Direito e Tecnologia
2
Direito e Tecnologia
Xxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx*
Os smart contracts entendidos em sentido estrito podem ser definidos como contratos que são suscetíveis de serem concluídos e/ou executados através do recurso à tecnologia de blockchain.
Segundo MICHÈLE FINCK2, a expressão smart contract se entendida em sentido mais amplo abrangerá toda e qualquer relação controlada por um computador com implicações legais. Não serão, contudo, estes contratos inteligentes aqueles que serão objeto de análise no presente estudo pois, apesar de estarmos perante sistemas que permitem a conclu- são e execução de contratos, quando observadas determinadas condições pré-programadas, a sua inviolabilidade não se encontra garantida como acontece com um sistema de blockchain.
A blockchain constitui uma tecnologia descentralizada de registo de dados (distributed ledger ou decentralised ledger technology), mais conhecida por servir de suporte ao funcionamento de criptomoedas, mais concretamente da bitcoin, mas que está também na base dos smarts contracts.
Apesar do nome, estes contratos não são inteligentes3, uma vez que esta tecnologia não tem obrigatoriamente associada qualquer mecanismo de inteligência artificial que permita tomar decisões autónomas para as quais não foi inicialmente programada. Nos smart contracts, temos uma tecnologia cujo resultado é consequência direta de uma programação inicial (“if-then-else”)4, em que o “if” corresponde às condições que são programadas e têm de estar verificadas para que as prestações sejam executadas através da plataforma de blockchain (“then else”). Não há
* Professora Auxiliar da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
1 Este texto foi originalmente publicado na obra coletiva Direito digital e inteligência artificial, Editora Foco 2021.
2 FINCK (2019), p. 1.
3 Sobre a “dumbness of smart contracts”, v. FINCK (2019), p. 7, e FEITEIRO (2020), p. 73.
4 Cfr. XXXXXXX XXXXXXX (2019), p. 26, e STAZI (2019), p. 109.
autonomia relativamente à programação inicial. O programa não gera decisões para as quais não estava codificado.
O que a tecnologia blockchain acrescenta aos contratos que podem ser concluídos ou executados por via telemática é a existência de um sistema (inteiramente) descentralizado, pois o seu funcionamento é assegurado pelo registo da informação em blocos agregados em cadeias de transmissão e distribuídos em computadores localizados em todo mundo, sem que exista uma hierarquia entre eles, o que significa que qualquer alteração da informação que se encontra registada depende da conformidade ou concordância entre os diferentes blocos de informação, ou seja, depende de uma confirmação através de um protocolo de consenso entre todos os elos que compõem a cadeia de blocos. A isto acresce que os dados se encontram encriptados e estão temporalmente validados.
Esta forma de operacionalização do sistema permite assegurar, a todo o momento, a inviolabilidade dos registos que constam desses blocos, pois qualquer alteração depende da modificação em todos os elos de uma cadeia que é por natureza multilateral, o que, na prática, se tem mostrado impossível.
O uso da blockchain no domínio contratual permite, pois, que as obri- gações emergentes de um contrato, mesmo que este seja concluído em linguagem natural, o que ainda hoje acontece as mais das vezes, em face das limitações que a transformação de declarações negociais em códigos binários coloca, sejam executadas de forma autónoma e automática pela plataforma. Autónoma porque não depende de qualquer impulso das partes e automática porque se basta com a verificação das condições contratualmente previstas. Outros sistemas informáticos são capazes de igualmente garantir uma execução autónoma e automáticas de obrigações contratuais, mas a descentralização do sistema e a encriptação dos dados que são características da blockchain asseguram, pelo menos em abstrato, que não será possível impedir ou modificar a execução das obrigações, quando reunidos os pressupostos de que depende a sua realização.
De facto, se a alteração da informação inserida no sistema só pode fazer-se se existir uma concordância entre todos os blocos que o com- põem e estes não se encontram concentrados nas mesmas entidades, a possibilidade de se proceder a uma modificação fraudulenta está natu- ralmente muito dificultada.
Sucede, porém, que esta grande vantagem que a blockchain tem quando aplicada no domínio contratual constitui também a sua maior
debilidade. Na verdade, se as obrigações codificadas numa determinada plataforma não podem ser modificadas, o devedor pode vir a cumprir uma obrigação numa situação em que esta não é, afinal, judicialmente exigível. Por outro lado, como a plataforma assegura a própria exe- cução da obrigação, isto significa que se prescinde, por esta via, da tutela pública de certos direitos de crédito que, de outra forma, em caso de incumprimento, só poderiam ser executados através dos tribunais. O que cabe perguntar é, pois, se estes acordos serão admissíveis à luz do nosso ordenamento jurídico.
Partiremos de um conjunto de exemplos, através dos quais se pro- curará enquadrar o problema sobre o qual pretendemos versar no pre- sente trabalho.
I. A celebra com B um contrato de compra e venda de uma participação social. As obrigações de pagamento do preço e de transferência da titularidade da participação social foram codificadas numa plata- forma de blockchain. Poderá a plataforma impedir a transferência dessa titularidade enquanto o preço não for pago?
II. A celebra com B um contrato de compra e venda de uma participa- ção social. As partes acordaram que o preço seria pago em bitcoins quando determinadas condições precedentes estivessem verificadas. Apesar de cumpridas as condições, B pretende resolver o contrato por alteração das circunstâncias. Poderá a resolução refletir-se na execução do contrato e, por essa via, impedir-se o pagamento do preço na data em que este seria devido? Imagine-se, agora, que no contexto de uma pandemia, foi concedida uma moratória a deter- minados devedores. Como é que a moratória concedida por lei e que não era previsível à data da conclusão do contrato se reflete na plataforma de blockchain?
III. A celebra com B um contrato de locação financeira. As obrigações de pagamento das rendas são codificadas numa plataforma de blockchain. De acordo com o clausulado no referido contrato, o sistema elétrico do automóvel seria automaticamente bloqueado pela plataforma se não se procedesse ao pagamento atempado de três rendas. B necessita do automóvel para se deslocar ao hos- pital, porque a sua filha se encontra com febre e com um ataque
de asma. Será que este tipo de execução privada das obrigações será legítimo à luz do ordenamento jurídico português? Poderá recorrer à força própria para retirar o bloqueio do automóvel ou tratar-se-á de uma ação ilícita?
1. Sobre a possibilidade de, através de um smart contract, se assegurar o cumprimento simultâneo de obrigações emergentes do mesmo contrato
Conforme já assinalado, os smart contracts não têm obrigatoriamente associados mecanismos de inteligência artificial. O que caracteriza apli- cação da tecnologia blockchain ao domínio contratual é a existência de uma programação inicial, onde se estabelecem as condições para que determinada prestação seja executada, programação essa que não pode ser modificada sem que a alteração seja difundida em todos os blocos que compõem a cadeia que é, por natureza, descentralizada.
Em face do exposto, fácil é de concluir que uma das mais-valias dos smart contracts é a de assegurar o cumprimento simultâneo de obriga- ções, ligadas ou não entre si por um vínculo de sinalagmaticidade, sem necessidade de recorrer a terceiros, aumentando, assim, a segurança e reduzindo substancialmente os custos de transação. Na verdade, nenhuma das partes se tem de vincular a cumprir antecipadamente, correndo o risco de não receber a contraprestação, nem é necessário recorrer a um terceiro para garantir o cumprimento das obrigações.
O smart contract permite uma sincronização perfeita da realização das prestações. O verdadeiro cumprimento Zug um Zug ou, como designam os autores franceses trait pur trait, das prestações emergentes do mesmo contrato, assim se conseguindo ultrapassar aquilo que para OESTERLE5 e LARENZ6, nos anos 80 do século passado, parecia impossível, a simulta- neidade entendida em sentido naturalístico da realização das prestações emergentes do mesmo contrato.
A plataforma assegura que o devedor não tenha de realizar uma prestação até que uma contraprestação a que tem direito seja efetuada, o que significa que tem aqui uma função instrumental, pois permite operacionalizar o funcionamento de institutos como a exceção de não cumprimento e o direito de retenção, até em situações em que, por vezes, o devedor tinha dificuldade em lançar mão destas figuras. Pense-se, a este
5 Cfr. OESTERLE (1980), pp. 28 e ss.
6 Cfr. XXXXXX (1987), p. 200.
propósito, nas hipóteses em que o lugar de cumprimento das obrigações é distinto. É verdade que há situações em que o legislador português faz coincidir o lugar de cumprimento das obrigações que devem ser cumpridas em simultâneo para permitir a invocação da exceção de não cumprimento. É o que acontece no artigo 885.º, n.º 1, do Código Civil português7, onde se determina que o pagamento do preço deve ser feito no local onde a coisa vendida deve ser entregue. Desta disposição, já se procurou extrair uma regra geral de acordo com a qual as obrigações unidas por um vínculo de sinalagmaticidade devem ser cumpridas no lugar de cumprimento da obrigação que tipifica o contrato. Há, contudo, contratos em que não é possível definir a obrigação que os tipifica. É o que sucede com o contrato de troca. As partes podem e devem natural- mente acordar expressa ou tacitamente – nomeadamente quando uma das prestações só pode ser realizada num determinado local – um lugar de cumprimento comum, mas quando tal não sucede, é difícil assegurar que as prestações são realizadas em simultâneo. Quando Xxxxxxx troca com Xxxxxxxx um trator por um cavalo de corrida e o trator tem de ser entregue em Lisboa e o cavalo em São Paulo, é difícil assegurar que o cumprimento destas obrigações será feito em simultâneo. Porém, se as obrigações forem codificadas numa plataforma de blockchain é possível que o sistema elétrico do automóvel desbloqueie ao mesmo tempo em que Xxxxxxx passa a ter acesso à cavalariça onde se encontra o cavalo.
A verdade é também que o devedor não pode recusar o cumprimento de uma obrigação, sempre que o seu credor não realize, por sua vez, uma contraprestação a que esteja adstrito para com este. Há determinados pressupostos que têm de estar verificados, sob pena de essa recusa ser ilícita e o devedor entrar em mora8.
Retomando o exemplo enunciado em I., poderá, de facto, a plataforma impedir o pagamento do preço enquanto não ocorrer a transferência da titularidade da participação social. Claro está que, para tal, é preciso que essa transferência da titularidade se possa fazer através da rede de blo- ckchain ou que esta possa aceder a essa informação através de oráculos que trazem para a primeira referências vindas do exterior. Porém, para que não haja mora do devedor, é necessário que esta recusa de cumprimento
7 Pertencem ao Código Civil português vigente todos os preceitos legais doravante referidos sem indicação da respetiva proveniência.
8 Sobre os pressupostos de que depende o acionamento da exceção de não cumpri- mento e do direito de retenção, v. XXXXXXX (2015), pp. 101 e ss. e 286 e ss.
que se operacionaliza através da plataforma possa ser considerada lícita. Para tanto, impõe-se que as condições de que depende o pagamento do preço sejam codificadas em respeito pelos limites impostos por lei ao exercício deste direito de recusa. Conseguimos, contudo, antever que nem sempre tal será fácil. Como prever, por exemplo, de antemão que o exercício deste direito de recusa não é considerado contrário à boa-fé9? A questão não será de fácil solução, posto que não existe um princípio de proporcionalidade estrita que imponha que o valor da prestação recusada seja equivalente ao da prestação incumprida. Para determinar se e em que medida pode o cumprimento de uma obrigação ser recusado, deve ter-se em consideração as consequências que o exercício da exceptio terá para ambos os contraentes, o grau de culpa do contraente que não realizou ou ofereceu a contraprestação, a duração do incumprimento, a probabilidade de a contraprestação vir a ser realizada no futuro e a importância de cada uma das prestações para os respetivos credores.
2. Sobre a possibilidade de, através de um smart contract, se abdicar da invocação de meios de defesa por via de exceção
Outra das vantagens associadas ao recurso desta tecnologia está pre- cisamente na impossibilidade de, pelo menos no plano teórico, existir incumprimento das obrigações autoexecutáveis. Sucede que esta qualidade constitui também, do nosso ponto de vista, a sua grande debilidade. Se é verdade que a blockchain permite que os dados registados estejam distri- buídos no interior de uma rede e criptograficamente protegidos, pelo que não poderão em princípio ser violados ou adulterados, o que traz benefícios significativos para o credor que vê garantido o cumprimento da obrigação com custos muito inferiores àqueles em que as partes incorreriam caso fosse prestada uma garantia tradicional, a verdade é também que essa sua perpetuidade ou imodificabilidade se pode virar contra o devedor em situações em que, de outra forma, se podia licitamente recusar a cumprir. Esta característica da blockchain pode, por conseguinte, originar aquilo a que na doutrina anglo-saxónica se designa por overenforcement, ou seja, a um excesso de execução, mais concretamente à execução de uma obrigação numa situação em que a mesma não era devida.
9 Sobre os limites impostos pela boa-fé ao exercício da exceção de não cumprimento e do direito de retenção, v. XXXXXXX (2015), pp. 219 e ss. e 356 e ss.
Ainda que, em abstrato, se possa admitir que algumas vicissitudes com reflexos na execução contratual possam ser previamente codificadas, haverá sempre situações que as partes não previram e em que, por isso, o devedor teria legitimidade para se recusar licitamente a cumprir e que, por esta via, se vê impedido de o fazer.
Conceitos como, por exemplo, a alteração da base em que as partes assentaram a decisão de contratar são insuscetíveis de serem transformados em linguagem binária e, como tal, a alteração das circunstâncias, mesmo ocorrendo, não permitirá ao devedor recusar o cumprimento da obriga- ção. Por esse motivo, ainda que um dos contraentes tenha legitimidade para resolver o contrato por alteração das circunstâncias, com grande probabilidade tal não lhe permitirá impedir a execução da obrigação de que é devedor se tiver optado por recorrer a um smart contract para executar as prestações.
Por outro lado, sempre haverá situações que são imprevisíveis à data da conclusão do contrato e, como tal, não poderão aparentemente ser refletidas na execução de um smart contract. A este propósito pense-se na hipótese de um contrato de arrendamento de onde resultava que ao fim de x rendas em atraso, o senhorio teria direito a resolver o contrato, deixando o arrendatário de ter automaticamente acesso ao locado. Ima- ginemos que, no contexto da atual pandemia, lhe é concedida por lei uma moratória. Como é que a moratória será refletida na plataforma de blockchain, onde este smart contract se encontra registado, se ela não era previsível à data da conclusão do contrato?
Note-se que, num sistema descentralizado, como o da blockchain, é difícil assegurar a difusão de uma qualquer alteração do que foi ante- riormente codificado, porque a concretização da modificação pressupõe uma concordância de toda a cadeia de blocos, o que torna na prática o código imodificável.
A solução, por vezes, apontada para solucionar algumas das questões suscitadas estará nos oráculos que serão capazes de trazer para a rede informações exteriores a esta. Os oráculos – dentro deste sistema – pro- metem funcionar como partes terceiras que fornecem dados exteriores à blockchain10. A principal função dos oráculos é fornecer à blockchain informação vinda do exterior para que as prestações nela codificadas
10 Sobre a importância dos oráculos para estabelecer a ligação entre o contrato e o exterior, v. FEITEIRO (2020), p. 81.
sejam executadas em conformidade com aquilo que as partes acordaram11, mas podem também, por exemplo, fornecer informação que permita em determinadas circunstâncias considerar o contrato resolvido por incumprimento definitivo ou cumprimento defeituoso12. Certo é que tal dependerá, em princípio, de um acordo anterior das partes também ele devidamente codificado na blockchain. Fácil é de perceber que a atuação destes oráculos depende de as partes serem capazes de antecipar as exce- ções que ao devedor será lícito invocar contra o credor, o que conduzirá a que, muitas vezes, àquele deixe de ser possível recusar-se licitamente a cumprir por esta via. Por outro lado, a opacidade que ainda rodeia estes oráculos não é de molde a garantir que todas as vicissitudes que podem ocorrer na execução contratual se conseguem refletir na execução das prestações através de uma rede de blockchain. Muito menos quais são as garantias de imparcialidade e independência que estes oráculos dão relativamente às partes.
Estas mesmas críticas podem ser transpostas para outras soluções propostas para resolver os problemas identificados. Certos autores defen- dem o recurso a plataformas de permissioned blockchain13, pois nesse caso as decisões judiciais passariam a ter destinatários concretos e a sua execução já poderia ser assegurada.
É preciso igualmente sublinhar que o recurso a oráculos ou platafor- mas de permissioned blockchain anula em parte aquela que é a grande vantagem destes contratos “inteligentes”: a imodificabilidade e inviola- bilidade das obrigações deles emergentes.
Por tudo o que foi exposto, cumpre por último questionar se estará em conformidade com a ordem pública esta possibilidade de o devedor renunciar à oponibilidade de todos os meios de defesa que lhe permi- tiam licitamente recusar-se a cumprir perante o credor, vinculando-se a realizar a prestação e, quando muito, a pedir de volta numa ação de enriquecimento sem causa aquilo que prestou.
É verdade que nas garantias acessórias automáticas o devedor também se vincula a realizar a prestação quando o credor a exigir e a só discutir posteriormente, numa eventual ação de enriquecimento sem causa, os meios de defesa que podia invocar contra este. Por exemplo, na fiança à primeira solicitação, apesar de se manter a acessoriedade da garantia,
11 FINCK (2019), p. 8.
12 XXXXXXX XXXXXXX (2019), pp. 185 e 186.
13 XXXXXXX XXXXXXX (2019), p. 187.
o fiador vincula-se a cumprir a obrigação e a só invocar contra o credor as exceções que ao devedor principal era lícito opor ao credor, depois de realizar a prestação. É verdade que a prestação deste tipo de garantias tem de ser rodeada de certas cautelas para proteção do fiador pelos maiores riscos que lhe andam associadas. Por isso, PESTANA DE VASCONCELOS pronuncia-se no sentido de que existe um dever de informação que recai sobre o credor quanto ao conteúdo da garantia, dever esse que terá um âmbito tanto maior quanto menor for o grau de conhecimento do fiador14. MENEZES CORDEIRO vai até mais longe quando defende que estas garantias só podem ser dadas por instituições de crédito, pois só estas têm capaci- dade para ajuizar dos riscos que a prestação das mesmas envolve15. Certo é, porém, que nas garantias automáticas os tribunais têm assegurado a possibilidade de a sua execução ser paralisada em situações de manifesta fraude ou de abuso do direito, evitando que, quando a pretensão do credor seja manifestamente ilegítima, o garante tenha de cumprir.
Sucede que, com o recurso a esta tecnologia, não se encontra de todo acautelado que, mesmo em situações de fraude ou de abuso do direito, o cumprimento possa ser paralisado. A isto acresce que, numa ação de restituição por enriquecimento sem causa, passa a ser o devedor a ter de provar que a prestação que foi realizada através da plataforma de blockchain não era devida e a arcar com todas as consequências de ser ele o autor da ação16, quando o ónus da prova deveria recair sobre o credor titular da pretensão17.
3. Sobre a possibilidade de, através de um smart contract, se executar extrajudicialmente uma obrigação
Através dos dois exemplos que acabámos de abordar foi possível compreender que, num smart contract, a execução contratual é assegurada pela plataforma de blockchain, garantindo ao credor o recebimento da prestação contratualmente devida sem necessidade de recorrer a tribunal ou a qualquer outro terceiro. A solução parece, quando exequível, apresentar grandes vantagens não só para os Estados, porque se evita o recurso ao
14 VASCONCELOS (2013), p. 111.
15 CORDEIRO (2015), p. 508.
16 Sobre as dificuldades que para o devedor poderão advir de não se poder defender por exceção, v. MÖSLEIN (2019), p. 284.
17 Considerando não existir base legal para se poder presumir a correção da codifi- cação que é feita dos smart contracts, v. RIEHM (2019), p. 89.
aparelho jurisdicional para assegurar o cumprimento de uma obrigação, como para o credor a quem o adimplemento pontual da prestação a que tem direito é prometido sem necessidade sequer de exigir a prestação de garantias por parte de um terceiro.
Estas vantagens, que têm encantado a comunidade jurídica, parecem fazer esquecer que estamos perante um meio de tutela privada dos direitos, ainda por cima uma tutela executiva.
Pergunta-se, pois, em que medida se poderá prescindir da tutela pública do direito do credor substituindo-a por uma execução tecnoló- gica cega. Em que medida podem as partes, por acordo, estabelecer uma tutela privada dos direitos que assegura que a prestação será realizada sem que o devedor a tal se possa opor, mas também sem que os órgãos jurisdicionais competentes possam, na prática, impedir essa execução? O problema levantado não é naturalmente privativo dos smart con- tracts, mas coloca-se sempre que se pretende executar uma obrigação sem recorrer a um órgão jurisdicional, com base num acordo anterior
estabelecido entre credor e devedor.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que as cláusulas contratuais que atribuam ao credor ou a outro particular o poder de tutelar o direito do primeiro só poderão ser consideradas válidas se não violarem disposi- ções imperativas vigentes no ordenamento jurídico. A primeira delas é o artigo 1.º do Código de Processo Civil português. Deste não decorre, contudo, nenhum princípio da taxatividade das formas de tutela privada dos direitos. A única coisa que aí se proíbe, a fim de assegurar a paz social, é o recurso à força própria para realizar o direito. Aquilo que é reservado aos órgãos jurisdicionais é o recurso à força para tutela dos direitos e, mesmo essa reserva de jurisdição, encontra importantes res- trições em figuras como a ação direta ou a legítima defesa.
A equiparação que, por vezes, é feita entre a tutela privada dos direitos e o recurso ao uso da força para tutela do próprio direito conduz a que se conclua que a primeira constitui uma forma primitiva de administra- ção da justiça, atentatória da paz social e da justiça, por esse motivo só permitida a título excecional nas situações expressamente previstas na lei18. Há, porém, muitas formas de tutela privada dos direitos em que não se recorre ao uso da força. Pense-se, por exemplo, em todas as situações de tutela privada passiva dos direitos em que ao devedor é reconhecido o direito a recusar-se a cumprir até receber do seu credor uma prestação a
18 Cfr. XXXXXX (2000), p. 130.
que tenha direito. Por esta via, o titular do direito não recebe a prestação a que tem direito, mas recusa-se a cumprir uma obrigação para compelir a contraparte a prestar. Vimos, aliás, que os smart contracts podem ser um instrumento importante para a efetivação deste meio de tutela.
A isto acresce que todas as formas de tutela privada dos direitos devem estar sujeitas ao controlo ulterior do poder judicial. Daí que, apesar da sua função meramente subsidiária em relação à tutela pública, não deve considerar-se que as formas de tutela privada estão sujeitas a um prin- cípio da taxatividade. O importante é, pois, perceber se essa concreta forma de tutela implica o recurso à força e se se encontra sujeita a um controlo judicial ulterior.
Pelo exposto, não podem as partes por acordo recorrer à ação direta em situações em que os pressupostos do artigo 336.º não se encontram verificados. O entendimento dominante, na Alemanha, ordenamento em que se inspirou o legislador português, é o de que não se pode ampliar, por acordo, os casos em que é possível o recurso à ação direta, porque tais cláusulas violariam o princípio de que não é possível recorrer à força própria para assegurar a realização do direito de que se é titular19. O acolhimento de solução contrária implicaria que as partes pudessem, através de um contrato, afastar o princípio do monopólio estadual do uso da força. Solução, aliás, que já era defendida por VAZ SERRA20 nos trabalhos preparatórios do Código Civil português e que é confirmada pelo regime jurídico de tutela da posse.
Note-se que a posse, mesmo que não seja acompanhada pela titularidade do direito, é tutelada pelo ordenamento jurídico a ponto de o possuidor ter direito não só a ser judicialmente restituído se for esbulhado (artigo 1278.º), como também a usar da ação direta (artigo 1277.º), mesmo contra o titular do direito, prerrogativa que o legislador alarga a outros legítimos detentores, como o locatário (artigo 1037.º, n.º 2), o comodatário (artigo 1133.º, n.º 2) ou o depositário (artigo 1188.º, n.º 2). Os meios de defesa da posse visam, por conseguinte, garantir que o desapossamento legítimo só possa ocorrer com intervenção de um órgão estadual, ainda que exista um acordo prévio em que o possuidor/detentor autorize o desapossa- mento, pois só assim se consegue garantir a paz e ordem públicas21. Por
19 Cfr. REPGAN (2009), §§ 229-231, 96, MÖSLEIN (2019), p. 282, e RIEHM (2019),
pp. 92 e 93.
20 SERRA (1959), p. 79, e XXXXXXX (2014), p. 797.
21 Nesse sentido, v. RIEHM (2019), p. 89.
esse motivo, defende-se, noutras ordens jurídicas, que estes acordos só constituem uma presunção de facto de que o possuidor concorda com o desapossamento, podendo este ilidir, por qualquer meio, a presunção, o que significa que não é sequer necessário revogar o consentimento que foi dado ao desapossamento, basta a oposição do possuidor/detentor no momento em que a coisa lhe pode ser retirada22.
Os smart contracts viabilizam a execução privada dos direitos do credor, mas é, como vimos, duvidoso o controlo judicial ulterior que é garantido ao devedor, o que significa que esta forma de tutela privada dos direitos pode pôr em causa o monopólio do Estado no uso da força. O caso enunciado em III corresponde a uma situação real. Nos Estados Unidos, uma mãe solteira viu-se impedida de levar a sua filha ao hospital com febre e uma crise de asma, porque o smart contract integrado no contrato de leasing tinha bloqueado o seu automóvel por falta de paga- mento das rendas23. A resposta por parte de alguns legisladores a situações como a descrita passou por impedir a instalação destes dispositivos que permitem bloquear os automóveis à distância24. Não sabemos, contudo, se a intervenção legislativa é indispensável para se concluir pela sua ilegalidade, dado que, na prática, eles permitem a execução privada de uma obrigação de restituição do locado, ou seja, através da plataforma de blockchain, obtém-se o desapossamento de algo que estava na posse do devedor, o que vimos contraria o princípio do monopólio estadual
do uso da força.
Pela mesma ordem de motivos, o recurso à blockchain não deve servir para assegurar o despejo extrajudicial que é feito através de uma chave eletrónica que bloqueia a entrada no locado25, não sendo para este efeito relevante que o devedor se tenha contratualmente vinculado a tolerar o bloqueio26.
Sendo o recurso à plataforma ilícito, pode naturalmente o detentor opor-se ao desapossamento, recorrendo à ação direta (artigo 336.º).
22 Cfr. RIEHM (2019), p. 91.
23 COKERY/XXXXXX-XXXXXXXXX (2014).
24 MÖSLEIN (2019), p. 281.
25 Considerando que, para este efeito, não há razão para distinguir as situações em que o senhorio impede a entrada no locado através da substituição da fechadura daquelas em que o acesso àquele é excluído através do bloqueio de uma chave eletrónica, pelo que, em qualquer dos casos, o inquilino pode recorrer à ação direta para reaver a detenção do imóvel, v. RIEHM (2019), p. 93.
26 RIEHM (2019), p. 97.
Retomando os exemplos anteriores, pode o locatário remover o sistema de neutralização para conseguir conduzir o automóvel ou substituir a chave eletrónica para ter acesso ao locado.
Se não é de aceitar o desapossamento contra a vontade do legítimo possuidor de coisas corpóreas, isto significa, na prática, que a autoexecução assegurada por um smart contract só será de admitir para a transação de imateriais ou transferências de somas de dinheiro já “armazenadas” na plataforma de blockchain27.
Os smart contracts enquanto contratos que podem ser concluídos e/
/ou executados através do recurso à tecnologia de blockchain garantem com grande segurança a execução de obrigações contratuais quando estiverem verificadas determinadas condições acordadas pelas partes, acautelando muitas vezes que uma parte não tenha de realizar uma pres- tação sem receber aquela a que tem direito. Apesar de compreendermos as enormes vantagens que a autoexecução contratual tem para o credor da prestação que pode ser efetuada por esta via, os smart contracts não estão acima dos ordenamentos jurídicos e, por isso, não devem forçar o cumprimento, nas situações de manifesta fraude ou abuso do direito, muito menos violar o princípio do monopólio estadual do uso da força.
Bibliografia
XXXXXX, Xxxxxxx, “Autotutela”, Enciclopedia del Diritto, atualização IV, Milano, 2000, pp. 132 e ss.
COKERY/XXXXXX-XXXXXXXXX, “Miss a Payment? Good Luck in Moving that Car”, in xxxxx://xxx.xxxx.xxx/0000/00/00/xxxx-x-xxxxxxx-xxxx-xxxx-xxxxxx-xxxx-xxx.xxxx.
XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx, Tratado de Direito Civil, vol. X, Direito das Obrigações
– Garantias, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
XXXXXXXX, Xxxxx, “The complementary but not alternative utility of smart contracts”,
RDTec, 1, 2020, pp. 71 e ss.
XXXXX, Xxxxxxx, “Grundlagen und Technologie von Smart Contracts”, Smart Contracts, Mohr Siebeck, Tübingen, 2019, pp. 1 e ss.
XXXXXXX, Xxx Xxxxxxx da, “Anotação ao artigo 336.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pp. 793 e ss.
XXXXXXX, Xxx Xxxxxxx da, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, Em especial na excepção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
27 MÖSLEIN (2019), pp. 282 e 000.
XXXXXX, Xxxx, Xxxxxxxx des Schuldrechts, I, Allgemeiner Teil, 14.ª edição, X. X. Xxxx, Xxxxxxx, 0000.
XXXXXXX, Xxxxxxx, “Smart Contracts im Zivil-und Handelsrecht”, ZHR, 183, 2019, pp.
254 e ss.
OESTERLE, Die Leistung Zug um Zug, Duncker & Xxxxxxx, Xxxxxx, 0000.
REPGAN, Tilman, Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, 1, Allgemeiner Teil, §§ 164-240, Sellier – de Xxxxxxx, Xxxxxx, 0000, §§ 229-231.
XXXXX, Xxxxxx, “Smart Contracts und verbotene Xxxxxxxxxx”, Xxxxx Xxxxxxxxx, Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pp. 84 e ss.
XXXXX, Xxxxxxx Xxx, Causas Justificativas do Facto Danoso, BMJ, n.º 85, 1959, pp. 13 e ss.
XXXXX, Xxxxxx, Automazione contrattuale e “contratti inteligenti”, Gli smart contracts nel diritto comparato, Giappichelli Editore, Torino, 2019.
XXXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx de, Direito das Garantias, 2.ª ed., Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx, Smart legal contracts y blockchain, La contratación inteligente a través de la tecnología blockchain, Wolters Xxxxxx, 0000.