversos contratos.
Nas palavras do autor, “Xxxxx é o contrato que resulta da combinação de elementos de mais de um contrato típico, formando uma nova espécie contratual não esquematizada na lei. Apresentam-se como uma unidade, ou seja, um só contrato, embora integrado por componente extraídos de diversas figuras negociais típicas. Na coligação, vários contratos distintos são aperfeiçoados, sem formarem uma unidade contratual, diversamente do que se passa com o contrato misto. Há, no regime jurídico, uma grande semelhança entre as duas figuras de atipicidade, mormente quando o conjunto dos contratos coligados se caracterize pela intenção das partes de trata-los como um todo”305.
Essa distinção faz-se importante, pois, muitas vezes, a jurisprudência trata os termos como equivalentes, quando, em verdade não o são. Veja-se, meramente a título exemplificativo, trecho da ementa do acórdão proferido pela Primeira Câmara Cível pelo Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul:
Ementa: Ação declaratória de nulidade de contratos. Pedido sucessivo alternativo de unidade essencial. Objeto ilícito. Contratos comutativos. Cláusulas leoninas. Contratos coligados ou mistos (...) Formam uma unidade essencial os contratos coligados, ou contratos mistos, em que haja uma unidade de causa, ou uma unidade de propósitos, uma união com dependência. Se os diversos contratos celebrados – locação, concessão para exploração de negócio comercial, fornecimento de produto e comodato – visam permitir, de um lado, o comércio atacadista de determinados produtos e, de outro lado, o comércio varejista dos mesmos produtos, tais contratos são coligados ou mistos, porque entre eles existe recíproca independência, recíproca coordenação, enlaçam-se pelo caráter unitário da mesma operação econômica. Destarte, a rescisão ou extinção de um implica a rescisão ou extinção dos demais306.
304 ENEI, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx. Contratos Coligados. Op. Cit. p. 113.
305 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx – Locação comercial coligada com promessa de venda e compra. Desequilíbrio econômico do negócio. Revisão contratual. Princípio da boa-fé objetiva. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. p. 90.
306 XXXXXXX, Lio Cezar relat. – Acórdão da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul com número 184037216, 04 de dezembro de 1984 [Em linha]. [Consult. 05 jan. 2019]. Disponível em xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxx-xxxxx/xxxxxxxx?xxxxxxxxx-xxxxx&xxx00000
O acordão em questão, ao analisar a dependência existente entre os contratos de arrendamento, concessão para exploração de negócio comercial, fornecimento de produto e comodato, visando, em última instância, a comercialização (revenda) de gasolina e demais derivados do petróleo refere-se ao conceito de contratos coligados. Todavia, de forma equivocada, utiliza-se da expressão (instituto) “contratos mistos” como sinônimo de “contratos coligados”.
Não raro se verifica a indevida confusão que muitas vezes os julgados promovem entre esses dois conceitos técnicos, que não se confundem. O contrato coligado diferencia-se, como visto, por representar uma pluralidade de contratos celebrados pelas partes, que possuem um vínculo de dependência e interligação. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxxxxxxx, “Nos contratos coligados estes são desejados como um todo, pois isoladamente cada contrato não viabilizaria o interesse dos contratantes Os contratos condicionam-se reciprocamente em sua existência e validade e, agregados, formam uma unidade econômica”307.
Por sua vez, os contratos mistos caracterizam-se pela existência de um único ajuste, que possui elementos de negócios jurídicos previstos em lei (contratos típicos), assim como cláusulas estabelecidas, livremente, pelas partes, que não possuem previsão legal (contrato atípico). É, pois, fruta da combinação de elementos de contratos típico com atípico.
3.4. Contratos coligados x Redes contratuais
Apesar de não fazermos diferença teórica neste trabalho entre os contratos coligados e as redes contratuais, não poderíamos deixar de mencionar, a título acadêmico, essa distinção feita por parte da doutrina.
De acordo com as lições de Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, as redes contratuais diferenciam- se dos contratos coligados, por pressuporem a existência de dois ou mais contratos relacionados entre si destinados, especificamente, à oferta de produtos e serviços ao mercado para consumo308.
Como exemplos de redes contratuais, pode-se citar aquelas formadas por contratos de cartão de crédito, de concessão, planos de saúde, franquias, distribuição, dentre outras309.
307 XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx – Manual de direito civil. p. 843.
308 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx – Os contratos coligados. In Estudos de Direito Civil, Internacional Privado e Comparado. Coletânea em Homenagem à Professora Véra Xxxxx Xx Xxxxxxx.
309 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 96.
Segundo a doutrina de Xxxxxxxxx Xxxxxx, é possível estabelecer a distinção entre as redes contratuais e os contratos coligados, ao menos, em três aspectos: (i) as redes contratuais correspondem ao fenômeno dos contratos em massa, enquanto que os contratos coligados não possuem, necessariamente, qualquer vínculo com esses tipos de contratos; (ii) nas redes contratuais, uma das partes estrutura o contrato, ao qual uma multiplicidade de contratos se ligam, o que não ocorre na coligação; (iii) a invalidade de um dos contratos da rede não afeta, em absoluto, os demais, o que não é verdade na coligação contratual que, ao contrário, é caracterizada, justamente, pela repercussão, no campo da invalidade ou ineficácia, que um contrato é capaz de causar a outro.
3.5. Consequências Jurídicas
As principais consequências jurídicas dos contratos coligados são, de acordo com Xxxxxxxxx Xxxxxx, relativas à: (i) interpretação; (ii) qualificação; (iii) derrogação do regime jurídico típico; (iv) plano da validade; e (v) plano da eficácia310.
É certo, ainda, que algumas espécies de coligações geram consequências específicas, enquanto que outras diferem-se apenas pelo seu grau (maior ou menor) de intensidade.
Apenas a título exemplificativo de uma situação em que a coligação contratual repercute em menor intensidade, pode-se citar o caso da coligação voluntária, em que uma das partes é figurante em um dos contratos coligados, mas está alheio à coligação311.
Concretamente, imagine-se a seguinte hipótese: “A” celebra contrato com “B”, por meio do qual se compromete a fabricar e entregar determinado produto. Para tanto, todavia, “A” necessita adquirir equipamentos específicos para sua linha de produção, o que o faz através de contrato de compra e venda com “C”. Note-se que, nesta situação, “C” integra a coligação contratual, mas está totalmente alheio à mesma. Por essa razão é que, eventuais problemas no contrato de compra e venda de equipamentos celebrado com “C”, poderão repercutir no contrato entre “A” e “B”. Mas, o contrário não é verdade. Ou seja, ainda que “A” tenha problemas relacionados ao contrato entabulado com “B”, essas questões não afetam a relação estabelecida com “C”. Portanto, se “B” decide rescindir antecipadamente o contrato com “A”, por óbvio, “A” não poderá opor essa questão à “C”. Entretanto, poderá pleitear de “B” a reparação pelos danos sofridos312. Veja-se, para melhor compreensão, o esquema ilustrativo abaixo:
310 Idem – Op. Cit. p. 140/142.
311 Idem – Op. Cit. p. 141/142.
312 Idem – Op. Cit. p. 142.
Rescisão antecipada: B indeniza A, pelos prejuízos sofridos com o contrato entre A e C
C
A | B | |
Contrato de compra e venda de matéria-prima
Contrato de fabricação e entrega de produto
Como se percebe, o fato de uma das partes da coligação possuir ciência de que integra a coligação influencia, diretamente, o seu grau de intensidade.
Vejamos, a seguir, independentemente do grau de intensidade da coligação, quais as possíveis consequências desse fenômeno jurídico.
3.5.1. Interpretação dos contratos coligados
Como visto, os contratos coligados nascem da complexidade e plurilateralidade que as operações econômicas assumiram na sociedade contemporânea. Tratam-se, portanto, de contratos que, apesar de manterem a sua individualidade própria, encontram-se vinculados de tal maneira, que possuem uma relação de interdependência unilateral ou recíproca entre si, por força de disposição legal, contratual (expressa ou implícita) ou mesmo por natureza acessória de um deles313.
Em virtude de sua ligação, esses negócios estruturalmente independentes perseguem uma finalidade que ultrapassa a mera soma das próprias finalidades individuais314 e, justamente em decorrência dessa relação, que a interpretação dos contratos coligados exige a análise do vínculo como um todo.
É nesse sentido que Clóvis do Couto e Xxxxx afirma que a tarefa de interpretação dos contratos coligados, ao contrário da ideia clássica (uma obrigação em oposição ao direito subjetivo da outra parte), deve se dar sob o ângulo de todos os ajustes, vistos como um todo315.
313 XXXXX, Xxxxxxx – Contratos. p. 99.
314 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 189.
315 Apud CASCAES, Xxxxxx Xxxxx – A Interpretação dos Contratos Coligados. Revista Jurídica Luso Brasileira. p. 117.
Nesse cenário, durante o processo de interpretação dos contratos coligados, cabe ao intérprete (i) identificar a existência (ou não) da coligação; (ii) identificar, na hipótese de verificada a presença da coligação, qual o grau de intensidade de repercussão ou influência que um contrato exerce sobre o outro316, de modo que possam ser interpretados de forma conjunta. De acordo com as lições de Xxxxxxxxx Xxxxxx, as formas possíveis de interpretação dos contratos coligados são: (i) interpretação conjunta; (ii) interpretação objetiva; (iii) interpretação
que considera a hipótese ideal do fim do contrato.
Na interpretação conjunta dos contratos coligados, o intérprete deve atentar-se mais à intenção das partes do que ao sentido literal da linguagem empregada, bem como pautar-se na boa-fé e nos usos do lugar (art. 236.º, n.º 2 do CC português; arts. 112.º e 113 do CC brasileiro)317, razão pela qual deve levar em consideração, além da linguagem literal, o contexto verbal e circunstancial das declarações de vontade, para que seja possível aferir a extensão da coligação318.
Portanto, na interpretação conjunta dos contratos coligados, deve-se atentar a todas as circunstâncias da operação ou das operações econômicas almejadas pelas partes. Para tanto, esclarece Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “é preciso se ater às circunstâncias do caso, pois em cada caso, em cada contrato, serão as circunstâncias que darão o tom, vale dizer – constituirão o filtro
–, pelo qual devem ser ponderados e sopesados os princípios e as regras contratuais, por isso, tendo importância decisiva no modo e na escala de aplicação dos princípios, permitindo discernir entre o seu valor facial, ou meramente normativo, e o seu valor propriamente hermenêutico”319.
Nesse sentido, vale citar as lições de Xxxxxx Xxxxxxxxxxxx, quanto à interpretação dos contratos coligados: “(...) A interpretação dos contratos coligados, em razão de comporem uma rede econômica unitária relacionada a uma causa concreta conexa, deve ser global, ou seja, os contratos coligados devem ser interpretados conjuntamente, com atenção especial para todas as
316 Apud CASCAES, Xxxxxx Xxxxx – A Interpretação dos Contratos Coligados. Revista Jurídica Luso Brasileira. p. 117.
317 Art. 112 do Código Civil brasileiro: Xxx declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Art. 113 do Código Civil brasileiro: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Artigo 236.º do Código Civil português (Sentido normal da declaração)
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
318 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 146.
319 XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx – Teoria Geral dos Contratos. p. 269.
circunstâncias da operação ou das finalidades e objetivos econômicos perseguidos pelas partes. A interpretação dos contratos coligados, como não poderia deixar de ser, deve ser pautada nos princípios da função social e da boa-fé objetiva (deveres de conduta e colaboração reciproca entre os contratantes nos diversos contratos reunidos)”320.
E sobre contexto circunstancial das declarações de vontade das partes, entende-se, de acordo com as lições de Xxxxxxxxx Xxxxxx, como (i) o tempo e o lugar na criação e execução do contrato; (ii) a qualidade das partes envolvidas; (iii) eventual relação entre as partes envolvidas; (iv) o comportamento das partes nas tratativas e na fase de cumprimento do contrato; e (v) a qualidade do bem da vida objeto do contrato321.
De fato, o comportamento das partes no curso da relação contratual desempenha importante papel na identificação e definição da coligação. A doutrina reconhece que esse tipo de circunstância negocial (os atos, atividades, comportamentos das partes, bem como as circunstâncias que tenham conexão finalística com o negócio), são igualmente determinantes na identificação da real intenção das partes e, portanto, no reconhecimento da coligação contratual. Nesse sentido, vale citar uma vez mais, as precisas lições de Giovanni Ettore Nanni322:
Na interpretação conjunta dos contratos coligados, cumpre atentar a todas as circunstâncias da operação ou das operações econômicas almejadas pelas partes. Para tanto, é preciso se ater às circunstâncias do caso, pois em cada caso, em cada contrato, serão as circunstâncias que darão o tom, vale dizer – constituirão o filtro –, pelo qual devem ser ponderados e sopesados os princípios e as regras contratuais, por isso, tendo importância decisiva no modo e na escala de aplicação dos princípios, permitindo discernir entre o seu valor facial, ou meramente normativo, e o seu valor propriamente hermenêutico. O exame das ‘circunstâncias do caso’ implica a consideração do inteiro comportamento dos contraentes, avaliando-se inclusive efeitos que o comportamento negocial provoca na esfera jurídica alheia, concretamente considerada, seja a conduta anterior à conclusão do negócio, seja a posterior, por conta do princípio da confiança. É também importante atentar para outros atos, atividades, comportamentos ou circunstâncias que tenham conexão finalística com o negócio, considerado em sua funcionalidade econômico-social (princípio da utilidade). Essas circunstâncias formam o contexto da declaração, permitindo detectar, com
320 XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx – Manual de direito civil. 1.ª ed. Xxxxxxxx: JusPODIVM, 2017. ISBN: 9788544214695. p. 843.
321 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 149.
322 XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 269.
caráter de objetividade, a ‘intenção consubstanciada na declaração’ (art. 112º, In fine), pois o Código acolheu a teoria da confiança que configura, em termos de ciência jurídica, a adstrição a um princípio objetivo, mas sujeito à determinação do caso, isto é, sujeito à concretização (p. 269).
Assim, é da análise dessas circunstâncias que é possível identificar a real intenção das partes, para que, ao final, se possa determinar a existência ou não da coligação contratual. Nessa linha de raciocínio, figura-se, com exemplo de interpretação conjunta dos contratos coligados, para fins de determinar suas consequências jurídicas, a seguinte hipótese: “A” (comerciante) celebra com “B” (produtor de café) contrato por meio do qual se obriga a adquirir café torrado, a razão de € 100,00 (cem euros) por quilo de café. O contrato não prevê prazo de duração, tampouco quantidade mínima que “A” deveria adquirir de “B”.
Em paralelo, “B” celebra outro contrato de mútuo com “A”, por meio do qual empresta
€ 10.000,00 (dez mil euros) a “A”, através da entrega de uma máquina de café, estabelecendo- se que a amortização do débito se daria através do fornecimento de café torrado.
Imagine-se, todavia, que “A” decida, unilateralmente, rescindir o contrato de mútuo, antes que tenha quitado completamente o saldo devedor. Em uma interpretação literal, o contrato de fornecimento de café também poderia ser rescindido por “A”, uma vez que sempre vigorou por prazo indeterminado. Todavia, a interpretação conjunta dos contratos leva à conclusão diferente. Se o quilo do café era vendido a € 100,00 (cem euros) e o empréstimo fora concedido no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), evidente que as partes tinham a legitima expectativa de que, ao menos, 100 quilos (€ 100,00 x 100 quilos = € 10.000,00) fossem ser vendidos/adquiridos.
Portanto, por meio da interpretação conjunta dos contratos coligados, é possível determinar-se o prazo mínimo de duração do contrato de fornecimento de café, qual seja, o tempo suficiente para que aquela determinada quantidade de café fosse vendida (evento certo, de data incerta)323.
Tem-se que na tarefa de interpretação dos contratos coligados, o intérprete deve considerar o contexto circunstancial em que foram entabulados os ajustes, para que possa aferir a real intenção das partes. Não se pode, portanto, analisar os contratos de forma isolada, mas deve-se considerar as circunstâncias “que o rodeiam, sob pena de erro grave”324.
Na coligação ex lege, a interpretação dos contratos far-se-á de acordo com as disposições previstas em lei. Na coligação natural, muito embora seja da própria natureza desse
323 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 148-149.
324 CASCAES, Xxxxxx Xxxxx – A Interpretação dos Contratos Coligados. Op. Cit. p. 117.
tipo de coligação, a relação de dependência unilateral entre os ajustes, caberá ao intérprete identificar eventual discrepância na coligação dos ajustes325.
Na coligação voluntária, sobretudo quando implícita, a interpretação dos contratos ganha papel de destaque, na medida em que a análise de todas as circunstâncias e identificação da real vontade das partes, no que chama Xxxxxxxxx Xxxxxx, de “reconstrução do conteúdo dos contratos” será determinante para se determinar as consequências jurídicas da coligação326.
Na interpretação objetiva do contrato coligado, o intérprete deve “desenvolver ao máximo as potencialidades do conteúdo do contrato”327. Portanto, se as cláusulas contratuais não dispuseram, de forma clara, acerca da intensidade dos contratos coligados, caberá ao intérprete considerar todas as circunstâncias do contrato, sob uma ótica objetiva, para tentar alcançar as suas consequências.
Um exemplo disso, é o caso em que “A” (vendedor) celebra contrato de compra e venda do terreno “X”, com “B”, e, na mesma data, celebra uma promessa de compra e venda, em que promete vender a “B” dois terrenos contíguos ao terreno “X”.
“B” quita o preço do terreno “X” e é imitido na posse sua posse. Todavia, deixa de adimplir com as parcelas relativas aos terrenos contíguos. Assim, “A” pleiteia a resolução de ambos os contratos, fundado na exceção do contrato não cumprido.
De fato, inexiste qualquer cláusula expressa vinculando ambos os ajustes, que têm por objeto terrenos distintos e preços determinados e certos para cada uma das operações. Todavia, da interpretação dos mesmos, identifica-se os seguintes elementos: (a) os ajustes foram celebrados na mesma data; (b) os terrenos contíguos (nos quais há apenas a área de lazer e piscina) não possuem qualquer utilidade, sem o terreno “X”, no qual encontra-se construída a casa; (c) indivisibilidade dos imóveis. Esses fatores circunstanciais são suficientes para se determinar a existência da coligação entre os ajustes e a sua interdependência. Portanto, desfazendo-se um dos ajustes, o outro também poderá ser desfeito328.
Por fim, o processo de interpretação deve considerar, ainda, a hipótese ideal do fim do contrato. Ou seja, o intérprete deve fazer o exercício de verificação de qual seria o resultado que as partes alcançariam se o contrato coligado produzisse todos os seus efeitos329. Nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, deve-se verificar o “resultado que, hipoteticamente,
325 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 145/146.
326 Idem – Op. Cit. p. 146.
327 Idem – Op. Cit. p. 150.
328 Idem – Op. Cit. p. 150/151.
329 Idem – Op. Cit. p. 156/157.
o negócio jurídico atingiria, se todos os efeitos, dele decorrentes, se concretizassem”330. Dessa maneira, é possível identificar o efeito unificador do conteúdo do contrato, bem como o seu sentido global.
Na coligação voluntária expressa, por exemplo, o fato de as partes terem optado por vincular dois ajustes autônomos e independentes, demonstra que pretendem alcançar um determinado fim, que não se limita ao individualismo de cada um dos ajustes. Levar em consideração o fim dos contratos no processo de interpretação, tem, portanto, papel fundamental para identificação da intensidade e consequências da coligação331.
A título exemplificativo, pode-se citar a seguinte hipótese: “A” exerce a atividade de venda de mercadorias no seu estabelecimento “X”, quando decide transferir o negócio a “B”. Assim, “A” e “B” celebram dois contratos, um por meio do qual “A” arrenda o imóvel a “B” para funcionamento do mercado; e outro por meio do qual vende as mercadorias a “B”. Uma vez consumada a compra e venda das mercadorias, “B” é notificado pela Prefeitura, de que a licença para funcionamento de mercados naquela área havia sido revogada332.
Nesse exemplo, verifica-se claramente a existência da coligação contratual, na medida em que os dois contratos (arrendamento e compra e venda de mercadorias) possuem o mesmo objetivo fim: a exploração da atividade comercial de compra e venda de mercadorias.
Note-se que a atividade já vinha sendo exercida por “A”, que, decide, transferir o negócio a “B”, por meio dos ajustes acima. Neste caso, extinguindo-se a possibilidade do objetivo fim dos contratos serem atingidos, não se tem dúvidas de que B poderia postular o desfazimento de ambos os negócios, repita-se, considerando o fim do contrato a que as partes pretendiam alcançar, isto é, que as mercadorias fossem vendidas no mercado, instalado no imóvel de “A”.
Note-se que uma interpretação isolada e unitária dos ajustes mencionados não seria suficiente para que se pudesse autorizar o desfazimento de ambos negócios jurídicos. Apenas após a análise da finalidade e as circunstâncias em que foram celebrados os contratos é que é possível alcançar-se a real intenção das partes e inferir-se, assim, a relação de dependência entre um e outro, capaz de autorizar o desfazimento dos negócios.
330 AZEVEDO, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx – Xxxxxxx jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. p. 107.
331 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx Op. Cit. p. 157
332 Idem – Op. Cit. p. 158 e 160.
Tecidas essas considerações acerca das formas de interpretação dos contratos coligados, bem como seu crucial papel na determinação da intensidade e efeitos da coligação, passemos à análise das consequências relativas à qualificação dos contratos coligados.
3.5.2. Qualificação dos contratos
Outra das consequências jurídicas da coligação contratual é a possibilidade de alteração da qualificação jurídica (típica ou atípica) dos contratos envolvidos. Assim, apesar de um contrato, quando analisado de forma individual e autônoma, poder ser qualificado juridicamente de uma maneira (por exemplo, um contrato de arrendamento), nas hipóteses de coligação, essa qualificação pode vir a ser alterada.
É o caso, por exemplo, dos contratos firmados entre distribuidora de combustíveis e postos de combustíveis, em que se preveja o arrendamento de espaço que possui a estrutura necessária para funcionamento de um “posto de gasolina”.
Nesses casos, alguns Tribunais estaduais brasileiros, ao julgarem as ações de despejo (única ação adequada para reaver imóvel dado em arrendamento no Brasil) propostas pelos “postos de gasolina” contra as distribuidoras, vinham entendendo que esse tipo de contrato, em verdade, objetiva mascarar a real operação negocial por de trás deles, consistentes na distribuição, compra e revenda de combustíveis, e utilização e divulgação da marca e, que, portanto, não seria cabível a ação de despejo, mas sim a ação de reintegração de posse.
Ou seja, em razão da interpretação dos contratos coligados, os Tribunais estaduais brasileiros vinham alterando a qualificação de um contrato expressamente denominado como de arrendamento para àquela que se ajustaria à real intenção das partes.
Em outro precedente, o Tribunal de Justiça de Goiás entendeu que esse tipo de contrato possuiria a natureza de locação sui generis. Veja-se trecho da ementa do acórdão proferido:
LOCAÇÃO E PROCESSUAL CIVIL - CONTRATO FIRMADO ENTRE DISTRIBUIDORA DE DERIVADOS DE PETRÓLEO E POSTO REVENDEDOR - NATUREZA SUI GENERIS - LEI N.º 8.245/91 TAMBÉM APLICADA - ILEGALIDADE DO CONTRATO EM RAZÃO DE CLÁUSULAS LEONINAS - IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL - APLICAÇÃO DA SÚMULA 05/STJ - ALÍNEA "C" - COTEJO ANALÍTICO DE UM DOS JULGADOS COLACIONADOS - AUSÊNCIA - SUBLOCAÇÃO NA MESMA DATA DA LOCAÇÃO
- INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO - CONSEQÜENTE LEGITIMIDADE DA SUBLOCADORA DE
FIGURAR NO PÓLO ATIVO DE AÇÃO DE DESPEJO - RECURSO PARCIALMENTE
CONHECIDO E, NESTA EXTENSÃO, PROVIDO. I - A atividade de revenda de combustíveis é essencialmente empresarial, podendo-se dizer que o contrato firmado entre distribuidora de derivados de petróleo e posto revendedor se trata de um contrato de locação sui generis, em que a Lei do Inquilinato rege apenas parte do negócio. II - A análise de ineficácia de contrato, quando o acórdão recorrido decide com base na interpretação dos dispositivos contidos no contrato e conclui pela existência de cláusulas leoninas, implica o reexame de cláusulas contratuais, o que é vedado pelo Enunciado Sumular n.º 05 desta Corte. (...) V - Não há que se falar na carência de ação de despejo, pois o art. 14 da Lei Locatícia é claro ao determinar que "aplicam-se às sublocações, no que couber, as disposições relativas às locações". Logo, uma vez cessada a conveniência na manutenção da sublocação pela sublocadora, a ação de despejo de que trata o art. 5º c/c art. 57, ambos da Lei n.º 8.245/91 é a cabível. VI - Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, provido333.
Não obstante, ao analisar a questão, o e. Superior Tribunal de Justiça, firmou entendimento do sentido de que os contratos firmados entre empresas de distribuição de combustíveis e as exploradoras de postos de combustíveis que envolvam a cessão de área, consubstanciam locação (arrendamento), regida pela lei de Locações Brasileira. Confira-se:
RECURSO ESPECIAL. NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO ENTRE DISTRIBUIDORA DE COMBUSTÍVEIS E "POSTO DE GASOLINA". LOCAÇÃO. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO CONTRATO. POSSIBILIDADE. LEI 8.245/91. APLICABILIDADE. AÇÃO DE DESPEJO.
ADEQUAÇÃO. I - O recurso especial é admissível na hipótese de qualificação jurídica dos fatos. (Precedentes). II - O contrato celebrado entre Distribuidora de Combustíveis e "Posto de Gasolina" tem natureza contratual de locação. III - Adequação da ação de despejo em virtude da aplicação da Lei 8.245/91. Recurso Especial provido (...) restou decidido pela 5ª Turma nos autos do REsp. 440.398/GO, em julgamento realizado em 03 de março de 2005, que as distribuidoras de combustíveis podem propor ação de despejo contra sublocadores de postos de gasolina, uma vez que por diversas vezes esta Corte
333 XXXXX XXX, Xxxx Xxxxxxx de relat. –Acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás apud – PARGENDLER, Xxx xxxxx. – Acórdão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça com número REsp. 440.398/GO de 09 de novembro de 2006 [Em linha]. [Consult. 25 mar. 2019]. Disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000000&xxx_xxxxxx ro=200501356113&data=20061204&formato=PDF
reconheceu a validade e eficácia do contrato de locação celebrado entre as mesmas, especialmente quando da discussão sobre a ilegitimidade da distribuidora para propor ação renovatória quando sublocado o "posto de gasolina" ao revendedor334.
Independentemente do entendimento adotado acerca da real qualificação desse tipo de contrato, interessa-nos observar o fato de que, a coligação contratual admite a modificação da qualificação dos ajustes que integram a rede dos contratos coligados, de acordo com as circunstancias e reais intenções das partes ao entabularem o negócio jurídico.
Nesse sentido, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx também reconhece que a coligação contratual pode importar na revisão das qualificações dos contratos335.
Em suma, a qualificação original dos contratos, aquela identificada quando analisados de forma pura, simples e individualizada, pode vir a ser modificada, em decorrência do reconhecimento da coligação contratual.
3.5.3. Derrogação do regime jurídico típico
No mesmo sentido, acima como por vezes a qualificação do contrato pode ser alterada em razão da coligação contratual, o próprio regime jurídico aplicável aos contratos pode sofrer modificações em razão dessa336.
Ou seja, outras das consequências jurídicas da coligação contratual é a possibilidade de o tipo contratual original sofrer modificações na sua natureza, de modo, inclusive, a afastar a aplicabilidade de parte da regulação a ele correspondente. E a razão é fundada no princípio de que as partes possuem liberdade para estabelecer livremente as disposições contratuais337.
A título exemplificativo, Xxxxxxxxx Xxxxxx cita o contrato de subarrendamento e o contrato de franquia. Nesses casos, o aluguel pago pelo subarrendatário-franqueado ao subarrendante-franqueador geralmente é superior ao próprio aluguel estabelecido no contrato de arrendamento, o que, em tese, violaria os arts. 21.º e 43.º, inciso I da Lei do 8.245/91 brasileira (Lei de Arrendamento, no Brasil, designada como Lei de Locações ou Lei do
334 XXXXXXX, Xxxxx relat. – Acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça com número REsp. 687.336/MG, 15 de março de 2005 [Em linha]. [Consult. 28 abr. 2019]. Disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000000&xxx_xxxxxx ro=200400946811&data=20050516&formato=PDF
335 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 200.
336 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 181/182.
337 Idem– Op. Cit. p. 182.
Inquilinato), que dispõe que o valor do subarrendamento não poderá ser superior ao valor do próprio arrendamento.
Todavia, analisando-se a questão do ponto de vista da coligação contratual, e considerando que o franqueador realiza as reformas e instalações no imóvel, necessárias a compatibilizá-lo com a estrutura exigida por sua franquia, justifica-se afastar a norma prevista na legislação específica de arrendamento338.
Em conclusão, a coligação contratual não somente acarreta a possibilidade de alteração da qualificação dos tipos contratuais coligados, mas também é capaz de derrogar regras do regime jurídico típico a ele aplicáveis.
3.5.4. Plano da validade e eficácia
O vínculo de dependência dos contratos coligados conduz, desde logo, à noção de que a invalidade de um contrato enseja a invalidade do outro a ele coligado. Todavia, essa ideia contradiz o princípio geral do direito de que se deve conservar ao máximo os negócios jurídicos celebrados339. Portanto, ainda que parte do negócio seja declarada nulo, segundo o princípio da conservação do negócio jurídico, deve-se manter a parte restante válida e produzindo seus efeitos.
Nesse sentido, o art. 292.º do Código Civil português e o art. 184.º do Código Civil brasileiro estabelecem, respectivamente, que “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada” e “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.
No caso de contratos administrativos, o Código dos Contratos Públicos, em seu art. 285.º, n.º 3, dispõe que “Todos os contratos públicos são suscetíveis de redução e conversão, nos termos do disposto nos artigos 292.º e 293.º do Código Civil, independentemente do respetivo desvalor jurídico”.
Ou seja, a invalidade parcial de um negócio jurídico ou redução de um ato negocial não o atingirá na parte válida, se esta puder subsistir automaticamente, desde que respeita a intenção
338 Idem– Op. Cit. p. 182/183.
339 Idem– Op. Cit. p. 189.
ou finalidade pretendida pelas partes, para que seja possível, dessa forma, conservar o negócio jurídico, ainda que parcialmente340.
Sobre o tema, vale citar acórdão do Superior Tribunal de Justiça, em que reconhece a possibilidade de reconhecimento da onerosidade excessiva para revisar um contrato, ao invés de rescindi-lo, como dita o art. 478.º do Código Civil brasileiro341. Confira-se: “Não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02 - que indica apenas a possibilidade de rescisão contratual - é possível reconhecer onerosidade excessiva também para revisar a avença, como determina o CDC, desde que respeitados, obviamente, os requisitos específicos estipulados na Lei civil. Há que se dar valor ao princípio da conservação dos negócios jurídicos que foi expressamente adotado em diversos outros dispositivos do CC/02, como no parágrafo único do art. 157 e no art. 170”342.
Como se vê, o esforço de se manter são o negócio jurídico, ainda que em parte e desde que respeitada a vontade das partes, consubstancia princípio geral do direito. Assim, de acordo com esse princípio, a invalidade de um contrato coligado não poderia ensejar a invalidade dos demais. Ou seja, estender-se a invalidade de um contrato ao outro a ele coligado parece violar essa regra do direito.
No entanto, essa ideia, na coligação dos contratos se revela incoerente. Isso porque, a vontade das partes era de estabelecer uma relação de dependência entre os diferentes negócios jurídicos. Não estender a invalidade de um para outro também contradiz o conceito da própria coligação343.
Nesse sentido, Carlos Nelson Konder344, leciona que, “ainda que o outro negócio não padeça da mesma vicissitude do negócio inválido, a falta de forma ou solenidade exigida em lei ou outra causa específica de nulidade, é razoavelmente pacífica a consideração que a coligação pode importar em sua ineficácia (lato sensu), por meio da invocação do aforismo latino simul stabunt, simul cadente”.
Com efeito, de acordo com Xxxxxxxxx Xxxxxx, a melhor solução para a problemática é analisar o tipo de coligação existente, se unilateral ou bilateral, bem como qual dos contratos
340 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx – Código civil anotado: com comentários à lei de introdução ao código civil. p. 204. 341 Art. 478 do Código Civil brasileiro. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
342 XXXXXXXX, Xxxxx relat. – Acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça com número REsp. 977.007/GO, 24 de novembro de 2009 [Em linha]. [Consult. 28 mar. 2019]. Disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000000&xxx_xxxxxx ro=200701891350&data=20091202&formato=PDF
343 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 190/191.
344 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 221/222.
serve de maneira acessória ao principal, isto é, qual deles possuiria maior importância do que o outro. Diz, ainda, de maneira geral, que na coligação unilateral haveria um contrato com maior importância do que o outro e na coligação bilateral essa importância seria equivalente345.
Segundo o autor, no caso da coligação unilateral, vinculado pelo critério de acessoriedade, a invalidade ou ineficácia de um poderá se estender ao outro. Essa questão torna- se, todavia, mais complexa em se tratando de coligação bilateral.
Nesse último caso, caberá ao intérprete analisar e considerar, sobretudo, o fim a que visavam atingir as partes por meio de ambos os contratos. É apenas no caso em que o fim concreto não puder ser atingido que a invalidade de um dos contratos poderá ser declarada e, ao mesmo tempo, invalidado o outro contrato a ele coligado346.
É o caso, por exemplo, do arrendamento e subarrendamento: em sendo o arrendamento anulado, por óbvio que o subarrendamento o será. Outro exemplo, muito comum na jurisprudência, é o caso de compra e venda de imóvel com financiamento. O contrato de financiamento, indiscutivelmente, somente existe em razão do contrato de compra e venda. Assim, sendo o primeiro anulado, por exemplo, em razão do atraso na entrega da obra, por óbvio, que o contrato de financiamento também o será, ainda que celebrado com pessoa diversa (instituição financeira) da parte vendedora, porque, repita-se, o empréstimo é condicionante da compra e venda, de modo que, sem ele esta última não se concretiza. Nesse sentido, vale colacionar trecho do acórdão proferido pelo e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Confira-se:
(...) O contrato de compra e venda celebrado por quem negocia com consumidor que depende de financiamento para efetuar a aquisição é coligado com o de financiamento, ainda que a financeira seja pessoa diversa da vendedora. O empréstimo é condicionante da compra e venda; sem ele essa última não se concretiza.
Daí que o consumidor, se pretender o desfazimento da compra e venda, deverá pleitear também o de financiamento. Sendo a vendedora pessoa distinta da do mutuante, ambas devem ser demandadas, cada qual em relação ao contrato que ajustou.
345 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx – Op. Cit. p. 192.
346 Idem– Op. Cit. p. 193/194.
É de se convir que a extinção de um contrato coligado importa necessariamente a extinção do outro, independentemente da existência ou não de irregularidades ou vícios no contrato de financiamento347.
O julgado acima demonstra, de forma muito clara, como é possível que a invalidação de um contrato tenha repercussão direta no outro contrato a ele coligado.
Assim, do mesmo modo como a invalidade de um negócio jurídico pode repercutir no plano da validade do outro contrato a ele coligado, a ineficácia de um pode afetar a eficácia do outro ou não, conforme a análise do caso concreto (sendo possível verificar que o fim perseguido pelas partes ainda pode ser atingido, a ineficácia não contamina o outro contrato).
3.6. A exceção do contrato não cumprido na união de contratos (contratos coligados)
A exceção do contrato não cumprido, como anteriormente discorrido, é a faculdade que cada uma das partes detém, nos contratos bilaterais (sinalagmáticos), de recusar o cumprimento da sua prestação enquanto a contraprestação devida não for cumprida pela outra parte ou esta não oferecer o cumprimento simultâneo da contraprestação348.
Trata-se de importante mecanismo que funciona como uma garantia do excipiente em relação ao devedor insolvente e, ao mesmo tempo, como um eficaz meio coercitivo de obrigar o devedor a cumprir a sua parte no negócio jurídico estabelecido entre as partes349.
A grande questão que ora se pretende analisar é quanto ao cabimento da sua oposição no âmbito dos contratos coligados. E, para que se compreenda o alcance e importância dessa discussão, imagine-se a seguinte situação, vivenciada diariamente por inúmeros de consumidores: um consumidor comparece ao balcão de vendas de unidades imobiliárias de uma determinada incorporadora, que lhe oferece a possibilidade de obter um financiamento imobiliário, para aquisição da unidade, em condições mais favoráveis, por meio de uma financiadora parceira.
O consumidor celebra, então, o contrato de promessa de compra e venda da unidade imobiliária com a incorporadora, juntamente com o contrato de mútuo e alienação fiduciária com a financiadora. A financiadora paga à construtora o preço à vista para aquisição da unidade
347 XXXX, Xxxxxxxx relat. – Acórdão da 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com número 0052197-37.2007.8.26.0114, 19 de outubro de 2015 [Em linha]. [Consult. 17 abr. 2019]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/
348 ABRANTES, Xxxx Xxxx – Op. Cit. p. 35.
349 XXXXX, Xxxx Xxxxxx da – Op. Cit. p. 337/338.
imobiliária e, na sequência, cobra do consumidor, conforme as cláusulas pactuadas no ajuste, as parcelas relativas ao financiamento.
No curso do pagamento das parcelas do financiamento, a construtora atrasa a obra e, consequentemente, a entrega das chaves da unidade imobiliária ao consumidor. Assim, indaga- se: o consumidor poderia invocar a seu favor a exceção do contrato não cumprido, de maneira a interromper o pagamento das parcelas do financiamento, até que a incorporadora entregasse as chaves da unidade imobiliária, conforme pactuado entre as partes?
Não há dúvidas de que seria plenamente aceitável a oposição da exceção do contrato não cumprido, na hipótese em que a negociação tivesse levado à celebração de um contrato de aquisição de unidade imobiliária, com o pagamento parcelado, efetuado pelo consumidor diretamente à incorporadora. Isto é, na hipótese de atraso na entrega da unidade imobiliária o consumidor poderia interromper o pagamento das parcelas devidas à incorporadora.
A dúvida paira, todavia, na hipótese em que existe essa triangulação de negócios jurídicos, com o envolvimento da financiadora. Em uma análise simplista, autônoma e bilateral das relações contratuais existentes, a financiadora estaria completamente alheia ao inadimplemento da construtora. A existência de partes e objetos distinto poderia levar à conclusão de que o inadimplemento da construtora não possuiria qualquer repercussão na relação contratual entre consumidor e financiadora.
É certo, não obstante, que, no caso, os contratos existentes devem ser analisados no contexto geral da relação comercial contratualmente estabelecida entre as partes, onde foram firmados. As partes perseguiam um resultado negocial vinculado a uma operação econômica global, com contratos entrelaçados num único conjunto econômico, devendo o enfoque ser dado ao 'negócio', e não apenas ao 'contrato', como leciona Mosset Iturraspe350. Trata-se, pois, de evidente relação de contratos coligados: o contrato de financiamento somente existe para aquisição da unidade imobiliária, e a este está umbilicalmente vinculado.
Impositivo, portanto, compreender-se quais as condições e requisitos necessários para admissão da oposição da exceção do contrato não cumprido, para que se possa determinar a possibilidade de invocá-la no âmbito dos contratos coligados.
A doutrina entende que para a oposição da exceção do contrato não cumprido, faz-se necessária a existência dos seguintes quatro requisitos: (i) vínculo sinalagmático; (ii) simultaneidade das prestações; (iii) inadimplemento; (iv) boa-fé.
350 ITURRASPE, Xxxxx Xxxxxx – Op. Cit. p. 9