Do “Equivalente em Dinheiro”
Do “Equivalente em Dinheiro”
nas Ações de Depósito em Contratos de
Alienação Fiduciária
Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx
Juiz de Direito TJ/RJ
O Decreto-Lei 911, de 01.10.1969, deu nova redação ao art. 66 da Lei nº 4.728, de 14.07.1965 (mercado de capitais), além de estabelecer, em seus demais artigos (2o ao 9o), “normas de processo sobre alienação fiduci- ária”. Com a Constituição de 1988, o decreto-lei foi recepcionado como lei ordinária, passando a integrar o sistema de direito positivo nessa qualidade. O decreto deu 3 (três) opções de estratégia processual para que o credor (ou proprietário fiduciário) pudesse reaver o crédito do devedor (ou proprietário fiduciante) inadimplente: a ação com pedido de busca e apreensão (art. 3o), a ação de depósito (por conversão da ação de busca e apreensão frustrada, prevista no art. 4o) e, finalmente, a ação executiva (art. 5o).
Em todas estas possibilidades processuais, pretende o credor ver satis- feito seu crédito, através da venda da coisa a terceiros, “independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial” (art. 2o), compreendendo no crédito assim perseguido, “o principal, juros e comissões, além das taxas, cláusula penal e correção monetária” (art. 2o, § 2o).
O legislador colocou o credor fiduciário em posição privilegiada frente aos demais credores que não dispõem da propriedade fiduciária, re- conhecendo-lhe o direito de proceder à transformação do bem alienado em dinheiro a fim de “aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes” (art. 1o, fine), entregando eventual saldo ao devedor. Desta forma, reavendo a posse direta do bem alienado, nenhuma dificul- dade se apresenta ao credor para “vender a coisa a terceiros”. A situação é diversa se o credor não obtém do devedor, voluntariamente, a devolução da coisa, impondo o recurso à via judicial, de molde a realizar seu crédito.
O pedido de busca e apreensão se apresenta apenas como meio, através do qual, o credor lança mão do bem alienado, com o escopo de transformá-lo em dinheiro e se autopagar.
A frustração da apreensão do bem em razão de “não ser encontrado” ou “não se achar na posse do devedor” abre ao credor as duas outras opções processuais: ou requer a conversão do pedido inicial em depósito (art. 4o) ou “recorre à ação executiva” (art. 5o). Deve se registrar, de pronto, que na pri- meira hipótese, a conversão é do pedido, na mesma ação, isto é, mantendo-se o mesmo processo (“os mesmos autos”), apenas adotando-se providências de natureza administrativo-jurisdicional (retificação na distribuição, na autuação e no registro, além de nova citação e prazo para defesa); no segundo caso, a ação de busca e apreensão encontra seu término na extinção do processo, sem julgamento do mérito, em razão da ausência de pressuposto específico da ação, isto é, a “execução da liminar” (art. 3o, § 3o).
Optando pela “conversão do pedido”, o credor fiduciário providencia- rá a apresentação de nova petição inicial, com pedido específico, deduzido “na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil” (art. 4o), o qual trata, exatamente, da ação de depósito (artigos 901 a 906). A exigência de nova petição atende ao princípio da congruência, entre pedido e sentença (CPC, 460), além de garantir o direito de defesa do réu (CPC, 302). A aplicação das disposições previstas no Código de Processo Civil se faz direta e imediatamente, posto que o decreto (rectius, a lei) faz remissão cogente, passando o pedido do credor a adotar o regime jurídico da ação de depósito lá prevista, com o fim de haver o bem alienado para “aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito” e demais despesas (art. 2o).
O art. 901 do Código de Processo Civil dispõe que “esta ação tem por fim exigir a restituição da coisa depositada”, salientando sua natureza mandamental e real. Volta-se para a coisa em si, independentemente do concurso da vontade do devedor, podendo o Juiz, em casos tais, expedir mandado de prisão contra o renitente, que se encontra na posição de deposi- tário. O interesse imediato do credor se revela na apreensão do próprio bem, a fim de consolidar em suas mãos a posse direta, resolvendo a propriedade fiduciária através de sua “venda a terceiros”, pagando o crédito a seu favor. O bem alienado servirá apenas como meio útil a realizar o pagamento, não se prestando como seu substitutivo em razão de vedação legal expressa (Lei 4.728/65, art. 66, § 6o).
O art. 902 estabelece os requisitos específicos que devem nortear a petição inicial de tal ação, que deverá ser “instruída com a prova literal do depósito e a estimativa do valor da coisa, se não constar do contrato”. A primeira exigência se demonstra com a apresentação do próprio contrato de alienação fiduciária e nele, com certeza, também virá o valor da coisa e não simplesmente sua “estimativa”. É de excepcional importância que o credor indique qual seja este valor, posto que o objeto imediato do pedido é “a restituição da coisa depositada”. A indicação precisa deste valor tem outra conseqüência processual relevante, posto que o inc. I do art. 902 apresenta ao devedor pedidos com prestação alternativa, ou seja, libera-se ele se “entregar a coisa, depositá-la em juízo ou consignar-lhe o equivalente em dinheiro”. Consubstancia, assim, a alternatividade do pedido, cabendo a escolha ao devedor (CPC, 288), podendo este restituir a coisa ou o seu equivalente em dinheiro. A “entrega da coisa” se fará diretamente ao credor, com posterior ato de comunicação no processo; o depósito e a consignação necessitam da intervenção judicial, lavrando-se auto próprio de cada opção.
O comportamento processual do réu, em qualquer das três hipóteses, se revela incompatível com a posição de rebeldia ao pedido, funcionando, antes, como reconhecimento jurídico do mesmo (CPC, 269, II), inclusive, assumindo o ônus decorrente (despesas do processo e honorários advoca- tícios). A afirmativa encontra assento legal na própria dicção do art. 902 em seus dois incisos distintos: um, dispondo sobre a falta de resistência à pretensão autoral e o outro, se opondo à mesma. Em se mantendo revel, ou seja, deixando de “contestar a ação” e também não se oferecendo à restituição da coisa ou de seu equivalente, a conseqüência será o julgamento de proce- dência, ordenando “o juiz a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro” (CPC, 904). A “estimativa” do valor da coisa representa, em termos pecuniários,
o limite quantitativo do pedido do credor, posto que o devedor somente se livrará de sua obrigação, através da entrega ou do depósito judicial da coisa, ou se proceder à consignação de seu valor em juízo. Este valor da coisa é de fundamental importância para se definir os limites da própria obrigação do devedor. Deve ser interpretado como o valor comercial do bem e não como o valor do contrato, pois a ação tem por escopo a “coisa depositada” (CPC, 901) ou seu “equivalente em dinheiro” (CPC, 902, I); é uma ação real, voltada para o bem alienado fiduciariamente, afastando-se
do negócio subjacente referente ao financiamento do preço de aquisição. A “estimativa do valor da coisa”, exigência a ser cumprida na petição inicial da ação de depósito (CPC, 902), há de constar do contrato como o próprio valor a ser financiado, correspondendo este ao preço do bem, se pago à vista. As projeções de juros e correção monetária para pagamento parcelado do preço não integra o “valor da coisa”, pois se referem à operação típica do financiamento. É fato de conhecimento notório que o valor do bem, quando financiado, alcança patamar superior àquele de seu preço à vista, conside- rando o prazo de financiamento, os juros aplicados, o risco do negócio e o valor da prestação. A operação de matemática financeira inserta no contrato de alienação fiduciária não serve como indicação do “valor da coisa” para os fins do pedido da ação de depósito.
A ação de depósito, assim, se revela como instrumento processual hábil a garantir a “restituição da coisa” e não ao pagamento do débito do contrato de alienação fiduciária. Este pagamento será alcançado por via transversa, isto é, através da “venda da coisa a terceiros” (Decreto-Lei 911/69, art. 2o) e não em razão da “consignação do equivalente em dinheiro” do valor da própria coisa não depositada (CPC, 902, I). A opção do credor fiduciário pela ação de depósito revela o limite à própria obrigação do devedor fiduciante em relação ao seu débito contratual. Em permanecendo débito, após a realização da venda extrajudicial, o devedor ficará obrigado pelo saldo, respondendo em ação de execução.
A interpretação doutrinária e jurisprudencial entendendo que o “equi- valente em dinheiro” nas ações de depósito deve representar o saldo devedor do contrato, apurado até a data da petição inicial, refoge aos limites impostos pela própria lei, impondo um agravamento considerável na obrigação do devedor em proceder à consignação do valor da coisa depositada que, na maioria das vezes, não mais corresponde ao seu valor real de mercado. A interpretação tem efeitos maléficos para o devedor, posto que, em não efetu- ando o depósito ou a consignação, ficará sujeito à pena de prisão (CPC, 904), a título de depositário infiel (salvo os julgados que entendem ser incabível a prisão em se tratando de propriedade fiduciária). Ao intérprete não cabe interpretar quando a lei não apresenta lacuna ou omissão; o dispositivo é claro ao apresentar a opção do restituição da coisa ou de “seu equivalente em dinheiro”. Ao optar pelo depósito, preferiu o credor a coisa em si, pos- tergando para futura ação, a recuperação de eventual saldo devedor, após a venda do bem a terceiros. Não pode pretender obter o pagamento do débito
através da consignação do saldo devedor do contrato, em substituição ao depósito da coisa alienada; se o objetivo é satisfazer o crédito e ciente o credor de que o valor comercial da venda do bem não será suficiente para tal, deveria, de pronto, proceder à ação de execução, inclusive penhorando o bem alienado. A interpretação diversa seria reconhecer ao credor a conjugação de duas ações distintas, com ritos próprios, em um mesmo processo (ação de depósito convolada e ação de execução), sem autorização legal, impondo pesado fardo à defesa do devedor, em violação às garantias constitucionais. O interesse imediato do credor ao propor ação com pedido de depó-
sito se volta direta e imediatamente para a coisa em si; impõe obrigação de dar a ser cumprida pelo devedor (rectius, de “restituir coisa certa”), nos termos do artigo 869 do Código Civil; o interesse mediato é a satisfação do crédito através da venda do bem a terceiro. Desta forma, o entendimento de que o “equivalente em dinheiro” é o próprio saldo devedor do contrato de financiamento representa uma distorção da via processual eleita livremente pelo credor, além de pôr de lado as disposições de direito material incidentes
sobre o assunto (Dec. Lei 911/69, art. 2º). ◆