MARCUS ANTÔNIO ASSIS LIMA
XXXXXX XXXXXXX XXXXX XXXX
O “CONTRATO DE DIVERSÃO” DO JORNAL IMPRESSO:
CRUZADAS, HORÓSCOPO E QUADRINHOS
XXXXXX XXXXXXX XXXXX XXXX
O “CONTRATO DE DIVERSÃO” DO JORNAL IMPRESSO:
CRUZADAS, HORÓSCOPO E QUADRINHOS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da UFMG como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Lingüística.
Orientadora: Profa. Dra. Xxx Xxxxx Xxxxxxx
Co-orientador: Prof. Dr. Wander Emediato de Souza
Área de concentração: Lingüística do Texto e do Discurso
Linha de Pesquisa: Análise do Discurso
FACULDADE DE LETRAS DA UMFG BELO HORIZONTE, FEVEREIRO DE 2008
AGRADECIMENTOS
À professora Xxx Xxxxx Xxxxxxx, minha orientadora, pela gentileza, bom humor e por
acreditar que este trabalho poderia ser concluído; Ao professor Xxxxxx Emediato, pela co-orientação e as dicas metodológicas sugeridas; Ao professor Xxxx Xxxx, que me introduziu nos prazeres da análise do discurso;
Aos meus pais e familiares, que acreditam e confiam na importância deste trabalho; A meus amigos, que souberam ter paciência com a minha falta de tempo para com eles;
Aos colegas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, que acreditam e torcem
pelo meu sucesso;
A meus alunos, que me inspiram e me incentivam a procurar sempre me aprimorar e
atualizar. Muito obrigado, de coração, a todos vocês!
ALEA JACTA EST...
RESUMO
Os primeiros anos deste novo século têm sido marcados pela oferta de conteúdos de entretenimento de uma forma nunca vista anteriormente. As grandes redes de comunicação, as indústrias de entretenimento, os produtores culturais, os artistas vêm, cada vez mais, incrementando essa nova possibilidade comunicativa criando novos e variados formatos para os novos conteúdos. Entretanto, nesse novo cenário, onde o entretenimento passa a ser valorizado, em termos éticos e filosóficos, no mesmo nível do seu oposto, o trabalho, alguns tipos de divertimento ainda permanecem sendo cultuados e praticados. Mantidos por tradição nas páginas dos jornais diários, passatempos como histórias em quadrinhos e palavras cruzadas, entre outros, continuam a cativar o público desses dispositivos midiáticos tradicionais. Também as previsões zodiacais continuam sendo publicadas, em um mundo onde o conhecimento humano sobre o universo astronômico tem se desenvolvido quebrando antigos mitos muito rapidamente. Nas redações e na academia, o entretenimento é visto primordialmente como não-jornalístico, de modo que sempre foi relegado ao segundo plano, em relação aos textos especificamente informativos. Nesse contexto, buscamos, com este trabalho, descrever os modos de organização e os procedimentos discursivos que tornam as cruzadas, os quadrinhos e o horóscopo em uma categoria especial de textos dentro da massa impressa do jornal diário. Esta tese está estruturada de maneira a salientar o papel social que o entretenimento possui na vida contemporânea, por um viés histórico que mostra como essa “função” midiática cristalizou-se no imaginário cotidiano.
RÉSUMÉ
Les premières années de ce nouveau siècle ont été marquées d’une façon épatante, par l’offre de « contenus de divertissement ». Ainsi, les grands réseaux de communication, les « ateliers » de divertissement, les producteurs culturels, les artistes en général ont commencé à développer, chaque fois davantage, des nouvelles possibilités communicatives grâce aux différents formats de ces nouveaux contenus. Dans ce nouveau paysage, où le divertissement est valorisé, éthiquement et philosophiquement, dans le même niveau de son contraire (le travail) certaines sortes d’amusement sont effectuées et pratiquées. Maintenues par tradition dans les pages des journaux, des passe-temps comme les cartoons et les mots-croisés, parmi d’autres, continuent à amuser le publique des dispositifs médiatiques traditionnels. Les prévisions du zodiaque continuent aussi à être publiées dans un monde où la connaissance humaine sur l’univers se développe et fait tomber, très vite, les anciens mythes. Dans les rédactions des journaux et dans les universités où l’on travaille sur la communication, le divertissement est vu surtout comme quelque chose de “non-journalistique”, et pour cela il est relégué à un second plan – si on compare la rubrique « divertissement » avec d’autres qui sont spécifiquement informatives. Dans ce contexte, ce travail essaie de décrire les manières d’organisation et les stratégies discursives qui transforment les mots-croisés, les cartoons et l’horoscope dans une catégorie spéciale de discours dans le journal vu comme un tout. Cette thèse tient pour but montrer le rôle social que le divertissement a dans la vie contemporaine, puisque celui-ci détient (qu’on le veuille ou pas) un regard historique et social. Les pages de divertissement d’un journal font enfin partie d’un monde médiatisé et elles cristallisent l’imaginaire quotidien d’un peuple, d’un pays.
LISTA DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS
FIGURA 01 – CENOGRAFIA « HORÓSCOPO » : STELLA | 104 |
FIGURA 02 – CENOGRAFIA « HOSRÓSCOPO » : XXXXX XXXXX | 105 |
FIGURA 03 – CENOGRAFIA « HORÓSCOPO » | 110 |
FIGURA 04 – CENOGRAFIA « CRUZADAS » | 129 |
FIGURA 05 – CENOGRAFIA « QUADRINHOS » : XXXXX | 144 |
FIGURA 06 – CENOGRAFIA « QUADRINHOS » : ALINE | 159 |
FIGURA 07 – CENOGRAFIA « QUADRINHOS » : ALINE | 161 |
FIGURA 08 – CENOGRAFIA « QUADRINHOS » | 162 |
FIGURA 09 – CENOGRAFIA « QUADRINHOS » | 163 |
FIGURA 10 – CENOGRAFIA « HORÓSCOPO » : XXXXXXX XXXXXX | 178 |
QUADRO 01 – DIVISÃO DOS JOGOS, FORMAS INSTITUCIONALIZADAS E CORRUPÇÃO | 124 |
TABELA 01 – COMPONENTES DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA | 134 |
TABELA 02 – PRICNÍPIOS DE ORGANIZAÇÃO DA LÓGICA NARRATIVA | 145 |
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
CAP. 1 – O discurso midiático do jornal 18
1.1. O campo/sujeito Folha de S. Paulo 21
1.2. Heterogeneidade constitutiva: o tripé informação-publicidade-diversão 24
1.3. O contrato de comunicação midiática 26
1.3.1. O contrato de comunicação 26
1.3.2. O contrato de comunicação midiática 29
1.4. As cenografias de diversão 33
1.4.1. Cruzadas 33
1.4.2. Horóscopo 40
1.4.3. Quadrinhos 45
CAP. 2 – O contrato de diversão do jornal impresso 53
2.1. Lazer, jogos e sociedade 76
2.2. Os jogadores contratuais 83
2.2.1. Parceiros do discurso: sujeito comunicante (EUc)
e sujeito interpretante (TUi) 93
2.2.2. Protagonistas do discurso: sujeito enunciador (EUe)
e sujeito destinatário (TUd) 99
2.3. Visadas contratuais: captação, informação e fruição 106
2.3.1. Uma visada de captação: atrair o leitor 113
2.3.2. Uma visada de fruição: relaxar o leitor 115
2.3.3. Uma visada informativa: manter a atenção do leitor 116
2.4. Modos de jogar e organizar o discurso de diversão 117
2.4.1. Modos de organização do discurso 117
2.4.1.1. A ‘encenação’ e os ‘tipos de textos’ 118
2.4.2. Modos de jogar: agôn, alea, mimicry e ilinx 120
CAP. 3 – Gramática para as cenografias de diversão 125
3.1. Cenografia Cruzadas: descrever o mundo 125
3.1.1. A organização da construção descritiva 126
3.1.1.1. Os componentes da construção descritiva 126
3.1.2. Os procedimentos de configuração 129
3.1.2.1. Os procedimentos discursivos 130
3.1.2.1.1. A identificação 130
3.1.2.1.2. A construção objetiva do mundo 131
3.1.2.1.3. A construção subjetiva do mundo 132
3.1.2.2. Os procedimentos lingüísticos 134
3.1.3. Os componentes e efeitos da descrição 136
3.1.4. Os procedimentos de composição 138
3.1.4.1. A extensão descritiva 138
3.1.5. A disposição gráfica 139
3.1.6. O ordenamento interno 140
3.2. Cenografia Quadrinhos: narrar um mundo 140
3.2.1. Os componentes da lógica narrativa 142
3.2.1.1. Os actantes 142
3.2.1.2. Os processos 145
3.2.1.3. Os procedimentos de configuração da lógica narrativa 151
3.2.1.4. Os procedimentos ligados à motivação intencional 151
3.2.1.5. Os procedimentos ligados à cronologia 152
3.2.1.6. Os procedimentos ligados ao ritmo 153
3.2.1.7. Os procedimentos ligados à demarcação espaço-temporal 153
3.2.2. A narrativização (la mise em narration) 154
3.2.2.1. Os componentes da narrativização 154
3.2.2.1.1. O dispositivo narrativo 154
3.2.2.1.2. Parceiros e protagonistas da narrativização 155
3.2.2.2. Os procedimentos de configuração da narrativização 156
3.3. Cenografia Horóscopo: enunciar um mundo 164
3.3.1. Definição e função do enunciativo 164
3.3.2. Que quer dizer ‘enunciar’? 165
3.3.3. Os componentes da construção enunciativa 169
3.3.3.1. A relação do locutor com o interlocutor 169
3.3.3.2. A relação do locutor ao dito (ou ao propósito) 170
3.3.3.3. A relação do locutor com a alteridade 172
3.3.4. Os procedimentos da construção enunciativa 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS 180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 184
INTRODUÇÃO
Os primeiros anos deste novo século têm sido marcados pela disponibilização de conteúdos de entretenimento de uma forma nunca vista anteriormente. Essa oferta, possibilitada, principalmente, pelos desenvolvimentos acelerados no campo da informática, vem sendo oferecida aos consumidores em novos dispositivos midiáticos que aliam, inexoravelmente, a informação ao entretenimento. As grandes redes de comunicação, as indústrias de entretenimento, os produtores culturais, os artistas vêm, cada vez mais, incrementando essa nova possibilidade comunicativa, criando novos e variados formatos para os novos conteúdos. A oferta de entretenimento, por outro lado, aumentou a demanda, em um círculo vicioso, de maneira que os consumidores estão exigindo produtos cada vez mais direcionados e individualizados.
Entretanto, nesse novo cenário que se avizinha, onde o entretenimento passa a ser valorizado, em termos éticos e filosóficos, no mesmo nível do seu oposto, o trabalho, a produção capitalista, alguns tipos de divertimento ainda permanecem sendo cultuados e praticados. Mantidos por tradição nas páginas dos jornais diários, passatempos como histórias em quadrinhos, cruzadas, entre outros, continuam a cativar o público desses dispositivos midiáticos tradicionais. Também as previsões zodiacais, que, nos dias atuais, estão mais para aconselhamentos do que propriamente declarações sobre acontecimentos futuros, continuam sendo publicadas, em um mundo onde o conhecimento humano sobre o universo astronômico tem se desenvolvido e quebrado antigos mitos muito rapidamente.
Os jornais diários, como os conhecemos hoje, começaram a se delinear em meados do século XIX, nos Estados Unidos, e respondiam a alguns imperativos que os
desenvolvimentos tecnológicos de então impunham ao modo como as informações de interesse público deveriam ser tratadas e difundidas. Essas exigências industriais levaram incentivo à profissionalização dos jornalistas, incrementaram as estratégias mercadológicas para a distribuição de grandes volumes de papel impresso (quanto mais volume de papel impresso menor o valor pela impressão), criaram técnicas de apuração, redação e apresentação para os eventos considerados importantes de serem noticiados, aprimoraram os planejamentos gráficos da distribuição da massa impressa no papel branco, entre tantas outras.
Entre as estratégias mercadológicas para o incremento das vendas, e a manutenção dos leitores fiéis, os jornais passam a oferecer conteúdos para um público mais variado, não mais representado apenas pela classe média masculina. Agora, os operários, as mulheres e mesmo as crianças podem e devem ter acesso aos dispositivos de informação. O apoio à educação, entre outras medidas sociais, possibilitou que uma grande população de excluídos midiáticos (um problema ainda hoje em debate, tendo em vista a emergência das novas tecnologias e sua rápida expansão para os domínios da vida cotidiana) consumisse esses conteúdos, produzidos exclusivamente para tal fim por um novo tipo de indústria que começava a se desenvolver, sobretudo nos Estados Unidos: a do entretenimento, que, ao longo do século passado, alastrou-se para todos os países, tornando-se uma das mais poderosas em movimentação financeira global.
Esses novos conteúdos, que visavam as mulheres e as crianças, mas também buscavam atingir camadas de semi-analfabetos, incluíam o uso farto de ilustrações, letras maiores e passatempos, publicados inicialmente para o entretenimento familiar. Com seu sucesso, foram sendo incorporados pouco a pouco nas edições diárias, de maneira que, com o tempo, institucionalizaram-se como produto jornalístico, em um
sentido amplo. E muito rapidamente tornaram-se autônomos, constituindo-se em publicações específicas para cada tipo de diversão oferecida pelos jornais.
Essa resistência temporal, em um mundo de criatividade competitiva, sempre me intrigou, jornalista que sou, o que me levou a produzir este trabalho. Nas redações e na academia, o entretenimento é visto primordialmente como não-jornalístico, de modo que sempre foi relegado ao segundo plano, em relação aos textos especificamente informativos. De maneira geral, nas Ciências da Comunicação, o entretenimento é encarado como principal aliado para os efeitos negativos das mídias, e seu estudo, via de regra, busca confirmar essas hipóteses apocalípticas. Como nunca me coadunei com essas idéias conspiratórias, a possibilidade de realizar um estudo que retirasse o componente ideológico de sua descrição pareceu-me apropriado. Na Lingüística, especialmente na linha da Análise do Discurso e mais especificamente na Semiolingüística, os conteúdos de entretenimento têm sido, eventualmente, utilizados como exemplos para descrições teóricas, chegando mesmo a serem categorizados como “contrato de diversão”, embora seu detalhamento ou descrição estivesse por ser feita. Dessa forma, tornar os conteúdos de entretenimento em objeto de uma pesquisa de doutoramento não só satisfaria uma inquietação pessoal como ajudaria a desmistificar sua posição ideológica, e, em termos teóricos, contribuiria para o aprimoramento de uma teoria específica, que, de todo modo, continua no processo de reflexividade necessário para a cristalização de conjuntos acabados de constructos teóricos.
Antes de continuar na problematização desse objeto, será interessante
percorremos os caminhos que levaram a sua construção. Possuindo mestrado em Comunicação, professor em uma instituição de ensino superior particular, havia chegado o momento de dar continuidade a minha formação, tendo em vista minha vocação para o ensino e a pesquisa. Como, à época, a Universidade Federal de Minas
Gerais não oferecia curso de doutorado em Comunicação, resolvi buscar, em alguma área afim, algo que despertasse meu interesse. Na busca por alguma disciplina optativa, deparei-me com a oferta, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da FALE, da disciplina “Tópicos Variáveis em Análise do Discurso: teoria dos atos de fala”, oferecida pelo professor Xxxx Xxxx. Como havia lido um livro que discorria sobre o tema, e a reflexão dele advinda atraiu-me, resolvi candidatar-me a uma vaga.
Aprovada minha solicitação, logo na primeira aula fiquei entusiasmado com a matéria e com o professor. Ao final do curso, tendo recebido pontuação máxima no trabalho final (muitos amigos, que haviam sido alunos do professor Xxxx na graduação, comentaram sobre seu rigor nas correções), senti-me empolgado em freqüentar mais um semestre, cursando outra disciplina, para preparar-me para uma vaga no Programa. Assim, por orientação do professor Xxxx, matriculei-me com a professora Xxx Xxxxx Xxxxxxx. Na primeira aula, apaixonei-me pela Semiolingüística e pela agradável aula. O entusiasmo da professora era tanto ao falar da teoria e de seu criador, que xxx, naquele momento, convenci-me de que iria realmente preparar-me para tentar uma vaga na linha de pesquisa E: Análise do Discurso, para um doutorado.
Resolvi indicar o professor Xxxx Xxxx como orientador. Preparei um anteprojeto de pesquisa pensando nele. O processo de seleção foi disputado e, em sua entrevista como componente da banca examinadora, o professor me “massacrou” com suas perguntas. Quando saiu o resultado, eu havia sido aprovado, mas o nome de meu orientador estava indicado como sendo o da Professora Xxx Xxxxx Xxxxxxx. Achei que fosse um erro. Logo recebi uma mensagem eletrônica da professora, convidando-me para um encontro. Nele fiquei sabendo que meu projeto estava muito bom, que não havia como rejeitá-lo, mas que o professor Xxxx, embora entusiasmado com meus atributos acadêmicos, não queria trabalhar com o objeto que eu me propunha: revistas
de informação semanais. A Professora, então, pôde me incorporar aos seus outros estudantes, com a condição de que eu abandonasse o projeto e desenhasse outro, mais de acordo com os projetos de pesquisa que ela desenvolvia. Termos aceitos, créditos em cumprimento, parti para nova pesquisa bibliográfica, de modo a escrever outro plano de estudo, dessa vez, já definido com o objeto — contrato de diversão — que desenvolverei nesta tese.
Na verdade, no início, o projeto pretendia falar sobre uma história em quadrinhos específica, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo. No entanto, ao longo das leituras e do contato mais íntimo com o objeto empírico e a Teoria Semiolingüística, fui percebendo a necessidade de descrever o “contrato de diversão” de uma maneira mais geral, antes de partir para uma pesquisa explicativa, como a que eu delineara, relacionando aspectos identitários de um personagem ficcional a estereótipos reproduzidos pelas mídias e encampados pelo público em geral. Com isso, o “quadrinho” específico foi abandonado em detrimento do conjunto de historietas publicadas pelo jornal; a elas, incorporei as “cruzadas” e o “horóscopo”, até então os formatos de entretenimento publicados pelo periódico.
Junto a essa necessidade de maior generalização do objeto a ser estudado, surgiu uma determinante histórica, tendo em vista que, como jornalista, tinha a curiosidade de traçar um percurso da incorporação e fixação desses passatempos nos jornais diários. Essas duas forças levaram-me a recuar no tempo, quando da definição do recorte que daria ao objeto empírico. De início, recuei aos anos 1920, quando os passatempos passam a ser publicados quase que diariamente, naquele processo de institucionalização que mencionei há pouco. Entretanto, o volume material foi aumentando de maneira vertiginosa, o que me levou a concentrar-me no período compreendido entre 1960 e 2004. A data inicial refere-se à fusão entre os jornais Folha da Manhã e Folha da
Tarde, ambos da mesma empresa, na Folha de S. Xxxxx, atualmente o principal veículo impresso de informação no país; a final coincide com a confecção do projeto propriamente dito.
Mesmo esse recorte ainda representava imenso volume para análise e, como professor universitário (primeiro em escola privada, hoje, em uma universidade pública baiana), sem bolsa de estudos, não dispunha de tempo suficiente para dedicar-me com exclusividade ao doutorado. Então, era preciso recortar mais, mantendo o prazo estipulado. Desse modo, ficou decidido coletar uma edição a cada três meses (março, julho e novembro), em intervalos de quatro em quatro anos, dentro desse período.
Resolvemos, também, centrarmo-nos, teoricamente falando, exclusivamente na Teoria Semiolingüística, como referencial teórico e metodológico, por considerarmos essa abordagem bastante adequada ao tratamento analítico dos textos midiáticos, mas não exclusivamente por isso, também por outras razões, ou seja, por sua formulação coesa e coerente e também pela destituição da Ideologia como aspecto predominante na configuração discursiva dos textos produzidos no mundo contemporâneo. Aliado a ela, sentimos a necessidade de um aporte teórico relacionado ao entretenimento, mas, mais especificamente, aos jogos, de modo que buscamos incorporar alguns conceitos de uma Teoria dos Jogos para entender todo o processo comunicativo engendrado pela oferta dessas diversões nos jornais impressos.
Esta tese está estruturada de maneira a salientar o papel social que o entretenimento possui na vida contemporânea, por um viés histórico que mostra como essa “função” midiática cristalizou-se no imaginário cotidiano. Assim, no primeiro capítulo, “O discurso midiático do jornal”, procuramos delimitar a visão do jornalismo, como campo social e como sujeito semiótico; delimitamos e conceituamos a noção de
“contrato de comunicação midiática”, para, ao fim, descrevermos a origem dos principais passatempos oferecidos pelos periódicos.
No segundo capítulo, “O contrato de diversão no jornal impresso”, descrevemos o percurso histórico da incorporação dos passatempos nos jornais históricos e os motivos que levaram a isso. Xxxxxxxxxxx e descrevemos os modos de organização, os procedimentos discursivos, as estratégias e as visadas que o contrato de diversão configura nas páginas dos periódicos. Por fim, abordamos a teoria dos jogos e os modos como eles são encarados pelos indivíduos.
No último capítulo, “Gramática para as cenografias de diversão”, propomos uma descrição específica do nosso corpus, no formato de uma “gramática descritiva”, que busca salientar todos os procedimentos e configurações discursivas do contrato de diversão específico do material coletado na Folha de S. Paulo.
CAPÍTULO 1 - O DISCURSO MIDIÁTICO DO JORNAL
A mídia constitui um dos variados campos autônomos das sociedades contemporâneas. Essa afirmativa deve ser entendida com o auxílio da noção bourdieriana de “campo social” e exaustivamente trabalhada, nas Ciências da Comunicação, por Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx (1990; s/d), que descreveu a arqueologia, a genealogia, natureza, hierarquia, dimensões e modalidades do campo das mídias.
Embora não seja nosso intuito pormenorizar essas características, iremos, de maneira sintética, delimitar esse conceito, de modo a deixarmos clara a visão que norteia esse trabalho, no que diz respeito ao entendimento sobre as atividades e funções midiáticas, de maneira geral, e do jornal impresso, um dispositivo midiático, de maneira específica.
Assim, “um campo social constitui uma instituição social, uma esfera de legitimidade” (Xxxxxxxxx, 1990:143), sendo essa legitimidade o critério fundamental para sua constituição. Essa legitimidade é plenamente reconhecida no fato de um campo social poder ocupar o lugar do sujeito da enunciação: “a família exige”, “a justiça ordena”, por exemplo, “são enunciados que colocam instituições sociais no lugar de sujeito de um dizer ou de um fazer e remetem para a capacidade de impor com legitimidade indiscutível algo ao conjunto do tecido social” (Rodrigues, 1990:144).
Dessa forma, devemos entender por campo das mídias,
/.../ “o campo cuja legitimidade expressiva e pragmática é por natureza uma legitimidade delegada dos restantes campos sociais e que, por conseguinte, está estruturado e funciona segundo os princípios e estratégias de composição dos objetivos e dos interesses dos diferentes campos, quer essa composição prossiga modalidades de cooperação, visando, nomeadamente, o reforço da força de sua legitimidade, quer prossiga modalidades conflituais, de exacerbação das divergências e dos antagonismos” (Xxxxxxxxx, 1990:152).
Como se pode perceber, o termo “mídia” possui um sentido mais amplo que o de “meios de comunicação de massa”. Enquanto estes designam o conjunto dos veículos de comunicação social (imprensa escrita, radiodifusão sonora e televisiva, publicidade, cinema etc.), o campo das mídias designa uma
/.../ “instituição de mediação que se instaura na modernidade, abarcando, portanto, todos os dispositivos, formal ou informalmente organizados, que têm como função compor os valores legítimos divergentes das instituições que adquiriram nas sociedades modernas o direito a mobilizarem autonomamente o espaço público, em ordem à prossecução dos seus objetivos e ao respeito dos seus interesses” (Xxxxxxxxx, 1990:152).
Mas, deve-se ressaltar, nem todas as funções dos meios de comunicação se inscrevem na lógica institucional do campo das mídias, assim como muitas funções de mediação são asseguradas por dispositivos distintos dos meios de comunicação social. Como xxxxxx Xxxxxxxxx (1990), trata-se de uma noção abstrata pela qual procura-se entender um conjunto de funções indispensáveis ao funcionamento das sociedades contemporâneas, marcadas pela divisão e pela necessidade de assegurar certa homogeneidade em sua estrutura, bem como demarcar o entendimento comum “acerca dos seus princípios, objetivos, prioridades e modalidades de ação” (p.153).
Como dito anteriormente, um campo social é reconhecido por sua capacidade de ocupar o lugar do “sujeito da enunciação”. Por isso, e especificando nossa discussão para o dispositivo midiático “jornal impresso”, podemos, sem medo de estarmos incorrendo em alguma discrepância ou absurdo, caracterizar um jornal como uma pessoa. Institucionalmente, ele é uma empresa que, como qualquer outra, atua como uma “coletividade dotada de personalidade jurídica, de um estatuto e de uma razão social que garantem sua individuação ante o direito e ante terceiros” (Xxxxxxxxx,
1992:118). Para além desse reconhecimento jurídico, o jornal, entretanto, também precisa ser reconhecido, por meio de uma “imagem de marca” que o identifique no escopo da comunicação social, pelos consumidores de informação: “cada jornal tem seu estilo que o define e que, [...], dele fazem uma figura social capaz de cristalizar duradouramente atitudes de atração ou de repulsão”, sendo por isso considerado, segundo Xxxx Xxxxxxxxx (1992:118, itálicos do autor), como “sujeito semiótico”.
Xxxx Xxxxxxxx (1983) prefere conceituar o jornalismo como instituição social e o jornal como ator social. Isso porque, para ela, o jornalismo é um método institucional de fazer com que a informação esteja disponível aos consumidores. Porque a notícia é uma aliada das instituições legitimadas, é localizada, apurada e disseminada por profissionais que trabalham em organizações. Por isso, é inevitavelmente um produto dos informadores que atuam dentro de processos institucionais e em conformidade com práticas institucionais que incluem necessariamente a associação com instituições cujas notícias são comunicadas de maneira rotineira. O jornal, como empresa de informação, através de seu discurso, move-se em um sentido ou outro em função de seus interesses particulares, muitas vezes extrajornalísticos, influenciando no conjunto das mensagens postas à disposição do público, tornando-se, assim, um ator social.
Nessa perspectiva, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx (2002) atribui ao jornal uma dupla
atuação nas sociedades contemporâneas: de um lado, o jornal sedimenta-se como “esfera pública”, isto é, com o surgimento dos meios de comunicação altera-se o conceito clássico de “espaço público”, primeiramente entendido como o local fora da esfera privada onde os cidadãos tratavam dos assuntos relacionados à vida da coletividade; hoje, a mídia, em geral e o jornal, em particular, tomam para si o ponto privilegiado do debate acerca da temática de natureza pública.
Por outro lado, ainda de acordo com esse estudioso, o jornal porta-se também como “ator social”, posto que ele “atua” na comunidade fazendo valer seu discurso, isto é, ao selecionar determinados fatos, ao apresentá-los de determinada maneira (seja o estilo narrativo ou a apresentação gráfica), o jornal está consolidando um discurso (surgido do embate das tensões entre os interesses particulares dos donos da empresa e os interesses corporativos dos jornalistas propriamente ditos) que irrompe na comunidade como sujeito ativo. Podemos, ainda, considerar as ações (promoções, campanhas etc.) que o jornal promove como uma maneira acional de esse sujeito semiótico inserir-se na realidade cotidiana de uma coletividade.
É nesse sentido, do jornal como campo e sujeito atuante na esfera da vida cotidiana, que iremos desenvolver nossa argumentação neste trabalho. Para tanto, iremos, a seguir, delimitar, também de maneira breve, nosso “objeto/sujeito” de estudo, o jornal paulistano Folha de S. Paulo.
1.1. O campo/sujeito Folha de S. Paulo
Com a denominação Folha de S. Xxxxx, o jornal começou a circular em 1960, após a junção da Xxxxx xx Xxxxx (fundada em 1925), Folha da Tarde (fundada em 1949) e Folha da Noite (fundada em 1921), todas da mesma empresa editora. Em 1962, ocorreu a aquisição do grupo empresarial por Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx. O jornal possui atualmente uma tiragem média de 350 mil exemplares diários, sendo 430 mil aos domingos. Em 1984, durante a campanha pela redemocratização do país, quando empunhou a bandeira das eleições diretas para Presidente da República, o jornal consolidou-se como o mais influente no Brasil, assumindo a liderança no número de exemplares vendidos, entre os periódicos brasileiros, e tornando-se conhecido como “jornal de referência” pelos jornalistas e pesquisadores brasileiros. Nesse mesmo ano é
implantado o “Manual de Redação”, publicado em formato de livro, e também ocorre a publicação do Projeto Editorial; em 1997, publica uma nova versão de projeto editorial, que propõe seleção criteriosa dos fatos a serem tratados jornalisticamente, abordagem aprofundada, crítica e pluralista, com texto didático e interessante. Temos aqui o tripé funcional que sustenta a atividade jornalística em sua ação cotidiana: informar, educar e entreter.
O crescimento do jornal calcou-se na modernização de seu parque gráfico e na implantação de princípios editoriais que defendem o pluralismo, o apartidarismo e um jornalismo crítico e independente. Para a direção do jornal, o público-alvo, além da chamada “classe média”, “deveria se voltar para o estudante e para os jovens, de modo geral” (Capelato; Mota, 1980:234).
“Xxxxxxx Xxxxx, a 'Folha' é o grande jornal da classe média brasileira. A classe média se identifica com ele; a 'Folha' fala pela classe média, defende seus direitos. Procura transmitir a visão do citizen, do cidadão. Mas o jornal não se restringe só a essa classe. A faixa é mais ampla, prossegue Casoy, abrangendo franjas do operariado. Aliás, a classe média se penaliza com o operário que ganha mal. Além disso, [...] o jornal procura abrigar a visão do empresariado que classificamos de lúcido, moderno e democrático, nas suas relações de trabalho” (Capelato; Mota, 1980:234).
Com o tempo, essa denominação de “classe média” se metamorfoseará nas formulações em relação à “nova sociedade civil”, cujo centro de gravidade, a classe média, emerge como “núcleo difusor de ideologia, o ponto médio do aspirado regime democrático” (Capelato; Mota, idem:235).
A Folha de S. Xxxxx foi o primeiro periódico, no Brasil, a implantar uma redação totalmente informatizada, o primeiro a adotar a figura do ombudsman e a oferecer conteúdo on-line a seus leitores. Em 1991 o noticiário é reorganizado em
cadernos temáticos. A partir desse período pode-se notar uma adequação das regras gramaticais, definidas no manual de redação adotado internamente, aos vocábulos empregados nas cenografias de diversão, por exemplo. Quanto mais recuamos no tempo, mais percebemos que essas cenografias, sendo consideradas pelos jornalistas como “não-jornalismo”, conforme veremos no capítulo seguinte, não recebiam atenção, quanto ao tratamento final para a publicação desses conteúdos — o que pressupõe a sua revisão, assim como ocorre com os outros gêneros que compõem o jornal, e uma localização demarcada no espaço físico do periódico, de maneira a facilitar o acesso do leitor habitual dessas cenografias, de modo a, também, demarcar o espaço próprio dentro do periódico para o entretenimento, embora, de maneira rarefeita, cenografias de diversão possam aparecer em cadernos temáticos outros que o espaço legítimo definido pelo projeto editorial para o entretenimento.
Nesses casos, onde a diversão aparece fora de seu espaço demarcado, são mais
nítidas as referências à realidade cotidiana que os conteúdos do lazer trazem, como discutiremos mais à frente e que, de maneira tosca, podemos adiantar como sendo uma das marcas desses tipos de textos jornalísticos com conteúdos de lazer, ao contrário do que rezam os poucos estudos realizados, no âmbito das Ciências da Comunicação, no que diz respeito à diversão e ao entretenimento nos veículos comunicacionais impressos, mais especificamente.
Graficamente, as cenografias de diversão, em nosso corpus da Folha de S. Paulo, podem ser divididas em quatro fases distintas: 1ª) aparecem aleatoriamente nas páginas do primeiro e único caderno; 2ª) aparecem aleatoriamente nas páginas de um segundo caderno, criado, muito provavelmente, devido à ampliação das informações a serem publicizadas e/ou mediadas entre os diversos campos constituintes da esfera
social; 3ª) aparecem em páginas contíguas do “caderno de cultura” (atualmente
Ilustrada); 4ª) aparecem na mesma página do caderno Ilustrada.
1.2. Heterogeneidade constitutiva: o tripé informação- publicidade-diversão
Sendo campo social que faz a intermediação entre os diversos campos que compõem a sociedade contemporânea e os cidadãos, o jornal impresso diário constitui- se, primordialmente, como dispositivo essencialmente heterogêneo, sendo esse termo entendido tanto em seu aspecto polifônico — profusão de vozes irrompendo em sua superfície discursiva — quanto no fato de que, no entendimento comum, um jornal impresso massivo deve conter, além da informação, publicidade e oferta de entretenimento.
Esse tripé está tão fortemente cristalizado no imaginário social que, mesmo jornais direcionados, isto é, que não se pretendem massivos no sentido de abraçar todo o conjunto da sociedade, e que se voltam para nichos específicos de consumidores (como jornais sindicais, organizacionais, institucionais, científicos etc.), costumam manter essa configuração. Esses veículos, que publicam anúncios propagandísticos e não propriamente publicitários,1 entretanto, trazem espaços para o entretenimento, especialmente quando visam atingir também a família dos destinatários estipulados no contrato desses dispositivos.
Em seus primórdios, o jornal não possuía publicidade: ele era constituído, basicamente, por informações comerciais, agrícolas, climáticas, notícias do estrangeiro e “colunismo social”, notadamente com fofocas das cortes e da nobreza. A publicidade,
1 Convém, assim, citar as definições para Publicidade e Propaganda com que trabalhamos: a primeira se constitui como “arte de despertar no público o desejo de compra” (Malanga, 1979:11), a segunda, como “atividades que tendem a influenciar o homem, com o objetivo religioso, político ou cívico” (p.10).
isto é, a inserção paga de anúncios de oferta de mercadorias, parece ter surgido, nos jornais impressos, por volta de 1625, no inglês Mercurius Britannicus (Xxxxx, 1965:158) e teria começado a ocupar sistematicamente as páginas dos periódicos quando da industrialização desses em empresas de informação capitalistas, e não mais panfletárias e familiares, em meados do século XVIII. No Brasil, o primeiro anúncio publicitário teria sido publicado pela Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso em território nacional, em 1808 (Fonseca, 1941:14).
Entretenimento, como veremos mais detidamente no capítulo seguinte, surge, nesse dispositivo, em meados do século XVIII, de maneira tímida e, normalmente, vinculado ao humor, isto é, era ainda um divertimento em função de confrontos políticos, sendo usado mais como espaço opinativo e panfletário que especificamente em termos de oferta de lazer aos leitores. Como também veremos, apenas em fins do século XIX a diversão, com o intuito de lazer e entretenimento, é encampada pelo jornalismo, mesmo assim cumprindo muito mais uma “função” publicitária e propagandística, com a missão de atrair leitores, ou seja, ampliar a tiragem de vendas visando o lucro, do que uma função de escape e refúgio das agruras diárias — e das matérias sanguinolentas e sensacionalistas tão em voga naquele período.
1.3. O contrato de comunicação midiática
Nesta seção, iremos abordar o conceito de “contrato de comunicação” mais amplo, conceito central na Teoria Semiolingüística, para, em seguida, especificarmos o “contrato de comunicação midiática” e falarmos sobre as cenografias de diversão, nosso tema fulcral.
1.3.1. O contrato de comunicação
A realidade da vida cotidiana é construída intersubjetivamente por homens dotados de linguagem. Esta, por sua vez, constitui-se como o “arquivo social de conhecimento” que o ser humano utiliza nas suas interações cotidianas com os outros seres e com o mundo (Xxxxxx; Xxxxxxxx, 1998). Para Xxxxxxx (2002), seguindo alguns pensadores de início do século XX, como Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxxx ou Xxxxxxxxx, a linguagem estrutura completamente nossa compreensão do mundo, de modo que a realidade pode ser considerada como um efeito da convenção lingüística. Para esse autor, a linguagem seria um campo de batalha, onde os embates sociais aconteceriam. Desta “memória coletiva” os indivíduos extrairiam os sentidos possíveis, dentro do quadro prefixado pelo contrato, para os símbolos trocados em um determinado ato de comunicação. Esse processo interpretativo e extenuante das interações sociais precisa, certas vezes, de uma “pausa ficcional”, a fim de tornar menos estafante a tarefa cotidiana das conversações diárias, como nos mostra Bange (1986) ou como insinua Searle (1995).
Dessa maneira, na Teoria Semiolingüística, como proposta por Xxxxxxx
Xxxxxxxxxx, “o discurso é visto como ‘jogo comunicativo’, ou seja, o jogo que se estabelece entre a sociedade e suas produções linguageiras” (Xxxxxxx, 2001:46). Nossa escolha assenta-se no postulado de que a “significação discursiva é o resultado da junção de dois componentes: um lingüístico e outro situacional” (Xxxxxxx, 1996:100). Assim sendo,
/.../ “só será possível explicar o sentido de um enunciado,
ou de um ato de linguagem, se nele levarmos em conta:
a) o material verbal, estruturado segundo os princípios de pertinência que lhe são próprios e b) o material psicossocial que define os seres como atores sociais e sujeitos comunicantes” (Xxxxxxx, 1996:100).
Segundo Xxxxxxx Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx (2004:130ss), a noção de “contrato de comunicação” é utilizada para designar o conjunto de condições que permitem que a um ato de comunicação seja atribuído algum sentido pelos interlocutores da interação. Assim, o contrato regeria e permitiria aos participantes da interação reconhecerem suas posições sociais em um ato específico, seja oral, escrito, massivo ou não, bem como identificarem sua finalidade, sua temática e as circunstâncias mesmas que determinam tal ato. O contrato define um conjunto de condições no âmbito de um “jogo psicossócio-situacional”, que irá constituir, por sua vez, um arquivo social de conhecimento, os quais as pessoas fazem uso em suas interações cotidianas, como maneira de se poupar esforço no estabelecimento das situações de comunicação.
No jogo interacional da comunicação, os atos de linguagem, tanto no nível da língua quanto no do discurso, são organizados por um conjunto de restrições (contraintes) e liberdades. Quer dizer, assim como não podemos usar pronomes de primeira pessoa com verbos da terceira pessoa, não podemos chamar um juiz de direito, no Tribunal, de “colega”, ou encontrar uma palavra que ocupe determinado espaço no diagrama da palavra cruzada, sem ser a solução correta. Também não lemos um horóscopo como se fosse um receituário médico ou uma bula de remédio, ou acreditamos que os heróis dos quadrinhos estão infiltrados na vida “real”. Dessa maneira, o modo como nos comportamos lingüisticamente está sobredeterminado por restrições que definem quem pode dizer o quê, a quem, se usará uma variedade formal ou informal da língua etc.
De maneira semelhante, encontramos liberdades para os atos de linguagem, quando podemos utilizar determinado termo e não outro, quando podemos “comer” sílabas e encadear fonemas sem produção de ruídos comunicativos; é o caso da
variedade de liberdades que o escritor pode ter para redigir um romance, um escrivão para redigir suas atas, um “cruzadeiro” para propor definições e soluções, um astrólogo para erigir previsões, um amante para se declarar ao amado.
Portanto, um conjunto de restrições e liberdades constitui um contrato de comunicação, rígido nos atos de linguagem que permite, mas flexível a ponto de permitir aos interlocutores uma “margem de manobra” (Xxxxxxxxxx, 1983:94), que oferece a possibilidade da transgressão a essas regras sobredeterminadas pelo contrato, como o fazem, por exemplo, os artistas plásticos de vanguarda, ao rejeitarem os padrões estabelecidos e proporem novas estéticas.
Um contrato de comunicação pressupõe sempre uma determinada situação de comunicação, isto é, o “conjunto de condições que organizam a emissão de um ato de linguagem” (Charaudeau; Maingueneau, 2004:450), referindo ao meio extralingüístico no qual se encontram os dados que correspondem aos componentes do contrato. Um contrato de comunicação deve definir: a identidade dos parceiros e do lugar que eles ocupam na interação (em termos físico-sociais); a natureza monolocutiva ou interlocutiva da situação de comunicação; e os rituais de abordagem, isto é, “os limites, obrigações ou simplesmente condições de entrada em contato com o interlocutor” (Xxxxxxxxxx, 1992:638). Em uma situação interlocutiva, por exemplo, esses rituais se traduzem na saudação, na troca de gentilezas, perguntas etc.; na situação monolocutiva, nas manchetes, rubricas e títulos dos jornais, nos slogans da publicidade, os prefácios dos livros etc.
1.3.2. O contrato de comunicação midiática
Para a Análise do Discurso, a comunicação humana pode ser dividida em dois modos distintos: a comunicação direta, onde os interlocutores encontram-se em um
mesmo espaço físico, e a comunicação mediada, que se realiza por intermédio de algum dispositivo técnico que conecta os interlocutores, não mais presentes em um mesmo espaço físico (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:04).
O sociólogo Xxxx Xxxxxxxx (1998), por sua vez, estabelece três tipos fundamentais de interações comunicativas: a interação face-a-face, a interação mediada e a quasi-interação mediada. A última corresponderia à interação estabelecida pelos meios de comunicação de massa, onde os interlocutores estão separados no espaço e no tempo, sendo a natureza dessa interação monolocutiva
Seja “comunicação mediada” ou “quasi-interação mediada”, interessa-nos nela os meios de comunicação de massa, um dos componentes, mas não o único, desse tipo de interação. No mundo contemporâneo, os meios massivos, especialmente o jornal impresso, nosso objeto empírico, são os responsáveis pela constituição do espaço público, local onde os temas de interesse da sociedade são debatidos e amplificados. Essa vocação, entretanto, está marcada por uma lógica econômica, cuja contradição explica as atitudes e os discursos antagônicos que aí aparecem.
De um lado, o jornal impresso revela-se como possuidor de um valor mercantil, seja na sua formulação como indústria cultural, isto é, uma empresa geradora de produtos que se enquadram no jogo do mercado e da concorrência, seja na produção de uma cultura de fluxos, com produtos seriados difundidos de maneira regular e contínua. Assim, a comunicação de massa revela-se palco de um duplo mercado (um dos anunciantes e outro dos consumidores) opondo, por um lado, a publicidade e, por outro, o conteúdo informativo propriamente dito (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:07-08). Não se deve esquecer, aqui, que, por se tratar de “produto midiático”, é de sua natureza industrial a busca do prazer na leitura mesmo das notícias, para além do simples valor informativo que ela carrega. Essa discussão foi um dos pilares dos teóricos da Escola de Frankfurt e,
ainda hoje, muitos dos teóricos “pessimistas” sobre as comunicações no mundo contemporâneo questionam esse “efeito de espetáculo” que a mídia em geral, o jornalismo em particular, imprime a seus produtos, de modo a torná-los desejáveis.
Independentemente da finalidade a ser atingida, todo ato comunicativo inscreve- se em uma situação de comunicação particular, onde os interlocutores reconhecem e, normalmente, respeitam as “regras” previamente estabelecidas, regras essas que permitem a troca comunicativa. De maneira global, o contrato de comunicação midiática recobre uma variedade de atividades discursivas, cada qual com suas características específicas, e que correspondem a: a) uma finalidade particular; b) às identidades e os papéis específicos dos interlocutores; c) a uma forma própria em função do quadro situacional de cada meio massivo (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998, itálicos dos autores).
Entretanto, nesse contrato de comunicação midiática mais global, encontramos vários outros contratos mais específicos, que dão aos meios, metaforicamente, uma formação em camadas, como na massa-folhada. Estruturados sob princípios diretivos comuns, cada “subcontrato” possui conteúdos e visadas (finalidades) específicas que, entretanto, não são exclusivos de cada um, podendo haver, para fins estratégicos, uma combinação entre eles.
Ao contrato de informação propriamente dito é dada a primazia de “presidir todas as mensagens midiáticas que se propõem a dar a conhecer e a explicar o mundo dos fenômenos” (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:12).2 Nesse contrato, pode-se averiguar, principalmente, uma visada informativa e uma visada de captação, como se verá mais à frente. Ao contrato de comunicação publicitária pode-se verificar uma visada de sedução e uma visada de persuasão (idem).
2 “Le contrat d’information est celui qui preside à tous les messages médiatiques se proposant de donner
à connaître et d’expliquer le monde événementiel” (xxxxxxx e sublinhado dos autores).
Permeando esse duplo mercado, encontramos os discursos de diversão, que apresentam características tanto do discurso informativo propriamente dito (pois seus referenciais são retirados da realidade cotidiana e mantêm alguma ligação, especialmente temática, com os conteúdos noticiosos), quanto do discurso publicitário (pois a diversão entrou para os jornais como autopromoção do veículo para a expansão do público-leitor).
Seja qual for o conteúdo ou a finalidade pretendida, o contrato de informação midiática não é produção individual, mas, ao contrário, sua instância de produção é marcada por uma comunidade de sentidos (editores e jornalistas, para a informação propriamente dita; publicitários e anunciantes, para os anúncios publicitários; editores e “entretenedores”, isto é, “quadrinistas”, astrólogos e “cruzadeiros”, em nosso caso particular, para o contrato de diversão). Essa coletividade, por sua vez, organiza-se em torno de uma “cultura profissional”, marcada por valores, hábitos e comportamentos que se sobrepõem - sem, contudo, anulá-las - às idiossincrasias individuais de cada sujeito, de modo que as normas organizacionais e profissionais se colocam como mais preponderantes do que as preferências pessoais (Wolf, 1999:181).
No outro pólo da quasi-interação mediada, a instância de recepção continua um mistério, tanto para os produtores dos conteúdos massivos quanto para os pesquisadores, apesar da enorme quantidade de trabalhos que vêem sendo realizados nessa área. De concreto, sendo suficiente para nossos propósitos, sabe-se que a “recepção não é a absorção passiva de significações pré-construídas, mas o lugar de produção de sentidos”, sendo que se “deve reconhecer que as estruturas de um texto são apenas virtuais, até que os leitores ou espectadores as ativem” (Xxxxxx Xxxxx citado por Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:17).3
3 “La réception n’est pas l’absorption passive de significations pré-construites mais le lieu d’une production de sens” et qu’ “il faut reconnaître que les structures d’une texte ne sont que virtuelles tant que
Nesse sentido, o receptor não será nunca uma instância coletiva, mas individual, como de resto todo ato de leitura. Por isso, Xxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxxxx creditam ao leitor contemporâneo uma “competência midiática” que o torna um “negociador de sentidos”, elaborando, portanto, diferentes operações: a) uma atividade de estruturação, que implica a seleção e esquematização dos conteúdos apreendidos; b) uma atividade de resistência, que marca certa prioridade do receptor sobre os conteúdos oferecidos (citado por Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:17).4
Quanto à forma, o contrato de comunicação midiática se estabelece enquanto um “pseudo-diálogo”, posto que sua natureza interativa é monolocutiva, isto é, em um único sentido (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:19). Dessa forma, o discurso midiático não possui a reversabilidade imputada à interação face-a-face, por exemplo, pois o receptor não pode interagir, no momento da recepção, com os produtores da mensagem. Mas isso não significa que ele se encontra inerte. Pelo contrário, embora a emissão propriamente dita não possa ser interrompida, o leitor pode fechar o jornal, mudar o canal da televisão ou o dial do rádio etc., de modo a manifestar uma “reprovação” ao conteúdo recepcionado (Xxxxx; Xxxxxxx, 1998:19).
1.4. As cenografias de diversão
1.4.1. Cruzadas
As cruzadas (em inglês, inicialmente cross-word, perdendo o hífen posteriormente) foram criadas para a seção de diversão dominical do New York World, por um de seus editores, Xxxxxx Xxxxx e publicadas pela primeira vez em 1913.
les lecteurs ou les spectateurs ne viennent pas les activer” (Xxxxx, Xxxxxx. Les mystères de la réception.
Le Débat, nº 71, 1992).
4 Xxxxxxx, X. et Xxxxxxxxx, X. Les Médias côté public. Le jeu de la réception. Paris: Bayard-Ed. du Centurion, coll. “Xxxxxxxxxx”, 0000.
Adaptadas de um jogo infantil que tivera na infância, o Magic Squares, onde se deveriam reagrupar palavras predefinidas de modo a serem lidas tanto na vertical quanto na horizontal, ele introduziu a lista de definições ou dicas, cujas respostas deveriam ser ordenadas em um diagrama previamente estabelecido. No início, as dicas eram fáceis e ainda não havia os quadrados negros que lhe conferem hoje o aspecto de tabuleiro de xadrez.
Com o sucesso do passatempo, outros jornais começaram a publicar essas cenografias e, em poucos anos, quase todos os jornais publicavam cruzadas diariamente. A cenografia alastrou-se por outros países e, no Brasil, chegou em 1925, sendo publicada inicialmente no jornal carioca “A Noite”, que lhe traduziu, literalmente, o nome original do jogo. Em 1948 surge a primeira revista de cruzadas, publicada pela Ediouro, que introduziu uma versão alemã do jogo publicado nos jornais, com as dicas dentro dos diagramas, conhecidas como “Diretas”.
Palavra cruzada é jogo de destreza. É um jogo de competição. Como tal, o vencedor, normalmente mais apto em uma única qualidade (rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade, engenho etc.), quer se ver reconhecido como o melhor em determinada categoria de proezas. É agôn,5 ou seja, “a ambição de triunfar unicamente graças ao mérito numa competição regulamentada” (Caillois, 1990:65). Deve haver a igualdade de oportunidade para todos os competidores e o vencedor encara a vitória como uma forma de mérito pessoal.
Embora individual, a solução da palavra cruzada apresenta todas as características dos jogos disputados entre dois ou mais competidores. O fato de a competição ser “intrapessoal”, isto é, resolvida individualmente pelo leitor — um agôn virtual, diz Xxxxxxxx (1990:53) —, não lhe subtrai o gosto pela dificuldade gratuita, pelo
5 O termo “agôn” refere-se a uma das “maneiras de jogar” na Teoria dos Jogos de Xxxxx Xxxxxxxx, assim como os termos “mimicry” e “alea” que surgirão mais a frente; essas maneiras de jogar serão mais bem trabalhadas também no capítulo segundo da tese.
cálculo e a combinação, pelo contrário. O talento do jogador faz valer-se fora de “qualquer sentimento explícito de emulação ou de rivalidade: luta-se contra o obstáculo e não contra um ou vários concorrentes” (idem:50).
Em princípio, sendo a palavra cruzada praticada por solitários, ela não pressupõe a possibilidade da competição. Entretanto, e justamente por isso, como mostra Xxxxxxxx (1990:52), os jogos de destreza solitários são terreno fértil para a promoção de concursos por jornais, com a oferta ou não de prêmios. A Folha de S. Xxxxx, nos anos 1950, promovia competições entre os leitores, que deveriam solucionar o diagrama proposto e enviar as respostas até determinado prazo; os acertadores ganhavam pontos, para serem utilizados posteriormente na troca por pequenos brindes.
Embora essas competições não sejam mais promovidas nos jornais diários, ocorrem competições em ginásios, nos Estados Unidos da América, em que os concorrentes devem encontrar a solução mais rápida para uma palavra cruzada, distribuídas em níveis de dificuldade nas soluções a serem desvendadas. A televisão também se aproveitou dessa cenografia e existem variados programas de destreza com a memorização e formação de palavras, definições etc.
Nos anos de 1950, as cruzadas apareciam sob a rubrica “Passatempos”, junto a charadas e outros jogos. A contribuição do leitor era incentivada, havendo regras determinando as “espécies admitidas”, os “dicionários adotados” e o “prazo para remessa das soluções”, com indicações da pontuação e a indicação de que dois “solucionistas” seriam “contemplados com interessantes lembranças” (FSP, 2/03/1952, itálico nosso).
Nos jogos de competição (agôn), o competidor não conta com nenhuma ajuda externa, quer dizer, ele depende única e exclusivamente de suas capacidades, especialmente naquelas exigidas pelo jogo. Como lhe revela a categoria, a palavra
cruzada requer de quem a joga (ou lê, o que dá no mesmo em nosso caso) a destreza na memorização de sinônimos, nomes longínquos, tecnicismos e capitais de terras exóticas, além de sobrenome de artistas de cinema, cientistas, políticos, períodos históricos, termos da gramática, “contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar as mulheres” (Bandeira, 1986:95).
Nessa década, os termos utilizados não tinham a necessidade de ser corriqueiros, do dia-a-dia da camada consumidora de jornal impresso. O desafio encontra-se justamente na lembrança (advirto que “lembrar” é recuperar algo que se perdeu) dos vocábulos menos utilizados no cotidiano. Xxxxxxxx a graça, certamente, se os desafios incluíssem termos apenas da competência discursiva do público-alvo. Quem lia esse tipo de cenografia buscava o desafio ao seu vocabulário diário.
Quem lê essas cenografias precisa ser “amante de palavras”. Precisa ser alguém que tenha o hábito da leitura, seja curioso, para se interessar em testar seus próprios conhecimentos sobre desafios tão inúteis quanto “Avô de Príamo”, “Afluente esquerdo do Reno”, “Amada de Júpiter”. A escolha das dicas também revela muito dos hábitos ainda rurais, nesse período, da população brasileira, como em “Seta feita de pau tosco”, “Que não produz madeira”, “Esteiro de rio”, “Armadilha para coelhos e perdizes”, “Formiga de roça”, “Rede de pescar”, “Cobertura de besta”. Outros desafios mostram o tipo de linguajar vigente na sociedade da época: “Sujeito pedante e adulador”, “Garbo”, “Engradamento feito num carro”, “Grande massa”, “Mulato alourado” (FSP, 2/03/1952).
Jogar palavra cruzada, como de resto qualquer outra categoria de jogos, requer o cumprimento de regras previamente estabelecidas. Mas “persiste no âmago do jogo uma liberdade primeira, necessidade de repouso e, simultaneamente, distração e fantasia”
(Caillois, 1990:47). Por isso, o jogador/leitor pode solicitar ajuda a um parente próximo, a um desconhecido em uma sala de espera; pode recorrer ao dicionário...
Essa liberdade primeira — a paidia, “vocábulo que abrange as manifestações espontâneas do instinto do jogo (...). [e que] intervém em toda a animada exuberância que traduza (...) uma recreação espontânea e repousante”— completa-se, e é adestrada, pelo ímpeto do ludus, isto é, um “gosto pela dificuldade gratuita (...); uma intenção civilizadora” (idem:48).
Paidia e ludus, entretanto, não são categorias de jogos, mas maneiras de jogar, e encontram-se em opostos que caminham de ilinx (onde há dominância do modo paidia), para alea, agôn e, por fim, mimicry (onde há dominância do modo ludus). O agôn virtual joga em um ludus solitário, como adverte Xxxxxxxx (1990:53) falando de jogos como as cruzadas.
Nos anos 1960, as cruzadas da Folha de S. Xxxxx adotam o diagrama quadrangular com quadrinhos “inutilizados”, inicialmente, e quadrinhos negros, a partir de 1964, em seu interior. O “cruzadeiro” responsável é identificado como “B. Cifra”. Os desafios, agora, apresentam relação direta com o cotidiano do leitor/jogador médio, aparecendo termos que podemos classificar como “neutros” em sua carga ideológica. Essas cruzadas podem ser solucionadas por um leitor atual, acostumado ao trato com essas cenografias de diversão.
Formuladas com dicas como “Cidade da Europa”, “Balcão onde se servem bebidas”, “Nota musical” (FSP, 16 de março de 1960); “Fio de metal flexível”, “Cloreto de cálcio”, “Cidade paulistana” — esta, seguida da alocução “(Não será a sua, caro leitor?)” — (FSP, 16/11/1960); “Xxxxx xxxxxxxx”, “Xxxxx xx xxxxx xx xxx” (XXX, 10/07/1964); “Missiva”, “Inundar” (FSP, 13 de março de 1968); as cruzadas, dessa fase, parecem revelar o ambiente político e social da época, onde os termos precisavam ser
depurados de modo a não sugerir ambigüidades, onde expressões históricas podiam ser consideradas subversivas. A isso, acrescenta-se a presença dos censores do período militar ditatorial nas salas de redação, fato de conhecimento público.
A partir de 1972, a rubrica com esse passatempo passa a se denominar apenas “Cruzadas”, assim permanecendo até a atualidade. As respostas ao problema anteriormente publicado continuam sendo oferecidas, agora sob a rubrica “respostas de ontem”, o que revela uma característica dos jornais, no que diz respeito a sua relação com o leitor habitual, que institui o jornal enquanto um continuum, do ponto de vista de sua leitura, segundo Xxxxxxxxx (2002:173ss).
Em 2000, as cruzadas são fornecidas por Xxxxx Xxxxxxxx e os desafios mudam totalmente em relação ao universo discursivo anteriormente adotado. Agora, as dicas selecionam termos e conceitos que solicitam a competência midiática do leitor, não só sua aptidão para a memorização de vocábulos. A solução do problema do dia, também ao contrário das publicações anteriores, é publicada invertida, ao pé do box que contém o diagrama.
Os desafios apelam para um leitor adulto, que freqüenta teatros, cinemas, espetáculos de vanguarda. Há também a inclusão de termos em francês, italiano e, mais freqüente, em inglês, que revela, por um lado, a utilização cotidiana, no Brasil, de vocábulos nessa língua, especialmente no comércio e, a partir desse período, pela difusão da internet; por outro, o nível sócio-cultural do leitor, que conhece outras línguas. Também há referências a acontecimentos, entidades, organizações, artistas em evidência, ou que tenham sido “notícia” nas páginas do jornal, naqueles anos.
Assim, iremos encontrar dicas como “Xxxxxx ..., atriz de 'Olhos bem fechados'“, “A arte de Xxxxx Xxxx”, “Organização guerrilheira de Angola”, “Ele, em francês”, “Xxxxxxx..., que substitui a Babi no MTV Erótica”. “... Xxxxx, compositor alemão
nascido há cem anos” e, por mais absurdo que possa parecer hoje, “Peça de Xxxxxx Xxxx cuja adaptação para o cinema está em mãos da produtora” (FSP, 15/03/2000).
Essa referência à realidade cotidiana, mais acuradamente, ao presente construído pelo jornal (Gomis, 1991), torna quase impossível a solução completa dos diagramas por um leitor afastado temporalmente da publicação do jogo. Ao contrário do que se poderia imaginar, também essas cenografias de diversão são “datadas”, como as notícias em geral, e pertencem a um “presente” que dura apenas até a edição seguinte; cinco anos nos separam dessas cruzadas e a solução de algumas dicas demandaria pesquisa exaustiva, que tiraria o que resta de paidia em agôn.
Como solucionar “Nova animação de Disney”? Encontramos essas dicas datadas com certa freqüência: “Xxxxxxxxx ..., líder do conjunto SPC”, “... Xxxxx, cineasta de As Grandes Manobras” e mesmo “O Crime do Padre ..., romance de Eça de Queirós”, que embora um clássico, à época era exibido em versão cinematográfica (FSP, 12/07/2000). Ou ainda “... — Homens de Preto”, “As ..., série de TV que virou filme com Xxxxxxx Xxxx”, “Xxxxx ..., ator e compositor” (FSP, 15/11/2000).
Mais recente, as cruzadas de 2004 são fornecidas por uma editora especializada na produção e distribuição de jogos de destreza, nomeada e com endereço na internet que revela um contrato comercial entre o jornal e a produtora do entretenimento: A Recreativa, <xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx>. A maioria dos leitores da Folha de S. Xxxxx é, agora, das classes A e B, formadores de opinião. Os desafios são de nível “avançado”, se formos usar como parâmetro as categorias dadas pelas editoras de revistas de cruzadas à complexidade das dicas.
De qualquer forma, o leitor/jogador deve estar bem informado, deverá conhecer uma “Medida sueca de peso”, a “Obra de Boccaccio, entre 1348 e 1353, uma das mais famosas criações da literatura universal”, “O monstrinho de Xxxxxxxxx”, saber o que é
um “Suplemento de Turismo” (a competência midiática sendo explicitamente exigida), um “Automóvel da GM” (FSP, 17/03/2004). Ele pode se destacar em conhecimentos mais específicos, como “Parte das asas das aves, onde nascem as penas maiores”, “Sigla da liga norte-americana de basquete profissional”, “Um quinto de XX11” (sic), “(Med.) Inflamação aguda ou crônica das mucosas do estômago do intestino” (FSP, 14/03/2004).
Discursivamente, as cruzadas encontram-se organizadas sob o “modo descritivo”, de maneira geral, embora saibamos que não há textos estanques ou “puros”. A organização descritiva do discurso de diversão das cruzadas será detalhada no capítulo terceiro.
1.4.2. Horóscopo
Mesmo que por pura curiosidade, leitores de jornal costumam “correr os olhos” pelo horóscopo diário, ainda que apenas para se divertir com os conselhos oferecidos. Resquício de uma época em que a ciência ainda se confundia com a religião, com o misticismo, as previsões zodiacais tornaram-se, assim como as outras cenografias de diversão, uma “tradição” nas páginas dos periódicos. Como nos lembrou Xxxxxx Xxxxxxx Sodré (1966), não há quem não leia o horóscopo, mesmo não acreditando em todo o determinismo que ele apregoa.
Embora, à primeira vista, não pareça, o horóscopo é um jogo. Para o ensaísta francês Xxxxx Xxxxxxxx, os jogos de azar (alea), em oposição a agôn, são baseados “numa decisão que não depende do jogador, e na qual ele não poderia ter a menor das participações, e em que, conseqüentemente, se trata mais de vencer o destino do que um adversário” (Xxxxxxxx, 1990:36s). Mas, de fato, para ele, o horóscopo constitui uma “corrupção” da alea, como veremos mais à frente.
“A alea assinala e revela a benevolência do destino” (idem:37) e o jogador limita-se a aguardar as imposições da sorte; ela nega o trabalho, a paciência, a habilidade e a qualificação, “surge como uma insolente e soberana zombaria do mérito” (idem ibidem, negrito nosso). Enquanto nos jogos de competição o jogador conta apenas com sua própria habilidade, nos jogos de sorte ele não faz uso das suas qualidades ou disposições, dos seus recursos de habilidade, de força e de inteligência, dependendo totalmente do que lhe é externo. Na alea, ao contrário de agôn, há a demissão da vontade, uma entrega ao destino e o jogador “conta com tudo, com o mais ligeiro indício, com a mínima particularidade exterior, que ele encara logo como um sinal ou um aviso, com cada singularidade detectada, com tudo, em suma, exceto com ele próprio” (Xxxxxxxx, 1990:37).
Segundo Xxxxx Xxxxxxxx, os jogos de sorte são os únicos exclusivamente humanos. Todas as outras categorias de jogos (agôn, mimicry e ilinx) são também conhecidas dos animais em geral, exceto alea:
“Aguardar passiva e deliberadamente a decisão de algo fatídico, por ela arriscar um valor para o multiplicar na proporção das hipóteses de o perder, é uma atitude que exige uma capacidade de previsão, de memorização e de especulação, de que só uma reflexão objetiva e calculista é capaz” (Xxxxxxxx, 1990:38s).
É ao destino que o homem se entrega quando joga alea; o jogador torna-se inteiramente passivo diante da sorte. O interessante é que, nos jogos de azar, o jogador não enfrenta um adversário como o faz nos jogos de competição; o leitor/jogador de horóscopo entrega-se às previsões dos astrólogos, e os astros são os verdadeiros senhores da vida.
Entretanto, agôn e alea, apesar de representarem atitudes opostas e, de certa forma, simétricas, obedecem a uma mesma lei: “a criação artificial entre os jogadores das condições de igualdade absoluta que a realidade recusa aos homens” (Xxxxxxxx,
1990:39). Mais uma vez, temos uma afirmação que ajuda a fundamentar a hipótese de que o contrato de diversão, nos jornais impressos, funciona como espaço de sociabilidade para seus leitores habituais, como demonstramos anteriormente.
O horóscopo sempre foi constantemente associado ao misticismo, à adivinhação, aos poderes mágicos, ao charlatanismo (idem:82). Se nos dias atuais o horóscopo ocupa o centro de uma oposição entre “falsa ciência” e uma ciência ainda não institucionalizada, na antiguidade, especialmente na Grécia clássica, Astrologia e Astronomia eram duas noções que se confundiam. Ao elaborarem uma imagem do mundo fundada nas observações e na herança de velhas culturas orientais, os primeiros filósofos gregos (pré-socráticos), que se preocupavam especialmente com os aspectos físicos do universo, contribuíram decisivamente para a constituição da Astrologia, no século V antes de nossa era (Stierlin, 1986:13).
Mais tarde, astrônomos/astrólogos não tardaram a definir uma série de correlações entre o céu astronômico observado e as condições climáticas na Terra. Assim como “compreenderam a relação entre os movimentos da Lua e as marés, tendo concluído que os aspectos do céu e dos astros influem sobre o clima, os ventos e as intempéries” (Xxxxxxxx, 1986:14).6 Esse desenvolvimento foi importante para a constituição da Astrologia, pois, na “pretensão de decifrar o destino dos indivíduos na consulta aos astros, o mago tinha a necessidade de dados precisos para estabelecer o horóscopo” (Xxxxxxxx, 1986:13).7
A partir desses dados relacionais entre os planetas e estrelas e acontecimentos naturais terrestres, observados e quantificados, os astrólogos de então extrapolaram essas constatações e passaram a atribuir um papel central a determinado astro “sobre
6 “(...) ils ont compris la relation existant entre les mouvements de la lune et le phénpmène des marées. Ils
en ont conclu que l’aspect du ciel et des astres influait sur le climat, sur le vents et les intempéries”.
7 “Dans sa prétension à déchiffrer le destin des individus en consultant les étoiles, le mage a besoin de
données précises pour etablir son horoscope.”
uma região específica do mundo, sobre um país, senão sobre uma cidade. Do mesmo modo que eles [os astrólogos] sabiam prever a data de um eclipse ou da ascensão de uma constelação, eles tentavam conhecer o futuro” (idem:14),8 passando a serem bastante solicitados pelo rei. Este, assim como os navegadores que não saiam ao mar sem um plano celeste, como os generais que não iniciavam uma guerra fora da data mais recomendável, e como representante de toda uma região afetada por um astro específico, para o estabelecimento das suas condições de ação futuras, antes da tomada de decisões reais, mandava sempre que fossem consultados os astros.
Com o tempo,
/.../ “com certa democratização da astrologia nasce o horóscopo individual. Este repousa, mais que tudo, sobre uma angústia face ao futuro e à morte, do que a uma crença na relação de causalidade entre a data do nascimento de um indivíduo (respectivamente sua data de concepção) e o destino que lhe será reservado. De uma previsão que se aplica caso a caso a acontecimentos precisos (eclipses, marés etc.), extrapola-se à duração de toda uma vida. Desse modo, um homem que tenha nascido ‘sob uma boa ou uma má estrela’, o seu destino estará escrito nos astros, sob uma fórmula que conduz a uma visão fatalista da existência” (Xxxxxxxx, 1986:15).9
O primeiro horóscopo publicado, ainda que de forma manuscrita, surgiu em Roma, em 129 de nossa era, pelas mãos do tribuno Tibério, que redigiu um “almanaque astrológico” (Stierlin, 1986:110). O horóscopo se manteve ligado aos almanaques durante os séculos e teve bastante aceitação a partir dos anos 1940, no Brasil, adquirindo bastante popularidade nos anos 1960 e 1970 (Casa Nova, 1996) e.
8 “(...) le rôle des astres sur une région donnée du monde, sur un pays, voire sur une ville. De même qu’ils savaient prévoir la date d’une éclipse ou le lever d’une constellation, ils ont tenté de connaître l’avenir.”
9 “Avec une certaine démocratisation de l’astrologie naît l’horoscope individuelle. Celle-ci repose autant sur une angoisse face au futur et à la mort que sur la croyance en une relation de causalité entre la date de la naissance d’un individu (respectivement sa date de conception) et le destin que sera le sien. D’une prévision s’appliquant de cas en cas à de événements précis (éclipse, marée, etc.), on extrapole à la durée de toute une vie. Désormais un homme était né ‘sous une bonne ou une mauvaise étoile’, et sa destinée entière était inscrite dans les astres, selon une formule conduisant à une vision fataliste de l’existence.”
corroborando essa tese, em nosso corpus encontramos cenografia de horóscopo apenas a partir dos anos 1960.
Como creditou certa feita Xxxxxx Xxxxxxx (1988:155), o horóscopo, hoje, tornou- se uma “mitologia” e não é “de modo nenhum (...) uma abertura para o sonho, mas sim um puro espelho, uma pura instituição da realidade.” Em seu ensaio, o semiólogo observa duas características nos horóscopos da revista Elle francesa da época (1957): uma reprodução inescrupulosa do “ritmo total da vida de trabalho” e seu universo composto por mulheres, especialmente “das empregadas, das dactilógrafas ou das vendedoras” (idem). Certamente que se esperaria esse universo feminino, descrito por Xxxxxxx, de leitores para o horóscopo publicado nos meios de comunicação massivos, especialmente que o veículo por ele analisado é destinado a esse público. Aliás, essa parece ser uma idéia recorrente, a de que o horóscopo é consumido primordialmente por mulheres. Como veremos, é uma idéia falsa.
Na Folha de S. Xxxxx, no espaço temporal de nosso corpus, encontramos quatro astrólogos, responsáveis pelas previsões diárias baseadas nos astros: Xxxxxx, do exemplar de 14/03/1960 ao de 17/07/1968; Xxxxx Xxxxx, de 13/11/1968 a 13/03/1980; Xxxxxxx Xxxxxxxxx, de 14/03/1984 a 13/11/1996; Xxxxxxx Xxxxxx, de 13/03/2000 a 17/11/2004.
Cada astrólogo possui um estilo para lançar a sorte, apesar de, como se verá mais detalhadamente no próximo capítulo, todos os textos dos horóscopos apresentarem uma mesma “estrutura enunciativa”. Por exemplo, Xxxxxx é explícita no alvo de suas previsões, o homem burguês, comerciante, enquanto os outros buscam a neutralidade imposta aos textos do jornal, usando, quando necessário, a vogal “a” entre parênteses para demonstrar a validade dos argumentos para ambos os sexos: “Possibilidade de se mostrar antagônico(a)” “Exija absoluta fidelidade da parte dele(a)” (Xxxxx Xxxxx, FSP, 15/11/1972); “Busque o que o(a) entusiasma...”, “...mais próspera e bonita o(a)
animará...”, “Dois dias para investir em si mesmo(a)” (Xxxxxxx Xxxxxx, FSP, 17/11/2004). Como dissera, Xxxxxx não tem essa preocupação, seja por realmente se endereçar aos homens, seja porque, à época, ainda não havia essa atitude politicamente correta de se usar os dois gêneros, para não espantar potenciais consumidores.
As previsões também diferem de um astrólogo para outro, de uma época a outra, embora as conjecturas de Xxxxxxx (1988), sobre a vida do trabalho como o foco do horóscopo, estarem ainda corretas.
1.4.3. Quadrinhos
No mundo contemporâneo, as narrativas que sobrepõem ícones e palavras — discurso plástico — vêm tomando proporções cada vez maiores, permitindo à imagem a materialidade de linguagem que não apenas reflete, mostra ou ilustra uma realidade, mas que, principalmente, significa, o que nos permite interpretar o icônico por sua expressividade como linguagem. Os discursos plásticos, assim, cresceram e se multiplicaram porque vão ao encontro das necessidades do ser humano. Isto porque eles utilizam um elemento de comunicação que está presente na história humana desde o seu início: a imagem.
O termo “discurso plástico” será usado para se referir genericamente a qualquer forma de “narração scripto-imagética” (Sousa, 2000:238), embora nosso corpus seja constituído de uma submodalidade dentro das narrativas quadrinizadas, a “tira de quadrinhos”, publicada regularmente nos jornais impressos. Quando se examina uma materialização de um discurso plástico como um todo, a disposição dos seus elementos específicos assume a característica de uma “linguagem”. O discurso plástico comunica numa “linguagem” que se vale da experiência visual comum aos interlocutores, isto é,
seu criador e o público. Ele pode ser chamado “leitura” num sentido mais amplo que o
comumente aplicado ao termo, como veremos posteriormente.
É possível contar uma história apenas através de ícones, sem ajuda de palavras. A ausência de qualquer diálogo para reforçar a ação serve para demonstrar a viabilidade de imagens extraídas da experiência comum. Também o registro verbal, na concepção de Xxxx Xxxxxx (2001:10), deve ser lido como imagem: “o tratamento visual das palavras como formas gráficas é parte do vocabulário (...) e funciona como extensão da imagem”. Este autor privilegia o registro icônico por ser, ele próprio, um quadrinista; via de regra, criadores de histórias em quadrinhos consideram-se artistas plásticos, motivo pelo qual Xxxxxx define os quadrinhos como “arte seqüencial”.
O discurso plástico lida com dois importantes dispositivos de comunicação, palavras e imagens. A compreensão de uma imagem, assim como de enunciados verbais, requer uma comunidade de experiência, advinda das interações sociais entre os seres humanos (Blumer, 1980) e elas devem ser compreendidas como carregadas de um sentido que vai além do visual. Portanto, para que sua mensagem seja compreendida, o quadrinista deverá ter uma compreensão da “experiência imagética” de vida do leitor, mesmo que este seja idealizado, no sentido que lhe dá Xxxxxxx Xxx (2000). O sucesso ou fracasso desse método depende da facilidade com que o leitor reconhece o significado e o impacto emocional da imagem. Portanto, a competência da representação e a universalidade da forma escolhida são cruciais. O estilo e a adequação da técnica são os acessórios da imagem e do que ela está tentando dizer.
Com linguagem bastante próxima à do cinema, o que leva diversos autores a adotarem conceitos da arte cinematográfica quando tratam de quadrinhos, a prática significante, nos discursos plásticos, “funda-se sobre a narratividade e se expressa semiologicamente através das imagens” (Cirne, 1972:17).
Um dos principais pensadores sobre quadrinhos no Brasil, Xxxxx Xxxxx (1972), os definem como “narrativa quadrinizada”, termo bastante adequado do ponto de vista lingüístico, pois, para ele, o produto quadrinizado, isto é, a estória (em contraponto ao produto cinematográfico, o filme) deve ser entendida como a “soma de sintagmas e situações temáticas ou uma particular situação temático-sintagmática agenciada pela decupagem que polariza o discurso narrativo” (Xxxxx, 1972:20). Para ele, “quadrinhos são uma narrativa gráfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes que agenciam imagens” (Cirne, 2000:23). A narrativa quadrinizada, assim, existe em “função de planos articulados segundo um todo: a articulação dos quadros determina-a semiologicamente, criando um novo espaço para a leitura” (Cirne, 1972:49).
O espaço da significação dos quadrinhos encontra-se, assim, no “modo narrativo visual capaz de agenciar elipses gráficas e espaciais” (Cirne, 1972:29). Dessa maneira, os balões ou legendas onde aparecem enunciados verbais não marcariam a especificidade dos quadrinhos que, ao contrário, estaria vinculada ao ritmo produzido pelas imagens e pelos cortes gráficos. Para Xxxxx, a narrativa dos quadrinhos “funda-se sobre o salto de imagem em imagem, fazendo da elipse (...) a sua marca registrada: a narratividade dos quadrinhos funda-se sobre a descontinuidade gráfico-espacial” (1972:39-40). Assim, o “lugar significante do corte — que chamaremos de corte gráfico — será sempre o lugar de um corte espácio-temporal, a ser preenchido pelo imaginário do leitor” (Cirne, 2000:23), o que será mais bem discutido à frente.
A configuração geral do discurso plástico apresenta uma sobreposição de signos verbais e signos icônicos e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais, uma “dupla leitura”, como se verá. As regências visuais (por exemplo, perspectiva, simetria, efeitos gráficos) e as regências verbais (por
exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente (Xxxxxx, 2001). A estas, propomos acrescentar a “regência do discurso” (por exemplo, o modo de organização narrativo, os percursos semânticos, o contrato comunicativo), que levaria os quadrinhos de “narrativa quadrinizada” a “discurso plástico”.
Nos quadrinhos, o balão “é um componente concreto, físico, imagístico capaz de assumir as mais diversas formas — inclusive metalingüísticas —, encerrando discursos falados ou pensados, verdadeiras unidades significantes da imagem” (Cirne, 1972:32, itálico do autor). Dessa forma, o balão surge a partir de uma “necessidade lingüística, mas também por uma necessidade ideogramática, entre a imagem e a significação temática” (idem, p. 33).
A habilidade para expressar tempo é decisiva para o sucesso de uma narrativa scripto-imagética. Um discurso plástico torna-se “real” quando o tempo e o timing tornam-se componentes ativos da criação. O balão, ou legenda, assim, é um recurso extremo. Ele tenta captar e tornar visível um elemento etéreo: o som. A disposição dos balões que cercam a fala — a sua posição em relação um ao outro, ou em relação à ação, ou a sua posição em relação ao emissor — contribui para a medição do tempo. Uma exigência fundamental é que sejam lidos numa seqüência determinada, que se pode chamar de “linear”, para que se saiba quem “fala” primeiro. Os balões são lidos segundo as mesmas convenções dos textos (isto é, da esquerda para a direita e de cima para baixo nos países ocidentais) e em relação à posição do emissor. Dentro do balão, o letreiramento reflete a natureza e a emoção da fala. Na maioria das vezes, ele é resultado da personalidade (estilo) do quadrinista e da personagem que fala.
Xxxxxx Xxxxxxxx, na sua Teoria da Relatividade, diz que o tempo não é absoluto,
mas relativo à posição do observador. Em essência, o discurso plástico faz deste postulado uma realidade. O ato de enquadrar ou emoldurar materialmente uma ação não
só define seu parâmetro de significação, mas estabelece a posição do leitor em relação à cena e indica a duração do evento. Na verdade, o enquadramento “comunica” o tempo (Xxxxxx, 2001:32). A magnitude do tempo transcorrido não é expressa pelo quadrinho per se. A imposição da imagem dentro do requadro do discurso plástico atua como catalisador. A fusão de símbolos, ícones e balões faz o enunciado. O ato de colocar a ação em quadrinhos separa as cenas e os atos como uma pontuação.
Desde seu início, os quadrinhos firmaram-se como forma popular de leitura, que encontrou um público amplo e passou a fazer parte da dieta literária da maioria das pessoas, em algum momento de suas vidas. Tendo sido anteriormente considerados paraliteratura, eles “assumem hoje o caráter de arte — e por que não? — literária, capazes de revelar um extraordinário conteúdo ideológico, sociológico, narrativo e mitológico” (Xxxxxx, 2001). Dessa forma, a imagem nos quadrinhos, assumindo o papel de linguagem, pode ser interpretada e adquirir sentidos dentro do contexto social em que se encontra inserida.
Segundo Xxxxx Xxxxxx (1986), a imagem teria a propriedade de referência em comum com a língua, diferindo, no entanto, quanto ao número de leituras possíveis, pois na língua estes seriam finitos, enquanto na imagem podem ocorrer sem limites.
Para Xxxxx (2000:25), os quadrinhos investem em uma leitura radical, ou seja, “aquela que se dá, ao mesmo tempo, de forma múltipla e simultânea, que constrói a sua temporalidade específica no interior da narrativa que, se de um lado é a narrativa proposta pelo autor, do outro é a narrativa mentalmente trabalhada pelo leitor”.
Dessa forma, “o leitor é obrigado a ‘parar’ no tempo, enquanto o balão/texto ‘pára’ a imagem, conflitando-se com o movimento da coisa narrada” (Cirne, 1972:54). Para ele,
/.../ “se o tempo narrativo configura-se como o tempo do significante, e o tempo narrado como o tempo do
significado, chamaremos o tempo da leitura — com todas as suas implicações semiológicas — de tempo significacional, já que em parte se funda sobre os outros dois” (Cirne, 1972:55).
Assim, na leitura dos quadrinhos, é preciso haver uma decupagem em unidades e blocos significantes (Cirne, 1972). A unidade significante, entretanto, não se confunde com a unidade mínima de um discurso, tendo em vista que ela “visualiza um segmento minimum, não de uma linguagem em si, mas de um código especificado passível de se concretizar em vários discursos” (Cirne, 1972:59). Nos quadrinhos, a unidade significante confunde-se com o “quadrinho” propriamente dito.
Em relação ao bloco significante, “trata-se de uma área da página constituída em um espaço mais ou menos compacto da narrativa mediante o comportamento posicional dos quadros” (Cirne, 1972:60). O bloco significacional concretiza-se, principalmente, de três modos: a) pela articulação dos quadros no interior da página, isto é, pela articulação dos quadros a partir de um posicionamento determinante segundo o discurso narrativo; b) pela visualização da página, quando esta não se define pela articulação de seus quadros; e c) pela mudança da situação temática, quando a visualidade parece-nos insuficiente para determinar os blocos (Cirne, 1972:61-62).
De acordo com o modo como os blocos significantes configuram-se na página, “a leitura poderá deixar de ser linear (...): determinadas áreas da página impõem uma nova direcionalidade da leitura, mas sempre como opção” (Cirne, 1972:63), já que ao consumidor é permitido construir sua própria direção de leitura. Dessa maneira, através dos blocos estaremos aptos a ler com mais precisão o desencadear de um “dado discurso narracional quadrinizado: ler o espaço da página — ou da tira — é ler o inter- relacionamento dos planos” (Cirne, 1972:69). A “leitura” de discursos plásticos, assim, permite uma “dupla leitura”, pois há a necessidade, por parte do leitor, de conhecer, além dos aspectos gramático-discursivos dos enunciados verbais, os fundamentos
plásticos “mínimos” para a leitura de imagens, isto é, conhecimentos ligados ao significado das cores, ao uso de perspectivas, dos tempos diegéticos fixados pelos cortes gráficos, leis da física, gravidade etc. (cf. Xxxxxx, 2001).
Vimos que a mídia, no mundo contemporâneo, comporta-se como sujeito semiótico, cuja voz ressoa na vida cotidiana de maneira inexorável, construindo o “presente” vivido, através da seleção dos temas e a delimitação espaço-temporal do que pode vir a se tornar notícia. Vimos, também, que a mídia funciona, na sociedade, como um campo autônomo, responsável pela troca informativa entre os diversos campos e os cidadãos. Nesse sentido, a mídia e, mais especificamente, o jornal, tornam-se lugar privilegiado para a tematização e discussão dos assuntos importantes para a vida pública.
Percebemos, ainda, como o campo social da mídia instaura uma configuração discursiva específica, marcada pela dupla articulação entre os interesses comerciais/publicitários e o interesse público na construção das notícias. Esse campo social delimita e organiza um contrato de comunicação particular, o contrato midiático, que, por sua vez, abriga vários subcontratos estabelecidos cada qual para um dispositivo midiático (jornal impresso, televisão, rádio, revistas etc.); dentro desses contratos específicos encontramos, ainda, “sub-sub-contratos” correspondentes ao conjunto de gêneros encontrados na massa impressa.
Vimos que, de maneira geral, um jornal impresso está embasado no tripé informação-publicidade-entretenimento, que constituem os contratos formadores da noção de “jornal impresso” que possuímos. Por fim, vimos as principais cenografias de diversão que compõem o espaço de entretenimento no jornal Folha de S. Paulo. Dessa maneira, trataremos, no próximo capítulo, mais detalhadamente desse contrato de
diversão, em uma perspectiva histórica, de modo a percebermos o desenvolvimento dessas cenografias ao longo de quatro décadas.
CAPÍTULO 2
O contrato de diversão do jornal impresso
“Embora exista para persuadir e também educar, a mídia é um lugar fundamental em que e pelo qual — na segurança e no estímulo que ela oferece aos espectadores do mundo — nós jogamos: subjuntivamente, livremente, por prazer.” (Xxxxx Xxxxxxxxxxx).
Como vimos, a noção de “contrato de comunicação”, na Teoria Semiolingüística, amalgama-se com o conceito de “campos sociais”, advindo da sociologia bourdieriana, de maneira que poderíamos pressupor que determinado campo social constituiria contratos de comunicação específicos para cada tipo de situação de comunicação possível em seu domínio próprio, ou no contato com os outros campos sociais que integram a esfera da realidade social.
Diferentes conjuntos de condições contratuais definiriam diferentes gêneros de contratos, de acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx (2004:138- 141): publicitário, informativo, jurídico, ficcional, entre outros. Cada um desses gêneros demandaria uma regulação contratual específica, que lhes nomeariam. Esse contrato particular (e penso aqui em um móbile constituído de um arco-mestre sustentando arcos de variados tamanhos, cada um com variado número de arcos menores) irá submeter as construções textuais e as relações interacionais da situação de comunicação que ele “(re)presenta” às restrições derivadas de sua encenação discursiva.
Seguindo terminologia maingueneana, como vimos, no campo da mídia, determinado por um “contrato midiático” (Xxxxxxxxxx, 1994; Xxxxx, Lochard, 1998) correspondente ao tipo de discurso que compõe seu capital social, constitui-se uma “cena englobante”, entre outras, correspondente ao jornal impresso; uma “cena
genérica”, entre outras como também vimos, enquadrada pelo “contrato de diversão”; e variadas “cenografias” (Maingueneau, 2001:85-93; 2004:43-57; 2006:111-131).
Como salienta Xxx Xxxxx Xxxxxxx, os contratos não são “puros” e, no caso dos jornais, seu contrato busca elementos de outros contratos sempre que necessário para que seu funcionamento se dê o mais eficiente possível. Como observa a pesquisadora, um contrato freqüente nos jornais diários é o “contrato de diversão”, que funcionaria de modo a “amenizar a leitura de temas 'duros' e que são, no entanto, o espelho (mais ou menos fiel, mais ou menos deformado) do que está acontecendo em nossas cidades, no nosso país ou no mundo” (Xxxxxxx, 2003:02).
É dessa maneira que enxergamos o “contrato de diversão”: uma clivagem na dura realidade cotidiana, de forma a levar o indivíduo/leitor a atenuar e sublimar a rudeza da vida social bem como na constituição de um espaço de sociabilidade com a mídia “jornal” e essencial para sua constituição como sujeito semiótico. No jornal, especificamente, ele serviria, ainda segundo Xxx Xxxxx Xxxxxxx (2003:03), para “fazer com que o leitor (ainda que por alguns instantes) esqueça ou minimize a crueldade de certas notícias do cotidiano”. Para além disso, “talvez a brincadeira possa, ocasionalmente, ser um ensaio para o real: uma prática. O simulador de vôo para o dia- a-dia” (Xxxxxxxxxxx, 2002:125).
Um leitor habitual10 de jornal, e mesmo aquele que apenas folheia suas páginas eventualmente, sabe que pode encontrar, nessa materialidade, gêneros como reportagens, notícias ou as colunas11 de humor, como as de Xxxx Xxxxx, na Folha de S. Xxxxx (que configuram um “contrato de informação”), anúncios publicitários (que
10 Usaremos, ao longo deste trabalho, a perspectiva do “leitor habitual”, ou seja, aquele que, seja por ser assinante, seja por adquirir um exemplar nas bancas ou, simplesmente, pegar emprestado o periódico, tenha o hábito da leitura diária de qualquer jornal impresso. Esse leitor habitual é aquele que consome o produto midiático da primeira à última página, seja por necessidade de se manter informado, seja por qualquer outra razão [ver, por exemplo, os tipos de leitura definidos por Xxxx Xxxxx França (1998)que serão discutidos mais a frente e as pesquisas de leitura descritas por Xxxxxxx Xxxxx (2001)].
11 “Seção assinada e publicada com regularidade” (Xxxxxxx, 1987:71).
configuram um “contrato de publicidade”) e serviços,12 genericamente falando. Além desses tipos tradicionais, o leitor sabe que encontrará, ainda, algumas cenografias de diversão, sejam palavra-cruzada, quadrinhos, piadas ilustradas ou mesmo as previsões diárias para o zodíaco (que configuram o que nomeamos como “contrato de diversão”).
Sabe-se que a leitura de um jornal não é, normalmente, linear, da primeira à última página. Parece que o leitor habitual do jornal procura primeiro as rubricas temáticas que lhe interessam para, depois, ler as informações mais periféricas a essa “zona de interesse”; há mesmo leitores que apenas lêem as notícias que lhes despertam o interesso prático, ficando todo o resto do jornal intocado (Dines, 2001). Na década de 1930, um editor do jornal A Nação queixa-se ao seu proprietário, Xxxx Xxxxxxx, acerca do sucesso que o Suplemento Infantil, lançado em 1934, com quadrinhos, “jogos, palavras cruzadas e textos didáticos sobre a história do Brasil”, vinha fazendo, especialmente com o público juvenil: “(...) um jornal não pode ser levado a sério quando é avidamente comprado por crianças. (...) [Os] garotos retiram o Suplemento Infantil e espalham o resto da edição pelas ruas da cidade” (Xxxxxxx Xxxxxx, 2004:31).
O “contrato de diversão”, por sua própria natureza, seria, dos que constituem a cena englobante “jornal impresso”, o mais aberto à participação libertadora do sujeito empírico que o interpreta, no que diz respeito a suas estratégias discursivas, portanto, onde o leitor tem maior criatividade no processo de semiotização dessas cenografias . No momento, é suficiente dizer que ao leitor de jornal é atribuída uma “competência midiática” que permitiria a ele “liberar-se no jogo da recepção” (Xxxxx;Xxxxxxx, 1998:17).13
12 Em Jornalismo, chama-se de “serviço” informações como a previsão do tempo, obituários, horários de funcionamento de bancos, órgãos públicos, programação cultural, entre outras, o que configura um contrato de informação.
13 “Dans cette nouvelle conjoncture, des chercheurs comme Xxxx Xxxxxxx et Xxxxx Xxxxxxxxx em viennent ainsi à prôner l’acquisition progressive d’une ‘compétence médiathique’ permettant de se livrer au ‘jeu de la reception’” (negritos dos autores).
Em um primeiro momento, as cenografias de diversão são calculadas, por parte da instância de produção, para atraírem consumidores para o jornal, além de manterem os já habituais. Isso imprime ao contrato de diversão uma visada de sedução, o que lhe aproxima das publicidades; por outro lado, ele é visado pelo leitor tendo em vista uma finalidade de dispersão, característica que o distingue dos demais contratos jornalísticos. Xxxxxxx Xxxxxxx salienta que, para o receptor, “o entretenimento é simplesmente aquilo que entretém, vale dizer, a ausência de tédio”. Ele afirma que a separação entre informação e entretenimento não tem “nenhum sentido para os receptores. Para eles, o oposto da mensagem de entretenimento dos meios de comunicação não é o conhecimento informativo, mas o conteúdo que não lhes agrada” (Xxxxxxx, 2001:106, negritos nossos).
A divisão corrente que fazem jornalistas e o senso comum, entre “conteúdos informativos” e “entretenimento”, como uma oposição necessária para a definição de um ou outro, pode ser encontrada mesmo em outros tipos de publicação. Por exemplo, em um guia publicado dentro da coleção “DVDteca”, da Folha de S. Xxxxx, encontramos na seção Extras, a seguinte advertência ao leitor: “Entretenimento. Este é o foco dos extras do DVD ‘(...)’. Os itens de caráter mais informativo (...) foram deixados em segundo plano” (Gênio Indomável, 2005:06, negritos nossos). Ou seja, parece que o caráter informativo exclui o conteúdo de diversão e vice-versa. Como se verá, a “informação” é, também, constituinte dos conteúdos de diversão, assim como o caráter de entretenimento atravessa toda a produção das indústrias culturais.
Desse ponto de vista, o leitor relacionar-se-ia com essas cenografias como se
participando de um jogo. Como Xxxxx Xxxxxxxxxxx defende, também queremos
/.../ “explorar a brincadeira como instrumento de análise da experiência midiática e defender a idéia de que o estudo da mídia requer atenção à brincadeira como uma atividade nuclear da vida cotidiana, embora extremamente desprezada sobretudo nos discursos do Iluminismo ou do pós-Iluminismo que frisam, e apenas valorizam, a sóbria racionalidade e o progressivo e apropriado desencantamento do mundo” (Silverstone, 2002:114).
Também Xxxxxxx Xxxxxxxxxx (veja, principalmente, 1983 e 2006) associa a “comunicação” ao teatro e ao jogo, como se pode notar na terminologia conceitual por ele empregada. Xxxxxxxxxx segue, assim, toda uma tradição filosófica, iniciada em Xxxxxxxxx e Xxxxxxxxxxxx, de considerar a linguagem como jogo. Xxxxx Xxxxx ressalta que, para este filósofo, “a linguagem não tem uma essência comum ou, se a tiver, será mínima, incapaz de explicar as relações entre suas várias formas. Estas se ligam entre si de maneira apenas aproximada, como os jogos ou como os rostos de pessoas que pertencem à mesma família” (Pears, 1973:22).
Nesse sentido, é preciso ressaltar que o conceito de “entretenimento” normalmente esteve marcado pelo aspecto negativo, mesmo quando lhe restringimos o conteúdo ao que consideramos “jogo”. Na Filosofia, por exemplo, iniciando-se em Platão, foi considerado univocamente como merecedor de ser julgado em termos morais; mais tarde, não será mais julgado em termos de categorias de oposição entre virtude e vício, mas como o contrário do trabalho, especialmente porque, “embora seja uma atividade não material, não desempenha uma função moral” (Huizinga, 1999:9). O termo também é usado de maneira pejorativa pelos críticos da cultura de massa, que não lhe concederam legitimidade, não reconhecendo “sua importância positiva para a adaptação das pessoas à pressão social” (Xxxxxxx, 2001:106).
Foi somente no século XVIII que uma “literatura de entretenimento dispensou seu lado moral para se tornar parte da comercialização do lazer, junto com concertos, corridas de cavalo e circos” (Xxxxxx; Xxxxx, 2001:75). Por essa época também se inicia o processo de emaranhamento entre a esfera privada e a pública (Sennet, 1988), mistura que se tornaria cenário para o desenvolvimento da sociedade de consumo do século XX,
impulsionada ainda pela industrialização e divisão do trabalho impostas pelo capitalismo.
Além dos relatos sensacionalistas e sanguinolentos e do uso farto de ilustrações, havia outras maneiras de “interessar os leitores, como a oferta de palavras cruzadas, jogos e acima de tudo esportes” (Xxxxxx; Burke, 2001:215), bem como loterias e concursos devidamente premiados, nos jornais populares do início do século XX. Como o que dá certo é, normalmente, copiado no “campo das mídias” (Xxxxxxxxx, s/d), os jornais ditos “sérios” tiveram que se render a essas cenografias de diversão, como modo de atrair uma pequena burguesia que começava a se formar nas cidades, incorporando, inclusive, conteúdos normalmente encontrados nos almanaques, especialmente os “almanaques de farmácia” (Casa Nova, 1996). Para Xxxxxx Xxxxxxx (1988:157), por exemplo, o horóscopo seria uma leitura tipicamente pequeno-burguesa. Talvez, por conta dessa incorporação de conteúdos normalmente publicados em outras cenas midiáticas, só tenhamos encontrado horóscopo, em nosso corpus, regularmente, apenas a partir dos anos 1960, quando da decadência dos almanaques, tradicional veículo desse tipo de informação.
Sendo assim, há de se supor que, certamente, há quem compre um jornal pelo
que nele irá encontrar de diversão, em um sentido mais amplo. Inclusive, muitos dos antigos almanaques de farmácia parecem ter perdido algumas dessas cenografias que lhes eram próprias, como o horóscopo — que agregou, nos dias atuais, informações sobre as fases da Lua, típicas de notícias agrícolas ou rurais —, e os “lugares do lazer”, como os jogos, os passatempos e a carta enigmática (Casa Nova, 1996:62-67), para a emergência dos “jornais-tribuna” em sua transformação em “jornais de massa” (ver, a respeito, Xxxxxx, 1988).
A leitura desses almanaques não dependia da contrapartida monetária dos leitores, haja vista que eram distribuídos gratuitamente, normalmente por fabricantes de remédios, que os produziam como veículo de propaganda (Casa Nova, 1996). Desse modo, seria pertinente perguntarmos: há quem compre o jornal exclusivamente pelo que nele chamamos de “diversão”?
Antes de respondermos a essa pergunta, é preciso, então, apontar para o que estamos nomeando como “diversão”. Ao longo do trabalho, o termo está sendo utilizado para se referir estritamente à distração, ao passatempo, à recreação que o jornal oferece a seus leitores. Para Xxx Xxxxxx e Xxxxx Xxxxx (2001:74),
/.../ “a história das palavras ‘diversão’ e ‘divertimento’ nos mostra algo sobre os obstáculos para a emergência dessa categoria [de textos] (...). No início do século XVII, o divertimento era associado com a hospitalidade demonstrada aos visitantes. Somente perto de 1650 o termo adquiriu um sentido adicional de algo interessante ou divertido, e apenas no início do século XVIII certas performances, como peças de teatro, puderam ser descritas como ‘divertimento’.”
Divertimento, no sentido de entretenimento e lazer, que o termo possui nos dias atuais e como veremos mais à frente, leva-nos a fazer ligações com a centralidade que o elemento “entretenimento” tem na construção dos conceitos de “cultura de massa” e “indústria cultural”, pelos teóricos da tradição da Escola de Frankfurt ou os críticos da cultura em geral. Para esses críticos, “os prazeres obtidos com os jogos da cultura de massa nos privam de nosso julgamento crítico” (Silverstone, 2002:125), e, citando os principais pensadores frankfurtinianos:
“Deleitar-se significa dizer Sim... O prazer sempre significa não pensar em nada, esquecer o sofrimento mesmo onde ele é mostrado. Basicamente, ele é desamparo. É fuga; não, como se alega, fuga de uma realidade miserável, mas do último pensamento de resistência remanescente” (Xxxxxx; Xxxxxxxxxx, 1985:144).
Também percebemos críticas negativas quando Xxxxxxx Xxxxxxxx (1978:91ss) fala em “jornalismo como entretenimento”, Xxxx Xxxxx Xx. (2000) nomeia de “showrnalismo” e Xxxx Xxxxxxx adverte para a “notícia como entretenimento” (Xxxxxxx, 1982:142ss). Entretanto, não iremos trilhar essa direção, pois se trata de gêneros organizados, mais especificamente, sob a égide do “contrato de informação” propriamente falando, que utiliza estratégias de humor ou diversão para a captação do leitor.
Por isso, não nos interessam os textos informativos sobre entretenimento, como a programação e horários de cinema, teatro, festivais, televisão, shows etc., que, juntamente com obituários e outros tipos de informações dirigidas à vida prática dos leitores, formam o denominado “jornalismo de serviço”, que se identificam com um “contrato de informação”, como comentamos anteriormente. Também não enquadramos os textos publicados, na Folha de S. Xxxxx, por exemplo, pelo colunista Xxxx Xxxxx, ou mesmo as críticas das artes, pois os consideramos, como o faz Xxxxxxx Xxxxx (1991), como “comentários” informativos, portanto, informação/opinião, apesar de humorísticos. Xxxxx Xxxxxxxx denomina esses textos como “jornalismo diversional”, que trazem para o “jornalismo a técnica da ficção”, sendo “muito usado pelas revistas ilustradas” (Erbolato, 1991:43s). Mesmo assim, como se verá, as cenografias de diversão podem “subverter” esta ordenação, usando um termo de Xxx Xxxxx Xxxxxxx (2004), e apresentarem-se como gênero “notícia”, como se verá em alguns textos de introdução à previsão diária dos astros zodiacais (que serão mais bem explorados no capítulo seguinte).
O contrato de diversão, então, deve ser entendido no sentido estrito de uma
oferta que o veículo faz aos leitores, especialmente os que o compram, tendo em vista proporcionar momentos de dispersão, de relaxamento. Trata-se de uma proposta de
“atender às necessidades lúdicas dos leitores dos jornais (...) e (...) envolver o leitor em um clima de bem-estar” (Xxxxxxx, 1996:170). Sua incorporação pelos jornais coincide com o desenvolvimento industrial e a consolidação do sistema capitalista, que necessitava de “maiores oportunidades de lazer ativo ou passivo, sob a forma de recreação” (Xxxxxx, Xxxxx, 2004:194). Nesse sentido, Xxxxx XxXxxxx fornece uma esclarecedora definição para entretenimento que, embora longa, merece ser citada:
“Entretenimento. Descreve o principal conjunto da produção e consumo da mídia, cobrindo uma variedade de formatos que, geralmente, compartilham as qualidades de atração, distração, divertimento e servem para ‘tirar as pessoas do sério’. Também se refere ao processo de diversão em si e, neste sentido, pode também se relacionar aos gêneros que não são normalmente considerados como divertimento, tais como as notícias, anúncios publicitários ou a educação. O termo se torna problemático quando o vício do entretenimento exclui os usos informacionais da mídia ou quando o modo ‘entretenimento’ invade a esfera dos conteúdos de realidade — especialmente nas notícias, informação e política, onde parece avançar. O termo ‘infotretenimento’ tem sido descrito como o resultado desse uso” (McQuail, 2000:495).14
14 “Entertainment. Describes a main branch of media production and consumption, covering a range of formats that generally share the qualities of attracting, amusing, diverting, and ‘taking people out of themselves’. It also refers to the process of diversion itself, and in this sense it can also relate to the genres that are not usually regarded as entertainment, such as news, advertising or education. It is often perceived as problematic when addiction to entertainment excludes informational uses of media or when the ‘entertainment’ mode invades the sphere of reality content — especially news, information and politics, as it seems increasingly to do. The term ‘infotainment’ has been coined to describe the result.”
Dessa forma, rejeitamos aqui as definições “ideológicas” dadas ao entretenimento, especialmente por algumas correntes dos Estudos Culturais. Xxxx Xxxxxxx (2001:89), por exemplo, considera entretenimento um conceito ideológico “pelo fato de ser sempre utilizado para justificar práticas discursivas que (...) são representadas como neutras ou apolíticas, plausíveis (ou legíveis)”. Nesse sentido, durante o período de ditadura militar no Brasil, as cruzadas também estavam sob supervisão dos censores, que temiam que mensagens subversivas pudessem estar sendo enviadas através dos passatempos, tornando suspeitas, por exemplo, expressões como “Cavaleiro da Esperança”, termo histórico presente em enciclopédias e, coincidentemente, apelido de Xxxxxx Xxxxxxx, notório secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro. Embora os referenciais de conteúdo das cenografias de diversão possam estar ancorados na vida cotidiana, isso não quer dizer que seus usos sejam necessariamente ideológicos, no sentido de se estar a serviço de alguma operação conspiratória para a alienação dos indivíduos ou mesmo porque carregaria conteúdos implícitos de sabor político.
Embora descartemos o aspecto ideológico, tentaremos mostrar que os conteúdos
destinados ao lazer, ao contrário do que afirmam muitos dos pesquisadores sobre o jornalismo brasileiro e que o senso comum perpetua, podem carregar conteúdos sérios e seus referentes podem estar situados na realidade da vida cotidiana, o que não lhes subtrai a ficcionalidade que lhes é constituinte (Xxxxxxxx, 1999; Xxxxxxx, 1970; Xxxxxx-Xxxxx, 2004).
Como esses autores, Xxxxx Xxxxxxxxxxx também enxerga a brincadeira como algo que faz parte da vida diária e, ao mesmo tempo, está separada dela. Para ele, “entrar num espaço e num tempo para brincar é transpor um limiar, deixar algo para trás — um tipo de ordem — e aprender uma realidade diferente e uma racionalidade definida por
suas próprias regras e termos de troca e ação” (Silverstone, 2002:115). Ele lembra, ainda, que “a brincadeira é totalmente racional. O fato é que suas formas de racionalidade não são as do mundano, do cotidiano” (Silverstone, loc. cit.), como também mostra Searle (1995) sobre o estatuto lógico da ficção.
Inicialmente, o espaço para a diversão no jornalismo restringia-se às edições dominicais ou suplementos eventualmente publicados durante a semana, como os infantis e femininos. Com sua incorporação às edições diárias, o espaço físico que ocupavam parecia relacionar-se mais à diagramação das páginas, ocupando buracos não preenchidos pelos textos noticiosos. Posteriormente, foram agrupados, de maneira dispersa, no segundo caderno, os cadernos de cultura dos dias de hoje, criados para “abrigar o material do jornal relacionado essencialmente com o lazer”, como reconhece Xxxxxx Xxxxxxx (1996:169). Apenas como informação, o primeiro caderno de cultura, propriamente dito, surgiu no Jornal do Brasil, nos anos 1940, e chamava-se Caderno B, o que gerou a criação desses cadernos nos outros veículos. O nome “caderno B” tornou- se metonímico e, de modo geral, os cadernos de cultura dos jornais recebem títulos que remetem a esse: Caderno 2, Segundo Caderno, entre outros, ou a situações de lazer ou, como no caso da Folha de S. Xxxxx, ao uso das ilustrações (caderno Ilustrada).
Na literatura brasileira sobre jornalismo, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxx construiu uma
morfologia dos conteúdos de entretenimento de jornais e revistas brasileiros de informação, através de análise quantitativa, que lhes ressaltam a falta de prestígio, por não merecerem uma análise qualitativa, como recebem os gêneros noticiosos; no âmbito do espaço físico ocupado no jornal, como ele mostra, o entretenimento corresponde a aproximadamente quatro por cento da sua “superfície impressa” (Melo, 1972:120).
Esse pesquisador divide o “conteúdo do entretenimento” em duas categorias principais, os quadrinhos e as “variedades (palavras cruzadas, horóscopo, charadas,
curiosidades, etc.)”. Quando compara revistas semanais ilustradas, a classificação se estende para “humorismo”, “horóscopo e variedades” e “passatempos (palavras cruzadas, xadrez)”, sendo que os quadrinhos aparecem em apenas um entre os títulos pesquisados (idem:98s). Embora não tenhamos procedido a uma análise quantitativa, como o fez Xxxx Xxxxxxx xx Xxxx, acreditamos que esses percentuais ainda vigoram na imprensa brasileira em geral.
Xxxxx Xxxxxxxx (1981 passim) classifica esses textos como “jornalismo especializado”, que compõem “seções ou páginas” específicas dentro do periódico ou de um suplemento. Excetuando-se o que hoje se chama de hard news, isto é, os relatos de acidentes, fenômenos inesperados etc., que comporiam a categoria de notícias propriamente ditas, Erbolato classifica a massa textual restante do jornal diário (o que se chama de soft news) de acordo com sua tematização. Assim, há o “noticiário esportivo”, a “crônica social”, o “jornalismo científico”, a “cobertura policial”, entre outros. O entretenimento compõe a seção “Suplementos e Variedades”, nela incluindo uma gama de categorias, desde a “crítica literária” aos “assuntos femininos”, “suplementos infantis”, “efemérides e rememorações”, “curiosidades”, “horóscopos”, entre outros.
Elcias Lustosa, por sua vez, agrupa os materiais para entretenimento no caderno de cultura, que, segundo ele, “abriga todo o material sobre a programação de lazer da cidade em que o jornal é editado”, sendo seu espaço “destinado a tiras de quadrinhos, programação de shows, peças teatrais, cinema, horóscopos, colunas sociais, crônicas e programação de televisão” (1996:169). Xxxxxx Xxxx (2004), ao falar do jornalismo cultural, cita de passagem, e negativamente, a existência das cenografias de diversão.
Percebemos que essas classificações por temas colocam sob o manto do contrato de diversão gêneros com visadas informativas, preferencialmente (Charaudeau, 1997:73ss; 2004b:23s). Ao contrário, os quadrinhos, horóscopos, cruzadas e outros
jogos possuem uma visada preferencial de fruição. Como estas cenografias pertencem à cena englobante “jornal impresso”, elas apresentariam também uma visada de captação e informação, pelo fato de pertencerem a esse gênero discursivo (Xxxxxxxxxx, 1997, 2004b), especialmente se pensarmos que sua incorporação ao jornalismo tem muita relação com a busca do público-leitor, no início da modernização da imprensa, em fins do século XIX. De qualquer maneira, uma finalidade informativa, em última instância, poderia ser depreendida dessas cenografias, como se verá nos textos de abertura do horóscopo e nas palavras-cruzadas.
Além de serem publicadas em jornais, encontramos publicações especializadas para cada uma das cenografias de diversão — diríamos que cada uma dessas cenografias autonomizou-se em relação ao jornal impresso, criando uma outra relação dessas materialidades (um outro gênero e contrato) com o público-leitor específico de cada uma —, especializações essas que também não serão tema de nosso trabalho. Afirmamos que os quadrinhos, horóscopos, cruzadas e outros jogos são “criações jornalísticas”, pois, entre outros motivos, foram criados para serem publicados em jornais impressos ou, no máximo, em revistas ou almanaques, como mostra Vera Casa Nova (1996). Para além disso, podemos dizer que essas cenografias se constituíram de outros “discursos fundadores” a fim de se constituírem como “jornalísticas”.
Assim, palavra-cruzada, quadrinhos, horóscopo e outras formas de diversão que podemos encontrar diariamente nas páginas de qualquer jornal fazem parte do “campo jornalístico”, mesmo sendo essas cenografias produzidas fora da organização editora do periódico, pois a sua inserção efetiva na página do jornal responde aos imperativos editoriais do veículo informativo, estando sujeitas aos mesmos critérios adotados para os gêneros informativos e, até mesmo, para a publicidade veiculada.15
15 Xxxxxx, Xxxxxxx (xxxxxxxxx@xxx.xxx.xx) Pesquisa na FSP. E-mail para Xxxxxx Xxxx (xxxxxxxxx@xxxxx.xxx). 15 de maio de 2005.
Falando especificamente de quadrinhos, que seriam divididos em “cartoon — anedota gráfica” e “comic — história em quadrinhos”, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxx (1985) usa o argumento de que, embora “estejam sintonizadas com o momento vivido”, “seu referencial não é verídico” (pp.123-4). Como esses textos “não possuem limites de tempo e espaço” (seja lá o que se quer dizer com isso) e são “criações da livre imaginação do desenhista”, eles ultrapassam a “fronteira do real e se fundam no imaginário”, portanto, incompatíveis com a natureza informativa dos jornais, estando, dessa maneira, fora do “universo jornalístico” (idem ibidem.). Mesma direção segue o professor português Xxxx Xxxxx, para quem essas cenografias podem ser consideradas como “gêneros não propriamente jornalísticos [como] folhetins (...), anúncios e serviços úteis (farmácias, cinemas, marés), passatempos (palavras cruzadas, jogos de observação) e muitos outros” (Crato, 1992:145, itálicos do autor).
Aqui, podemos adiantar uma crítica a essa visão estereotipada e preconceituosa
contra os conteúdos de lazer publicados nos jornais impressos por parte dos principais pensadores do jornalismo brasileiro. É preciso salientar que esses estudiosos aglomeram gêneros com finalidades diversas e, portanto, modos de organização discursiva diferenciados, em uma mesma categoria analítica, não procedendo a uma investigação mais detalhada sobre as condições de produção de cada um e, muito menos, não se preocupando com o processo de interpretação orquestrado pela instância receptora, processo esse autônomo e independente, como veremos ao tratarmos dos sujeitos do discurso de diversão. Acreditamos, e tentaremos mostrar isso ao longo deste trabalho, que a noção de “contrato de diversão” pode auxiliar na compreensão desses textos bem como em uma maior elucidação quando de sua classificação dentro do volume textual encontrado nos jornais impressos. Devemos chamar a atenção, pois essa noção pode, e deve, ser aplicada em outros dispositivos midiáticos, como a televisão, o rádio ou a
internet, de modo a clarear o papel e a função do entretenimento no âmbito da mídia como um todo.
O aparecimento da diversão no jornalismo parece atado ao surgimento da imprensa como empresa e ao advento da publicidade nas páginas dos periódicos, atraída pela garantia de uma periodicidade regular e de grandes tiragens, em meados do século
XIX. Embora antes, segundo Xxxxxx Xxxx, em 1711, tenha acontecido o lançamento daquilo que ele considera como o primeiro jornal de variedades e cultura, o The Spectator, cuja “idéia era de que o conhecimento é divertido, não mais a atividade sisuda e estática, quase sacerdotal, que os doutos pregavam” (Piza, 2004:12). Conforme Xxx Xxxxxx e Xxxxx Xxxxx, o jornal Daily Mail, de Londres, em 1896, já tinha o “objetivo explícito de entretenimento e informação” (Xxxxxx, Xxxxx, 2004:196).
Entretanto, para entendermos a incorporação do contrato de diversão pelos jornais impressos, será preciso recuar no tempo e verificarmos porque se deu a incorporação dos conteúdos ditos “não-sérios” nessa cena englobante, até então marcadamente opinativa. Embora se deva salientar, como o faz Huizinga, que o “jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério” (Xxxxxxxx, 1999:24); ou como mostra Xxxx Xxxxxx (1995:119) a propósito das “mensagens sérias” encontradas em muitos textos ficcionais.
Para verificarmos essa incorporação, retornaremos aos fins do século XIX, em Nova Iorque, com o jornal New York World, de propriedade de Xxxxxx Xxxxxxxx. Até esse período, o jornalismo era feito de escasso noticiário, muita elucubração política, informações comerciais e agrícolas, e debates sobre livros e artes. Com a industrialização e conseqüente modernização da sociedade norte-americana, e uma forte imigração de irlandeses — menos conservadores que a população local e acostumados ao estilo mais liberal dos jornais europeus —, principalmente para a então pacata Nova
Iorque, houve também uma transformação no jornalismo, que passou a dar mais importância para o relato dos fatos, não raro sensacionalistas, começou a se profissionalizar e se transformou em empresa capitalista, como outra qualquer.
O nova-iorquino World foi criado em 1859 e adquirido por Pulitzer em 1883, quando iniciou a escalada ao topo entre os grandes periódicos norte-americanos responsáveis, em parte, pelo modelo de jornalismo popular e mesmo o jornalismo de referência ainda utilizado hoje, tanto no aspecto gráfico quanto no tratamento do acontecimento noticioso (por exemplo, a introdução do lead, o uso de manchetes e títulos apelativos, o uso de ilustrações e fotografias, o apelo ao entretenimento etc.). Após a morte de Xxxxxxxx, em 1911, o jornal ainda foi publicado até 1939.
Sem entrarmos nos detalhes, interessa-nos saber que, no início da década de 1890, o World era o principal jornal em Nova Iorque, em parte devido ao uso excessivo de ilustrações, em parte devido à autopromoção (Xxxxxxxx, 1978:91-106). Como forma de aumentar as vendas diárias, os jornais de então começaram a fazer uso de visadas de captação em suas páginas, especialmente com o uso de ilustrações — que atingiam a grande maioria de iletrados que compunha a sociedade de então —; manchetes maiores e destacadas; e o foco em histórias que pudessem ser tratadas de uma maneira mais atrativa ao público, com a exploração da desgraça humana.
Isso tornava as sisudas folhas elitizadas de antes em um produto mais palatável ao gosto médio, tanto na configuração gráfica quanto no conteúdo. Do início do século XX até o início da Segunda Guerra Mundial, em relação ao entretenimento, nos jornais a “política muitas vezes vinha por último, e no que toca a ela, havia muita informação incorreta” (Xxxxxx, Xxxxx, 2004:215), sem que com isso estejamos postulando alguma disforia acerca dos rumos editoriais seguidos pelos jornais em sua trajetória empresarial. Como a visão de o que agradasse ao público médio fosse marcadamente a de um
capitalista, Xxxxxxxx admitia publicamente que, para vender jornal, dever-se-ia ter o “sangue como manchete de primeira página” (Xxxxxx e Terrou, 1970:57),16 sem o menor constrangimento. Essa questão do sensacionalismo, entretanto, não será discutida aqui.
Naquela época, Nova Iorque era uma cidade de imigrantes, com 40% da população composta por pessoas nascidas em outros países. A grande maioria era analfabeta ou não podia ler em inglês. Esses imigrantes ou filhos de imigrantes tinham como fonte de informação apenas uma imprensa em língua não-inglesa que florescera rapidamente no fim do século XIX. Essa imprensa alternativa, por sua vez, copiava o estilo dos grandes jornais nova-iorquinos, especialmente o World de Pulitzer, que fazia um “uso liberal de cartuns e desenhos, liberdade nas manchetes, uma ênfase em palavras, conteúdos e sentenças com estruturas simples, que apelavam para a leitura por pessoas inexperientes em inglês” (Xxxxxxxx, 1978:98).17
À medida que os jornais perdiam a função de tribuna política, ao se dar ênfase ao texto noticioso propriamente dito, eles adquiriam uma outra função: a de entretenimento. De acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxx, o também jornalista, dono do jornal concorrente ao World e maior inimigo de Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, teria orgulhosamente proclamado certa vez: “É política de o Journal arrebatar mentes assim como buscar notícias, pois o público busca muito mais o entretenimento que a informação” (Xxxxxxxx, 1978:99).18 Xxxxxx Xxxx (1962:268s) relembra que os quadrinhos, portanto, cenografias de diversão, foram um dos responsáveis por parte significativa do sucesso dos jornais populares. Outro jornalista, Xxxxxxxx Xxxxx, sustentava, em fins do século XIX, que o “jornal tem três funções: informar, interpretar
16 “(...) il faudrait d’avoir du sang comme manchette de première page”.
17 “The World’s liberal use of cartoons and drawings, liberal use of headline type, and its own emphasis on relatively simple words, content, and sentence structure appealed to people inexperienced in reading English.”
18 “It is the Journal’s policy to engage brains as well as to get news, for the public is even more fond of
entertainment than it is of information.”
e entreter” (Xxxxxxxx, 1978:99).19 Nos dias atuais, são consideradas funções dos meios de comunicação de massa a tríade informação, educação e entretenimento. Parece que, também em relação à educação, os jornais diários teriam corrompido os almanaques, tomando-lhes essa função pedagógica identificada por Xxxx Xxxx Xxxx (1996:81-88).
Xxxxx XxXxxxx, falando das características das novas mídias, reconhece nelas um “nível de jogos”, que “preferem, em parte, tanto seus usos para o entretenimento, contra sua utilidade e instrumentalidade, como, parcialmente, ao seu potencial para o prazer pelo uso da tecnologia mesma” (McQuail, 2000:128).20 Além disso, ele coloca entre as funções sociais da mídia a do entretenimento, através da “provisão de distração, diversão e meios para o relaxamento; [e pela] redução da tensão social” (idem:80).21
A importância do entretenimento nos jornais estava marcada especialmente nas edições dominicais do World, que, como as outras edições dominicais dos outros periódicos, tinham muita proximidade com as revistas ilustradas e almanaques, tanto no conteúdo quanto no estilo. Se no início do século XIX apenas um nova-iorquino (somando nativos e imigrantes) entre vinte e seis comprava uma edição dominical, um em sete comprava um jornal durante a semana. Na metade da década, um em cada nove nova-iorquinos comprava a edição dominical. Em 1889, um em cada dois nova- iorquinos comprava uma edição aos domingos. De acordo com uma estimativa do editor do jornal Sun, Xxxxxxx Xxxx, em 1894, um jornal com 50 mil exemplares de tiragem diária, a três centavos de dólar, poderia vender uma edição dominical com tiragem de cem mil ou mais a cinco centavos (Schudson, 1978).
19 “Xxxxxxxx Xxxxx, of the Chicago Morning News and Daily News, maintained that the newspaper had
three functions: to inform, to interpret, and to entertain.”
20 “Degree of playfulness, referring partly to uses for entertainment, enjoyment, as against utility and instrumentality, partly to the potential for enjoyment from the process of use of the technology in itself.” 21 Entertainment, providing amusement, diversion and the means of relaxation; reducing social tension.”
Assim, o “que os leitores encontravam e gostavam nas edições do domingo, eles começaram a encontrar também nas edições diárias” (idem:99),22 a partir das mudanças introduzidas por Xxxxxxxx nas edições do meio da semana, com a publicação dos divertimentos que tanto atraíam os compradores dominicais. Dessa forma, as ilustrações, os quadrinhos, os temas femininos e infantis, as previsões zodiacais e as fases da Lua migraram das edições dominicais para as páginas diárias nesse ano de 1894, incorporando ao jornal uma outra categoria discursiva, a das cenografias de diversão, compondo com o informativo e o publicitário o que entendemos por “jornal” nos dias de hoje.
Esse jornalismo do World, que gerou uma escola muito influente de se fazer jornalismo, acabou por entrelaçar as divisões entre informação e entretenimento, que se acentuaram com o advento da televisão e sua consolidação a partir dos anos 1950 e 1960 (Xxxxxx; Xxxxx, 2004:196).
Assim sendo, para tentarmos responder à pergunta anterior, se alguém compra jornal pela diversão, citaremos o jornalista Xxxxxx Xxxx:
“O triste é que esses segundo cadernos são mais importantes para os jornais e revistas do que geralmente eles costumam imaginar. Não só as pesquisas de leitura em cada publicação apontam, na maioria dos casos, a seção como a primeira ou segunda mais lida depois da primeira página (ajudada, como se sabe, por coisas como quadrinhos, coluna social e horóscopo), mas é também dali que o leitor, muitas vezes, extrai suas referências afetivas, suas pontes cativas com a publicação” (Piza, 2004:63, negritos nossos).
Ele está falando de “jornalismo cultural”, uma especialização como se viu, e o uso da expressão “por coisas como” demonstra uma situação corriqueira nos meios jornalísticos e acadêmicos em relação aos passatempos e outras cenografias que fornecem a tessitura do contrato de diversão no jornal impresso: o quase desprezo, os
22 “What readers found and liked in the Sunday papers, they began to find in the daily press, too.”
xxxxxxxxxxxx e a falta de um melhor entendimento sobre sua natureza e organização discursiva. Por outro lado, ele ressalta o espaço de sociabilidade em que essas cenografias se convertem e que abordaremos mais à frente.
Xxxxxx Xxxx mostra, sempre em relação aos cadernos de cultura, usando o exemplo do caderno Leitura, da Gazeta Mercantil, ser essa a “seção do jornal mais bem avaliada depois da primeira página; o número de pessoas que o colecionavam era alto (30%); o jornal vendia 50% mais nas bancas às sextas-feiras por sua causa” (Piza, 2004:95). Xxxxxxx Xxxxxx também corrobora essa visão mostrando que a tiragem do jornal A Nação, nas quartas-feiras, quando saía o suplemento infantil, “passava dos 60 mil exemplares por edição — três vezes a circulação normal do diário” (2004:33).
Especificamente sobre os horóscopos, Xxxxx Xxxxxxxx reconhece:
“[Eles] exercem influência sobre os leitores. Se, por um lapso, o jornal deixa de publicá-los em um dia, são muitas as pessoas que telefonam para a redação, queixando-se de que ‘não encontraram a orientação a seguir’. Ainda que por simples curiosidade, pois há os que não acreditam no determinismo, boa parte dos leitores quer saber o que indica seu signo. É difícil encontrar até mesmo um semanário que não tenha sua coluna, defendendo ‘a influência dos astros’” (Erbolato, 1981:105).
Xxxxxx Xxxxxxx Sodré (1966:304) mostra que o Jornal do Brasil, em fins do século XIX, publicava o resultado do jogo do bicho na primeira página. A importância desse resultado era tanta para a vendagem do jornal que a edição da tarde
/.../ “não podia sair antes das duas e meia, porque só às duas corria a loteria. /.../ Muita gente só comprava o jornal para saber que xxxxx tinha dado e inspirar-se nos palpites para o dia seguinte. /.../ O jogo- do-bicho tinha lugar de destaque nos jornais do tempo. /.../ O ‘câmbio do bicho’ era o maior incentivo da venda avulsa” (Xxxxxxx Xxxxxxx citado por Xxxxx, 1966:311).
O “câmbio do bicho” a que o jornalista Xxxxxxx Xxxxxxx se refere diz respeito a estatísticas e prognósticos, publicados na primeira página, para se apostar na loteria dos bichos. Algo muito próximo dos palpites sobre os times de futebol tendo em vista a loteria esportiva, muito em voga nos anos 1970 e 1980 (quem não ouviu falar da famosa “Zebrinha”?), ou, numa aproximação arriscada, aos horóscopos diários publicados atualmente. Mas lá no ano de 1899, esse mesmo jornal mantinha como contratado um ilustrador de quadrinhos, Xxxx Xxxxxxxxxxx, o que comprova a importância desses materiais para o divertimento dos leitores nas edições diárias (Sodré, 1966:313) e para o aumento da tiragem vendida durante a semana.
No jornalismo atual, além dessas funções atribuídas ao contrato de diversão, pode-se afirmar que suas cenografias continuam a ser publicadas por uma questão de tradição,23 ou seja, fazem parte do campo jornalístico tanto para seu corpo social, quanto para seu público consumidor. Mesmo assim, apesar da enorme maioria de críticas negativas, o entretenimento oferecido pelos meios de comunicação pode ser avaliado de maneira positiva, segundo estudo de Xxxxxxxx, conforme relata Xxxxxxx (2001).
Esse estudo mostrou que, em se tratando de entretenimento televisivo,24 há uma mistura de diversão e informação, sendo que a recreação ocupa um papel secundário, pois “o que predomina são os momentos ativos de encantamento, assim como o estímulo emocional e vivacidade intelectual” (Xxxxxxx, 2001:108). Com as devidas adequações, podemos dizer o mesmo em relação às cruzadas, que têm ganhado destaque no mundo contemporâneo como auxiliar no combate aos problemas de memória e como prevenção ao Mal de Alzheimer. O objetivo principal do entretenimento televisivo seria “a manipulação positiva dos receptores no sentido da educação subconsciente”, como
23 Xxxxxx, Xxxxxxx (xxxxxxxxx@xxx.xxx.xx) Pesquisa na FSP. E-mail para Xxxxxx Xxxx (xxxxxxxxx@xxxxx.xxx). 15 de maio de 2005.
24 Embora esse estudo trate do entretenimento televiso especificamente, acreditamos que suas conclusões podem ser aplicadas a nosso corpus, assim como a “metodologia dos jogos” que empregaremos poderá ser usada em uma crítica da televisão.
mostra o estudo de Xxxxxxxx (idem ibidem), demonstrando a legitimidade desses conteúdos para fruição dos leitores e para a criação de laços afetivos entre eles e o jornal.
Nos jornais impressos, esse contrato irá se materializar em cenografias dependentes das expectativas que os sujeitos comunicantes pressupõem serem as dos seus parceiros reais na troca comunicativa. Para a instância de produção, a expectativa é de que as pessoas têm necessidade do lazer, como repouso às horas regulares de trabalho e, por extensão, da leitura maçante do noticiário carregado dos jornais impressos; também reconhecem uma necessidade de escape para determinados instintos e desejos humanos que precisam ser integrados à vida cotidiana, o que é feito através dos jogos, especialmente nos jornais “sérios”; nos jornais populares, o “contrato de diversão”, por mais absurdo que pareça, estabelece uma “ordem” no caos de informações esdrúxulas, sensacionalistas que, por vezes, mais parecem retiradas de uma realidade ficcional.
Cenografadas, inicialmente, como charges e caricaturas humorísticas e grotescas, o “contrato de diversão” manifestar-se-ia, nos jornais impressos de fins do século XIX, época do florescimento da imprensa como empresa capitalista, em formas ainda hoje consagradas, cada qual por razões próprias. Os fios do móbile que ligariam essas cenografias à cena genérica da diversão também seriam “sustentados” em outras cenas englobantes da encenação midiática. Adiantaremos aqui, pois será tema de discussão mais apropriada em outro lugar deste trabalho, que cada uma das três cenografias de diversão de nosso corpus estariam conectadas a: i) nas cruzadas, ao contrato dos dicionários e enciclopédias, gêneros que não são “suscetíveis de adotar cenografias variadas” (Maingueneau, 2001:89, em itálico no original); ii) nos quadrinhos, à linguagem cinematográfica, sucesso popularesco em fins do século XIX,
embora as “narrativas scripto-imagéticas” (Xxxxx, 2000) existam desde a antiguidade clássica, quiçá anterior; finalmente, iii) para os horóscopos, seu fio estaria atado à situação de comunicação delimitada pela “consulta oracular” (Xxxxx e Xxxxx, 2002).
Queremos salientar, com essa descrição, que o jornal impresso teria atualizado e adaptado gêneros discursivos de outras cenas enunciativas de modo a constituir um produto midiático novo, que pudesse exercer fascínio nos leitores, despertando-lhes o interesse pela aquisição dos jornais, aumentando, dessa forma, sua venda e tiragem e, conseqüentemente, os lucros financeiros das empresas que os editam. Esse fato, por si só, bastaria para creditar às cenografias “quadrinhos”, “horóscopo” e “cruzadas” o estatuto de jornalísticos, para além de produtos midiáticos, tendo em vista terem sido idealizados e produzidos especificamente para a cena englobante “jornal impresso” ou, como argumenta Xxxxxxxxxx (2004b:15s), pertenceria ao “gênero midiático todo discurso produzido no domínio de práticas da mídia”. Essas cenografias foram adaptadas de modo a atualizarem o “espírito dos jogos” em atividades de lazer que pudessem ser consumidas durante a leitura dos jornais. Esses jogos, ainda, especialmente por terem sido primeiramente publicados em suplementos dominicais voltados para o lazer familiar, adquiriram também um valor ético, pois propiciavam o convívio familiar bem como ampliavam o estoque cultural, de maneira divertida e sadia, de toda a família.
Os jogos, com efeito, têm a característica de, ao desanuviar a mente das
monotonias cotidianas, canalizar uma tensão, um anseio, um desejo para a produção de um momento de prazer, de relaxamento, em que a mente pode entregar-se com maior liberdade. E mais: os jogos têm uma função de “desenvolvimento da personalidade”, segundo o sociólogo francês Xxxxxx Xxxxxxxxxxx (1980), e correspondem, nos jornais impressos, aos espaços de sociabilidade, marcados pela informalidade das interações,
espaços esses que criam e consolidam as comunidades de sentido englobadas pelo jornal, sujeito semiótico ativo na esfera da realidade social.
2.1. Lazer, jogos e sociedade
“Os arqueiros curvam seus arcos quando querem atirar e os afrouxam quando o alvo é atingido. Se os arcos fossem mantidos sempre retesados, quebrariam e falhariam quando o arqueiro precisasse dele. Assim é com os homens. Se constantemente se dedicarem a um trabalho sério e jamais relaxarem um pouco com um passatempo ou um esporte, perdem o bom senso e enlouquecem.” (Heródoto).
Os jogos, para Xxxxx Xxxxxxxx (1999:03), “é fato mais antigo que a cultura”, tendo sido deles que se desenvolveu o que podemos considerar como “civilização humana”: “é no mito e no culto [celebrados dentro do espírito do jogo] que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência” (idem:07). O espírito do jogo teria resultado em muitas das instituições que comandam as sociedades e mesmo para as disciplinas que as regulamentam, pois “todas elas têm suas raízes no solo primevo do jogo” (idem ibidem). Essa institucionalização acabaria por gerar “campos sociais” autônomos, dentro do conjunto da realidade social. Xxxxxx como o jurídico, o artístico, o esportivo, o militar, o político e as disciplinas que contribuem para sua autonomização, como o Direito, a Estética, as Artes da Guerra, entre outras, são, conforme Xxxxx Xxxxxxxx (1990:15), “uma espécie de marca ou de influência do princípio do jogo ou, pelo menos, de uma convergência com as suas ambições próprias”.
“As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designa-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de
designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza” (Xxxxxxxx, 1999:07).
Nesse sentido, torna-se compreensível a relação com o jogo, dada por Xxxxxxx Xxxxxxxxxx à situação de comunicação, pois essa “é como um palco, com suas restrições de espaço, de tempo, de relações, de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui seu valor simbólico” (Xxxxxxxxxx, 2006:67), sendo essas restrições estabelecidas por meio de um “jogo de regulação” das práticas sociais. Entretanto, como salienta Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx, as regras do discurso, ao contrário das do jogo, não são rígidas, possuindo zonas de variações, onde os gêneros de texto podem se transformar. Além disso, “o gênero de discurso raramente é gratuito, ao passo que um jogo exclui as finalidades práticas, visando apenas ao lazer” (Maingueneau, 2001:70).
Os jogos, e quaisquer outras atividades que visam ao entretenimento, acompanham a evolução humana desde tempos pré-históricos. Desde esse período e até a Revolução Industrial do século XVIII, essas atividades, hoje consideradas como “lazer”, estavam associadas à vida cotidiana, não sendo, então, consideradas como atividades de entretenimento, no sentido que damos hoje ao termo: “O lazer, para a maioria, consistia em parte no mero descanso da labuta, e em parte na participação em atividades estereotipadas, principalmente de natureza cerimonial” (Xxxxxx, 1978:23). Na maioria dessas sociedades, as pessoas desconheciam a idéia de um tempo destinado especialmente ao divertimento e à recreação, embora fizessem coisas que tivessem esse sentido.
Temos aqui, portanto, uma das principais características dos jogos, o de ser uma atividade voluntária posto que, sujeito a ordens, deixa de ser jogo. Ele é, ainda, algo supérfluo que só se torna uma necessidade na medida em que o prazer por ele
provocado o torna uma necessidade. Nesse sentido, o jogo é atividade livre, ele próprio sendo liberdade, ou seja, não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, “trata-se de uma evasão da vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (Huizinga, 1999:11), o que nos aproxima sobremaneira das idéias de Xxxxxxx Xxxxxxx (1970) sobre o carnaval como uma “vida segunda”.
“[O jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida cotidiana. Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte integrante da vida em geral. Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função cultural” (Huizinga, 1999:12, itálico do autor).
Para esse pensador, o palco, a arena, a mesa de jogo, em suma, os espaços previamente delimitados, seja de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea, constituem-se, todos, como “mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial” (Huizinga, 1999:13). Mas, nesses espaços à margem da realidade da vida cotidiana, reina uma ordem específica e absoluta. Mais ainda, o jogo cria ordem e é ordem: “Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta ‘estraga o jogo’, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor” (Xxxxxxxx, 1999:13).
Apenas no século XIX, quando o trabalho passou a ser realizado, para a maioria das pessoas, em lugares especiais, durante um período específico e sob determinadas condições, o lazer passou a ser exigido como um direito. Segundo Xxxxxxx Xxxxxx (1978:29), “o lazer nunca existiu para as massas populares enquanto parte separada da
vida, até ser conquistado em razão dos períodos de trabalho excessivamente longos”. Esse argumento leva-nos a considerar o lazer, portanto, como um produto da sociedade industrial, que, inclusive, teria impulsionado a criação de formas típicas de entretenimento baseadas na estrutura social e nas circunstâncias de cada época. Essa visão será, em meados do século XX, desenvolvida no conceito de “indústria cultural”, pelos pensadores marxistas da Escola de Frankfurt, especialmente Xxxxxxx Xxxxxx e Xxx Xxxxxxxxxx, no livro Dialética do esclarecimento (1985).
Para além disso, o lazer era visto como um concorrente — mais exatamente uma reação — do trabalho, em conseqüência da maior liberdade individual, emergindo com suas próprias características sociais. Sendo diametralmente oposto ao trabalho, o lazer torna-se algo mais, torna-se “uma fonte de valores éticos, além daqueles fundamentados na produção e no trabalho” (Xxxxxx, 1978:33). Nesse sentido, ele tende a exibir as mesmas feições e relações que marcam o mundo do trabalho: padronização, prática rotineira, prevalência de capital sobre a mão-de-obra, “menor número de pessoas com participação ativa no controle das vidas de trabalho e lazer das massas do que espectadores e indivíduos subservientes a algum processo mecânico ou social” (idem:33).
Se nas sociedades antigas o jogo era, antes de tudo, uma atividade de sociabilização, praticado e consumido sempre na coletividade, hoje, ele vem sendo mais usufruído em bases individuais, tendo o lazer tornado-se comercializável. Desse modo, deve-se pensar, então, nas diversas formas como as pessoas experimentam o lazer. Isso porque as abordagens e atitudes em relação ao lazer são condicionadas por valores de trabalho, produzindo ou uma reação ao trabalho ou formas de “antilazer”.
“As subculturas de lazer evidenciam-se nas diferentes maneiras com que as pessoas que compõem os grandes grupos sociais escolhem usar
seu tempo livre. Para o indivíduo, o lazer pode muitas vezes significar uma fonte de identidade pessoal ou com o grupo, embora um consumo passivo de lazer possa ser uma forma de alienação a um envolvimento mais ativo nas realidades e preocupações sociais” (Xxxxxx, 1978:46).
Xxxxxxxxxx (1973) procura esclarecer que, em si mesma, a atividade de lazer não é ativa ou passiva e que essa distinção é dependente da atividade que o indivíduo/jogador assume. Assim, a prática e o consumo poderão ser ativos ou passivos, dependendo dos níveis de participação da pessoa envolvida. Esses níveis podem ser classificados em elementar, caracterizado pelo conformismo; médio, onde prepondera a criticidade; e superior ou inventivo, quando impera a criatividade. Mas, se levarmos em conta as teorias comunicacionais e da enunciação, veremos que a recepção das mensagens não se constitui, nunca, em atividade passiva, posto que o processo de interpretação (atividade característica da recepção) é sempre ativo, pois demanda a participação/atividade de um sujeito.
Atualmente, o lazer, e mais especificamente o jogo, opõe-se não mais ao
trabalho, mas à “seriedade”, como defende Xxxxxxxx (1999:50, itálicos do autor):
“O valor conceptual de uma palavra é sempre condicionado pela palavra que designa seu oposto. Para nós, a antítese do jogo é a seriedade, e também num sentido muito especial, o de trabalho, ao passo que à seriedade podem também se opor à piada e à brincadeira. Todavia, a mais importante é a parelha complementar de opostos jogo-seriedade”.
Indo mais além, Huizinga (idem:51) defende que “o surgimento de uma palavra para designar a ‘seriedade’ significa que os homens tomaram consciência do conceito de jogo como entidade independente”. Ele argumenta, ainda, que, sendo entidade autônoma, o conceito de jogo enquanto tal seria de ordem mais elevada que o de seriedade, pois a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem
incluir a seriedade. Nesse sentido, valem as observações de Xxxx Xxxxxx (1995:95-119
passim) a respeito da seriedade que a ficcionalidade pode assumir.
O que importa, então, são as formas de comportamento ante o lazer. Nesse tipo de abordagem, as experiências de lazer são classificadas em termos das funções que elas significam para o indivíduo. Xxxxxx Xxxxxxxxxx (1980), por exemplo, distingue três funções: repouso, diversão e desenvolvimento da personalidade. Outro autor, Xxxx Xxxxxxxxx, amplia essa visão funcionalista levando em consideração certas questões referentes aos indivíduos; essas funções irão, inclusive, marcar o sentido que o termo adquire para dada experiência. Segundo ele, i) todos nós precisamos de intervalos entre turnos de trabalho e outras atividades obrigatórias (lazer como descanso, folga, recuperação); ii) sentimos necessidade de diversão, obtendo prazer com espetáculos e atuações de vários tipos (lazer como divertimento); iii) entretanto, os valores dominantes em nossa sociedade nos encorajam a buscar êxito em todas as esferas da vida e a sermos competentes no que fazemos (lazer como realização própria); iv) last but not least, podemos sentir a necessidade de renovação espiritual, embora tal conceito seja difícil de definir e de medir (Xxxxxxxxx, 1972). Como veremos, cada uma das cenografias de diversão responde a uma, ou várias, dessas funções, o que irá determinar as visadas que orientam a situação comunicativa do entretenimento midiático.
E é nesse sentido, o da experiência do lazer como uma forma de escape das
tensões cotidianas, que procuraremos trabalhar nesta tese, tendo em vista que os espaços de entretenimento (de lazer) nos jornais impressos caracterizam-se por exigirem do leitor mais que o “acordo tácito” e a competência enciclopédica implícitos no contrato de informação. Os passatempos, jogos, quadrinhos e horóscopos são espaços que exigem a participação “patêmica” (Xxxxxxxxxx, 2000) dos leitores, podendo usufruir o divertimento, a realização própria e a renovação espiritual que lhe convier. Essa
característica do lazer pode ser estendida, também, à mídia propriamente dita, como xxxxxx Xxxxxxxxxxx (2001:116): “A mídia tem a capacidade (de fato, ela depende completamente dessa capacidade) de envolver o público em espaços e tempos distintos das — e delimitados em relação às — confusões da vida cotidiana, que sem isso seriam implacáveis”.
Não há dúvidas de que as atividades de lazer devem procurar atender às pessoas no seu todo. Mas, para tanto, é necessário que essas mesmas pessoas conheçam os conteúdos que satisfaçam os vários interesses, sejam estimuladas a participar e recebem um mínimo de orientação que lhes permitam a opção. Em outras palavras, a escolha está diretamente ligada ao conhecimento das alternativas que o lazer oferece. Por esse motivo é importante a distinção das áreas abrangidas pelos conteúdos do lazer. De acordo com Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx (2002:18), a classificação mais aceita é a que distingue seis áreas fundamentais: os interesses artísticos, os intelectuais, os físicos, os manuais, os turísticos e os sociais. Dessas áreas, interessa-nos, especialmente, os interesses intelectuais, onde se busca o contato com o real, as informações objetivas e explicações racionais e onde a ênfase é dada ao conhecimento vivido, experimentado. Isso porque, nos jornais impressos, o lazer está acentuadamente conectado à informação divulgada, a um conhecimento previamente elaborado, como se verá.
2.2. Os jogadores contratuais
Como vimos em capítulo anterior, qualquer discurso depende das condições particulares da situação na qual se realiza a troca comunicativa. Essa situação, assim, depende de um determinado “quadro de referência”, que fornece os limites e as possibilidades linguageiras possíveis dentro de sua área de referenciação. É dentro desses limites (o palco onde ocorre a encenação discursiva) que os seres falantes
envolvidos no ato de comunicação buscam os valores, os sentidos e as palavras que podem ou não ser utilizadas na construção da troca comunicativa/linguageira.
Evidentemente, esses limites não são estanques ou excessivamente rígidos, havendo sempre uma margem de manobra onde esses seres podem criar, ou transgredir, essas condições restritivas. Como xxxxx Xxxxxxxxxx (2006:24), “o sentido resultante do ato comunicativo depende da relação de intencionalidade que se instaura” entre os interlocutores. Esse espaço constitui, dessa forma, o “dispositivo do ato de linguagem”.
Como também se viu, a noção de contrato de comunicação é dupla, na medida em que ele possui natureza situacional e comunicacional. No nível situacional ele depende das restrições relacionadas à finalidade interacional do ato, sendo determinado, no espaço externo do ato de linguagem, pelas interações que irão institui as identidades e o status dos sujeitos empenhados na troca. No nível comunicacional, que se constitui no espaço interno do ato de linguagem, serão determinadas as maneiras nas quais a troca poderá se desenrolar, dependendo dos comportamentos linguageiros possíveis tendo em vista a finalidade do ato de comunicação definida pelo quadro situacional (Xxxxxxxxxx, 1995:13). Esse quadro, por sua vez, é constituído pelo reconhecimento de lugares e espaços ocupados pelos sujeitos interlocutores, tanto do ponto de vista externo-situacional quanto do interno-comunicacional, sendo esse reconhecimento possível na medida em que exista um saber comum co-partilhado.
Dependendo da relação de intencionalidade entre os interlocutores de uma troca
linguageira, três lugares de construção de sentido, no que tange aos dispositivos midiáticos, serão instaurados: i) instância de produção; ii) instância de recepção; iii) instância do produto (Charaudeau, 2006).
Vejamos esses três lugares que compõem a “máquina midiática” tendo em vista as “cenografias de diversão” do jornal impresso, isto é, os quadrinhos, as cruzadas e o horóscopo:
1) Lugar das condições de produção: na ótica semiolingüística, esse lugar comporta dois espaços, a saber:
a) Externo-externo: compreende as condições socioeconômicas da empresa de informação, sendo que essa “organização é regulada por certo número de práticas mais ou menos institucionalizadas, cujos atores possuem status e funções a elas relacionadas” (Xxxxxxxxxx, 2006:24). No que respeita às cenografias de diversão, podemos perceber que essas são produzidas, normalmente, fora do ambiente físico da redação dos textos informativos, razão pela qual muitos pesquisadores não consideram essas cenografias como pertencentes ao “universo jornalístico”, como vimos anteriormente.
Mesmo assim, acreditamos que o simples fato de um texto ser publicado em um jornal impresso faz com ele se submeta às práticas institucionalizadas pelos proprietários, editores e jornalistas de determinado órgão informativo. Além disso, como é de se esperar em se tratando de uma empresa que visa o lucro, garantir a homogeneidade e a padronização dos textos publicados torna-se um imperativo: essa “qualidade” mercadológica é um dos atrativos para atrair novos leitores ou fidelizar os antigos. Isso pode ser comprovado pelo fato de se saber que todo e qualquer veículo de comunicação possui uma “linha editorial” (algumas vezes explicitada em algum documento de circulação interna aos funcionários da empresa) que é internalizada, por “osmose” (Wolf, 1999:182), passando a ser o parâmetro para a seleção dos materiais que deverão e poderão ser publicados por determinado veículo. De acordo com teorias de produção de textos noticiosos, essa linha editorial, bem como as expectativas, orientações e valores profissionais circulantes na empresa de comunicação, têm como
principal fonte não o público, como seria de se imaginar, mas “o grupo de referência
constituído pelos colegas ou pelos superiores” (Wolf, 1999:182).
Em outras palavras, os produtores de cenografias de diversão (que nomeamos como “entretenedores”) conhecem e respeitam essa política editorial. Mesmo que ela lhes seja desconhecida, os editores irão adequar seus textos ao quadro de referência do órgão informativo, tendo em vista o público-alvo imaginado pela instância de produção, não publicando aquilo que vai contra essa linha previamente estipulada.25 Essa seleção pode ser provocada, entre outras coisas, pelo fato de determinada cenografia não gerar aumento no número de leitores e, principalmente, de assinantes (isto é, não possui apelo de atração) ou, mais importante do ponto de vista mercadológico e do status do órgão informativo em relação aos concorrentes, o fato de determinado entretenedor estar “em alta” no mercado cultural, seja por um modismo, seja por algum outro fator sócio- midiático.
Nesse espaço externo-externo, então, podemos alocar condições, em relação aos entretenedores, como: o sucesso de determinado quadrinista, ou do quadrinho propriamente dito, normalmente em algum órgão informativo do exterior; o reconhecimento profissional e o “currículo” do(a) astrólogo(a) responsável pelas previsões diárias; os contratos de fornecimentos firmados com empresas produtoras de entretenimento, no caso das cruzadas. Nesse caso especificamente, é interessante notar que, durante certo período histórico, as cenografias “cruzadas” eram produzidas por leitores/jogadores que as enviavam ao jornal para sua publicação,26 mesmo nesse caso, havia regras estabelecidas pelo órgão para a aceitação dessas cenografias havendo, inclusive, uma premiação para os entretenedores responsáveis, normalmente pessoas
25 Xxxxxx, Xxxxxxx (xxxxxxxxx@xxx.xxx.xx) Pesquisa na FSP. E-mail para Xxxxxx Xxxx (xxxxxxxxx@xxxxx.xxx). 15 de maio de 2005.
26 Para citar um exemplo, o respeitado jornal norte-americano New York Times mantém uma editoria especializada em cruzadas e as cenografias são enviadas por leitores e selecionadas, pelo editor, para publicação.
comuns que possuíam o “hábito” desse jogo, ao contrário de hoje, onde seus produtores são profissionais contratados especificamente para esse fim pelas empresas fornecedoras de “cenografias de diversão”. De qualquer forma, mais à frente, iremos discutir mais apropriadamente os sujeitos que ocupam esses espaços de produção.
b) Externo-interno: esse espaço compreende as condições semiológicas da produção, “aquelas que presidem à própria realização do produto midiático (...) [e] constitui um lugar de práticas” (Charaudeau, 2006:25). No caso das cenografias de diversão, essas condições semiológicas dizem respeito ao espaço físico a ser ocupado pela cenografia em questão, seus aspectos gráficos e/ou iconográficos (aspectos que irão determinar, sobremaneira, a “visada de captação”, como se verá) e seu apelo mercadológico. São essas condições que irão determinar quais os entretenedores serão selecionados, tendo em vista as condições socioeconômicas anteriormente discutidas. O rodízio de quadrinistas e personagens de quadrinhos, de astrólogos ou de “cruzadeiros”, perceptível quando se acompanha o desenvolvimento cronológico das cenografias de diversão, certamente está relacionado a questões relacionadas ao interesse dos leitores pelas cenografias e informações difundidas, à imagem que os jornalistas fazem de seu público-alvo e mesmo às diferenças entre os diversos públicos efetivos de um jornal, seja o “esclarecido”, que possui “informações e meios intelectuais para tratá-las e que terá exigências maiores quanto à confiabilidade (...) e quanto à validade” dos produtos midiáticos, seja o “de massas”, “que terá exigências (...) menores e se prenderá mais a efeitos de dramatização e a discursos estereotipados” (Xxxxxxxxxx, 2006:25).
Como se verá, existe, no “contrato de diversão”, uma permanente tensão entre
esses dois espaços, um jogo de influência recíproca, que irá, de alguma forma, caracterizar o produto midiático regulado por esse contrato especificamente. Desse
embate, irá sobressair a figura do “hiperenunciador” (Maingueneau, 2006:91-110), que funcionará como ponto de convergência de variadas vozes e posições.
2) Lugar das condições de recepção: também aqui iremos encontrar dois espaços:
a) Interno-externo: ocupado pelo destinatário ideal, o alvo da comunicação imaginado pela instância de produção como suscetível de perceber os efeitos visados por ela. Cada veículo de informação possui o seu público-alvo especificado em sua linha editorial. Dessa forma, podemos distinguir dois tipos principais de veículos tendo em vista esse público-alvo: os jornais ditos “sérios”, ou “de referência” e os jornais populares, com maior apelo ao sensacionalismo, correspondendo a cada tipo um leitor “esclarecido” ou “de massas”. Evidentemente, esses leitores-padrão navegam entre um tipo de jornal e outro, de acordo com suas necessidades e interesses no momento do consumo. Também se pode dizer que em um mesmo jornal podemos encontrar textos e cenografias que irão apelar para ou outro desses públicos. É importante ressaltar, ainda, que os entretenedores também possuem seu público-alvo, que pode ou não coincidir com aquele visado pelo órgão como um todo. Essa concordância certamente irá contribuir para o maior consumo ou não de determinado produto midiático, isto é, quanto mais próximos forem o destinatário ideal do jornal e o destinatário ideal do entretenedor, mais probabilidades existirão do produto ser consumido com maior voracidade;
b) Externo-externo: nesse espaço encontra-se o receptor real, empírico, aquele
que efetivamente consome o produto midiático e o interpreta de acordo com seu próprio quadro de referências e suas condições de interpretação (Xxxxxxxxxx, 2006:26). Deve-se lembrar que não se trata, aqui, de “uma instância coletiva; em princípio, não haveria relações particulares dos leitores entre si, ou entre eles e a instância de produção”
(França, 1998:182). Entretanto, como ela mesma relembra, não se pode esquecer que o leitor empírico é um sujeito simbólico, psicológico e social.
Essa pesquisadora, em um trabalho sobre o jornal Estado de Minas, elabora uma classificação, evidentemente didática, na qual agrupa os leitores pesquisados em três grupos, em função dos “tipos de leitura” realizados. Segundo essa classificação, haveria:
i) uma leitura funcional, que tem o propósito definido de se buscar a informação, ou a diversão; ii) uma leitura por hábito, daqueles que assinam o jornal, principalmente: “Um apego meio inexplicável, o gosto de ler, percorrer o seu jornal, reconhecer os seus espaços — mesmo que não se encontre nem se procure muita coisa” (França, 1998:195); iii) uma leitura fusional, em que o leitor se identifica com aqueles que escrevem. Esses três tipos de leitura poderão, no caso das cenografias de diversão, engendrar tipos diferentes de leitores, ou seja, papéis linguageiros diferenciados tendo em vista o tipo de aproximação com o jornal e com as cenografias.
Assim, podemos dividir o leitor entre aqueles que lêem/jogam as cenografias de diversão por hábito (o “receptor real interessado”) e aqueles que as usufruem apenas como um momento de dispersão ou de ocupação de um tempo ocioso, por exemplo, em uma sala de espera de algum consultório médico, sem, contudo, acreditarem ou se identificarem com as informações difundidas por meio dessas cenografias. Esse último grupo pode, ainda, ser dividido entre os que lêem/jogam como passatempo (no sentido não apenas do divertimento usufruído, mas em termos de ocupar um “tempo ocioso”) propriamente dito, sem contudo serem “apreciadores” habituais desses tipos de cenografias (o “receptor real esporádico”), e os “desmancha-prazeres”, que debocham das informações divulgadas nas cenografias de diversão e as consomem apenas como forma de mostrar certa “superioridade” intelectual (o “receptor real debochado”) em relação às cenografias ou ao “receptor real interessado”, mesmo que inconscientemente;
nesse caso, haveria um não-engajamento ao contrato de comunicação proposto (no caso do horóscopo, por exemplo, há aqueles que lêem as previsões para apontar as generalidades e universalismos empregados como forma de desacreditá-los e ridicularizá-los) e, o “receptor real debochado”, dessa maneira, se opõe, discursivamente (ocupam papéis sociais diferentes) e semiologicamente (possuem quadros de referência, em relação às cenografias, bastante diversos) ao “receptor real interessado”;
3) Lugar da construção do produto: lugar onde o “discurso se configura em texto, segundo uma certa organização semiodiscursiva” (Xxxxxxxxxx, 2006:27) e onde o sentido depende da “estruturação particular dessas formas, cujo reconhecimento pelo receptor é necessário para que se realize a troca comunicativa” (Xxxxxxxxxx, loc. cit.). Aqui, no momento, será suficiente lembrar que qualquer texto midiático está carregado de efeitos possíveis, “dos quais apenas uma parte — e nem sempre a mesma — corresponderá às intenções mais ou menos conscientes dos atores do organismo de informação, e uma outra — não necessariamente a mesma — corresponderá ao sentido construído por tal ou qual receptor” (Xxxxxxxxxx, 2006:28). Deve-se também ter em mente que os receptores reais são capazes de identificar e dar sentido às formas como são estruturadas as cenografias de diversão, sendo capazes, inclusive, de reconhecerem essas cenografias em outros discursos, quando essas formas são “transgredidas” de maneira a conformar um determinado “efeito de sentido” em outro discurso que não aquele originalmente produzido dentro do contrato estabelecido para as cenografias de diversão dos jornais impressos. Por exemplo, uma publicidade que faça uso da cenografia “horóscopo” para anunciar tipos específicos de xampu para determinado tipo de cabelo; o uso da cenografia “quadrinhos” ou “cruzadas” para atrair o potencial
consumidor para um produto específico, não-midiático; ou o uso dos quadrinhos para fins educativos etc.
Dito isso, podemos passar aos vários sujeitos que “ocupam” esses variados lugares e espaços da produção/interpretação das cenografias de diversão. Segundo Xxxxxxx Xxxxxxxxxx (2001:24), para ser possível a análise da linguagem, levando-se em conta seu aspecto psicossocial, isto é, a qualificação subjetiva da representação do outro, de um estado de crença social, é necessária a “definição dos sujeitos do ato de linguagem”:
“Todo ato de linguagem é o produto da ação de seres psicossociais que são testemunhas, mais ou menos conscientes, das práticas sociais e das representações imaginárias da comunidade a qual pertencem. Isso nos leva a colocar que o ato de linguagem não é totalmente consciente e é subsumido por um certo número de rituais sócio- linguageiros” (Xxxxxxxxxx, 2001:29).
Sujeitos, no plural, porque englobam as instâncias de produção e recepção sendo, então, adequado falarmos em “parceiros” na interação linguageira. Os sujeitos, nesse ponto de vista, devem ser entendidos “como um lugar de produção da significação linguageira (...) não é, pois, nem um indivíduo preciso, nem um ser coletivo particular: trata-se de uma abstração, sede da produção/interpretação da significação” (Xxxxxxxxxx, 2001:30).
De qualquer maneira, deve-se atentar que esse sujeito é, ao mesmo tempo, “ator social” e “ser comunicante”. Como ator social, está engajado em um processo de influência, possuindo, então, um status (jornalista, editor, astrólogo, desenhista etc.) e uma identidade (sexo, idade, etnia etc.). Como ser comunicante, ele deve se comportar segundo normas engendradas por um projeto de palavra e em relação à finalidade do “contrato situacional” (que irão organizar os modos discursivos: narrar, argumentar, descrever). Ou seja, o sujeito é um ator social quando, sendo ser comunicante, está
engajado em uma troca linguageira e será ser comunicante quando, como ator social, estiver engajado em um contrato de comunicação (Charaudeau, 1995:13).
Empenhados na troca, os interlocutores ocuparão, então, um “papel social”, determinado pela situação comunicativa e cuja finalidade obriga a certos comportamentos linguageiros, e um “papel linguageiro”, determinado na confluência de pressões exercidas, de um lado, pela finalidade do contrato situacional (e, portanto, do papel social) e, do outro, pelas normas comportamentais de uso das palavras válidas para determinada situação. Evidentemente, a um papel social podem ser associados variados papéis linguageiros e, a um papel linguageiro, podem estar instituídos variados papéis sociais. Por exemplo, no caso do contrato de diversão encontraremos, para o papel social “entretenedor”, vários papéis comunicacionais (astrólogo, quadrinista, cruzadeiro etc.) dependentes da finalidade de cada uma das situações de entretenimento produzidas no âmbito do dispositivo midiático.
Assim, os sujeitos contratuais se desdobram em “sujeito comunicante” e “sujeito enunciador”, para a instância de produção, e “sujeito interpretante” e “sujeito destinatário”, no caso da instância de recepção. Esses sujeitos irão compor, de maneira geral: i) os parceiros da interação linguageira, ou seja, os indivíduos empíricos implicados no jogo comunicativo e propostos por uma relação contratual: de um lado, o sujeito comunicante (EUc) e, do outro, o sujeito interpretante (EUi). Ressalta-se que não há simetria entre as atividades de um e de outro; e ii) os protagonistas ou os “seres de fala, que assumem diferentes faces de acordo com os papéis que lhes são atribuídos pelos parceiros do ato de linguagem em função da relação contratual” (Xxxxxxxxxx, 2001:32, itálicos do autor), sendo eles o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd).
“Essa relação contratual não se baseia nos estatutos sociais dos parceiros do lado de fora da situação linguageira. Ela depende do ‘desafio’ construído no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa (o ato de linguagem vai ser bem sucedido ou não?). Isso faz com que os parceiros só existam na medida em que eles se reconhecem (e se ‘construam’) uns aos outros com os estatutos que eles imaginam” (Xxxxxxxxxx, 2001:30).
Então, essa relação irá depender de componentes mais ou menos objetivos resultantes do jogo de expectativas envolvido no ato comunicativo. Esses componentes são: a) comunicacional, isto é, o quadro físico da situação de interação; b) psicossocial ou situacional, ou seja, os estatutos que os parceiros reconhecem ou projetam um no outro; c) intencional, o “conhecimento a priori que cada um dos parceiros possui (ou constrói para si mesmo) sobre o outro, de forma imaginária, fazendo apelo a saberes supostamente partilhados” (Xxxxxxxxxx, 2001:31, itálicos do autor), ou seja, constituídos no espaço da interdiscursividade.
Sendo uma abstração discursiva, os sujeitos da linguagem podem ser, no caso específico do “contrato de diversão”, metaforicamente representados pela “massa folhada”, em que camadas de papéis sociais se sobrepõem a fim de consolidar a instância de produção ou de recepção.
2.2.1. Parceiros do discurso: sujeito comunicante (EUc) e sujeito interpretante (TUi)
Como vimos, o sujeito comunicante é o parceiro responsável pela iniciativa do processo interativo. Devemos lembrar, entretanto, que nenhum indivíduo é o autor da troca comunicativa, “ele participa desse processo permanente, tão vasto quanto a cultura” (França, 1998:43). O que se pode dizer é que o sujeito comunicante é quem encena um dizer em função dos componentes da relação contratual descritos anteriormente. “Temos aí o lugar de fala do EUc, sendo que o resultado dessa sua atividade está centrado nas estratégias discursivas, que são suscetíveis de produzir efeitos de discurso” (Xxxxxxxxxx, 2001:31).
No quadro enunciativo proposto por Xxxxxxxxxx (1983), como visto anteriormente no Capítulo 1, o EUc ocupa o espaço externo, correspondente ao fazer discursivo. Nesse sentido, dotado de um projeto de palavra, ele procurará encenar seu
discurso em função das expectativas que cria em relação a seu parceiro, das restrições impostas pelo quadro discursivo em que se encontra a situação comunicativa que ele se propõe a articular e das ações “permitidas” ao papel social e/ou linguageiro que ele ocupa em determinada troca comunicativa.
No caso do jornal impresso, o EUc, como na metáfora da “massa folhada” sugerida mais acima, desdobra-se em múltiplos sujeitos empíricos, cada qual com seus valores, hábitos e atitudes características. Para uma notícia, por exemplo, podemos atribuir cada camada a um papel social distinto, a saber: o(s) proprietário(s) do jornal e seu quadro de diretores administrativos, que irão definir a linha editorial, os princípios, valores e normas de apuração, seleção, redação e apresentação do material noticioso coletado e processado; os editores, que visam fazer cumprir a política editorial previamente definida, e os jornalistas, imbuídos do “espírito corporativo” que define essa classe de trabalhadores; em alguns casos, as fontes utilizadas, que irão, de alguma forma, interferir no quê e no como a informação será divulgada (os “produtores de notícias”, normalmente incorporados por jornalistas profissionais que trabalham como assessores de imprensa ou de comunicação, para empresas, órgãos públicos, políticos, artistas e outras celebridades). Deve-se ressaltar que cada um desses papéis sociais comporta variados papéis linguageiros, sendo que um mesmo papel linguageiro pode ser encarnado por variados papéis sociais. Assim, cada camada da massa folhada que conforma o EUc assume uma confluência, diferenciada e única, de papéis, tanto sociais quanto linguageiros.
No caso do “contrato de diversão”, também o EUc irá desdobrar-se em variadas
camadas, embora ressaltaremos, para uma maior precisão na descrição desse contrato, dois papéis sociais (os mais importantes, em nosso ponto de vista), cada qual correspondendo a um papel linguageiro específico:
1) O jornal como sujeito semiótico: como se viu, cada jornal impresso possui sua identidade, que lhe permite ser reconhecido e identificado pelos leitores, habituais ou não. Essa identidade, que se materializa, principalmente, no aspecto gráfico e na linha editorial adotada (isto é, mais conservador, liberal, popular, sério etc., que corresponderia ao papel linguageiro desse sujeito) é a principal restrição ao tipo de cenografia de diversão possível em cada veículo de informação.
De maneira geral, os jornais tidos como sérios, ou de referência, evitam os meros “passatempos” (piadas, jogos de erros etc.) e procuram publicar jogos que correspondam ao seu parceiro discursivo (TUi), o “público-alvo” idealizado na política editorial e constantemente aferido pelos departamentos de marketing e de recursos humanos. Essas pesquisas irão influenciar, de algum modo, nas decisões publicitárias do veículo de informação, pressionando, por sua vez, as redações, no sentido de validar projetos de fala que correspondam a uma maior captação de recursos financeiros.
A seleção da publicação de jogos, seja horóscopo, cruzadas ou quadrinhos, será definida de acordo com o papel linguageiro que o sujeito semiótico “jornal” assumir em sua materialização pública, ou seja, como jornal liberal, conservador, popular, sério... Como regra geral, os mesmos princípios que norteiam as “rotinas produtivas” (Wolf, 1999:218-252) são válidos para a “recolha, seleção e apresentação” dos conteúdos de lazer.27 Ou seja, busca-se o exclusivo, o novo. Por outro lado, há a necessidade de manter a “identidade” do sujeito semiótico comunicante estável, de modo que o leitor habitual não estranhe ou mesmo rejeite a encenação discursiva e, ainda, a necessidade da estabilidade no fluxo constante e seguro de material jornalístico.
2) O entretenedor: como no caso do jornal, há aqui uma profusão de papéis sociais e linguageiros que se sobrepõem na constituição dessa outra face do sujeito
27 As rotinas produtivas dizem respeito ao “contexto prático-operativo em que os valores/notícia adquirem significado” e compõem-se de diversas fases que “variam segundo a organização do trabalho específico de cada redação e de cada meio de comunicação” (Wolf, 1999:218 passim).
comunicante. De um lado, há o indivíduo empírico que cria o conteúdo de lazer das cenografias de diversão. Muitas vezes, há por trás desse indivíduo uma outra empresa, dessa vez dedicada à produção do entretenimento, exclusivamente, como no caso das cruzadas e mesmo dos quadrinhos, que são distribuídos aos jornais por empresas intermédias entre o quadrinista (um dos papéis linguageiros que o entretenedor pode assumir, no caso dos jornais impressos) e o veículo de informação. De qualquer forma, como foi demonstrado em relação ao “sujeito semiótico”, essas empresas adeqüam seu produto à linha editorial do veículo consumidor, muitas vezes criando produtos exclusivos para tal e qual órgão informativo.28
Aliás, é bom repetir, tratando-se do “contrato de diversão”, valem as mesmas exigências quanto à exclusividade que certos materiais precisam assegurar de modo a serem valorizados, pela empresa de informação, a ponto de serem processados e publicados. Indo mais além, podemos dizer que os mesmos critérios e restrições necessários à construção das notícias (cf. os “critérios de noticiabilidade” propostos por Xxxxx Xxxx, 1999:195-218) são exigidos para a publicação das cenografias de diversão, mesmo que estas não sejam produzidas dentro da redação do jornal; são terceirizadas, é verdade, mas produzidas segundo critérios estabelecidos pelo sujeito semiótico, que faz suas escolhas quanto ao conteúdo do lazer dentro do mesmo espírito jornalístico com que manufatura a informação.
Embora o “autor” do conteúdo de lazer tenha seu nome explicitado junto à cenografia própria (as cruzadas são creditadas em nome de uma empresa midiática voltada para a produção de conteúdos de lazer, portanto, um sujeito semiótico identificado pelos consumidores como tal), acreditamos que ocorra uma leitura fusional,
28 Em uma visita à página eletrônica das Edições Coquetel (Disponível em xxx.xxxxxxxx.xxx.xx, acessado em 25/08/2005), responsável pelas cruzadas publicadas na Folha de S. Xxxxx, encontramos um link, nomeado, não por acaso, “Folha”, que leva às cruzadas publicadas exclusivamente por esse periódico, o que comprova nossa suposição.
por identificação com esses indivíduos. No caso dos quadrinhos, a identificação provavelmente se dará com o personagem/herói retratado (o EUe projetado pelo sujeito comunicante) ou na temática abordada; no caso do horóscopo, não haveria essa identificação sujeital, mas uma crença no exógeno, um “saber de verdade” no poder que os astros têm sobre as atividades terrestres (como no caso da influência da Lua sobre as marés e, conseqüentemente, sobre o crescimento dos cabelos), embora a visibilidade alcançada pelo entretenedor possa lhe auferir lucros financeiros com a oferta de consultas oraculares particulares, gerando uma “reflexividade corrompida”, em que o leitor se torna um cliente que, por sua vez, confere as previsões diárias por conhecer pessoalmente o autor delas; perceba-se, nesse caso, que não há uma identificação entre o EUi e o entretenedor-EUc, mas uma relação de cumplicidade que aumenta a validação do projeto de palavra do sujeito comunicante pelo seu interlocutor interpretante.
Nos jornais impressos, o sujeito interpretante pode assumir diferentes tipos de
aproximação com o jornal, como vimos nos tipos de leitura identificados por Xxxx Xxxxxx, bem como diferentes modos de jogar. De qualquer maneira, definir o público- leitor real de qualquer tipo de publicação é sempre perigoso, principalmente em se tratando de um trabalho que não tem como objetivo mapear essa instância (não se trata, aqui, de “estudos de recepção”).
O sujeito interpretante (TUi), por um lado, independe da intencionalidade do ato de comunicação iniciado pelo sujeito comunicante, pois ele “depende apenas de si mesmo; ele se institui como TUi no instante mesmo em que se coloca em um processo interpretativo” (Xxxxxxxxxx, 1983:40).29 Dessa maneira, ele não se encontra presente no processo de produção do ato de comunicação, pois ele é um ser que age fora do ato de enunciação produzido pelo Euc e que se institui como o responsável pelo ato
29 “Xx XXx né dépend que de lui même; il s’institue TUi dans l’instant même où il met em oeuvre un processus d’interprétation.”
interpretativo que ele mesmo constrói. “Evidentemente o TUi é mais ou menos livre (ou constrangido) em suas reações pois depende de um conjunto de circunstâncias do discurso que fazem com que ele se encontre em uma relação de forças cara-a-cara com o EUc, o que o levará a calcular os riscos de suas possíveis reações” (Charaudeau, loc.cit.)30, ou seja, o TUi constrói uma interpretação em função de sua experiência pessoal, de suas práticas de significação.
Em se tratando da Folha de S. Xxxxx, o público-alvo, como se viu no capítulo anterior, está constituído pela sociedade civil e, em especial, os estudantes e os jovens, de modo geral.
30 “Evidemment le TUi est lui aussi plus ou moins libre (ou contraint) dans sés réactions puisqu’il dépend d’um ensemble de circonstances de discours qui font que celui-ci se trouve dans um certain rapport de forces vis-à-vis du JEc, ce qui va l’amener à calculer les risques de sés réactions possibles.”
2.2.2. Protagonistas do discurso: sujeito enunciador (EUe) e sujeito destinatário (TUd)
Como se disse, os protagonistas do discurso são seres que existem apenas dentro da encenação discursiva empreendida pelo sujeito comunicante, o responsável pelo ato de comunicação. São seres virtuais, produtos da finalidade discursiva que o produtor da mensagem imprime a seu “projeto de fala”.
Assim, o EUe é um ser de palavra, presente no ato de linguagem, seja de maneira explícita ou implícita. Esse sujeito, visto do ponto de vista do processo de produção linguageiro, será uma “imagem de enunciador construída pelo sujeito produtor da palavra (EUc); ele é o traço da intencionalidade do EUc em seu ato de produção” (Xxxxxxxxxx, 1983:42).31
Por outro lado, do ponto de vista do processo de interpretação executado pelo sujeito interpretante, o EUe “é uma imagem do enunciador construída pelo TUi como uma hipótese (processo de intenção) sobre a intencionalidade do EUc realizada em um ato de produção” (idem ibidem, itálicos do autor).32 É preciso deixar claro que o termo “intencionalidade”, como usado por Xxxxxxx Xxxxxxxxxx, e por ele mesmo elucidado, remete ao sentido de “projeto de palavra” (ver nota 5 em Xxxxxxxxxx, 1983:42).
Como os protagonistas do discurso são seres que existem para e no ato de produção/interpretação do ato de linguagem, eles estão, de alguma forma, em uma relação de transparência um ao outro (em oposição à opacidade dos parceiros do discurso e mesmo ao “mascaramento” do EUc pelo sujeito enunciador), pois estão inscritos em um ato de linguagem delimitado por, e para, uma configuração específica de um determinado contrato, seja um contrato de palavra ou um contrato situacional.
31 “Vu du côté du processus de production, ce JEé est une image d’énonciateur construite par le sujet producteur de parole (JEc); il est alors la trace de l’intencionnalité du JEc, dans cet acte de Production.”
32 “Vu du cote du processus d’interpretation, ce JEé est une image d’énonciateur construite par TUi comme hypothèse (procès d’intention) sur ce qu’est l’intencionalité du JEc réalisée dans l’acte de production.”
Isto é, os protagonistas do discurso existem, só e somente só, dentro de uma encenação discursiva particular, em tempo e espaço definidos. Dessa forma, o sujeito enunciador deve ser visto como uma “representação linguageira parcial” do sujeito comunicante, como uma “máscara de palavra” com que este adorna seu duplo, o sujeito enunciador (Xxxxxxxxxx, 1983:43, itálicos do autor).33
Nas cenografias de diversão, no corpus, o sujeito comunicador-entretenedor desdobra-se em três camadas principais de nossa “massa folhada”, em três sujeitos enunciadores principais: o “quadrinista”, o “astrólogo(a)” e o “cruzadeiro”. Como nossa abordagem segue um curso histórico-cronológico, iremos detalhar cada um desses desdobramentos, mostrando que esses papéis sociais e linguageiros irão se “adaptando” ao contexto sócio-histórico no qual aparecem.
i) Quadrinista: os quadrinhos surgem nos jornais impressos no final do século XIX, inicialmente nos Estados Unidos, e logo se espalharam pelos outros continentes, angariando um público cada vez maior, especialmente crianças e adolescentes, no seu início e, depois, um público adulto, quase sempre masculino; forneceremos, na seção seguinte a esta, um melhor desenvolvimento sobre o surgimento dos quadrinhos, quando descreveremos cada cenografia de diversão isoladamente.
De maneira geral, os quadrinistas estão mais próximos dos artistas plásticos que de jornalistas, o que lhes atribui uma visão de mundo e um conjunto de valores diferenciados. Mesmo assim, e por entendermos que os quadrinhos, como publicados nos jornais impressos, e os álbuns com histórias em quadrinhos completas constituem dispositivos diferentes, podemos, em termos da produção discursiva, aproximarmos o saber fazer do quadrinista ao saber fazer do jornalista.
33 “JEé n’est jamais qu’une représentation langagière de Jec; (…) n’est qu’um masque de parole pose sur
JEc.”
Pelo fato de dispor de apenas três requadros para narrar algo, o quadrinista precisa se ater ao essencial, àquilo que se constitui em novidade para o personagem que está sendo retratado ou a narrativa conduzida, tal como o repórter que deve buscar responder a algumas perguntas básicas (quem? como? onde? quando? por quê? quê?) para a construção de seu “relato da realidade”. Pela necessidade de apresentar sempre uma narrativa nova, o que implica novas situações no contexto do personagem — por se tratar de publicação diária, embora possa ocorrer um rodízio de quadrinistas durante a semana —, o quadrinista precisa estar atento aos últimos acontecimentos, precisa acompanhar os noticiários, especialmente o jornal em que seu trabalho é publicado, de modo a poder inferir um tema, um objeto, um fato, um recorte, que tenha sido captado da realidade cotidiana, mesmo que seu processo criativo esteja descompromissado com os valores erigidos pelo sujeito semiótico “jornal” em sua face pública de visibilidade.
Essa amálgama “quadrinista/jornalista”34 faz-se evidente, principalmente, nos
quadrinhos publicados a partir da década de oitenta do século passado, quando são priorizados autores nacionais com temática adulta e corriqueira, ancorada na realidade da vida cotidiana. De fato, essa se constituiria em uma terceira fase no amadurecimento discursivo das cenografias de diversão, que teria sido antecedida por uma primeira, onde imperavam temas adultos e estreitamente relacionados ao cotidiano; posteriormente, os quadrinhos voltam-se para um público infanto-juvenil, com temáticas relacionadas ao universo ficcional que permeia essas etapas no desenvolvimento humano, entrecortadas, vez por outra, por algum quadrinho “adulto”; talvez, por isso, as análises equivocadas que descrevemos anteriormente.
34 A visão aqui é a do jornalista como um “historiador do presente”.