O CONTRATO SOCIAL DE THOMAS HOBBES: ALCANCES E LIMITES
O CONTRATO SOCIAL DE XXXXXX XXXXXX: ALCANCES E LIMITES
IDETE TELES
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Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação em Filosofia
O CONTRATO SOCIAL DE XXXXXX XXXXXX: ALCANCES E LIMITES
Doutoranda: Idete Teles Orientador: Prof. Dr. Xxxxxxxxxx Xxxxxxx
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Gradução em Filosofia como um dos requisitos para a obtenção do título de doutor em filosofia.
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Florianópolis, 2012.
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Agradecimentos
Agradecer pode não ser tarefa fácil e justa quando se realiza um projeto a partir de tantas mãos, tantos ombros, tantas cabeças e tantos corações. Por isso agradeço, primeiramente, a todas e todos que emprestaram, doaram e partilharam um pouco de si para que eu conseguisse concretizar esta tese. O meu muito e muito obrigada!
Agradeço a minha família, especialmente seu Xxxxxxx e dona Xxxx, por tudo o que são e tudo o que me deram.
Xxxxxxxx a CAPES pela “bolsa sanduíche” a mim concedida no ano de 2011 e que me deu a oportunidade de estudar com Xxx Xxxxxxxx, a quem agradeço muito pelas discussões, orientações e carinho.
Agradeço também ao Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Assim como aos professores que tive o prazer e honra de tê-los e, pela oportunidade que me deram de alcançar passos importantes em busca do conhecimento filosófico.
Agradeço imensamente ao meu orientador Xxxxxxxxxx Xxxxxxx pelo carinho, paciência e dedicação. Sou-lhe eternamente grata pelo tempo (e olha que foi bastante!) e carinho a mim dedicado.
Xxxxxxxx a Universidade Federal do Acre e em especial aos meus colegas e amigos pela colaboração e incentivo para que eu conseguisse concluir a tese.
Agradeço muito aos meus amigos pelo apoio, amizade e pela compreenção da minha ausência e falta de paciência, culpa da tese! Em especial agradeço ao Heraldo e a Luana pela minha outra vida.
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Agradeço imensamente ao Xxxx por tudo o que ele é e por tudo o que fez por mim. Esta tese e parte de mim não existiria sem ele. O meu mais sincero e carinhoso obrigada!
Resumo: O problema em questão diz respeito ao contrato que funda e legitima o Estado em Xxxxxx Xxxxxx. Tendo como escopo questionar a possibilidade e/ou impossibilidade de nulidade do contrato social e assim verificar as implicações disto para o conceito de soberania hobbesiana. A leitura que impera na tradição de estudiosos da obra política de Xxxxxx, em especial do Leviathan, é a de um Estado no qual a soberania é absoluta e irrevogável. A interpretação do contrato firmado entre e, somente, entre os homens, deixando, portanto, o soberano de fora, ofereceria legitimidade a este para agir de forma absoluta e obrigaria ao súdito a obedecer de forma irrestrita. A hipótese que se busca sustentar remete à possibilidade de rompimento, desobediência e mais centralmente da nulidade contratual a partir do vício e/ou desrespeito de determinadas cláusulas fundamentais do contrato, visto se oporem às condições de validade do contrato social. Se isso puder ser sustentado desse modo, isto é, se Xxxxxx compartilhar mesmo de uma teoria forte da nulidade contratual e pela razão, como declinado acima, que achamos ser a correta, então, tal formulação implicaria em sua teoria uma reconsideração do conceito de soberania e obediência, haja vista o estabelecimento de certos vínculos fortes que condicionam as possibilidades de exigência, autoridade e poder da soberania. Portanto, concentra-se em encontrar uma explicação e/ou teorização da nulidade do contrato social e da sua consequência para a teoria da soberania e obediência hobbesiana.
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Palavras-chave: contrato, soberania, nulidade, obediência.
Abstract: The problem in question in this research relates to the contract that establishes and legitimizes the State in Xxxxxx Xxxxxx thought. The aim is to scrutinize the possibility and/or impossibility to void the social contract and to verify the implications of this problem for the Hobbesian concept of sovereignty. According to the scholars of the Hobbesian work the interpretation that prevails about Leviathan is that one of a state in which sovereignty is absolute and irrevocable. The interpretation of a contract made between men, and only among men, not between men and sovereign, would provide legitimacy to an absolute obedience to the sovereign on an unrestricted basis. The hypothesis of this research is sustain the possibility to break, disobey, and more centrally nullify the social contract in case of disregard of certain fundamental terms, because those terms are conditions of validity of the social contract. If this can be sustained, i. e, if Xxxxxx share a strong theory of nullity of contract and this for the reason that we think is correct, then such a formulation would imply a reconsideration of his theory of sovereignty and obedience, given the establishment of certain strong ties that constrain the possibilities to demand sovereignty, and that constrain the authority and power of sovereignty. Therefore, the research focuses on finding an explanation and/or theorization of social nullity and its consequence for the theory of sovereignty and obedience in Hobbes thought.
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Key-words: contract, sovereignty, void, obedience.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 15
CAP I – O HOMEM: homo homini lupus 23
1. XXXXXX XXXXXX E A OBRA POLÍTICA
HOBBESIANA 24
a) Do absolutismo hobbesiano 35
2. O HOMEM HOBBESIANO: homo naturalis 37
a) O „outro‟ no estado de natureza 48
b) Direito de natureza 56
c) Lei de natureza 59
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 65
CAP II – DO CONTRATO AO ESTADO: homo homini deus 67
1. PRECISÕES DO CAPÍTULO XIV 68
2. TEORIA DOS CONTRATOS 76
a) Definição de contrato 77
b) O contrato hobbesiano e suas cláusulas 80
c) Contratos válidos e contratos inválidos / nulos 89
d) O contrato social: da guerra a paz 98
e) Causa e origem do Estado 102
3. ABUSOS E INCOERÊNCIAS: do soberano ou do súdito? 107
a) O argumento do fool 111
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 117
CAP III – CONTRATO SOCIAL: alcances e limites 119
1. O HOMEM HOBBESIANO: homo naturalis & homo
politicus 120
2. SOBERANIA E SOBERANO: conflitos e nuanças 125
a) Soberania e obediência 139
b) A interface liberal e/ou absolutista da teoria hobbesiana 153
3. IMPOSSIBILIDADE DA NULIDADE CONTRATUAL? 167
4. DEMOCRACIA E REPRESENTATIVIDADE EM
HOBBES 171
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5. CONTRATO SOCIAL: nulidade e implicações 181
6. CONTRATO SOCIAL: alcances da nulidade e limites da
validade 187
a) O direito de autodefesa e autopreservação 196
b) Legitimidade da vontade 211
7. O PREJETO POLÍTICO DE XXXXXX XXXXXX 214
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS 221
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REFERÊNCIAS 225
INTRODUÇÃO
Estudar um filósofo que já foi muito e rigorosamente estudado é uma tarefa, no mínimo, desafiadora. O que temos a acrescentar ou mudar nesta longa e rigorosa história de estudos do pensamento hobbesiano? Ou, por que ainda pode ser interessante discutir a filosofia política traçada por Xxxxxx Xxxxxx?
Começamos sugerindo que Xxxxxx não é um autor de pensamento único e claro. Adjetivos estes que fazem jus a profícua tradição de leituras secundárias sobre o pensamento hobbesiano que se multiplicam desde o século XVII até os dias atuais. Por vezes, tenta-se enquadrar Xxxxxx em “ismos” (liberalismo, absolutismo, positivismo, jusnaturalismo, materialismo, etc.), mas o pensamento hobbesiano parece sempre escapar, para além ou aquém destas conclusões teóricas. Têm-se muitos Hobbes ou existe apenas um Hobbes que não cabe em denominações, ou teorias pré ou pós-estabelecidas? Por que é tão difícil e na maioria das vezes tão controverso classificarmos Hobbes em quaisquer um dos “ismos” existentes? Se não conseguimos classificar, nomear, clarificar absolutamente o pensamento hobbesiano em um único e completo pensamento, ainda assim é interessante bem qualificar a filosofia política desenvolvida por Xxxxxx? Se tem-se um pensamento que oferece, aparentemente, teorias inúmeras e mesmo controvérsas acerca dele, podemos considerar este pensamento interessante? Ora, um pensamento que tudo abrange, para o qual todas as interpretações, ou pelo menos muitas interpretações são possíveis perde a qualidade, pois do que tudo se pode concluir, nada se pode concluir. Seria este o caso da filosofia política hobbesiana?
Não temos todas estas respostas, mesmo por que não podemos procurar todas aqui. Não obstante, tais questões são importantes para orientar nosso “olhar” em direção a teoria política hobbesiana. Hobbes tem muita história e/ou tradição de leituras, mas ainda hodiernamente oferece conteúdo para leituras novas ou diferentes. Parece que o pensamento político hobbesiano é tão denso e atual que sempre está oferecendo novos rumos, novas ideias. Contudo, isso não significa dizer que do pensamento hobbesiano pode-se tudo derivar, inferir, concluir. Existem alguns „Hobbes‟ pintados a partir de uma única cor ou traço, assim como, existem alguns „Hobbes‟ que poderia ser quase um auto-
retrato do intérprete. Em outros termos, as leituras secundárias por vezes podem oferecer uma interpretação hobbesiana apoiada unicamente em uma ou duas frases, enquanto que outras oferecem leituras cuidadosas e apoiadas de forma sólida nas obras que Xxxxxx deixou. Nossa intenção não é o Hobbes parcial e de único traço ou cor, nossa preocupação é com o Hobbes sólido, com traços marcantes e reais. Não obstante, aceitamos a limitação de pintar „mais um quadro‟ e não „o quadro‟; talvez seja mesmo o esboço apenas, mas ainda assim será uma tentativa de identificar os traços e as cores apropriadas para revelar um Xxxxxx não caricatural.
Mais pontualmente, o objetivo deste estudo é entender o lugar que ocupa o contrato social forjado por Xxxxxx para fundamentar o estabelecimento do Estado Civil. A compreensão do exato papel e/ou função que o contrato social desempenha na teoria política hobbesiana é fundamental para que possamos questionar a real concepção de soberania e, por conseguinte, entender como efetivamente o Estado Civil pode e deve ser compreendido na teoria política hobbesiana. Ao questionar o dispositivo jurídico e político chamado contrato, tomado por Xxxxxx para estabelecer a transição do estado de natureza para o Estado Civil, é possível compreender, aparentemente, alguns paradoxos. Isto é, ao tomar o contrato social entre, e somente entre, os indivíduos, deixando de fora, portanto, o soberano, Xxxxxx teria estabelecido alguns paradoxos e/ou incongruências teóricas. Ademais, a concepção de homem, ou seja, de natureza humana, compreendida por Xxxxxx transfere ao súdito1 algumas heranças ontológicas difíceis de se adequar ao homem, agora súdito, que Xxxxxx deseja contemplar no Estado Civil. Conceitos como soberania, liberdade, obediência, vontade, obrigação e direitos são decorrentes ou estão diretamente ligados à teoria do contrato hobbesiana, e em especial ao pontual contrato social. Portanto, propomos uma investigação que questione a teoria contratual hobbesiana em relação a tais conceitos. Como podemos compreender
1 Ao longo de nosso trabalho usaremos sempre a terminologia „súdito‟ para designar aquele homem que vive no Estado civil após o contrato social. Entretanto, notar-se-à conforme nossas discussões avançarem a respeito da teoria política hobbesiana que, segundo nossa compreensão, o homem que vive no Estado civil hobbesiano não é puramente um súdito, no sentido de apenas comportar-se de forma submissa e obediente, o homem hobbesiano é também um cidadão, isto é, aquele que interfere, interage e constrói a realidade civil que vive. Mais do que súdito ou cidadão, o sujeito político hobbesiano deve ser visto, de acordo com nossa leitura, como um homem passional-calculante.
estes termos fundamentais e fundacionais do Estado Civil hobbesiano a partir de sua explicação e concepção de contrato e contrato social.
Na epístola dedicatória da obra De Cive de Xxxxxx existe uma passagem de texto que mostra o método empregado pelo autor para compreender a engrenagem que sustenta e fundamenta a política, segundo a perspectiva do autor. Tal passagem traduz ou exemplifica aquilo que nos propomos aqui a realizar. Para tornar claro o que estamos dizendo, reproduziremos abaixo as precisas palavras hobbesianas,
Há um certo fio da razão, cujo começo está no escuro, mas que à medida que se desenrola vai nos levando, como pela mão, até a mais clara luz, de modo que o princípio da doutrina deve ser extraído daquela obscuridade, e depois a luz deve ser retornada a ela para dissipar todas as dúvidas que restaram.2
Isto é, há um fio central na teoria política hobbesiana, tal fio permanece obscuro em um primeiro olhar, mas à medida que insistimos e aprimoramos nosso olhar, ele se revela e nos conduz ao cerne do pensamento melindroso e capcioso de Xxxxxx. Assim percebemos que toda a arquitetura política hobbesiana nos leva ao contrato, ou em outras palavras, toda filosofia política hobbesiana está pressuposta a partir da ideia de contrato social. Ao mesmo tempo, ao tomar o contrato social, vemos com clareza e precisão todo o esforço teórico de Xxxxxx em articular um sistema, ou diríamos um quebra-cabeça que se completa com o grande Leviathan. Sendo assim, começamos por indagar este conceito, o conceito de contrato. Que espécie de contrato Xxxxxx estabelece em sua teoria? Por que razão o filósofo faz uso deste dispositivo jurídico? Quem estabelece o contrato social e por que o estabelece? Qual é o objeto do contrato? Quais implicações e/ou obrigações nascem com o contrato social? E as perguntas foram se multiplicando. Que direitos são transferidos, se são? Como se dá esse consentimento, em que nível (moral, jurídico, político)? O que o contrato obriga, ou, a quem ele obriga? Quem é efetivamente o
2 XXXXXX, Xxxxxx. Do cidadão. Xxxxxxx Xxxxxx: São Paulo, 2002, Epístola Dedicatória, p.
07. “There is a certain clue of reason, whose beginning is in the dark; but by the benefit of whose conduct, we are led as it were by the hand into the clearest light. So that the principle of tractation is to be taken from that darkness; and then the light to be carried thither for the irradiating its doubts”. (XXXXXX, Xxxxxx. De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I. Dedicatory).
soberano? Por que Xxxxxx o deixa fora do contrato social? Enfim, um encadeamento de questões que só cresciam e se multiplicavam. E na medida em que as questões subjacentes a ideia de contrato social hobbesiana se multiplicam, o ponto crucial para tudo nos parecia ser desvendar o efetivo papel do contrato social na teoria política de Xxxxxx. Ora, qual é o teor do contrato social e até que ponto ele é legítimo e/ou válido? Afinal, o contrato social é o grande divisor de mundos, aquele que modifica e legitima a vida do homem, enfim, é o contrato social que insere o homem no mundo político. O contrato social é efetivamente o primeiro ato político do homem.
Assim, o que oferecemos nas próximas páginas é o processo de investigação que começa e termina voltado a encontrar o lugar, o espaço, a circunstância, o sentido mesmo do contrato na teoria hobbesiana, assim como, as possíveis implicações que o contrato social traz para o Estado Civil. Em outras palavras, queremos evidenciar o alcance e os possíveis limites do contrato social hobbesiano.
Dessa forma, para estudar o contratualismo hobbesiano, pensamos ser oportuno e coerente proceder como o próprio Xxxxxx diz ter feito para conceber sua teoria, isto é, a partir do método resolutivo- compositivo. Assim sendo, partiremos dos elementos que compõem a teoria contratual hobbesiana, para em seguida recompor ou compor o todo e assim visualizar o que configura a teoria contratual de Xxxxxx. E então, finalmente conhecer ou demonstrar o lugar que ocupa o contrato social na teoria política hobbesiana.
Por conseguinte, o empreendimento teórico busca esclarecer o que compreende o contrato social hobbesiano e assim problematizar a sua aplicabilidade à teoria política de Xxxxxx. Assim, vamos perguntar se o contrato social conceituado por Xxxxxx, que teria por ambição fundar e legitimar o Estado absoluto, tem tal força efetivamente. Pergunta esta que nos leva a também questionar se o contrato social pode ou não ser rompido e/ou tornar-se nulo?
Mas por que é importante, instigante, ou meramente significante o debruçar-se sobre a questão mencionada acima? Ora, o que há de necessário em esmiuçar, dissecar, questionar a teoria hobbesiana em busca de respostas ou mesmo somente somando questões à teoria hobbesiana? Mero deleite ou ostentação intelectual? Exercício acadêmico necessário? Todas estas poderiam ser razões suficientes para este estudo. Xxxxxx, se ocupar de filosofia nos deixa e até nos permite a
atitude sui generis, e também diria metódica, de um convicto inconformado, incomodado e sempre disposto a reverenciar a razão, ou condená-la. Isso, em parte, explica a vontade e a disposição em buscar
„uma‟ leitura possível e plausível acerca da teoria do contrato social hobbesiana. Isso em parte explica também a opção por Xxxxxx, um teórico que apresenta uma concepção de razão singular e polêmica.
Ademais, a desobediência civil em Hobbes não é um tema investigativo original e nem mesmo pouco discutido. Há muito que teóricos apontam ou negam a desobediência civil legítima na teoria hobbesiana, haja vista Xxxxxx ser um dos autores mais importantes e, por conseguinte, bastante estudado e discutido, como já apontamos. Todavia, neste ponto está a outra parte de nossa justificativa ou motivação em realizar o estudo. O que se pretende nesta investigação relaciona-se, certamente, com a desobediência civil em Hobbes, mas não se configura o objeto principal de discussão. A busca teórica aqui está alicerçada propriamente na teoria do contrato hobbesiana, em especial na concepção de contrato social e as fundamentais implicações deste contrato para a teoria política de Xxxxxx. A desobediência, a resistência, ou o rompimento e/ou nulidade do contrato social são discussões que seguramente fazem parte de nosso tema, mas o central é entender o papel do contrato social e tudo o que subjaz a este mecanismo jurídico para o sistema político pretendido por Xxxxxx.
A leitura que impera entre os muitos leitores e comentadores de Hobbes, em especial do Leviathan, é a de um Estado no qual a soberania é absoluta, indivisível e irrevogável. A interpretação do pacto e/ou do contrato firmado entre, e somente entre os indivíduos, ofereceria legitimidade ao soberano para agir de forma absoluta. O homem teria, a partir do contrato, abandonado qualquer forma de intervenção e/ou questionamento quanto às ações do soberano, visto que toda e qualquer ação feita pelo soberano (ator) é mera efetivação do comando feito pelo súdito (autor), logo, seria um contrassenso o homem, agora súdito, reclamar daquilo que ele mesmo deliberou. Uma destas leituras é bem apresentada por Xxxxxx, nos seguintes termos,
O poder estatal não é verdadeiramente soberano e, portanto não serve à finalidade para a qual foi instituído se não for irrevogável, absoluto e indivisível. Recapitulando, pacto de união é: a) um pacto de submissão estipulado entre os indivíduos, e não entre o povo e o soberano; b)
consiste em atribuir a um terceiro, situado acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza; c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três definições acima o sublinham, é uma única pessoa. Da primeira destas características decorre a irrevogabilidade; da segunda, o caráter absoluto; da terceira, a indivisibilidade.3
Nossa intenção será questionar em que medida estes adjetivos do poder soberano são compreendidos na teoria política hobbesiana. Xxxxxxxxxx questionar e argumentar no sentido de esclarecer até que ponto o poder soberano é efetivamente absoluto e irrevogável. Partindo da ideia de contrato desenvolvido por Xxxxxx no Leviathan e, principalmente, das possibilidades de desobediência, resistência e em especial, de rompimento e/ou nulidade pactual, não nos parece satisfatório ou absolutamente claro que o Estado hobbesiano seja fatualmente absoluto e irrevogável, ou no mínimo, devemos bem intentar o que estamos compreendendo por irrevogável e absoluto. Isto é, queremos argumentar que a descrição e a construção dos argumentos apresentados por Xxxxxx em suas obras políticas, e em especial no Leviathan, oferecem a clara possibilidade de defender a ideia de um Estado passível de ser questionado e quiçá condenado pelo súdito. Isto é, nos parece legítimo defender a possibilidade de o súdito vir a romper, desfazer, abandonar o contrato social, a partir das possibilidades de nulidade de certas cláusulas contratuais. Hipótese que pretendemos consolidar e demonstrar durante os capítulos que compõem este estudo.
De fato, no cerne das possibilidades de nulidade estaria a vida do homem e o caráter voluntário de sua atitude em realizar o contrato social. A vida é um direito, um bem que ele não pode abdicar, abandonar ou transferir a outro sob quaisquer circunstâncias. A vida é aquilo que o homem deseja proteger, assegurar. Por fim, a vida é um direito inalienável. É a partir desta categórica afirmação dedutível do pensamento de Xxxxxx, que inferimos a hipótese da anulabilidade de certas cláusulas do contrato social, a partir do que se tornaria possível oferecer argumentos para questionar a soberania absoluta e irrevogável. Ademais, considerando a natureza humana descrita por Xxxxxx, o
3 XXXXXX, Xxxxxxxx. Xxxxxx Xxxxxx. 4 edição. Editora Campus: Rio de Janeiro, 1991. Pág. 43.
contrato social como um ato voluntário dos homens não se furta à necessidade de levar em consideração o que compreende a vontade do homem. Assim, veremos que a natureza mecanicista4 e calculante do homem gera uma tensão com a obrigação de cumprir o contrato social sob determinadas circunstâncias.
Enfim, como dissemos acima, a desobediência civil é uma questão já longamente discutida por alguns dos mais importantes estudiosos do pensamento de Xxxxxx Xxxxxx (Xxxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxx, dentre outros), nos unindo a estes pensadores buscaremos abranger os questionamentos acerca do contrato hobbesiano para além da desobediência e da resistência, ou seja, para o rompimento e/ou nulidade do contrato social. Portanto, nossa proposta de investigação, como argumentamos, está centrada na discussão acerca do papel do contrato social na conjuntura política hobbesiana, assim como, os questionamentos que envolvem a validade e legitimidade deste contrato que instituiu e consolidou o Estado hobbesiano. Centrar nossos questionamentos acerca do contrato social proposto por Xxxxxx, levando em consideração e/ou dialogando com algumas das principais leituras secundárias de Xxxxxx, é também grande desafio e incentivo para nossa pretenção de pesquisa.
Sistematizamos nossa pesquisa em três capítulos. No primeiro oferecemos um detalhamento do principal „ator‟ da teoria política desenvolvida por Xxxxxx, isto é, o homem. No segundo, aprofundamos a teoria hobbesiana, a partir de nossa proposta de estudo, ou seja, centramos nossos esforços argumentativos e analíticos no sentido de mostrar todas as nuanças da teoria do contrato desenvolvida por Xxxxxx, e em especial, o que compreende o contrato social. No terceiro, aprofundamos e problematizamos as implicações do contrato social. Discutimos o que compreende a desobediência, a resistência, o rompimento e/ou nulidade contratual. Apontamos o alcance e as possíveis limitações do contrato social. Por último, discutimos o
4 Assumimos a posição mecanicista de Xxxxxx, uma vez que encontramos elementos e/ou argumentos em suas obras suficientes e contundentes para a citada conclusão. Contudo, enfatizamos que ao longo de nosso trabalho evitamos atribuir rótulos de teorias políticas, científicas, morais ou jurídicas ao pensamento hobbesiano. Como mostraremos ao discutirmos nossa tese, partimos da posição de que ao associar ou „ajustar‟ o pensamento hobbesiano em determinadas teorias, corremos o sério risco de limitarmos ou alargarmos de forma injusta e pouco rigorosa o texto própriamente hobbesiano.
contrato social e sua implicação no conceito de soberania compreendida em Hobbes.
O que se oferece nas páginas que seguirão é o resultado ou processo de um estudo buscando uma interpretação com sustentação e lógica teórica. Nada de extraordinário possivelmente, apenas uma leitura que busca sustentar-se como possível e plausível argumentativamente. Pode soar humildade ou retórico o que acaba de ser dito, mas pode ser honestidade também. Apresenta-se aqui as variáveis, as hipóteses, o processo, mas o cálculo final não cabe a quem submete o trabalho ao apreço de terceiros. Parafraseando Xxxxxx, a nós coube o esforço, já o resultado está para além de nossa vontade.
Em suma, o problema central de nossa pesquisa é entender os alcances e os limites do contrato social defendido por Xxxxxx. Em outros termos, nossa intenção é investigar até que ponto o contrato social é válido, legítimo e suficiente para os deveres e obrigações que ele criaria para os súditos. Por conseguinte, um dos maiores desafios aqui é mostrar que as nulidades contratuais, particularmente as cláusulas anuláveis no contrato social, apontadas por Xxxxxx, especialmente no capítulo XIV do Leviathan, não são questões irrelevantes e inconsequentes no cálculo final de sua teoria política.
CAPÍTULO I
O HOMEM: homo homini lupus
Não procuramos companhia naturalmente e só por si mesma, mas para dela recebermos alguma honra ou proveito; estes nós desejamos primariamente, aquela só secundariamente. (Xxxxxx, T., De Cive)
Neste primeiro capítulo vamos situar brevemente o teórico Xxxxxx Xxxxxx, assim como os textos hobbesianso que mais intensamente abordaram o seu pensamento político. Todavia, o objetivo principal deste capítulo é examinar a concepção de Xxxxxx Xxxxxx acerca da natureza humana. Partimos deste ponto da teoria política hobbesiana para chegarmos à nossa discussão central, isto é, as implicações do contrato social, porque consideramos primordial para a compreensão de toda a arquitetônica política construída por Xxxxxx a sua concepção de homem. A teoria política pensada por Xxxxxx, ou como ele preferia denominar sua „ciência política‟5, tem origem e fim no essencial elemento constituinte, o homem. Logo, Xxxxxx elabora uma minuciosa descrição do homem em estado de natureza, assim como, o tipo de vida, diga-se de passagem, vida miserável e embrutecida, que o homem consegue ter nesta condição, digamos natural ou pré-política. Identificando e observando o homem hobbesiano, poderemos previamente vislumbrar como e por que o Estado torna-se uma necessidade, ou seja, um movimento determinado. Poderemos compreender algumas das principais premissas hobbesianas em sua
5 Para Hobbes a ciência e a filosofia caminham juntas. O conhecimento científico é decorrente do apropriado uso de nomes, a partir do estabelecimento de um método, cujo objetivo é o conhecimento das consequências. Por sua vez a filosofia tem as mesmas implicações, portanto, “ciência, isto é, [o] conhecimento das conseqüências; é também chamada de filosofia” (XXXXXX, Xxxxxx. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Xxxxxxx Xxxxxx: São Paulo, 2003., cap. IX, p.74). “SCIENCE, that is, knowledge of consequences; which is called also PHILOSOPHY”. (XXXXXX, Xxxxxx. Leviathan. With selected variants from the Latin edition of 1668. Edited, with Introduction and Notes by Xxxxx Xxxxxx. Hackett Publishing: Cambridge, 1994, cap. IX, p. 48). Logo, na concepção de Xxxxxx, o que ele propõe em seus textos é uma ciência política.
construção da argumentação que culmina com o Estado absoluto. É a natureza humana que oferece a base, ou o fundamento para que Xxxxxx conclua seu argumento de fundamentação política no estabelecimento contratual de um soberano absoluto. Vislumbremos, então, como Xxxxxx apresenta este homem natural ou pré-político.
1. XXXXXX XXXXXX E A OBRA POLÍTICA HOBBESIANA
Xxxxxx Xxxxxx (1588-1679) formulou sua teoria durante o cenário político conturbado6 do século XVII. Nas principais obras políticas de Xxxxxx, a saber, Elements of Law (1640) 7, Xx Xxxx (1642)8, Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth
6 Para ilustrar um pouco esse adjetivo „conturbado‟, veja-se: Xxxxxx nasce no ano de (1588), ano em que Xxxxxx XX da Espanha havia atacado a Inglaterra durante a guerra da Espanha com os Países Baixos; na sua adolescência e juventude acontece a guerra civil na França entre os protestantes Huguenotes e a coroa católica; acontece a guerra dos trinta anos que devastou toda a Europa (1618-1648); a Inglaterra de 1642 a 1649 está mergulhada em uma desordem generalizada em guerra civil; assistiu a Xxxxxxxx promovendo guerra contra a Irlanda, Escócia, Holanda e duas outras guerras contra os Países Baixos (1665 e 1672). Ou seja, as guerras foram eventos constantes nos anos em que Xxxxxx viveu. Inclusive ele mesmo passou muitos anos exilado em Paris. O exílio “voluntário” de Xxxxxx em Paris foi originado pelo seu medo das consequências de sua declarada defesa do rei Xxxxxx X, o qual sofria uma ameaça de revolução liberal, promovida pela burguesia do parlamento. Segundo Xxxxxxxx, o exílio de Xxxxxx em Paris, “foi menos por uma ameaça real e mais por uma prudência do intelectual. (“ce fut moins sous une menace réelle que par une prudence d‟intelectuel”. XXXXXXXX, Xxxxxx. Hobbes. Vrin: Paris, 2000. Pág. 12). Assim como esta obra, todas aquelas que não forem originalmente em língua portuguesa ou então que não tiverem tradução para esta, estaremos fazendo a tradução para a língua portuguesa no texto principal e em notas de rodapé estará o texto na língua de publicação da obra que estamos fazendo uso. Sendo que as obras de Xxxxxx Xxxxxx que citarmos, apresentaremos em nota as passagens na edição inglesa de Molesworth para De cive, Elements e Dialogue, já o Leviathan faremos uso da edição de Xxxxx Xxxxxx de 1994.
7 A partir da primeira citação das obras de Xxxxxx Xxxxxx em nosso trabalho, faremos as subsequêntes da seguinte forma: XXXXXX, nome da obra abreviada, ano, capítulo, página. A abreviação das obras que utilizaremos será: „Lev.‟ Para Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil; „DC‟ para De Cive; „EL‟ para Elements of Law; „DFJ‟ para A dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Law of England.
8 No corpo do texto, após a primeira citação das obras: Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil; De Cive; Elements of Law e A dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Law of England, utilizaremos a seguinte abreviação, respectivamente: Leviathan, Xx Xxxx, Elements e Dialogue.
Ecclesiastical and Civil (1651), e A dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Law of England (1681)9, ele desenvolveu um pensamento político inovador e determinante para a história do pensamento político.
Dizer que a obra de um autor é apenas reflexo ou resultado do seu contexto histórico é totalizante demais, por outro lado, dizer que a obra está à margem deste contexto é ingênuo. A obra de Xxxxxx é devedora e fruto das reflexões e entendimento da época conturbada em que viveu e, seguramente é, também o resultado do esforço intelectual genuíno de um homem que soube transcender intelectualmente sua época. Uma conprovação disso pode ser o fato de ainda hoje estarmos discutindo o pensamento dele.
Xxxxxx foi contemporâneo e dialogou com ilustres homens do saber, como Xxxxxxx Xxxxx (de quem foi secretário), Xxxxxxx Xxxxxxx (um dos grandes expoentes da ciência), Xxxxxxxxx (com quem travou intensa discussão e por vezes esteve em oposição), do grande jurista Xxxxxx Xxxx (com quem bastante dialogou, como se observa em Dialogue) e outros. Xxxxxx comprovadamente participou de forma ativa das discussões que movimentavam o mundo intelectual do século XVII. O que, em parte, resultou em sua obra visivelmente marcada pelos conflitos políticos de sua época e herdeira da ciência que se estabelecia. Conviveu de perto com o poder absoluto dos reis Xxxxx XXXX e Xxxxx XXX na França, a guerra civil inglesa e a guerra dos trinta anos (1610- 148). Toda a experiência vivenciada por Xxxxxx possivelmente contribuiu para que formulasse uma teoria política em que o poder busca evitar o conflito ideológico e religioso, visando sempre à paz. Uma passagem na dedicatória que Xxxxxx fez à Xxxxxxx Xxxxxxxxx, em sua obra Leviathan, exemplifica bem o conflito que vivenciava. Xxxxxx preocupa-se em imaginar como sua obra seria recebida. Preocupação
9 Normalmente os estudiosos do pensamento hobbesiano consideram que as obras políticas de Xxxxxx são: Elements of Law, Xx Xxxx e Leviathan. Na nossa compreensão a obra A dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Law of England deve ser considerada também como uma obra fundamental do pensamento político hobbesiano pois, embora de forma menos densa que as obras anteriores, ela apresenta considerações sobre alguns conceitos centrais da teoria política de Xxxxxx. Ademais, considerar esta obra também é importante uma vez que ela é uma das últimas obras da vida de Xxxxxx, logo, no tocante à teoria política hobbesiana, é possível ponderar se Xxxxxx era o mesmo das obras anteriores. Interessantemente também observar que esta obra Xxxxxx escreveu em forma de diálogo, pretensamente um diálogo entre ele e o jurista Xxxxxx Xxxx, uma inovação em sua forma de escrever.
não desprezível e tampouco puramente retórica, uma vez que em tempos de uma Igreja ainda imperando e de um Estado poderoso, seria saudável que sua obra fosse “bem” interpretada. Dessa forma, Xxxxxx expressou sua genuína preocupação,
Ignoro como o mundo irá recebê-lo [o Leviathan], ou como poderá refletir-se naqueles que parecem ser-lhe favoráveis. Pois apertado entre aqueles que de um lado se batem por uma excessiva liberdade, e do outro por uma excessiva autoridade, é difícil passar sem ferimento por entre as lanças de ambos os lados.10
Como podemos perceber, Xxxxxx sabia que estava no meio de duas forças poderosas e opostas. Xxxx ileso a estas seria a grande habilidade que ele não tinha certeza de ter.11 Xxxxxx palavras de Xxxxxx percebe-se claramente o quanto ele era consciente e também prudente diante das poderosas forças que disputavam espaço e de como ele poderia ou deveria se colocar para não ter o seu espaço cerceado. Nesse sentido, é interessante observar o que Xxxxxx pontua sobre a vivência de Hobbes com essas forças:
Quando Xxxxxx começou a pensar sobre assuntos políticos, ele já tinha vivido metade de sua vida com uma família nobre e que devia suas origens e sucesso aos Tudors e onde a supremacia real da doutrina Tudor seria parte do ar que ele respirava. Não é surpresa, então, que sua teoria política coloca o soberano acima tanto da Igreja quanto do direito consuetudinário.12
10 XXXXXX, X. Lev., 2003. Dedicatória, pág. 05. “I know not how the world will receive it, nor how it may reflect on those that shall seem to favour it. For in a way beset with those that contend, on one side for too great liberty, and on the other side for too much authority, „tis hard to pass between the points of both unwounded”. (XXXXXX, X., Xxx., 1994, Letter Dedicatory, pág. 01).
11 Xxxxxx foi acusado de heresia várias vezes, principalmente porque apresentaria em suas obras a religião como um instrumento de poder (instrumentum regni), mas seus protetores sempre conseguiram livrá-lo das acusações. Entretanto, como bem pontua Xxxxxxx, a posição hobbesiana frente à religião de fato afrontou a Igreja, especialmente ao defender a supremacia do soberano e submissão da religião a este. “Na terceira e na quarta parte do livro [Leviathan], Xxxxxx se ocupa da relação entre o poder soberano e a religião, defendendo a necessidade de uma submissão total desta última ao primeiro”. (XXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Filosofia Política II. Florianópolis: FILOSOFIA/EAD/UFSC, 2008, p. 53).
12 “When Xxxxxx began to think about political matters, he had already spent half his life with a noble family that owed it origins and success to the Tudors, and where the Tudor doctrine of
A religião seguramente não é uma questão periférica na obra política hobbesiana, o que gradualmente vem sendo percebido pelos leitores de Hobbes13. Já a teologia seria excluída por Xxxxxx de seu projeto político, ou pelo menos, reduzida e/ou transformada em materialismo. A filosofia tem por objeto e matéria corpos, ou seja, aquilo que é possível considerar como composto e divisível, ou ainda, como detentor de alguma propriedade. Em outros termos, a filosofia é uma ciência que se ocupa e tem por objeto este mundo físico e “palpável”.
Conforme aponta Heck,
A onipotência divina é obrigada por Xxxxxx a se afirmar num mundo material sujeito exclusivamente a imperativos da natureza. O teórico político inglês devolve à majestade de Deus o direito de governar homens imersos em necessidades naturais, vale dizer, o reino de Deus constitui uma subdivisão da ordem geral do universo, na qual a onipotência divina resplandece pela obediência prestada às palavras naturais do Senhor e pela punição sofrida por aqueles que não se submetem a suas palavras: as leis da natureza.14
Como percebemos Hobbes inverte a postura teórica ainda dominante em sua época, a qual se esforçava em apresentar o soberano como um designado e representante de Deus, portanto, submisso a Ele. Xxxxxx por sua vez em duas das principais obras políticas que escreveu traz uma considerável parte destas dedicada à questão da religião, à sagrada escritura. No De Cive e no Leviathan Xxxxxx dedicou páginas e páginas, capítulos e capítulos escrevendo sobre o que é, como é e especialmente, como o reino divino ou das trevas está relacionado com o reino dos homens. De Cive é uma obra que se divide em três partes, sendo a primeira intitulada „Liberdade‟, a segunda „Domínio‟ e a terceira „Religião‟. Já o Leviathan está dividido em quatro partes, sendo
royal supremacy would be part of the air he breathed. It is hardly surprising, then, that his political theory places the sovereign above both the church and customary law”. (XXXXXX, Xxxxxxxx X. The Legal Origins of Xxxxxx Xxxxxx´s Doctrine of Contract. In: XXXX, Xxxxxxx (Edited). Xxxxxx Xxxxxx: Critical assessments. Vol. III. Routledge: London and New York, 1993. Pág. 537).
13 Um destes autores é Xxx Xxxxxxxx, em sua obra Xxxxxx et la toute-puisance de Dieu (2000).
14 XXXX, Xxxx X. (Universidade Católica de Goias). O liberalismo absolutista em Xxxxxx Xxxxxx. p. 29. In: Fragmentos de Cultura, v. 12, Março/2002, p. 29-51.
a primeira parte intitulada „Do Homem‟, a segunda „Do Estado‟, a terceira „Do Estado Cristão‟ e a quarta „Do Reino das Trevas‟. Estes textos hobbesianos mostram a importância e o lugar que Xxxxxx reservou à religião em seu pensamento. Por conseguinte, a religião é questão importante para o pensamento político hobbesiano e desencadeou tensões para a recepção de sua teoria e também para sua própria vida.
Xxxxxx já foi e ainda é considerado, ora um absolutista, ora um liberal, por vezes um mecanicista, por vezes um juspositivista e ainda um nominalista, um materialista, e poderíamos citar outras tantas justificáveis, ou não, classificações para ele. Contudo, Xxxxxx é um autor denso e que, por ora, diríamos que não se esgota e nem se encaixa plenamente em classificações, característica esta que atribuimos à grande complexidade que essencialmente envolve a filosofia política e que, portanto, reflete-se nos grandes e rigorosos filósofos deste domínio da filosofia. O que julgamos ser o caso em Xxxxxx Xxxxxx.
No que concerne ao pensamento político hobbesiano, podemos afirmar que este pode oferecer alguns caminhos. Muitos e variados caminhos deste projeto teórico político de Hobbes foram tomados ao longo de aproximadamente trezentos anos de reflexões acerca da obra hobbesiana. Concordamos com a perspectiva de Xxxxxxxx ao dizer que,
[a] preocupação primeira de Xxxxxx não consistia em pensar o Estado enquanto tal mas em pensar a condição que permite aos homens viver como cidadãos.15
Ou seja, ele construiu uma teoria que se ocupa em oferecer uma justificativa e uma legitimidade para a condição social do homem. Ou, em outras palavras, como define Xxxxx, “a questão política central é aquela de saber como uma multiplicidade de vontades individuais podem se tornar uma vontade política única”16. É a esta questão central apontada por Xxxxx, em nossa concepção, que Xxxxxx responde com sua teoria do contrato e os dois conceitos inerentes à teoria contratual hobbesiana, isto é, a autorização e a representação.
15 XXXXXXXX, Xxx. Governo e soberania: O pensamento político moderno de Xxxxxxxxx a Xxxxxxxx. Trad. Xxxxxxxx Xxxxxxx Lisboa. Linus Editores: Porto Alegre, 2009. pág. 100.
16 “la question politique centrale devient celle de savoir comment une mutiplicité de volonté individuelles peuvent devenir une volonté politique unique”. (XXXXX, Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxx et la pensée politique moderne.Quadrige/PUF,Paris, 2001, p. 20).
Xxxxxx irá construir seu projeto científico de política embasado no método resolutivo-compositivo de inspiração mecanicista de seu tempo. A passagem seguinte ilustra perfeitamente esta postura científica hobbesiana:
Pois, assim como um relógio, ou em outro pequeno autômato de mesma espécie, a matéria, a figura e o movimento das rodas não podem ser bem compreendidos, a não ser que o desmontemos e consideremos cada parte em separado – da mesma forma, para fazer uma investigação mais aprofundada sobre os direitos dos Estados e os deveres dos súditos, faze-se necessário – não, não chego a falar em desmontá- los, mas, pelo menos, que sejam considerados como se estivessem dissolvidos, ou seja: que nós compreendamos corretamente o que é a qualidade da natureza humana, e em que matérias ela é e em quais não é adequada para estabelecer um governo civil; e como devem dispor-se entre si os homens que pretendem formar um Estado sobre bons alicerces.17
Logo, prima pelas precisões conceituais de cada parte que compõe o todo. Por conseguinte, Xxxxxx monta, „peça a peça‟, uma máquina artificial, o Estato-Leviathan, considerando cada elemento que o compõe e esclarecendo cada relação, cada engrenagem que faz com que a máquina seja eficiente para o propósito pelo qual foi criada. Imagem e concepção mecanicista que é bem representada por Xxxxxx já na introdução do Leviathan, lugar em que toma os termos como autômato, relógio e artificial para referenciar o homem e a vida em sociedade. O Estado-Leviathan, cujo objetivo é a salus populi, ou seja, a segurança do povo, tem sua origem no contrato social, o qual se constitui em um ato voluntário do homem e que resulta em dar vida à alma do Leviathan, isto é, a soberania. Assim, o contrato é o momento
17 XXXXXX, T., DC, 2002, Prefácio do Autor ao Leitor, p. 13. “For as in a watch, or some such small engine, the matter, figure, and motion of the wheels cannot well be known, except it be taken insunder and viewed in parts; so to make a more curious search into the rights of states and duties of subjects, it is necessary, (I say, not to take them insunder, but yet that) they be so considered as if they were dissolved; that is, that we rightly understand what the quality of human nature is, in what matters it is, in what not, fit to make up a civil government, and how men must be agreed among themselves that intend to grow up into a well-grounded state”. (XXXXXX, X., DC, The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth, Vol. I, Preface).
crucial em que o homem faz a grande escolha que implicará em mudanças substanciais em sua vida. Por conseguinte, o teor e a amplitude do contrato social é a matéria que precisaremos para entender o que efetivamente o homem faz no momento em que, voluntariamente, decide estabelecer o Estado a partir de um contrato.
Esta teoria política, mensurada grosso modo no parágrafo anterior, está contemplada nas obras políticas principais de Xxxxxx, isto é, no Elements, no De Cive, no Leviathan e no Dialogue. Contudo, conforme observaremos e buscaremos elucidar, o pensamento substancial ou mesmo maduro de Xxxxxx concentra-se na obra Leviathan. Embora boa parte do conteúdo presente no Leviathan tenha sido apresentado por Xxxxxx nas obras Elements e também em De Cive, foi o Leviathan que ganhou toda notoriedade e relevância que as obras anteriores de Xxxxxx não alcançaram. Já o Dialogue é importante resgatar em nossa discussão por ter sido uma obra tardia de Xxxxxx, posterior ao Leviathan e que, apesar de não ter a amplitude e aprofundamento teórico das obras políticas anteriores, tem valor e acrescenta à nossa discussão.
Xxxx Xxxxxxx em sua obra El Leviathan: en la teoría del Estado de Xxxxx Xxxxxx (1938) pontua que a obra Leviathan, seja boa ou má, certamente é a obra hobbesiana que mais fama atingiu.18 Então, o que justifica esse “sucesso” do Leviathan? As explicações se multiplicam. O Leviathan goza, ou melhor, sofre da mesma “leitura” feita de uma obra de Xxxxxxxxx. Expliquemos: O príncipe transformou-se em Maquiavel e ambos reduziram-se a: os fins justificam os meios; o príncipe não precisa ser, basta aparentar; o homem é mau, ingrato, volúvel, simulador, covarde e ambicioso. Xxxxx, O príncipe e Xxxxxxxxx couberam dentro de um único adjetivo, maquiavélico. Já Xxxxxx ou o Leviathan, tanto faz, também reduzem-se a: o homem é o lobo do homem; a guerra de todos contra todos; o homem é mau por natureza; a razão é um cálculo; o absolutismo hobbesiano. Não diríamos que estas “leituras” estão equivocadas, mas sim que elas são, no mínimo, reduzidas e injustas. Reduzidas porque nem Xxxxxxxxx e nem Hobbes
18 “Más fama, buena y mala, debe Xxxxxx al Leviathan que al resto de su obra. En la conciencia común Xxxxxx aparece como un „profeta del Leviathan‟”. (XXXXXXX, Xxxx. El Leviathan: em La teoria Del estado de Xxxxxx Xxxxxx. Editorial Comares, S. L.: Granada, 2004, p. 01). “Mais fama, boa e má, deve Xxxxxx ao Leviathan do que a todo o resto de sua obra. Na consciência comum Xxxxxx aparece como um „profeta do Leviathan‟”.
escreveram, se escreveram, só o que citamos acima nas referidas obras e nem o pensamento destes autores cabe em sua totalidade nas obras citadas. “Leituras” injustas porque estas frases deslocadas e, por vezes, deduzidas ou mesmo criadas por alguns “leitores”, não condizem com o justo lugar que ocupam nas teorias dos referidos filósofos. Enfim, este tipo de “leitura” não contempla, absolutamente, a teoria política apresentada nas obras O príncipe e o Leviathan. Contudo, essas “leituras” são comuns e até compreensíveis quando se trata de obras como O príncipe e o Leviathan que trazem polêmica, no sentido de debate, controvérsia, e que rompem com uma certa ordem e pensamento consolidado. Mas, felizmente, este tipo de obra, que chamamos aqui de polêmica, desperta muita curiosidade e dedicação intelectual de muitos estudiosos do pensamento político. Assim, podemos oferecer aqui outras e contundentes explicações para o destaque ou fama do Leviathan de Xxxxxx.
É notória a literatura que se multiplica acerca das questões discutidas por Xxxxxx no Leviathan. Assim como é notória a dificuldade de se encontrar um consenso, ou mesmo algumas proximidades nas interpretações – não que isso seja uma necessidade, mas é uma possibilidade. Para darmos um exemplo do que acabamos de sugerir, basta mencionarmos o profundo e profícuo debate que Xxx Xxxxxxx e Carl Schmitt19 travam acerca da identificação de Xxxxxx, a partir do Leviathan, como um defensor e original absolutista ou se temos nele um exímio defensor do liberalismo.
Xxxx Xxxxxxx, por exemplo, se debruça atentamente sobre a simbologia que o termo „Leviathan‟ carregaria consigo. Para Xxxxxxx,
„Leviathan‟ diz muita coisa, especialmente representa o caráter último da obra hobbesiana, ou seja, a escolha por este símbolo para representar o Estado, certamente não é arbitrária, muito pelo contrário, Xxxxxx desejou dizer com este símbolo forte, polêmico e historicamente20
19 Julgamos o debate interessante teoricamente não porque através dele conseguiu-se enquadrar Xxxxxx como um absolutista ou como um liberal, mas porque tal debate suscitou e explicitou diversos argumentos hobbesianos que ajudam esclarecer o conceito de soberania hobbesiano. O referido confronto de argumentos de Xxxxxxx e Xxxxxxx pode-se encontrar nas obras schmittianas O conceito do político (1932) e O Leviatã na Teoria do Estado de Xxxxxx Xxxxxx (1938) e na obra A filosofia política de Xxxxxx: seus fundamentos e sua gênese (1936). Voltaremos a esta questão no capítulo III.
20 O „Leviathan‟ “histórico” era um monstro grande e poderoso segundo o imaginário comum dos navegantes da idade média. Também foi descrito no Antigo Testamento, no livro de Jó, capítulo 41, como um demônio das águas. Em forma de serpente, polvo ou dragão, o monstro
xxxxxx, o intuito central de sua teoria política. Qual seria tal objetivo? A imagem do grande Leviathan que Xxxxxx coloca para estampar a capa de sua obra é um grande homem composto de inúmeros outros homens, estes pequenos, sendo que o grande homem carrega em sua mão direita uma espada e na mão esquerda está um cajado episcopal. Abaixo da mão direita tem o desenho de um castelo, uma coroa, um canhão, fuzis, lanças, bandeiras e também a imagem de um combate entre homens. Já abaixo da mão esquerda encontramos um templo, mitra episcopal, raios de excomunhão, honra, silogismos e dilemas sutis e também, no fim, um concílio. Que leitura se pode fazer disso? Segundo Xxxxxxx, estes desenhos representam os instrumentos de poder e de combate próprios do poder temporal (Estado) e do poder espiritual (Igreja). Isto é, a luta política incessante devida ao movimento próprio da política da luta entre amigos e inimigos. Xxxxxxx admite que essas imagens serviram, como em geral acontece, para tornar bem conhecido o Leviathan de Xxxxxx, inclusive muito mais do que o conteúdo da sua teoria. Ademais, Xxxxxxx diz que “os conceitos e distinções são armas políticas, e mais propriamente, armas de poderes indiretos”. 21 Isso aparece, na obra hobbesiana, desde a primeira página até a última. Logo, a fama não se deve tão somente à imagem amedrontadora do Leviathan, mas também ao conteúdo da obra profundamente carregado de simbologia e poderes indiretos, como afirma Xxxxxxx.
Voltando à imagem, Xxxxxxx diz que se pode ver três imagens: o grande homem, o grande animal e um grande animal artificial. No texto de toda obra, apenas três22 vezes o termo leviathan aparece, entretanto, em uma destas citações aparece uma quarta imagem, ou seja, a do Deus mortal. Desse modo, Xxxxxxx conclui,
Se alcança desta sorte a totalidade mítica que supõem os termos “Deus”, “homem”, “animal” e
xxxxxxx era profundamente temido pelo homem, uma vez que se tratava de um demônio muito poderoso.
21 “los conceptos e distinciones, son armas políticas y, más propriamente, armas de poderes “indirectos”. (XXXXXXX, X., 2004, p. 17).
22 De acordo com a edição inglesa de Xxxxx Xxxxxx (1994) que estamos usando, o nome
„Leviathan‟ aparece quatro vezes: na introdução, página 03, no capítulo XVII, página 109, e duas vezes no capítulo XXVIII, página 210.
“máquina”. O conjunto leva o nome de Leviathan do Antigo Testamento. 23
Assim, para Xxxxxxxx, o autor do Leviathan fez bom uso da simbologia em sua obra para figurar toda a potência e/ou poder que emana do soberano. O Leviathan representa a forma mortal de Deus, a forma coletiva de homem, a forma temida e protetora do animal e, finalmente, a forma eficiente da máquina. Em outros termos, o Leviathan, homem artificial que se assemelha ao poder divino é o que maquinalmente serve ao propósito pelo qual foi criado, isto é, garantir a vida política do homem. De fato, esta leitura de Xxxxxxx da simbologia do termo Leviathan oferece uma possível e justa compreensão da dimensão imprimida por Xxxxxx ao Leviathan em sua obra. O Leviathan compõe e sustenta esta união de forças, de perfeição e/ou de caractéristicas que compreendem Deus, o homem, o animal e a máquina. O Estado absoluto é a personficação destas quatro potências.
Xxxxxx, na introdução ao Leviathan, diz claramente ao leitor o que fará, como fará e qual é a pretensão da obra. Isto é, diz nos primeiros parágrafos da introdução que o texto que apresenta é um tratado acerca do homem artificial, do deus mortal, o grande Leviathan, ou seja, o Estado. Diz, ademais, que falará da matéria e também artífice do Estado, em outros termos, falará do homem. Xxxxxxx a explicação da origem deste deus mortal, o contrato social. E ainda, mostrará quais são os direitos, o poder ou a autoridade deste animal artificial. A forma com que Xxxxxx apresenta a obra Leviathan na introdução deixa estampado, portanto, o pressuposto teórico científico hobbesiano, ou seja, sua concepção de ciência, de ciência política. Por conseguinte, no Leviathan, como ele bem diz na introdução, mostrará as partes do grande Leviathan, de forma a fazer a demonstração de como o homem chega ao Estado, uma demonstração racional científica. Em outras palavras, como um mecanicista-nominalista, Xxxxxx partirá dos nomes para formar os silogismos, os quais darão origem às proposições, que, por sua vez, ao adicionarem-se, completarão a demonstração. Pois, para Xxxxxx, o conhecimento é consequência de uma adição/subtração de palavras. Pressupostos esses importantes para compreender a teoria política hobbesiana, os quais ficam bastante evidentes nos capítulos IV e
23 “Se alcanza de esta suerte la totalidad mítica que suponen los términos “Dios”, “hombre”, “animal” y “máquina”. El conjunto lleva el nombre de Leviathan del Antiguo Testamento.” (XXXXXXX, C., 2004, p. 19).
V, que tratam sobre a linguagem, a razão e a ciência, respectivamente. Portanto, uma obra com tamanho propósito e inegável originalidade não poderia passar despercebida, mesmo que um pouco tardiamente.24
Como dissemos no início deste texto, o Leviathan se tornou a grande obra hobbesiana, bibliografia indispensável para aqueles que se ocupam da filosofia política. Certamente, tal resultado deve-se ao êxito de Xxxxxx em escrever uma obra que aborda e argumenta a vida política a partir de uma nova e original perspectiva, o contrato social25. Xxxxxx para a política novos elementos, como os conceitos de representação, pessoa, e mesmo sua original discussão acerca da soberania.26 Isso também porque no Leviathan Xxxxxx torna ainda mais visível e determinante para a política a tensão ou jogo entre a razão e as paixões. Além disso, a obra Leviathan apresenta, pela primeira vez, a teoria do contrato social de forma bem articulada, revelando o jogo complexo estabelecido entre estado de natureza, contrato e sociedade civil. Ainda mais, apresenta um homem disposto a fazer valer a sua vontade. Poderíamos citar muitas razões pelas quais o Leviathan tornou-se „a‟ obra de Xxxxxx,27 constatação que por si só revela a sua riqueza teórica. O que comprova isso, como dizíamos no início deste texto, é o número de estudos acerca do conteúdo desta obra que se multiplicam, o que só é possível com obras clássicas, ou seja, obras que atravessam o tempo em
24 Apenas para lembrar que a leitura da obra de Xxxxxx chegou a ser proibida e os exemplares queimados.
25 Sabe-se que a ideia de contrato a partir das teorias políticas já estavam presentes desde a idade antiga, contudo, a teoria contratualista criada e sustentada por Xxxxxx destacou-se por algumas originalidades, especialmente pela ideia de um contrato selado entre, e somente entre os indivíduos, isto é, sem a participação do soberano.
26 Adiante discutiremos em que o conceito de soberania de Xxxxxx se distingue daquele de Xxxxx.
27 As mudanças na teoria política hobbesiana, no Leviathan, em relação às obras anteriores, especialmente o De Cive, são bem apontadas por Xxxxxx em seu texto Xxxxxx‟ Leviathan as an Epicurean Response to Theistic Natural Law (1998). No referido texto Xxxxxx argumenta que os dez anos de exílio de Xxxxxx em Paris operou grandes e definitivas transformações em sua concepção política. De acordo com Xxxxxx, em Paris, uma das grandes influências para a teoria política hobbesiana foi o epicurista Xxxxxx Xxxxxxxx, um grande amigo de Xxxxxx. Desta influência resultaria, segundo Xxxxxx, em uma das principais diferenças entre o De Cive e o Leviathan, isto é, “While we can trace the traditional stoic patterns of Christian Natural Law in De Cive, Leviathan is one of the first Epicurean civil-philosophies in modern Europe”. (XXXXXX, Xxxxxxx. Hobbes‟ Leviathan as an Epicurean Response to Theistic Natural Law. WCP: Boston, 1998, p. 05). “Enquanto podemos traçar padrões tradicionais estóicos da Lei Natural cristã em De Cive, o Leviathan é um das primeiras filosofias civis epicuristas da Europa moderna”.
importância e atualidade teórica. Outrossim, nossa discussão também encontra respaldo teórico central nas afirmações hobbesianas presentes no Leviathan. Embora seja fato que a teoria do contrato social hobbesiana já havia aparecido nas suas obras políticas anteriores, contudo é para o Leviathan que Xxxxxx reserva a concretização da teoria do contrato social, inclusive trazendo conceitos novos e importantes que, em certas circunstâncias, revolucionaram a teoria do contrato social.
Portanto, a fama do Leviathan é justa, embora nem sempre pelas razões precisas. Por conseguinte, seguramente é nesta obra que Xxxxxx melhor e mais profundamente explicita sua teoria política do contrato social.
a) Do absolutismo hobbesiano
A teoria política de Xxxxxx tem uma tradição longa e forte de leituras secundárias que defendem o absolutismo da mesma. Por conseguinte, cabe destacarmos aqui estas leituras, uma vez que no capítulo III retomaremos a discussão com o propósito de oferecer alguns questionamentos de tais leituras. Como mencionamos, logo acima, ler “Hobbes” como um absolutista foi e ainda é uma leitura bastante aceita e recorrente. Desta forma, não vamos aqui reproduzir todos os autores que se ocuparam em defender esta leitura, nem tampouco apresentar todos os argumentos destas leituras, pois seria ir além da necessária abordagem da referida questão para os fins de nosso enfoque teórico. Xxxxx, por conseguinte, tomar alguns argumentos e autores que mostram com perspicácia e rigor os fundamentos da defesa da leitura absolutista na teoria política hobbesiana.
O absolutismo defendido por Xxxxxx teria raízes mais profundas do que os argumentos em favor deste, apresentados ao longo das suas obras políticas. Para Xxxxxxx, por exemplo, o projeto político de Xxxxxx está ancorado no contexto de conflitos e guerras civis, especialmente a Guerra Inglesa, travadas na época em que Xxxxxx viveu e escreveu. Desta forma, Xxxxxx se ocuparia em defender uma política com o firme propósito de evitar a guerra de opiniões, assim como garantir a paz. Por conseguinte, faz-se necessário um soberano absoluto,
um juiz superior, ou seja, uma persona com poder suficiente para garantir o fim da guerra e o triunfo da paz.
A experiência destes acontecimentos e da guerra civil inglesa levou Xxxxxx a formular uma teoria política cujo problema central é o de construir um sistema de poder que evite em primeiro lugar o conflito ideológico e religioso e assegure a paz. Para este fim, tal poder deve ser absoluto, isto é, subtraído a qualquer controle por parte dos que lhe são submetidos. O soberano pode, então, com a ameaça e o uso da força impor uma paz duradoura e garantir uma vida segura.28
Partindo desta concepção de projeto político que busca estabelecer um soberano absoluto e legítimo, Xxxxxx constrói sua
„ciência política‟, de acordo com Xxxxxxx. Desta forma, o conflito, a guerra e a instituição da paz pode ser resolvida “instituindo um soberano absoluto cuja decisão seja aceita por todos, não por ser verdadeira em si, mas por convenção e acordo prévio”.29
O soberano absoluto hobbesiano seria instituído através de um contrato estabelecido entre os homens. Na leitura de Pinzani, este contrato seria um contrato de autorização30, isto é, os homens entre si estabelecem um contrato autorizando, ou mesmo conferindo uma espécie de procuração a uma persona – um homem ou uma assembleia – outorgando-lhe o poder de agir e assim comandar em nome destes homens contratantes. Sendo assim, esta persona, o soberano, tem legitimidade a partir do contrato estabelecido, para fazer uso ilimitado e, portanto, absoluto do poder. Conforme, pontua Pinzani,
O soberano, o qual, portanto, permanece fora do contrato, [é o] único indivíduo a manter seu direito natural, isto é, a não renunciar ao uso da violência e ao originário poder ilimitado de fazer qualquer coisa que lhe pareça melhor.31
Por conseguinte, este projeto político hobbesiano que apresenta um soberano como único detentor do poder e poder ilimitado
28 XXXXXXX, X., 2008, p. 52.
29 XXXXXXX, X., 2008, p. 70.
30 “Trata-se, então, de um contrato de autorização – uma figura típica do direito privado (uma espécie de procuração), mas pouco usada nas teorias contratualistas clássicas”. (XXXXXXX, X., 2008, p. 70).
31 XXXXXXX, X., 2008, p. 70.
asseguraria fortemente a visão e defesa absolutista de Xxxxxx, de acordo com Xxxxxxx. Na mesma perspectiva de leitura de Xxxxxxx está Heck. Este último inscreve de forma categorica Hobbes em uma leitura absolutista.
A doutrina da soberania de Xxxxxx é absolutista não porque reivindica para o legislador uma autoridade suprema, mas por conceder ao soberano um poder ilimitado. O traço absolutista da scientia civilis hobbesiana é tanto mais insofismável quanto menos se confunde com clichês antropológicos.32
Como se percebe a centralidade da defesa de um Hobbes absolutista está na concepção deste da persona de poder. Isto é, em grande medida o que caracteriza o pensamento hobbesiano como absolutista é seu soberano com poder supremo e ilimitado.
Contudo, para além dos argumentos possíveis e respeitáveis que afirmam o caráter absolutista da teoria política hobbesiana, vale dizer que esta leitura revelaria parcialmente a posição teórica de Xxxxxx. Atualmente os leitores de Xxxxxx nutrem sérias dúvidas e contundentes afirmações contrárias a esta visão. Entretanto, não convém adiantarmos aqui esta discussão, uma vez que nossa pretensão aqui era puramente apresentar os argumentos que contribuem para a leitura absolutista. Desta forma, vamos retomar esta discussão no terceiro capítulo e assim enfrentar a questão de um Xxxxxx, talvez, liberal em suas premissas e absolutista em suas conclusões.
2 O HOMEM HOBBESIANO: homo naturalis
Para adentrar a complexidade que envolve o homem político hobbesiano é essencial fazer um mapeamento do homem natural. A filosofia política pensada por Xxxxxx Xxxxxx concebe o homem dentro de uma perspectiva passional e racional. Nas suas principais obras políticas, na ordem cronológica, Elements of Law (1640), De Cive
32 XXXX, X. X., 2002, p. 34.
(1642), Leviathan (1651) e A dialogue between a Philosopher and a Studentt of the Common Law of the England (1681), Xxxxxx oferece uma descrição mecanicista da natureza do homem que se orienta por sua ambição de fazer “ciência política”. Logo, nas obras citadas, em especial as três primeiras, Xxxxxx faz uso de várias páginas para detalhar todos os elementos que constituem o homem. Efetivamente, como se fosse uma máquina, o homem é detalhado em cada “peça”, cada elemento que o engendra, que dá vida e movimento a esta complexa máquina voluntariosa e calculante. Hobbes analisa e conceitua cada elemento que constitui a natureza humana, ao mesmo tempo em que une e relaciona estes elementos para mostrar a complexidade desta criatura que está para além das demais criaturas vivas.
Xxxxxxxx em sua obra The Logic of Leviathan (1969), nas primeiras afirmações, argumenta que compreender a psicologia do homem hobbesiano é essencial para compreender a sua teoria moral e política. Nos termos precisos do autor citado, “(...) para entender a moral e a política, é necessário entender o homem”.33 Concordamos com a perspectiva teórica de Xxxxxxxx ao considerar a psicologia humana descrita por Xxxxxx como central para o entendimento de todo o seguimento moral e político estabelecido pelo autor. No que diz respeito à política, para a qual voltamos nosso olhar, temos o Estado Civil hobbesiano como o resultado de um cálculo operado a partir da razão e das paixões humanas. Ou seja, o Estado é fruto ou construto do homem e para entender porque este homem chegou a este “produto” é necessário entender quem é esse homem e que lugar a razão e as paixões ocupam neste ser. Se tomarmos o Leviathan, considerada, em geral, a obra que melhor e mais maduramente expressa a teoria política hobbesiana, notaremos a atenção de Xxxxxx em estabelecer nos primeiros capítulos todos os elementos que compõem a máquina humana. A primeira parte do Leviathan é justamente intitulada „Do Homem‟.
A primeira e mesmo surpreendente imagem que Xxxxxx descreve do homem no Leviathan está presente já na introdução. Apresenta o homem como um autômato, isto é, uma máquina que se movimenta conforme sua engrenagem própria. De acordo com Xxxxxx,
33 “(...) To understand morals and politics, understand man”. (XXXXXXXX, Xxxxx. The logic of Leviathan. The Moral and Political Theory of Xxxxxx Xxxxxx. Clarendon Press: Oxford, 1969. Pág. 01).
(...) o que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice?34
Assim, Xxxxxx começa colocando o homem em uma situação de pura identidade física e mortal, ou mais ainda mecânica e artificial, bem diferente de uma visão divina ou superior às outras criaturas vivas.
No início do Xxxxxxxxx Xxxxxx compara o homem ao Estado, na perspectiva de suas origens. O homem como uma criação da Natureza e o Estado como uma criação do homem. Logo, nos termos de Gauthier, “o homem é a mais excelente obra da natureza; o Estado é a mais excelente obra do homem”. 35 Tanto o homem, quanto o Estado são máquinas. Máquinas com engrenagens próprias, com finalidades próprias e com movimentos próprios. Enfim, um conjunto de partes que se articulam para formar um todo com fins próprios, como todo autômato assim o é. Esta perspectiva de ver o homem como uma máquina, um autômato é claramente exposta por Xxxxxx desde as primeiras páginas de sua obra Leviathan. Portanto, falar em homem, a partir de Hobbes, significa falar de uma criatura concebida a partir desta visão mecanicista.
Observando as principais obras políticas de Xxxxxx nota-se que a concepção de homem não muda de uma obra para outra. Não obstante, é claramente notável que esta concepção fica mais evidente e plenamente exposta na obra Leviathan. Na obra Elements e na obra De Xxxx, Xxxxxx elenca e concebe o homem a partir dos mesmos elementos que irá aprofundar no Leviathan. É nesta obra que Xxxxxx faz uma sistematização maior e mais pontual de todos os elementos que compõem o homem, desde a sensação até a religião. Se tomarmos metodologicamente as três obras para analisar a concepção de homem que Xxxxxx desenha nestas, perceberemos que em todas estas ele reserva, em especial, a primeira parte da obra para compor a identidade do homem. Notaremos que desde Elements até o Leviathan estão presentes as partes fundamentais, de acordo com Xxxxxx, da definição
34 XXXXXX, X. Lev., 2003, Introdução, p. 11. “(...) What is the heart, but a spring; and the nerves, but so many strings; and the joints, but so many wheels, giving motion to the whole body, such as was intended by the artificer?”. (XXXXXX, X., Xxx., 1994, Introduction, p. 3)
35 “Man is the most excellent work of nature; Commonwealth is the most excellent work of man.” (XXXXXXXX, D., 1969, p. 01).
do homem natural, isto é: a razão, as paixões, a linguagem, a sensação, a imaginação, enfim, tudo aquilo que define em essência o homem.
Xxxxxx pretende fazer „ciência política‟, como já mencionamos, logo, tomando o homem como objeto de estudo ele busca especificar desde a forma com que este homem vê (conhece) o mundo até a forma com que ele se relaciona com os outros e com este mundo. Em outros termos, quando Xxxxxx começa sua consideração sobre o homem na obra Leviathan, ele começa justamente tratando da sensação, da imaginação e da linguagem, isto é, os mecanismos de apreensão e relação do homem com o mundo e, por conseguinte com o conhecimento. Como este mundo externo afeta o homem é descrito por Xxxxxx a partir da sensação e da imaginação; como o homem elabora, sistematiza e objetiva este conhecimento ele descreve com a linguagem; como o homem consegue sistematizar, reelaborar, manipular estas afecções externas ele mostra com a razão e as paixões. Enfim, o homem hobbesiano é mapeado em toda sua amplitude como premissa necessária para ele desenvolver sua teoria política.
Haja vista Hobbes ter em suas obras políticas uma leitura ampla e detalhada do homem em toda sua conjectura ontológica, epistemológica, moral, política, religiosa e outras, vamos fazer um recorte do que nos é fundamental. Vamos restringir nossa leitura e descrição do homem hobbesiano àquilo que nos serve de base para mostrá-lo como premissa do homem político.36 Desta forma, não cabe, por exemplo, abordarmos como Xxxxxx argumenta que o homem pode conhecer, ou o que ele efetivamente pode conhecer. Nos interessa, sim, mostrar como Xxxxxx diz que o homem é compreendido dentro de suas principais partes, isto é, a razão e as paixões. Esta perspectiva nos parece pertinente na medida em que Xxxxxx compreende a política direta e necessariamente ligada à relação complexa e conflituosa que a razão e as paixões vivem.
36 A descrição da natureza humana proposta por Xxxxxx está plenamente comprometida com o projeto político que ele cuidadosamente elaborou. Uma vez que como bem xxxxxx Xxxxx, “(...) a theory of human nature selects only a group of important properties, where importance is determined relative to the uses to which the theory is to be put”. (XXXXX, Xxxxxxx X. Xxxxxxxxx Moral and Political Theory. Princeton University Press: Princeton- New Jersey, 1986. Pág. 31. “(...) uma teoria da natureza humana seleciona apenas um grupo de propriedades importantes, na qual a importância é determinada em relação aos usos a que a teoria deve ser colocada”.
Xxxxxx abre a epístola dedicatória da obra Elements declarando que as duas principais partes da natureza humana são: a razão e a paixão. Sendo que destas partes procedem dois tipos de saber, o matemático e o dogmático. De acordo com Xxxxxx o saber matemático, proveniente da razão, está livre de controvérsias e disputas, por outro lado, o saber dogmático, próprio da paixão, não se furta em momento algum da disputa, da controvérsia. O homem natural conta com este saber dogmático e, portanto, minado de conflitos e disputas.
Considerando as paixões, nos perguntamos que paixões estão presentes e dominantes na vida do homem pré-político? Xxxxxx dará especial atenção a duas principais e decisivas paixões na vida do homem natural, a saber: o medo e a esperança. Mas antes de falarmos destas paixões é importante saber que Xxxxxx define as paixões como movimentos voluntários. Diferentemente dos movimentos vitais como respirar, os movimentos voluntários como falar, são centrados na imaginação. Andar, falar, mover-se estão diretamente ligados à imaginação do homem. Isto é, para que qualquer um dos movimentos voluntários executados pelo homem aconteça é necessário que a imaginação deste seja ativada. Desta forma, todo movimento voluntário será realizado efetivamente a partir de algum objeto externo conforme possibilita a imaginação.37 Uma vez que o indivíduo seja despertado por algum objeto externo, iniciam-se no interior de seu corpo pequenos movimentos em direção ou não ao objeto. Estes pequenos movimentos que o indivíduo realiza como resposta ao objeto externo chama-se esforço (conatus/endeavour). Logo, toda paixão parte destes pequenos movimentos, invisíveis mesmo, em direção ao objeto - apetite ou desejo
- ou então em direção contrária ao que causa o movimento, o que Xxxxxx chama de aversão. São os primeiros e imperceptíveis movimentos que o indivíduo realiza ao ser afetado por algum objeto externo.38 Por conseguinte, o apetite designa o movimento em direção, o
37 “Dado que andar, falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários”. (XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. VI, p. 47. “And because going, speaking, and the like voluntary motions depend always upon a precedent thought of xxxxxxx, which way, and what, it is evident that the imagination is the first internal beginning of all voluntary motion”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. VI, p. 27).
38 “Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e em outras ações visíveis, chamam-se geralmente ESFORÇO”. (XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. VI, p. 47). “These small beginnings of motion
movimento de aproximação, enquanto que a aversão é o movimento de afastamento. Desta forma, conclui Hobbes que, “o apetite, ligado à crença de conseguir, chama-se ESPERANÇA”.39 Por outro lado, “a aversão, ligada à crença de dano proveniente do objeto, chama-se MEDO”.40 Estas duas paixões acompanham o homem, ou melhor, são inerentes ao homem natural e este é constantemente movido em direção ou movido contra algo, conforme sua esperança ou medo. Contudo, por vezes, o objeto que provoca o movimento de aproximação ou afastamento, apetite ou aversão (esperanças ou medos), pode confundir o homem. Em outros termos, determinados objetos que despertam o movimento do homem não se definem claramente, em um primeiro momento, de forma determinada, desta maneira, surge no espírito do homem um momento de avaliação, ponderação de consequências. Nos termos hobbesianos,
Quando surgem alternadamente no espírito humano apetites e aversões, esperanças e medos, relativamente a uma mesma coisa; quando passam sucessivamente pelo pensamento as diversas consequências boas ou más de praticar ou abstare- se de praticar a coisa proposta, de modo tal que às vezes se sente um apetite em relação a ela, e às vezes uma aversão, às vezes a esperança de ser capaz de praticar, e às vezes o despero ou medo de a empreender, toda a soma de desejos, aversões, esperanças e medos, que se vão desenvolando até que a ação seja praticada, ou considerada possível, leva o nome de DELIBERAÇÃO.41
within the body of man, before they appear in walking, speaking, striking, and other visible actions, are commonly called ENDEAVOUR”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. VI, p. 28).
39 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. VI, p. 50. “For appetite with an opinion of attaining is called HOPE”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. VI, p. 30).
40 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. VI, p. 50. “Aversion with opinion of hurt from the object, FEAR”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. VI, p. 30).
41 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. VI, p. 54-5. “When in the mind of man appetites and aversions, hopes and fears, concerning one and the same thing arise alternately, and diverse good and evil consequences of the doing or omitting the thing propounded come successively into our thoughts, so that sometimes hope to be able to do it, sometimes despair or fear to attempt it, the whole sum of desires, aversions, hopes and fears, continued till the thing be either done or thought impossible, is that we call DELIBERATION”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. VI, p. 33).
Este momento de conflito e deliberação interna entre as paixões do homem para fins de praticar uma ação sugere que a relação deste homem com o mundo externo está mediada por inúmeras e, por vezes, conflitantes paixões que podem levá-lo, ora para um lado, ora para outro. Nem sempre é possível prever, ou mesmo diagnosticar que paixão será despertada por aquilo que afeta o homem, assim como, não se terá, então, a certeza da ação deste homem. Contudo, o que se pode ter certeza é que após a deliberação, haverá um último apetite ou aversão em relação ao objeto, e esta levará o homem à ação. Por conseguinte, este “último apetite ou aversão imeditamente anterior à ação ou à omissão desta é o que se chama VONTADE”.42 Por conseguinte, um ato voluntário é aquele que deriva da vontade.
Mas o homem é movido por inúmeras outras paixões também. No estado de natureza, as paixões assumem quase que absolutamente a direção do homem, como já mencionamos. Assim, Xxxxxx descreve inúmeras paixões que habitam imperativamente o homem, como: desconfiança, cobiça, curiosidade, poder, ambição, vergonha, inveja, vanglória, coragem, mesquinhez, luxúria, vingança, e tantas outras. Dentre estas paixões citadas, a curiosidade tem um papel especial na vida do homem, segundo Xxxxxx. Xxxxxx, é a curiosidade responsável por instigar, movimentar o homem em direção ao desconhecido. Para Xxxxxx, enquanto que os outros animais se contentam com o deleite e o prazer dos sentidos, o homem é a única criatura que conserva o desejo de saber o porquê das coisas. Também destas paixões que citamos acima, é fundamental resgatarmos a importância que Xxxxxx dá a paixão da vanglória, afinal, ela é determinante nas relações conflituosas que o homem estabelece no estado de natureza, conforme veremos logo adiante.
A vanglória é uma espécie de lente de aumento que o homem coloca sobre si mesmo e suas supostas qualidades. Como propõe Hobbes, “a vanglória consiste na invenção ou suposição de capacidades que sabemos não possuir”.43 Também poderíamos chamar esta vanglória de orgulho ou vaidade, ou seja, um certo engrandecimento, apreciação
42 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. VI, p. 55. “The last appetite or aversion immediately adhering to the action, or to the omission thereof, is that we call the WILL”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. VI, p. 33).
43 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. VI, p. 53. “The vain-glory which consisteth in the feigning or supposing of abilities in ourselves (which we know are not)”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. VI, p. 32).
exagerada, fantasiosa ou mesmo enganosa daquilo que de fato é. Conforme Hobbes pontua,
A alegria proveniente da imaginação do próprio poder e capacidade é aquela exultação do espírito a que se chama GLORIFICAÇÃO, a qual, se baseada na experiência das suas próprias ações anteriores, é o mesmo que confiança; e, se baseada na lisonja dos outros, ou é apenas suposta pelo próprio, para se deleitar com as suas consequências, chama-se VANGLÓRIA – nome muito apropriado, porque uma confiança bem fundada leva à eficiência, ao passo que a suposição do poder não leva ao mesmo resultado e é portanto justamente chamada vã.44
Por conseguinte, a partir desta paixão o homem tende a se colocar em relação aos outros com superioridade ou mesmo menosprezar a capacidade alheia e supervalorizar a própria. Esta descabida glorificação de si mesmo tem efeito, geralmente, negativo nas relações que o homem estabelece com seus iguais. Xxxxx, a vanglória diz a um homem que o outro não é igual a ele, mas sim, sempre inferior. Tal visão distorcida tem como consequência necessária a relação para com o outro também distorcida e com sérias implicações confluosas.
Portanto, para definir o homem hobbesiano é necessário e/ou indispensável falar da passionalidade que domina este homem, contudo não é suficiente. A razão do homem hobbesiano é também fundamental. Mas, o que compreende esse conceito:
Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas; ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra. (...) Pois razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos. Digo marcar quando
44 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. VI, p. 53. “Joy arising from imagination of a ma´s own power and ability is that exultation of the mind which is called GLORYING; which, if grounded upon the experience of his own former actions, is the same with confidence; but if grounded on the flattery of others, or only supposed by himself, for delight in the consequences of it, is called VAINGLORY; which name is properly given, because a well grounded confidence begetteth attempt, whereas the supposing of power does not, and is therefore rightly called vain”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. VI, p. 31).
calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos para os outros homens.45
Logo, para Hobbes, a razão é uma faculdade humana que corresponde a um cálculo. Desse modo, é uma faculdade que, embora seja intrínseca à natureza humana, como cálculo, necessita e pressupõe um processo de desenvolvimento. Conforme o autor afirma,
(...) a razão não nasce conosco como os sentidos e a memória, nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência; pelo contrário, é alcançada com esforço.46
Desta forma, “(...) ninguém nasce com o uso da razão, todos podem atingi-la.”47 Em outros termos, a razão humana é um processo constante de cálculos de adição e subtração. Portanto, é ao exercitar esta faculdade humana que ela se desenvolve e se consolida cada vez mais. É inclusive o cálculo racional que exercerá papel fundamental no homem pré-político, uma vez que será a razão, movida ou fundada nas paixões, que chegará à conclusão de que o estado natural não é bom para a vida do homem e que seria possível construir uma alternativa. Mas, Xxxxxx admitirá que a razão não está isenta de erros, enganos. Até mesmo os homens mais bem preparados, mais experientes e atenciosos podem se enganar, segundo Xxxxxx. Ao considerar falsas premissas, o cálculo final pode ser comprometido.48 Inclusive porque as paixões muitas vezes não se privam de confundir o homem em realizar o cálculo. Argumenta Hobbes que embora a razão, assim como a aritmética, é uma
45 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap, III, p. 27. “When a man reasoneth, he does nothing else but conceive a sum total from addition of parcels, or conceive a remainder from subtraction of one sum from another. [...] For REASON, in this sense, is nothing but reckoning (that is, adding and subtracting) of the consequences of general names agreed upon for the marking and signifying of our thoughts; I say marking them when we reckon by ourselves, and signifying, when we demonstrate or approve our recknings to other men”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. III, p. 22-3).
46 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. V, p. 43. “That reason is not, as sense and memory, born with us, nor gotten by experience only, as xxxxxxxx is, but attained by industry”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. V, p. 25).
47 XXXXXX, Xxxxxx. Diálogo entre um filósofo e um jurista. Tradução de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx. Landy Editora: São Paulo -SP, 2001, p. 23. “no man is born with the use of reason, yet all men may grow up to it”. (XXXXXX, X. DFJ. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. VI).
48 Para a discussão hobbesiana acerca dos possíveis cálculos equivocados da razão verificar capítulo V do Leviathan e, também o capítulo IV, quando Xxxxxx está expondo o uso e abuso da linguagem.
arte infalível e certa, o homem inexperiente pode enganar-se no cálculo. Por conseguinte, afirma Xxxxxx,
(...) a razão de nenhum homem, nem a razão de que número for de homens, constitui a certeza, tal como nenhum cômputo é bem-feito porque um grande número de homens o aprovou unanimamente.49
Logo, Xxxxxx argumenta que para dirimir controvérsias a propósito de um cálculo, é necessário recorrer à reta razão, à razão de algum árbitro ou juiz. Há que se mencionar que o conceito de reta razão não diz respeito exclusivamente à razão que um árbitro ou juiz possui, como sustenta Xxxxxx,
(...) quando um homem raciocina a partir de princípios que a experiência acha indubitáveis, e desaparecem todas as decepções da sensação e a equivocação das palavras, a conclusão que ele fizer será dita estar de acordo com a reta razão (right reason).50
Entratanto, a reta razão não é o nível de cálculo que facilmente ou comumente o homem possa atingir. Como salienta Hobbes, nem a maioria, nem mesmo a unanimidade na conclusão de um cálculo é garantia de cálculo preciso, de reta razão, por isso, é fundamental submeter este cálculo a um juiz superior.
Uma característica essencial da natureza humana é a igualdade, embora como vimos, a vanglória suponha o contrário.51 Não obstante, o
49 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. V, p. 40. “(...) no one man´s reason, nor the reason of any one number of men, makes the certainty, no more than an account is therefore well cast up, because a great many men have unanimously approved it”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. V, p. 23).
50 XXXXXX, Xxxxxx. Os elementos da lei natural e política. Tradução e notas de Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx. Coleção Fundamentos do Direito. Editora Ícone: São Paulo, 2002, Parte I, cap. V, p. 41. “(...) when a man reasoneth from principles that are found indubitable by experience, all deceptions of sense and equivocation of words avoided, the conclusion he maketh is said to be according to right reason”. (XXXXXX, Xxxxxx. EL. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. V).
51 Conforme Xxxxxx, “A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que um deles possa com base nela reclamar algum benefício a que outro não possa igualmente aspirar”. (HOBBES,
T. Lev., 2003, cap. XIII, p. 106). “Nature hath made men so equal in the faculties of body and mind as that, though there be found one man sometimes manifestly stronger in body or of quicker mind than another, yet when all is reckoned together the difference between man and
homem, de acordo com Xxxxxx, é mais igual do que sua vanglória julga. Igual na força física, igual nas paixões (embora o objeto das paixões possa ser distinto), igual na razão, enfim, o homem naturalmente é igual. Não obstante, o homem não vê no outro um igual, só vê um inimigo, ou no mínimo, um obstáculo para sua liberdade. A igualdade também está na sua relação com o mundo exterior, ou seja,
Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e usufruir todas as coisas que quiser e puder.52
Por conseguinte, o homem dispõe de tudo e tudo está a seu dispor. Desta igualdade surge a hostilidade e ofensividade nas relações entre os homens, posto que, cada qual legitimamente pela força própria entrará em confronto com o outro para garantir seu direito a tudo. Por conseguinte,
(...) se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente a sua própria conservação, e às vezes apenas o seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.53
Portanto, desta igualdade surge o conflito, a disputa e, por conseguinte, gera o estado de guerra que faz com que a “razão dita, portanto, que cada homem, para o seu próprio bem, procure a paz à medida que existir a esperança de consegui-la”.54
Dentre as faculdades que Xxxxxx destaca no homem natural, seguramente a linguagem assume uma função determinante,
man is not so considerable as that one man can thereupon claim to himself any benefit to which another may not pretend as well as he”. (XXXXXX, X. Lev., 1994, cap. XIII, p. 74).
52 XXXXXX, Xxxxxx. EL, 2002, Parte I, cap. XIV, p. 95. “Every man by nature hath right to all things, that is to say, to do whatsoever he listeth to whom he listeth, to possess, use, and enjoy all things he will and can”. (XXXXXX, Xxxxxx. EL. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XIV).
53 XXXXXX, X. Lev, 2003, cap. XIII, p. 107. “(...) if any two men desire the same thing, which nevertheless they cannot both enjoy, they become enemies; and in the way to their end, which is principally their own conservation, and sometimes their delectation only, endeavour to destroy or subdue one another”. (XXXXX, X., Lev., 1994, cap. XIII, p. 75).
54 XXXXXX, X. EL, 2002, Parte I, cap. XIV, p. 97. “Reason therefore dictateth to every man for his own good, to seek after peace, as far forth as there is hope to attain the same”. (XXXXXX, Xxxxxx. EL. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XIV).
especialmente para o posterior homem político. Xxxxxx afirma que a linguagem é uma invenção fundamental e determinante para a vida do homem. Ele conclui que sem a linguagem “(...) não haveria entre os homens nem república, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal como não existem entre os leões, os ursos e os lobos”.55
Sendo assim, a capacidade de comunicação, de entendimento possível pelo uso da linguagem, é determinante para que o homem possa resgatar seu passado, compreender seu presente e deliberar sobre seu futuro. A linguagem é o instrumento que capacita e possibilita o homem a contar, assim como construir sua própria história.
Para melhor compreender quem é o homem descrito por Xxxxxx no estado de natureza, é imprescindível aprofundarmos as possíveis relações que estes homens estabelecem entre si. Isto é, para enxergar melhor „o‟ homem é necessário enxergar como „um‟ homem vê e se relaciona com o „outro‟ homem. Trataremos então destes “olhares” no que se segue.
a) O ‘outro’ no estado de natureza
Para compreendermos mais ampla e profundamente o que constitui o homem hobbesiano, vamos reproduzir aqui a descrição realizada por Xxxxxx do homem a partir de suas relações no estado de natureza. Na nossa perspectiva, uma descrição que não pretende mostrar o homem como bom e nem como mau56, apenas o animal homem amedrontado, acuado e reduzido, quase que absolutamente, às intemperes das suas paixões.
55 XXXXXX, X. Lev.,2003, cap. IV, p. 30. “(...) without which there had been amongst men, neither commonwealth, nor society, nor contract, nor peace, no more than amongst lions, bears, and wolves”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. IV, p. 16).
56 Conforme confirma Xxxxxx nesta passagem, “Eles [os homens] têm a disposição que ora exponho: imediatamente e quanto puderem, eles desejam e fazem tudo que melhor lhes agrada, e dos perigos que deles se acercam eles ou fogem, por medo, ou com vigor tratam de repeli-los; mas isso não é razão para considerá-los maus ou perversos”. (XXXXXX, X., DC, 2002, Prefácio do Autor ao Leitor, p.15). “They [men] have this disposition, that immediately as much as in them lies they desire and do whatsoever is best pleasing to them, that either through fear they fly from, or through hardness repel those dangers which approach them; yet are they not for this reason to be accounted wicked”. (XXXXXX, T., DC. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Preface).
No estado de natureza destacam-se as relações de confrontos, conflitos, disputas. As relações humanas no estado de natureza são dominadas pela hostilidade. A natureza humana não está de acordo com uma sociabilidade genuína e desinteressada. O homem hobbesiano, pelo contrário, é um indivíduo genuinamente autointeressado e sem qualquer inclinação para a convivência harmoniosa e pacífica com o outro. Como esclarece Xxxxxxx,
Nós desejamos a sociedade somente na medida em que ela tem um valor instrumental para nós, o que significa dizer que a base de nossa sociabilidade é nossa individualidade, e não o inverso.57
Portanto, o homem se orienta pela autopreservação e pela individualidade. Avesso à coletividade natural, Xxxxxx conclui que nós, homens, “não procuramos companhia naturalmente e só por si mesma, mas para dela recebermos alguma honra ou proveito”.58
Como bem aponta Limongi, as relações estabelecidas entre os homens no estado de natureza são pautadas pelo poder unicamente. Diferentemente no Estado Civil estas relações passam a ser de caráter fundamentalmente jurídico, ou seja, de obrigação e dever.59 Portanto, no estado de natureza cada um, isoladamente, fará uso de seu poder para sobreviver, especialmente sobreviver aos outros homens, os quais são reais e constantes obstáculos à sua liberdade.
No estado de natureza, concorrem para o conflito contínuo e interminável não só condições objetivas, mas também subjetivas. Ou seja, para além da igualdade de fato, da disputa pelos recursos naturais e
57 “We desire society only insofar as it has instrumental value for us, which means that our individuality grounds our sociality, not the reverse”. (XXXXXXX, Xxxx. Hobbes and the Social Contract Tradition. Cambridge University Press. New York, 1986, p. 9).
58 XXXXXX, X., DC, 2002, cap. I, p. 26. “We do not therefore by nature seek society for its own sake, but that we may receive some honour or profit from it; these we desire primarily, that secondarily”. (XXXXXX, X., DC, The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth, Vol. I, cap. I).
59 “Pode-se dizer que nossas relações naturais são relações de poder, enquanto que nossos laços civis são laços de dever e obrigação, laços jurídicos, que constituem o Estado e são sustentados por ele”. (XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Direito e poder: Hobbes e a dissolução do Estado. DoisPontos: Curitba-São Carlos. Vol. 6, n 3, Edição Especial págs. 181-193, abril, 2009). Ressaltando que o poder logicamente não desaparece no estado civil, pelo contrário, ele é fundamental para o exercício da soberania, contudo, na condição de Estado Civil, o poder é alicerçado e/ou ancorado na autoridade legítima do soberano em decorrência do contrato social estabelecido entre os homens.
o direito de todos a tudo, também o homem é dominado pelas paixões. Xxxxxx, no Leviathan, explicita ou resume em três as causas principais de conflito entre os homens: a competição que os homens promovem entre si pelo ganho, ou pelos recursos; a desconfiança absoluta em relação ao outro como real obstáculo à conservação da vida; e a vanglória que faz com que o homem entre em disputa por reputação. Assim Hobbes conclui, “(...) os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”.60
Uma vez que o homem no estado de natureza pode dispôr de tudo de forma igualitária, inclusive na liberdade e direito de usufruir de tudo, um indivíduo se sentirá ameaçado em seu usufruto diante de outro indivíduo. Sendo assim, o conflito será instalado pela competição entre os indivíduos para mais e melhor conseguir usufruir dos bens disponíveis no estado de natureza. Aliada ou concomitante ao desejo de lucro que desencadeia a competição está a busca por segurança, a qual é constantemente ameaçada pela desconfiança que os homens nutrem entre si. A desconfiança que permeia as relações entre os homens no estado de natureza tem fundamentalmente como base o medo da morte violenta. O homem vê o outro como um real obstáculo à sua vida, desta forma, toma como atitude necessária e fundamental a antecipação. Isto é, uma vez que é certa a tentativa do outro em atentar contra minha vida, devo me antecipar e atacar primeiro. Em outros termos, para garantir a minha vida contra o ataque certo do outro, prudentemente atacarei antecipadamente. Como aponta Hobbes,
Por causa desta desconfiança de uns em relação aos outros nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. (...) E isto não é mais do que a sua própria conservação exige, e geralmente se aceita.61
Desta forma, é a prudência, portanto, a antecipação no ataque que garante a segurança do indivíduo.
60 XXXXXX, X. Lev., 2003, XIII, p. 108. “(...) men have no pleasure, but on the contrary a great deal of grief, in keeping company where there is no power able to over-awe them all”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIII, p. 75 ).
61 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIII, p. 107-8. “And from this diffidence of one another, there is no way for any man to secure himself so reasonable as anticipation. (...) And this is no more than his own conservation requireth, and is generally allowed”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIII, p. 75 ).
Já o terceiro motivo pelo qual os homens orientam suas vidas pelo conflito, guerra de todos contra todos, é a vanglória. Conforme discutimos anteriormente, esta paixão conduz o indivíduo a uma visão distorcida de si mesmo e faz com que este entre em conflito para com os outros pelo reconhecimento, ou melhor, pela reputação que julga ser merecedor. Percebe-se que das três principais causas de conflito no estado de natureza, apontadas por Xxxxxx, duas delas estão diretamente ligadas às paixões, isto é, o medo e/ou desconfiança em relação às intenções dos outros homens e a vanglória que leva o homem a desejar ou ver-se como alguém acima dos outros. Em outros termos, duas das principais causas de conflito dos homens decorrem de paixões que pré- julgam o outro ou paixões que supervalorizam a si mesmos. A visão individual e destorcida, por vezes, de si e do outro, corroboram fundamentalmente para o homem natural ver-se numa ilha deserta e cercado por tubarões prontos para devorá-lo. Por fim, conforme Xxxxxx esclarece, a competição, a desconfiança e a vanglória produzem e garantem a condição de guerra do estado de natureza. Sendo que,
A primeira [ comepetição] leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda [desconfiança], a segurança, e a terceira [vanglória], a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defenderem-nos; e os terceiros, por xxxxxxxxx, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome.62
Desta forma, o estado de natureza hobbesiano é um estado de guerra de todos contra todos. A vida humana resume-se a uma vida embrutecida e curta. O homem no estado de natureza é um animal acuado. Ademais, cada um vive ou sobrevive de acordo com seus
62 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIII, p. 108. “The first maketh men invade for gain; the second, for safety; and the third, for reputation. The first use violence to make themselves masters of other men´s persons, wives, children, and cattle; the second, to defend them; the third, for trifles, as a word, a smile, a different opinion, and any other sign of undervalue, either direct in their persons, or by reflection in their kindred, their friends, their nation, their profession, or their name”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIII, p. 76 ).
desejos e poderes. Não existe nada que coloque limite aos seus projetos de vida, a não ser, é claro, um outro homem que tem os mesmos anseios e direitos. Na natureza, o homem encontra os meios para suprir suas necessidades de sobrevivência, pois da natureza tudo ele tem o direito de usufruir. Tudo lhe pertence.
No estado de natureza, o homem é um animal que se distancia, ou melhor, se diferencia dos outros animais. Hobbes identifica e diferencia o homem dos outros animais a partir de algumas características especiais deste homem, sejam estas: a razão, as paixões, a linguagem, a religião e a curiosidade. Para Xxxxxx, o homem poderia viver exatamente como os outros animais, ou seja, apenas usando da natureza para saciar ou suprir as necessidades biológicas ou fisiológicas. Contudo, o homem tem pretensões e necessidades maiores que os demais animais: diferentemente dos outros animais, o homem cultiva paixões sui generis; para além dos outros animais o homem é dotado de razão; diferentemente dos outros animais o homem pode contar, comunicar e planejar, pois tem uma linguagem; ademais, para além dos animais, o homem tem uma sede insaciável por conhecer, por saber a causa, a origem, ou seja, é dotado de uma curiosidade infinita, assim como infinita é sua sede por poder e; por último, o homem também é o único animal, segundo Xxxxxx, que tem religião. Todas estas características conduzem o homem para um caminho diferente dos outros animais. Inclusive tais características o conduzem para a guerra de todos contra todos. Contudo, este estado de guerra parece um contrassenso, afinal, o homem no estado de natureza tudo pode, tudo tem, tudo é. Logo, o que lhe falta? Por quais motivos um homem entraria em conflito com o outro? O problema está justamente no „tudo‟. Uma vez que todos podem tudo e todos têm tudo, basta que dois queiram a mesma coisa, a qual eles podem e têm o direito de quererem e o conflito está instalado. O problema está em que todos sabem o que é
„meu‟, mas desconhecem e nem se preocupam com o que poderia ser o
„seu‟ do „outro‟. Xxxxxx não está falando somente do „meu‟ e „seu‟ no sentido de bens materiais. O sentido de „meu‟ e „seu‟, ou de “propriedade”, é bem mais amplo do que isso. Quando Xxxxxx fala em
„meu‟ e „seu‟ ele está pensando inclusive nos valores, desejos ou mesmo naquilo que constitui o eu e o outro. No estado de natureza, o outro possui apenas um valor negativo, ou seja, é alguém que pode cercear meu direito de ter e ser tudo. Assim, fica fácil entender por que o outro
se torna um inimigo. Não vejo nele nenhum valor ou semelhança comigo, a não ser pelo fato de ele atrapalhar e até poder acabar com minha vida e com ela todos meus projetos de bem-estar e futuro. Sendo assim, o mínimo que devo e posso fazer é oferecer a guerra a este intruso, usurpador. Por conseguinte, a guerra de todos contra todos no estado de natureza é facilmente declarada e tida como regra, pois, só assim eu posso garantir a minha vida e meus direitos. Nada e nem ninguém mais pode fazer isso por mim, só posso fazer uso de meu direito de natureza, da minha força, do meu poder. Logo, a matéria e também artífice do Estado, o homem, como afirma Xxxxxx, é este conflito de paixões e razão, é este indivíduo embrutecido, miserável e com vida curta, contudo, um homem com direito e lei natural,63 livre e igual e ainda insatisfeito, portanto ávido por mudança e impelido pela esperança.
Para que a descrição das relações que o homem em estado de natureza estabelece não fique, talvez, uma descrição distante, podemos fazer um exercício de aproximação desde que provoquemos nossa imaginação. Pois assim como Xxxxxx propunha que para entender o homem é bom olhar para si mesmo, nesta perspectiva, para entender o estado de natureza, podemos olhar nosso Estado Civil e para além dele. Imaginemos: todas as regras, leis, convenções e instituições sociais não mais existem. Adentremos mais nesta imaginação, não mais existem leis de trânsito, não mais leis jurídicas, leis morais e/ou religiosas, nada de direito à propriedade, bens; não há mais leis e muito menos aqueles que se encarregam de fazê-las cumprir, ou seja, não há mais o que obedecer e nem a quem obedecer. Agora, é cada um contando, única e exclusivamente, consigo mesmo. Vamos mais um pouco, imagine você saindo de “sua” casa para buscar alimentos para a sua família que aguarda em “sua” casa. Contudo, não esqueça que como você centenas ou possivelmente milhares de outros homens estão na mesma condição que você e, portanto, estarão também saindo de “suas” casas com a mesma determinação. Não esqueça ainda que todo e qualquer um destes homens, assim como você, contarão apenas com suas próprias forças para conseguir o que procuram, no caso alimentos. Não esqueça que todos estão dispostos a ir até as últimas consequências para garantir a alimentação da sua família, portanto, a presença ou vida do outro é real
63 Estaremos apronfundando estes conceitos logo a seguir.
obstáculo. Lembre-se que nada, a não ser você mesmo, pode conseguir e garantir que o alimento seja seu. Logo, tenha certeza que se encontrar um outro homem não será um „bom dia, como vai?‟ que receberá. O homem no estado de natureza é este homem que imaginamos, isto é, um homem que vive ou sobrevive acuado, amedrontado, solitário e fadado ao embrutecimento. Um homem sem garantias de que ao voltar para casa, se conseguir voltar, encontrará a “sua” casa e a sua família.
Hobbes assim desenha a obscura vida no estado de natureza,
Numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o seu fruto é incerto; consequentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta.64
O terrível quadro que Xxxxxx pinta do estado de natureza e por consquência as conflituosas, mortíferas relações que estes homens estabelecem entre si, não deixa dúvida sobre a real e necessária urgência em sair deste estado de medo constante e morte iminente. Como conclui Xxxxxxx, “(...) embora a paz seja nossa necessidade básica, a guerra é nosso destino natural”.65 E ainda,
O paradoxo irremediável sobre o qual se funda a teoria política de Xxxxxx é que o maior inimigo da natureza humana é a própria natureza humana.66
64 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. XIII, p. 109. “In such condition there is no place for industry, because the fruit thereof is uncertain, and consequently, no culture of the earth, no navigation, nor use of the commodities that may be imported by sea, no commodious building, no instruments of moving and removing such things as require much force, no knowledge of the face of the earth, no account of time, no arts, no letters, no society, and which is worst of all, continual fear and danger of violent death, and the life of man, solitary, poor, nasty, brutish, and short”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIII, p. 76 ).
65 “(...) although peace is our basic need, war is our natural fate”. (XXXXXXX, Xxxxxxx. Xxxxxx and Republican Liberty. Cambridge University Press: New York, 2008, p. 41).
66 “The desperate paradox on which Xxxxxx´s political theory is grounded is that the greatest enemy of human nature is human nature itself”. (XXXXXXX, Q., 2008, p. 42).
Este é o quadro catastrófico do estado de natureza sustentado por Xxxxxx.
O estado de natureza “pintado” por Xxxxxx pode ser ficção, hipótese ou realidade histórica. Pode ser, ainda, um astuto argumento lógico e retórico para “cientificamente” confrontar o homem com a dura, miserável e curta vida que teria factualmente, se vivendo sem o Estado. Diríamos, ainda, que o estado de natureza hobbesiano poderia ser o “laboratório de análise” para esmiuçar a natureza do homem. Isto é, Xxxxxx faz uso deste “espaço” denominado „estado de natureza‟ para lançar um olhar “científico” sobre a mais pura e íntima constituição do homem, aquele que é a matéria e artífice do Estado, conforme afirma. Nesta condição, neste espaço real, imaginário, lógico ou hipótetico denominado „estado de natureza‟ Hobbes pretende consolidar as bases de sua teoria política a partir de um quadro pintado, do homem natural, com destino certo e necessário: o Estado.
O estado de natureza descrito por Xxxxxx como o produto de uma dissolução hipotética do Estado, como uma annihilatio civitatis que consistiria em abstrair o conjunto das relações jurídicas que lhe são próprias e colocaria o leitor na condição natural. Seu estatuto lógico é a de um postulado científico sobre a base da qual pode ser construída a ordem política e jurídica, um ens rationis ou um artefato conceitual destinado a representar aos olhos do leitor os efeitos da ausência do Estado e justificar a autoridade deste último.67
Imaginação, ficção, hipótese ou realidade o estado de natureza, como sustentamos, é a fase teórica argumentativa central de Hobbes para legitimar e embasar o Estado absoluto. A nosso ver, o ponto inicial da teoria hobbesiana, isto é, o estado de natureza, configura mais precisamente a necessidade de Hobbes de mostrar como o homem teria uma vida miserável, bruta e curta sem o Estado Civil.
67 “L´état de nature est décrit par Xxxxxx comme le produit d´une dissolution hypothétique de l´État, comme une annihilatio civitatis qui consisterait à faire abstraction de l´ensemble des relations juridiques qui lui sont propres et placerait le lecteur dans la conditions naturelle. Son statut logique est celui d´un postulat scientifique sur la base duquel peut être construit l´ordre politique et juridique, un ens rationis ou un artefact conceptuel destiné à représenter aux yeux du lecteur les effets de l´absance d´État et à justifier l´autorité de ce dernier”. (XXXXX, Xxxxx. Xxxxxx et le sujet de droit. CRN Éditons: Paris, 2010. P. 165).
b) Direito de Natureza
A análise do homem no estado de natureza seria desonesta sem um necessário aprofundamento sobre dois conceitos distintos e por vezes controversos, mas também por vezes complementares,68 isto é, o direito de natureza e a lei de natureza. Para melhor sistematizarmos estes conceitos vamos tratá-los, agora, de forma separada, começando pelo direito de natureza.
O direito de natureza está diretamente ligado à conservação e proteção da vida. Conforme já apontamos nos parágrafos anteriores, a vida do homem no estado de natureza é constantemente ameaçada e fragilmente protegida. A dimensão da ameaça quem julga é o indivíduo, tal como a força da proteção quem pode oferecer é o próprio indivíduo. Desta forma, para julgar o perigo e defender-se quando necessário, o homem conta com o direito de natureza.
Analisemos primeiramente o direito de natureza a partir da obra Elements. Nesta obra Hobbes irá pontuar pela primeira vez cada ação própria do direito de natureza:
[1] É entretanto um direito de natureza que todo homem possa preservar a sua própria vida e membros, com toda potência que possui (...);
[2] Utilizar todos os seus meios e qualquer ação necessários para a preservação do seu corpo (...);
[3] Também, todo homem por direito de natureza é juiz de si mesmo quanto à necessidade dos meios, e à grandeza do perigo (...);
[4] Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e usufruir todas as coisas que quiser e puder.69
68 Esta questão será tomada ou retomada no próximo capítulo.
69 XXXXXX, T., EL, 2002, Parte I, cap. XIV, p. 95. “[1] It is therefore a right of nature: that every man may preserve his own life and limbs, with all the power he hath (...); [2] To use all means and do whatsoever action is necessary for the preservation of his body (...); [3] Also every man by right of nature is judge himself of the necessity of the means, and of the greatness of the danger. For if it be against reason, that I be judge of mine own danger myself (...); [4] Every man by nature hath right to all things, that is to say, to do whatsoever he listeth to whom he listeth, to possess, use, and enjoy all things he will and can”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XIV).
Logo, a partir destas afirmações podemos perceber a amplitude do direito natural, o qual, determina que o homem tem direito de preservar sua vida conforme sua força é capaz, utilizando de todo e qualquer meio que se faça necessário a partir de seu único e exclusivo juizo. Assim como, é direito de natureza usufruir absolutamente tudo o que este homem desejar e conseguir obter por si próprio. Uma visualização ainda mais explícita do que compreende o direito de natureza é formulada por Xxxxxx no Leviathan,
O DIREITO DE NATUREZA, a que os autores geralmente chamam Jus Naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim. (...) Todo homem tem direito a todas as coisas, até mesmo aos corpos uns dos outros.70
Em outros termos, o direito de natureza é o direito ou liberdade que o homem tem irrestritamente de proteger, como julgar necessário, sua própria vida. Assim como tem o direito a tudo aquilo que desejar. Por conseguinte, o homem no estado de natureza não encontra limites para viver conforme sua vontade e força lhes permitirem. Desta forma, o direito de natureza é definido como uma liberdade ou mesmo um privilégio de desfrutar de quaisquer coisas desejadas pelo indivíduo de direito. Sendo que, o direito de natureza hobbesiano, portanto, não implica uma correlação com o dever, isto é, o direito de um indivíduo não pressupõe quaisquer deveres dos outros indivíduos em respeitar tal direito.71
70 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 112-3. “The RIGHT OF NATURE, which writers commonly call jus naturale, is the liberty each man hath to use his own power, as he will himself, for the preservation of his own nature, that is to say, of his own life, and consequently of doing anything which, in his own judgment and reason, he shall conceive to be the aptest means thereunto. (...) Every man has a right to everything, even to one another´s body”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 79-80).
71 Xxxxxxx em sua obra Xxxxxx and the Social Contract (1986), na primeira parte “Of Man”: the foundations of Xxxxxx´s political arguement, faz uma reconstrução interessante dos possíveis conceitos de direito estabelecido por Xxxxxx Xxxxxxx (Fundamental Legal Conceptions – 1919) que contribui significativamente para esclarecer o conceito hobbesiano de direito. Xxxxxxx conclui, “Xxxxxx´s use of the word „right‟ is roughly similar to the Hohfeldian notion of a right-privilege or right-liberty”. (XXXXXXX, J., 1986, p. 52). “o uso da
Contudo, este direito a tudo e de acordo com o julgamento de cada um desencadeia um paradoxo para o direito de cada um. Expliquemos: o mesmo direito de natureza, isto é, a mesma liberdade de proteger a própria vida conforme bem jugar, assim como, a liberdade de usufruir de tudo conforme a própria vontade é absolutamente igual a todos os homens. Como esclarece Hampton, no direito de natureza
As pessoas não têm qualquer obrigação de respeitar ou ajudar um ao outro a realizar o que cada um tem o "direito-liberdade" para fazer, e isso pode colocá-los em uma posição de concorrência legítima.72
Sendo assim, o direito de um é necessariamente obstáculo ao direito do outro, desde que o objeto de desejo seja o mesmo, ou que a vida do outro seja obstáculo para a realização ou proteção de um. Como pondera Pinzani,
O “direito” então não é definido como um título relativo à própria vida, à propriedade etc., mas como um poder de ação potencialmente ilimitado, mas que de fato é limitado pelo igual poder dos outros.73
Neste sentido, o direito de natureza desconsidera a existência do outro. Tudo e todos são objetos do meu direito, ao outro resta apenas a possibilidade de constituir-se em obstáculo aos meus direitos. Desta forma, cada homem constitui seu juizo, o que, como já mencionamos, desencadeia um infindável conflito entre os homens pela concretização do direito de natureza que legitimamente cada um dispõe. Mas sobre este possível paradoxo, vamos tratar mais a frente, no capítulo II e em especial no capítulo III.
palavra „direito‟ é, grosso modo, similar a noção hohfeldiana de um direito-privilégio ou direito-liberdade”. Vale ainda ressaltar que neste sentido o conceito hobbesiano de direito vai contra a tradição jusnaturalista, assim como, seu conceito de lei de natureza.
72 “[The] people do not have any duty to respect or help one another to carry out what each has the “right-liberty” to do, and this can place them in a position of legitimate competition”. (XXXXXXX, J., 1986, p. 52).
73 XXXXXXX, X., 2008, p. 65.
c) Leis de natureza
O homem no estado de natureza, como já mostramos, é um homem dominado pelas paixões. Contudo, a razão estabelece, dita algumas leis que procuram amenizar, direcionar e mesmo calar algumas paixões que podem dificultar ou até impedir a paz. As leis de natureza têm como objetivo último procurar a paz, para tal estabelece a razão uma série de ditames e/ou leis.
A razão não é menos da natureza humana do que a paixão, e ela é a mesma em todos os homens, porque todos os homens concordam na vontade de serem dirigidos e governados no caminho para aquilo que eles desejam alcançar, a saber, o seu próprio bem, o qual é obra da razão. Não pode haver, portanto, outra lei de natureza além da razão, nem outros preceitos da lei natural (natural Law) do que aqueles que declaram para nós os caminhos para a paz onde esta poder ser obtida, e os caminhos para a defesa onde não se puder obtê- la.74
Desta forma o homem outorga a si mesmo determinadas leis, esforçando-se para segui-las e assim evitar a guerra de todos contra todos. O conteúdo destas leis, quase inteiramente, visa bem direcionar algumas paixões humanas. Logo, a vaidade, a vanglória, a cobiça, a ingratidão, e tantas outras paixões são conteúdo das leis de natureza. Não obstante, as leis de natureza são auto-ordenações, auto-outorgações
74 XXXXXX, T., EL, 2002, Parte I, cap. XV, p. 100. “Reason is no less of the nature of man than passion, and is the same in all men, because all men agree in the will to be directed and governed in the way to that which they desire to attain, namely their own good, which is the word of reason. There can therefore be no other law of nature than reason, nor no other precepts of NATURAL LAW, than those which declare unto us the ways of peace, where the same may be obtained, and of defence where it may not”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XV). Apenas para percebermos o movimento de aprimoramente e esclarecimento que Xxxxxx tem a partir da obra Elements até a obra Leviathan, vejamos, “Uma LEI DE NATUREZA (Lex Naturalis) é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservação, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para a preservar”. (XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 112). “A LAW OF NATURE (lex naturalis) is a precept or general rule, found out by reason, by which a man is forbidden to do that which is destructive of his life or taketh away the means of preserving the same, and to omit that by which he thinketh it may be best preserved”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 79).
que o homem se autoimpõe na esperança de viver e conviver de forma pacífica. Portanto, as leis de natureza têm tão somente sanções internas, elas são de cunho obrigatório apenas na medida e julgamento de cada consciência.75 Hobbes dirá que estes ditames da razão são também leis morais e divinas, ou seja, todas as formas de orientação e obrigação que dependem exclusivamente do esforço e julgamento de cada homem em fazer cumprir.
(...) são chamadas leis de natureza, por serem ditadas da razão natural, e também leis morais, porque dizem respeito às maneiras e à convivência dos homens uns com os outros. Da mesma forma, elas são também leis divinas, em consideração ao autor daquelas, Deus Todo- Poderoso; e devem portanto concordar ou, pelo menos, não repugnar a palavra de Deus revelada na Santa Escritura.76
Xxxxxx elabora e reelabora inúmeras leis de natureza dentro das obras Elements, De Cive e Leviathan, não obstante, o conteúdo destas leis não muda substancialmente. O que podemos observar de mudança de uma obra para outra é a forma e a crescente clareza com que Xxxxxx apresenta a formulação das leis desde a obra Elements até a obra Leviathan. Se tomarmos a obra Elements veremos que nesta Xxxxxx não se ocupou muito em formalizar ou sistematizar quais seriam exatamente as leis de natureza, nem tampouco estabeleceu uma ordem como fará nas obras seguintes. Já na obra De Cive percebemos que a apresentação das leis de natureza toma uma maior importância dentro da obra, assim as leis serão apresentadas por Xxxxxx de forma clara e sistematizadas.
75 “(...) as leis de natureza dizem respeito à consciência, elas são violadas não apenas por aqueles que realizam uma ação contrária a elas, mas também por aqueles cujas ações lhes são conformes a elas quanto que o seu pensamento lhes é contrário. Pois embora ocorra de a ação ser correta (right), em seu juízo, porém, ele menospreza a lei”. (XXXXXX, T., EL, 2002, Parte I, cap. XVII, p. 118-9). “(...) the laws of nature concern the conscience, not he only breaketh them that doth any action contrary, but also he whose action is conformable to them, in case he think it contrary. For though the action chance to be right, yet in his judgment he despiseth the law”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XVII).
76 XXXXXX, X. EL, 2002, Parte I, cap. XVIII, p. 121. “(...) they are called the laws of nature, for that they are the dictates of natural reason; and also moral laws, because thy concern men´s manners and conversation one towards another; so are they also divine laws in respect of the author thereof, God Almighty; and ought therefore to agree, or at least, not to be repugnant to the word of God revealed in Holy Scripture”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XVIII).
Entretanto, a ordem que se tem nesta obra não condiz exatamente com aquela que Xxxxxx irá apresentar posteriormente no Leviathan. Contudo, como afirmamos anteriormente, a formulação e sistematização na apresentação das leis de natureza podem variar de uma obra para a outra, mas o conteúdo destas leis mantém-se o mesmo, embora com algum ou outro acréscimo da mais antiga para a mais recente das obras. O que sugere aquilo que já havíamos afirmado anteriormente, isto é, que o Leviathan é a obra madura da filosofia política de Xxxxxx.
As leis de natureza visam acima de tudo estabelecer e manter a paz entre os homens. São, por conseguinte, ditames racionais que buscam orientar o homem a conviver e viver em paz como forma de garantir a própria vida e bem-estar, uma vez que o homem como indivíduo passional-calculante busca acima de tudo garantir e proteger a sua vida exclusivamente. Assim, as leis de natureza configuram-se também em mecanismos para este fim, haja vista Hobbes textualmente concluir que as leis de natureza resumem-se em, “Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti”.77 Em outros termos, toda lei de natureza tem como referência e finalidade o bem-estar próprio, o que é plenamente justificável pela natureza humana traçada por Xxxxxx.
Não tomaremos aqui cada uma das leis de natureza elencadas por Xxxxxx, haja vista não julgarmos necessário para nossa discussão nos determos em cada uma delas. É suficiente abordarmos aqui o teor do conjunto destas leis e, também, tecermos considerações acerca das primeiras leis de natureza. A importância destas primeiras leis de natureza descritas por Xxxxxx se dá na medida em que elas são determinantes para sua teoria do contrato e em especial para o contrato social, como demonstraremos adiante.
A primeira lei de natureza propõe o seguinte ditame racional, “(...) a lei de natureza primeira, e fundamental, é que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada; e se não for possível tê-la, que nos equipemos com os recursos da guerra”.78 Como já afirmamos anteriormente, a busca pela paz é uma procura essencial para a vida e o
77 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XV, p. 135. « Do not that to another, which thou wouldst not have done to thyself ». (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XV, p. 99).
78 XXXXXX, X., DC, 2002, cap. II, p. 38. « (...) the first and fundamental law of nature is, that peace is to be sought after, where it may be found; and where not, there to provide ourselves for helps of war”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. II).
bem-estar do homem, logo, a razão o orienta para tal na medida em que esta for possível.
Outra lei de natureza que é crucial abordarmos aqui diz respeito à lei que tem por objetivo estabelecer uma relação de confiança e acordo entre os homens. Na obra De Cive, Xxxxxx chamou esta lei de „lei especial‟, a qual deriva da primeira e fundamental lei de procurar a paz. Logo, esta lei especial estabelece uma limitação ao direito dos homens a todas as coisas através de um acordo, nos termos hobbesianos,
(...) que os homens não devem conservar o direito que têm, todos, a todas as coisas, e que alguns desses direitos devem ser transferidos, ou renunciados.79
Esta lei se segue da primeira lei de natureza. Expliquemos: se os homens mantêm para si todos os direitos se segue a eterna guerra de todos contra todos, isto é, o oposto ao desejado pela lei de natureza. Esta mesma lei é apresentada por Xxxxxx como constituindo a segunda lei de natureza na obra Leviathan. Devido à formulação mais clara e contundente desta lei no Leviathan, julgamos apropriado a mensurarmos aqui nos termos hobbesianos,
Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na media em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.80
Podemos avaliar claramente que o conteúdo da lei não se modifica, mas a compreensão desta é claramente favorecida na formulação da obra Leviathan. Diante desta segunda lei de natureza, temos claramente a formulação de uma lei que estabelece um contrato de resignação ao direito do homem a todas as coisas. Após uma lei que dita a disposição do homem em estabelecer um contrato, tanto a obra De Cive como a obra Leviathan apresentarão a segunda ou terceira,
79 XXXXXX, T., DC, 2002, cap. II, p. 39. “(...) that the right of all men to all things ought not to be retained; but that some certain rights ought to be transferred or relinquished”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. II).
80 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 113. « That a man be willing, when others are so too, as far-forth as for peace and defence of himself he shall think it necessary, to lay down this right to all things, and be contented with so much liberty against other men, as he would allow other men against himself ». (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 80).
respectivamente, lei de natureza como aquela lei que “(...) manda cumprir os contratos”.81 Nos termos expressos na obra Leviathan, “(...) que os homens cumpram os pactos que celebrarem”.82 Portanto, a ideia de paz e contrato aparecem nas primeiras e fundamentais leis de natureza expressas por Xxxxxx. Seguramente, a importância e forma com que Xxxxxx apresentou estas leis de natureza que culminam com a ideia de paz atrelada a ideia de contrato entre os homens sugerem ou dão pistas das deduções e conclusões que Xxxxxx apresentará posteriormente em sua teoria política.
Sendo assim, as leis de natureza pretendem direcionar o homem racionalmente de forma a minimizar as paixões violentas que favorecem a guerra de todos contra todos, ao mesmo tempo em que ambicionam estabelecer a paz entre os homens. Contudo, como já mencionamos anteriormente, as leis de natureza são ditames internos, portanto, dependentes do juizo de cada homem. Desta forma, não há qualquer sanção ou mesmo obrigação externa para garantir que todos os homens adotarão e seguirão absolutamente as leis de natureza. Conforme pontua Hobbes,
A estes ditames da razão os homens costumam dar o nome de leis, mas impropriamente; pois eles são apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a conservação e defesa de cada um, enquanto a lei, em sentido próprio, é a palavra daquele que tem direito de mando sobre outros.83
Por conseguinte, as leis de natureza tornam-se frágeis e não confiáveis meios de pôr rédeas ou direcionar as imperiosas paixões
81 XXXXXX, X., DC, 2002, cap. III, p. 53. “(...) is to perform contracts”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. III).
82 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XV, p. 124. “(...) that men perform their covenants made”.(XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XV, p. 89).
83 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XV, p. 137. “These dictates of reason men use to call by the name of laws, but improperly; for they are but conclusions or theorems concerning what conduceth to the conservation and defence of themselves, whereas law, properly, is the word of him that by right hath command over others”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XV, p. 101). Desta forma, a lei própriamente dita, conforme sustenta Xxxxxx, só existe depois do contrato social, isto é, somente a partir do estabelecimeto destas pelo soberano. “Só depois de instituída a república elas [as leis] efetivamente se toranm leis, nunca ants, pois passam então a ser ordens da república, portanto também leis civis, na media em que é o poder soberano que obriga os homens a obedecer-lhes”. (XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XV, p. 227-8). “When a commonwealth is once settled, then are they actually laws, and not before, as being then the commands of the commonwealth, and therefore also civil laws; for it is the sovereign power that obliges men to obey them”. XXXXXX, X., Lev., 1994, cap. XV, p. 174).
humanas. Voltaremos a pensar as leis de natureza nos capítulos que se seguem, uma vez que, assim como os demais termos e/ou questões tratados neste capítulo são fundamentais para a compreensão da tese que procuramos desenvolver sobre a teoria política hobbesiana, é certo e justo que voltemos a discuti-los ao longo de nosso percurso teórico.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo nos ocupamos em mostrar o percurso teórico que Xxxxxx estabeleceu em suas obras políticas Elements, Xx Xxxx, Leviathan e Dialogue para construir sua „ciência política‟. Ressaltamos que o pensamento hobbesiano é marcado em parte pela situação de conflitos políticos e pelos rumos da ciência da época em que Xxxxxx viveu, assim como, seguramente, é resultado da perspicácia e audácia intelectual de um teórico que soube transcender seu tempo.
Não obstante, nos debruçamos mais pontualmente neste capítulo em evidenciar a descrição hobbesiana do homem natural e suas relações “pré-políticas”. Isto é, nossa principal intenção foi mostrar como Xxxxxx definiu o homem no estado de natureza, um homem amedrontado, passional e vulnerável. Assim como, um homem absolutamente livre e igual em suas condições, apenas preocupado em efetivar esta liberdade e poder de tudo fazer em prol de si mesmo.
Mostramos que o direito de natureza, isto é, a liberdade ilimitada de cada homem fazer absolutamente tudo que julgar necessário e bom para si mesmo e sua sobrevivência, assim como, ter tudo aquilo que desejar e pelo seu poder conseguir usufruir, resulta necessariamente em conflito com o outro. Pelo contrário, as leis de natureza buscam estabelecer a paz entre os homens ao ditar certas leis, ou mais precisamente ditames racionais. Contudo, estas leis assumem um caráter inteiramente prudencial e não tem força obrigatória suficiente para assegurar a paz entre os homens.
CAPÍTULO II
DO CONTRATO AO ESTADO: homo homini deus
Toda reunião, por mais livre que seja, deriva quer da miséria recíproca, quer da vã glória, de modo que as partes reunidas se empenham em conseguir algum benefício, ou aquele mesmo eudokimein que alguns estimam e honram junto àqueles com quem conviveram. (Xxxxxx, T., De Cive)
Mantendo nossa proposta inicial, neste capítulo continuaremos discutindo a teoria política hobbesiana a partir de suas principais obras políticas, isto é, Elements (1640), Xx Xxxx (1642), Leviathan (1651) e Dialogue (1681). Contudo, daremos atenção especial ao Leviathan, pois como já mencionamos e voltamos a afirmar, consideramos esta obra o centro teórico da teoria política hobbesiana, uma vez que o Xxxxxxxxx apresenta o pensamento hobbesiano de forma mais explícita e madura do que nas obras anteriores ou posteriores.
O objetivo do capítulo é traçar e/ou situar os elementos teóricos hobbesianos que dão conta de sua teoria do contrato social. Entendendo que Xxxxxx constrói sua „ciência política‟ ancorado em uma ideia mecanicista de homem e, por conseguinte, de Estado, é imprescindível entendermos de forma rigorosa o elemento que sustenta toda a engrenagem que culmina com o Estado. Para sermos mais precisos, estaremos discutindo toda a teoria do contrato e, por conseguinte do contrato social desenvolvida por Xxxxxx. Assim como, conceitos que estão direta ou indiretamente ancorados na ideia de contrato social, como, lei de natureza, direito de natureza, transferência ou abandono de direitos, cláusulas contratuais, contratos válidos e inválidos ou nulos (e anuláveis). Isto é, conceitos centrais para entender a amplitude ou limite do contrato social hobbesiano, assunto central do próximo capítulo.
1. PRECISÕES DO CAPÍTULO XIV
Devido à considerável importância do capítulo XIV do Leviathan quanto aos conceitos centrais que Xxxxxx lá expõe e também das inferências e conclusões que vamos propor a partir dos conceitos estabelecidos nele, devemos tratá-lo com mais atenção. Sendo assim, vamos analisar detalhadamente o que Xxxxxx diz nos decisivos trinta e três parágrafos deste capítulo, segundo a versão inglesa da obra Leviathan. A concepção hobbesiana de lei natural está presente, especialmente, no capítulo XIV do Leviathan. Momento também em que Xxxxxx discute e relaciona a lei natural com o direito natural, assim como, estabelece as duas primeiras leis de natureza. Por conseguinte, o capítulo XIV do Leviathan intitulado, Of the First and Second Natural Laws and of Contracts, é o capítulo central da teoria do contrato hobbesiano. Os três primeiros parágrafos são construídos para definir um tripé conceitual que sustentará e será pressuposto de muitos devires. São estes: o direito natural, a liberdade e a lei natural. Não menos importantes são os demais parágrafos, pois o conjunto deles condensa uma teoria central e complexa acerca da visão hobbesiana de contrato, anunciando e explicitando muitas implicações e nuanças que a citada teoria comporta.
No referido capítulo, Xxxxxx começa por dizer, no primeiro parágrafo, o que é o direito de natureza, ou seja, como o termo sugere, o
„direito de natureza‟ é aquele direito concebido ou devido ao homem que vive em estado de natureza, conforme por nós apresentado no capítulo I. Como já vimos, o direito de natureza é a liberdade que cada homem tem de fazer uso de seu próprio poder, conforme sua vontade, para preservar sua vida e obter tudo o que deseja. Assim, ele pode, segundo seu próprio julgamento e razão, conceber qual é o melhor meio para atingir este fim. Sendo que, todos os meios são legítimos e devidos.
No segundo parágrafo, temos a definição de „liberdade‟ como sendo a „ausência de impedimentos externos‟. Impedimentos que às vezes podem tirar parte da liberdade que o homem tem de usar seu poder, segundo seu julgamento. Esta liberdade é concebida por Xxxxxx de forma absolutamente física, corpórea, isto é, a liberdade diz respeito ao movimento físico, corpóreo que o homem pode ou não (na ausência de liberdade) fazer conforme sua vontade. Assim, o que limita ou mesmo elimina esta liberdade são obstáculos também físicos, externos.
Nesta perspectiva, seguramente o maior ou mais presente obstáculo à liberdade de um homem é propriamente outro homem. Conclusão necessária uma vez que está de acordo com a natureza humana e as relações estabelecidas pelos homens no estado de natureza.84
Finalmente, no terceiro parágrafo Xxxxxx expõe sua concepção de lei de natureza, a qual ele vê como um preceito ou regra geral, fundada na razão, segundo a qual um homem é impedido de fazer o que destrói a sua vida ou de não buscar ou omitir aquilo que pode melhor preservar a mesma. Por conseguinte, o núcleo é a preservação da vida a partir da busca pela paz. A lei de natureza serve para objetivar o cuidado, o zelo com a vida do homem, conforme mais profundamente discutimos no capítulo I. Xxxxxx argumenta que muitos confundem lex com jus. Mas são coisas distintas, porque o „direito‟ (jus) consiste na liberdade de fazer ou deixar de fazer, enquanto que a „lei‟(lex) determina e obriga a fazer ou não fazer. Dessa forma, o direito e a lei diferem como uma liberdade e uma obrigação.85 Não obstante, ambos estão voltados para o bem-estar do homem, ou em termos mais precisos, ambos estão ancorados na preservação da vida humana.
Tendo Hobbes estabelecido o que é o Direito de Natureza, a Liberdade, a Lei de Natureza e, ainda, insistido sobre a diferença entre jus e lex, agora o autor se preocupará em dizer qual ou quais são os direitos e, especialmente, quais são as leis de natureza. Xxxxxx retoma uma afirmação dos capítulos precedentes, isto é, de que o homem vive em condição de estado de guerra de todos contra todos no estado de natureza. A partir disso, se segue que cada homem tem o direito de fazer tudo, até mesmo contra o corpo do outro. Sendo assim, na medida em que todo homem pode tudo, a vida não é segura para nenhum homem, pois qualquer um pode tirá-la. Em consequência disso, a razão estabelece uma lei, a primeira lei, um preceito geral, qual seja,
Que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e
84 Conforme explicitadas no capítulo I.
85 Em outros termos: Xxxxxx estabelece não só uma atitude negativa, isto é, a liberdade de preservar a vida como um direito natural, com também a atitude positiva de lutar contra qualquer coisa que possa obstruir sua vida. Assim, Xxxxxx estabelece claramente a distinção entre jus e lex (direito e lei), sendo o primeiro uma liberdade, a liberdade do homem em usar seu poder para sua preservação, enquanto que a segunda, a lei, consiste em uma obrigação, uma determinação que imperativamente o obriga a preservar-se.
caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.86
Assim, a primeira lei de natureza corresponde ao cálculo realizado pela razão a partir das condições hostis que o homem enfrenta, especialmente decorrentes do direito de natureza. Isto é, o homem tem direito a fazer tudo para proteger sua vida, pois nada ou ninguém mais além dele pode protegê-la, desta forma inevitavelmente a proteção de sua vida gera confronto com o outro. Desta forma, a razão conclui que o direito de natureza não garante absolutamente a integridade física do homem, pelo contrário, a vida é profundamente vulnerável, pois qualquer um pode tirar minha vida. Eu vou protegê-la, mas qualquer um pode tirá-la. Este é o medo constante que acompanha o homem. Logo, a primeira lei de natureza é o cálculo racional a partir da clara situação de vulnerabilidade, instabilidade e “luta” constante em defesa da própria vida que se segue do direito de natureza. Por conseguinte, a razão elabora uma lei que busca um meio, uma alternativa para tornar a vida possível, protegendo-a e garantindo-a.87 Assim, a razão me diz que devo procurar a paz, isto é, devo estabelecer esta lei de natureza de procurar a paz, sempre que possível, e fazer a guerra somente quando necessário ou imprescindível. Isto é, a guerra deve ser o último recurso, a exceção, e não a regra primeira de autopreservação. O que mais racionalmente irá assegurar a vida do homem será procurar a paz, contudo, se não possível, aí sim, deve e pode fazer a guerra. Logo, a primeira lei de natureza é uma estratégia da razão, ou melhor, a razão faz o cálculo e chega ao resultado da lei de natureza. Ainda, este primeiro ditame da razão citado acima, encontramo-lo na primeira parte da primeira lei de natureza, isto é, procurar a paz, como acabamos de mencionar, e na segunda parte, encontramos o direito de natureza, isto é, de tudo podermos fazer para preservar nossa vida. Por conseguinte, a primeira lei de natureza, também chamada por Xxxxxx de lei fundamental, compreende a mais ampla visão do que a lei de natureza, em última instância, almeja, ou seja, procurar a paz. Logo, as demais leis de
86 XXXXXX, X. Lev., 2003, cap. XIV, p. 113. “that every man ought to endeavour peace, as far as he has hope of obtaining it, and when he cannot obtain it, that he may seek and use all helps and advantages of war.” (HOBBES, T. Lev., 1994, cap. XIV, p. 78).
87 Embora já tenhamos exposto pontual e rigorosamente o que compreende tanto o direito de natureza, quanto as leis de natureza no capítulo I, julgamos necessário retomar a discussão aqui para mostrar, agora, mais especificamente, como o direito de natureza e as leis de natureza estão articuladas.
natureza estarão complementando ou ainda, servindo de apoio, para a efetivação desta procura pela paz. Assim como este primeiro e fundamental ditame da razão evidencia o direito de natureza de manter presente sempre e absolutamente a preocupação com a autopreservação da vida. A partir desta lei fundamental de natureza podemos sugerir que não se procura a paz por si própria, por ela mesma, mas somente na medida em que ela garante determinada finalidade do direito de natureza. Expliquemos, a paz é necessária somente porque ela garante a preservação da vida. O objetivo, a finalidade é a autopreservação, logo os meios, ou a estratégia racional, são as leis de natureza.
A segunda lei de natureza é extremamente importante porque Xxxxxx mostra aqui a formulação de um contrato, isto é, na segunda lei de natureza o homem consente, concorda, desde que o outro também o faça, ou na medida em que o outro também concorde, de abrir mão, renunciar, ao direito a todas as coisas em razão de uma liberdade compartilhada, isto é, que o outro disponha da mesma liberdade que nós. Dessa forma, a segunda lei de natureza expõe a formulação de um contrato pela paz. Os homens acordam entre si em renunciar ao direito a todas as coisas, para juntos obterem a paz. Nas palavras de Xxxxxx,
Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em resignar ao seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.88
Xxxxxx segue dizendo que ao continuar com o direito de fazer o que se quer, o homem continua no estado de guerra. Mas, o homem também não pode renunciar ao seu direito de tudo fazer, sem que o outro também o faça, pois isso seria se expor à violência gratuitamente. Xxxxxx resume esta lei segundo o que se vê no evangelho, “Faz aos outros o que queres que te façam a ti.”89
88 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p . 113. “that a man be willing, when others are so too, as far-forth as for peace and defence of himself he shall think it necessary, to lay down this right to all things, and be contend with so much liberty against other men, as he would allow other men against himself”. XXXXXX, X., Lev., 1994, cap. XIV, p. 80).
89 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 113. “whatsoever you require that others should do to you, that do ye to them”. (XXXXXX, X. Lev.,1994, cap. XIV, p. 80).
Portanto, nesta primeira, e fundamental lei natural, bem como neste direito natural expresso por Xxxxxx, temos mais precisamente a diferença que Xxxxxx quer apontar entre direito e lei. Isto é, o direito é um mecanismo humano do âmbito do animal selvagem, bárbaro e a- social que o homem é. Por outro lado, a lei configura-se no humano social e especialmente racional que o homem pode ser. Logo, a preservação e bem-estar do homem parece pautar-se sobre o equilíbrio destes dois fatores determinantes, a saber, o direito e a lei. Contudo, é a lei que mais positivamente poderá conciliar e promover a vida do homem de forma social. A segunda lei natural, decorrente da primeira, reza que o homem concorde em renunciar ao seu direito natural a todas as coisas, desde que os outros homens assim também o façam. Isto é, a segunda lei de natureza implica uma reciprocidade. Um homem só pode e deve renunciar ao seu direito a todas as coisas se e somente se o outro homem também renunciar. Logo, temos aí expresso a formulação de um contrato. O indivíduo de direito se submete ao sujeito social. Em outras palavras, „para me proteger eu aceito, desde que você aceite também, privar-me de um direito individual para promover uma vida social segura‟.
Considerando a ordem do conteúdo expresso no capítulo XIV, Xxxxxx se ocupa de explicar what it is to lay down a Right, isto é, o que é renunciar ou sacrificar um direito. Ou seja, divest, é privar-se, é despojar-se da liberdade de impedir o outro de beneficiar-se do mesmo direito. Isto é, ao nos privarmos do direito de fazer tudo o que nós quisermos, nós não impedimos que o outro possa desfrutar de seu direito, assim como nós.
Resignar90 a um direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de impedir outro de beneficiar-se do seu próprio direito à mesma coisa.91
90 A opção da Xxxxxxx Xxxxxx em traduzir „to lay down‟ por „resignar‟ não nos parece a mais adequada tradução a partir da significação jurídica que Xxxxx enfatiza em seus textos para o termo „to lay down‟. Inclusive para a precisão e diferenciação entre „renunciar‟ e transferir um direito, conforme Xxxxxx faz no capítulo XIV do Leviathan. Desta forma, concordamos que a Abril Cultural oferece uma tradução mais coerente para „to lay down‟, isto é, „renunciar‟.
91 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 113. “To lay down a man´s right to anything is to divest himself of the liberty of hindering another of the benefit of his own right to the same”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 81).
Em seguida, ainda na lógica do capítulo XIV, Xxxxxx falará em renunciar um direito e também transferir um direito. Xxxxxx dirá que o direito pode ser deixado de lado pela simples renúncia dele ou por transferir o direito a um outro. Sendo a simples renúncia quando não importa a quem se entrega este direito. Já a transferência é quando se espera um benefício para uma ou algumas pessoas. Logo, a renúncia não importa para quem vai o direito, ou melhor dito, aquele que renunciou ao direito não o entrega ou direciona a um alguém determinado. Assim, Xxxxxx diz que quando o homem abandona ou concede seu direito, ele está obrigado ou constrangido a não impedir aqueles cujo direito foi abandonado ou concedido do benefício deste direito. E que ele tem o dever, é seu dever, não anular o que foi fruto de sua própria vontade, pois isso seria injustiça e injúria. Na concepção hobbesiana, injúria ou injustiça é aquilo que nas Escolas é chamado absurdo. Assim é um absurdo contradizer aquilo que uma vez foi dito voluntariamente, isto é, desfazer o que já tinha sido feito.
Como se renuncia ou se transfere um direito? Hobbes salienta que a forma de renunciar ou transferir um direito é feita por uma declaração ou significação de um sinal ou sinais voluntários e suficientes. Estes sinais podem ser palavras, ações ou palavras e ações. Esses sinais constituem os bounds (a obrigação, o vínculo) pelo qual o homem fica obrigado, não pela força de sua própria natureza (pois nada é mais fácil do que quebrar a palavra de um homem), mas pelo medo das consequências de uma ruptura.
E estas [as palavras] são os VÍNCULOS mediante os quais os homens ficam atados e obrigados, vínculos que não recebem a sua força de sua própria natureza (pois nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um homem), mas do medo de alguma má consequência resultante da ruptura.92
Segundo Xxxxxx, quando o homem transfere ou renuncia um direito ele o faz esperando e considerando a reciprocidade de algo transferido para ele, ou que alguma coisa boa lhe aconteça. Isso porque a transferência ou renúncia de um direito constitui-se um ato voluntário,
92 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p.114. “And the same are the BONDS by which men are bound and obliged, bonds that have their strength, not from their own nature (for nothing is more easily broken than a man‟s word) but from fear of some evil consequence upon the rupture”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 81).
e todo ato voluntário tem implícito um benefício próprio. “[transferir ou renunciar] é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos”.93 Em seguida dirá que existem alguns direitos que o homem não transfere nem renuncia jamais. Esses direitos inalienáveis são:
Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para lhe tirar a vida, pois é impossível admitir que com isso vise algum benefíco próprio. [Xxxxxxx] O mesmo se pode dizer dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta resignação não pode resultar benefício - como há quando se resigna a permitir que outro seja ferido ou encarcerado -, mas também porque é impossível saber, quando alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte. [Terceiro] Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúnica e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto à sua vida e quanto aos meios de a preservar de maneira tal que não acabe por dela se cansar.94
Retomando, Xxxxxx afirma que por contrato algum o homem pode renunciar ou transferir o direito de resistir a quem atente contra sua vida, também àquele que tente ferí-lo, posto que disso não se pode resultar benefício e, também, recuar-se a cadeia e o cárcere, posto que
93 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 115. “For it [transferreth his right or renounceth it] is a voluntary act, and of therefore there be some rights which no man the object is some good to himself.”(XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
94 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 115. “As, first, a man cannot lay down the right of resisting them that assault him by force, to take away his life, because he cannot be understood to aim thereby at any good to himself. [Second], the same may be said of wounds, and chains, and imprisonment, both because there is no benefit consequent to such patience (as there is to the patience of suffering another to be wounded or imprisoned), as also because a man a cannot tell, when he seeth men proceed against him by violence, whether they intend his death or not. [Third] and lastly, the motive and end for which this renouncing and transferring of right is introduced, is nothing else but the security of a man´s person, in his life and in the means of so preserving life as not to be weary of it”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
isso restringe demasiadamente a liberdade do indivíduo. Logo, os direitos inalienáveis considerados por Xxxxxx dão conta de que o homem não pode renunciar ou transferir por contrato a vida e certa liberdade, isto é, ir e vir (cárcere, cadeias). Isso porque o motivo e o fim pelo qual o homem transfere ou renuncia um direito é proteger, assegurar sua vida. Ou, em outros termos, o que Xxxxxx afirma é que todo ato voluntário tem como fim um bem para o sujeito, então, não pode haver renúncia ou transferência que seja um mal. “(...) o motivo e o fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto à sua vida e quanto aos meios de a preservar”.95 Por conseguinte, Xxxxxx afirma que se o homem por gesto ou palavras for contra esse fim, neste caso, tais sinais não devem ser entendidos como a vontade destes, mas sim como uma má interpretação por parte deste homem do que tais sinais têm como fim, consequência.
Portanto, se através de palavras ou outros sinais um homem parecer despojar-se do fim para que esses sinais foram criados, não se deve entender que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua vontade, mas que ele ignorava a maneira como essas palavras e ações iriam ser interpretadas.96
Em outras palavras, o homem, ao emitir certos sinais, desconhece, ignora a real objetivação ou significação destes. Pois normalmente homem algum atentaria contra sua própria vida e segurança.97
Desta forma, nem todos os direitos são transferíveis ou renunciáveis. A base disto está em que qualquer barganha de direitos
95 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 115. “the motive and end for which this renouncing and transferring of right is introduced, is nothing else but the security of a man‟s person, in his life and in the means of so preserving life”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
96 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 115. «And therefore if a man by words or other signs seem to despoil himself of the end for which those signs were intended, he is not to be understood as if he meant it, or that it was his will, but that he was ignorant of how such words and actions were to be interpreted”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
97 Embora Xxxxxx admita que em algumas situações extremas, como por exemplo quando a vida de um homem é demasiadamente penosa, ele pode optar em acabar com sua própria vida. ( ver De Homine 11.6) Ou ainda, Xxxxxx no De Cive, capítulo VI, dá um exemplo em que um filho é ordenado pelo soberano a matar seu próprio pai e o filho diz que “(...) preferirá morrer a viver infame e odiado de todos” (XXXXXX, T., DC, 2002, cap. VI, p. 109). “(...) a son will rather die than live infamous and hated of all the world”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. VI).
tem como fim proteger a vida, portanto, seria um contrassenso transferir ou renunciar ao direito da própria vida e tudo aquilo que implica o bem desta.
Por hora, estas precisões e esclarecimentos conceituais que aparecem no Capítulo XIV do Leviathan são suficientes para entendermos o caminho que Xxxxxx toma a partir daí para chegar ao contrato social e, finalmente, ao Estado que se pretende absoluto. Assim, as problemáticas apresentadas aqui serão constantemente e mais profundamente retomadas e discutidas nas próximas linhas e/ou textos em que construímos nossos argumentos, a fim de consolidar nossa proposta e leitura de questionar os alcances e limites do contrato social hobbesiano.
2. TEORIA DOS CONTRATOS
O contrato social exposto por Xxxxxx na obra Leviathan98 é amplamente conhecido e rigorosamente estudado e teorizado pela leitura secundária hobbesiana. O contrato social seguramente é um ponto culminante da teoria do contrato hobbesiana, contudo, para mais profunda e amplamente falarmos em contrato social é crucial que compreendamos a completa teoria de contratos que Xxxxxx desenvolve ao longo de suas obras políticas. Xxxxxx contrói sua teoria dos contratos de forma pouco sistematizada, embora de forma plenamente sólida e central para a concretização de seu projeto político. Todas as implicações e nuanças do contrato social são rigorosamente compreensíveis a partir de uma análise precisa da construção teórica contratual que Xxxxxx elabora. O contrato social está inserido e sustentado em uma teoria contratual específica desenvolvida pelo autor, por conseguinte, é o que precisaremos a seguir.
98 Normalmente as leituras e teorizações acerca do contrato social hobbesiano ficam restritos ou focados na obra Leviathan. Embora com justiça esta seja a obra mais rigorosa e madura de Xxxxxx Xxxxxx, as outras obras políticas hobbesianas também podem e devem, na nossa perspectiva, computar na discussão do que efetivamente compreende e propõe a teoria do contrato hobbesiano e, por conseguinte, o contrato social.
a) Definição de contrato
A definição de contrato, como tentaremos mostrar, não se resume às menções pontuais de Xxxxxx em suas obras políticas acerca do conceito de contrato. Contudo, para iniciarmos nossa incursão neste central conceito jurídico-político hobbesiano é honesto iniciarmos com as definições pontuais de contrato elaboradas por Xxxxxx. Ressaltando que aqui estamos falando apenas da noção de contrato proposta por Xxxxxx, ainda não estamos falando do contrato social própriamente.
A primeria menção do conceito de contrato feita por Xxxxxx na obra Elments ocorre no capítulo VIII da primeira parte quando ele está expondo a concepção de caridade. Para consolidar a ideia de caridade Xxxxxx estabelece a diferença entre caridade e contrato nos seguintes termos,
Mas a afeição com a qual os homens muitas vezes oferecem seus favores aos estranhos não deve receber o nome de caridade, mas antes de contrato (contract), pelo qual os homens buscam adquirir a amizade; ou de medo (fear), que faz com que os homens adquiram a paz”.99
Nesta primeria definição de contrato está presente a ideia de contrato como um ato que busca estabelecer uma troca, ou seja, o homem oferece seus favores em troca de adquirir amizade ou paz. Não se trata de fazer algo gratuitamente, pelo contrário, o objetivo de realizar o acordo, o ato, é tão somente garantir o recebimento de algo desejado em troca. Percebe-se, a partir do que discutiu-se no capítulo I, que o dispositivo contratual está muito mais e plenamente de acordo com a natureza humana descrita por Xxxxxx, do que estaria a caridade. De certa forma, o homem hobbesiano está muito mais disposto a estabelecer relações de troca, de mútuo interesse, do que gratuitamente oferecer algo sem esperança de retorno benéfico.
A próxima definição de contrato, dentro da obra Elements, Xxxxxx apresentará no capítulo XV da parte I. Desta vez, Xxxxxx apresenta de forma mais encorpada a sua compreensão de contrato,
99 HOBBES, T., EL, 2002, Parte I, cap. IX, p. 64. “But the affection wherewith men many times bestow their benefits on strangers, is not to be called charity, but either contract, whereby they seek to purchase friendship; or fear, which maketh them to purchase peace”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. IX).
Quando um homem transfere o seu direito por consideração a um benefício recíproco isso não é um dom gratuito, mas uma doação mútua, que recebe o nome de contrato (contract). E em todos os contratados cada uma das partes que o estão cumprindo põem uma à outra na certeza e segurança de que usufruirão daquilo que contrataram, como quando os homens compram, ou vendem, ou trocam; ou quando é uma que o cumpre e a outra apenas promete, como quando alguém vende a crédito; e enfim, se nenhuma das partes cumpre presentemente o contratado, elas apenas confiam uma na outra. É impossível que exista algum tipo de contrato além destes três. Assim, ou cada um dos contratantes confia no outro, ou não confiam entre si; ou um deles confia, mas o outro não.100
Xxxxxx aqui reafirma a não gratuidade na transferência de algum direito a terceiros, ao mesmo tempo em que confirma tratar-se, o contrato, de um ato inerentemente vinculado à troca mútua de benefícios. No contrato, sempre que se dá algo, deseja-se receber algo em troca, seja de forma imediata ou posteriormente, conforme o tipo de contrato estabelecido. Mas a esperança, ou confiança, no empenho genuino da outra parte contratante em cumprir com o comprometido é premissa indispensável para firmar um contrato. O contrato pressupõe a confiança na efetivação do comprometido por ambas as partes contratantes. Pressupõe, ainda, obrigação daquele que contratou, assim como merecimento daquele que já cumpriu sua parte.
Tomando agora a obra De Cive, encontramos já no capítulo II da primeira parte, uma sintética, porém substancial, conceituação de contrato. Declara Hobbes, “(...) o ato de dois, ou mais, que mutuamente
100 HOBBES, T., EL, 2002, Parte I, cap. XV, p. 102. “When a man transferreth his right, upon consideration of reciprocal benefit, this is not free gift, but mutual donation; and is called CONTRACT. And in all contracts, either both parties presently perform, and put each other into a certainty and assurance of enjoying what they contract for: as when men buy or sell, or barter; or one party performeth presently, and the other promiseth, as when one selleth upon trust; or else neither party performeth presently, but trust one another. And it is impossible there should be any kind of contract besides these three. For either both the contractors trust, or neither; or else one trusteth, and the other not”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XV).
se transferem direitos chama-se contrato”.101 Nota-se que Xxxxxx mantém nesta primeira conceituação de contrato da obra De Cive, os mesmos elementos presentes na obra Elements, isto é, a busca de algum benefício pela transferência de direitos e a fundamental ideia de reciprocidade.
Em uma conceituação do capítulo VII da segunda parte do De Cive, Xxxxxx menciona pela primeira vez nesta obra um elemento de sua teoria do contrato que será fundamental para a concepção de contrato social que mais tarde irá expor. Trata-se da vontade, isto é, todo contrato só pode se dar absolutamente se e somente se as partes contratantes manifestarem de forma clara e indubitável suas vontades em estabelecerem tal contrato. Nos termos hobbesianos, “(...) todo pacto102 é uma transferência de direito que (...) requer sinais adequados e apropriados da vontade naquele que efetua a transferência”.103 Ou seja, como sabemos pelo o que discutimos no capítulo I, a concepção de vontade hobbesiana diz respeito àquele último apetite da deliberação, o que significa dizer que a atitude voluntária é a concretude daquilo que o homem deliberou como sendo o que lhe trará benefício. Por conseguinte, todo ato voluntário pressupõe um bem, um benefício para aquele que o pratica. Sendo assim, o contrato, por tratar-se de um ato praticado pelas partes contratantes de acordo com suas vontades, tem o objetivo de promover ou garantir algum bem para o contratante. Em outros termos, o contrato é por definição um ato praticado pelo homem na esperança de com ele obter benefícios.
Já na obra Leviathan a conceituação de contrato surge ou concretiza-se primeiramente no central capítulo XIV, como antes vimos. Trata-se da segunda lei de natureza, momento em que Xxxxxx expressa a ideia de contratar para obter a paz. Nesta conceitução, Xxxxxx não acrescenta nenhuma caracteristica nova àquelas que já havia expressado nas obras anteriores acerca de sua ideia de contrato. Isto é, o
101 XXXXXX, X. DC, 2002, cap. II, p. 42. “(...) he act of two, or more, mutually conveying their right, is called a contract”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. II).
102 Xxxxxx utiliza em seus textos políticos ora o termo contract, ora pact, e ora ainda covenant, entretanto entendemos que ao falar do contrato social estes três termos assumem o mesmo significado.
103 XXXXXX, X. DC, 2002, cap. VII, p. 133. “(...) all compact is a conveyance of right, which by (...) requires meet and proper signs of the will in the conveyer”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. VII).
comprometimento com a reciprocidade, a transferência de direitos, o fim como sendo um benefício próprio para o contratante, enfim, todas as características que havia apontado e pontuado nas obras anteriores. Ainda no capítulo XIV Hobbes apresenta outra formulação do conceito de contrato nos seguintes termos, “a transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama CONTRATO”.104
Embora Xxxxxx, como vimos, nas três obras Elements, Xx Xxxx e Leviathan tenha grafado formulações do conceito de contrato, estaremos reduzindo ou mesmo negligenciando a amplitude da concepção de contrato hobbesiano se não tomarmos outras considerações feitas por Xxxxxx, como já sugerimos no início deste texto. Isto é, para mais rigorosamente percebermos a amplitude desta atitude que envolve um acordo entre duas ou mais pessoas, vamos elencar e discutir as cláusulas que Xxxxxx estabelece para sua concepção de contrato. As referidas cláusulas se agregam aos conceitos explicitados por Xxxxxx em suas obras e assim mais coerentemente podemos visualizar a concepção hobbesiana de contrato.
b) O contrato hobbesiano e suas cláusulas
Para que bem entendamos a configuração do conceito de contrato e, posteriormente, de contrato social estabelecido por Xxxxxx, é necessário que tomemos conhecimento de como Xxxxxx procede para construir tais conceitos. O contrato como dispositivo realizado entre duas ou mais pessoas no sentido de estabelecer direitos e obrigações entre estes, já era uma ideia e concepção bastante conhecida e usada antes de Xxxxxx Xxxxxx fazer uso do mesmo. Contudo, Xxxxxx, como estamos vendo, formula sua teoria do contrato de forma singular, certamente para servir ao seu propósito teórico-político. Sendo assim, vamos tentar entender o que compreende a concepção de contrato propriamente hobbesiana.105 Para realizarmos tal intento, vamos
104 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 115. “The mutual transferring of right is that which men call CONTRACT”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
105 Desta forma não nos deteremos em traçar as teorias anteriores ou mesmo posteriores a Xxxxxx no que concerne a teoria contratual, posto que fazê-lo ampliaria demasiadamente nosso estudo e, mesmo, mudaria o enfoque de nosso estudo, isto é, o pensamento de Xxxxxx Xxxxxx no que implica sua concepção contratual.
considerar as menções e/ou conceituações que Xxxxxx faz de contrato106 nas obras Elements, De Cive, Dialogue e, especialmente, o Leviathan, que estamos tomando como base para nosso estudo. Isto é, como o conceito de contrato vai se construindo e melhor sendo explicitado desde a obra Elements até o Leviathan, então, julgamos ser oportuno tomar como base teórica o Leviathan, visto que é nesta obra que o conceito de contrato, e especialmente de contrato social, toma sua forma definitiva. Assim, é esta definitiva versão hobbesiana de contrato que consideraremos especialmente e por vezes, se pertinente, retomando as formulações e menções que o autor fez nas obras anteriores já citadas. Para tal, é fundamental começarmos por aquilo que compõe um contrato, que Xxxxxx bem sabia serem as cláusulas. Em outras palavras, as cláusulas de um contrato são as proposições afirmativas que visam a estabelecer as regras, condições ou necessidades implícitas ao contrato para que este configure-se como tal. Ou seja, as cláusulas definem tanto o aspecto formal quanto de conteúdo daquilo que se compreenderá como contrato. Ademais, cercam e/ou limitam teoricamente o que Xxxxxx considera ser um contrato válido e um inválido ou nulo e anulável.
As cláusulas contratuais estabelecidas por Xxxxxx vão sendo desveladas na medida em que ele busca justamente dizer o que compreende o contrato e como o homem chega a realizar o contrato social. Desta forma, uma primeira formulação hobbesiana de contrato que julgamos importante retomar aqui, a encontramos entre as leis de natureza, conforme temos conhecimento pelas discussões anteriores. Ao enunciar a segunda lei de natureza, ou seja, visando a procurar e/ou estabelecer a paz um homem concorda, na medida em que o outro também o faça, em renunciar ao seu direito a todas as coisas. Assim Hobbes enuncia,
Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as
106 Contudo, não dissertaremos sobre o léxico que Xxxxxx fez uso nas diferentes obras, isto é, o autor faz uso nas versões inglesas das obras dos termos: contract, pact, covenant e mesmo alliance. Sobre esta lexicografia consideramos que um rigoroso estudo e apresentação foi realizada por Xxx XXXXX em seu artigo, Le vocabulaire du contrat, du pacte et de l‟alliance: quelques enjeux lexicaux in: ZARKA, Xxxx Xxxxxxx. Xxxxxx et son vocabulaire. Vrin: Paris, 1992.
coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.107
Como percebemos nas palavras de Xxxxxx, ao enunciar a segunda lei de natureza, aparece a ideia de contrato firmado em busca de estabelecer a paz entre os homens. Assim, esta primeira e fundamental proposição do contrato propõe duas cláusulas: uma primeira que a atitude tomada seja de plena e absoluta reciprocidade, em outras palavras, um homem só fará algo na condição e necessidade de que o outro também o faça. Portanto, fica assim estabelecida a reciprocidade como cláusula do contrato. A segunda cláusula diz respeito ao conteúdo desta atitude recíproca, isto é, o homem concorda em renunciar ao direito a todas as coisas. Logo, a segunda cláusula manifesta a essencial condição para este contrato, ou seja, a segunda lei concorda em renunciar ao direito a todas as coisas. Para que tenhamos presente o que isso significa, é bom lembrarmos o que discutimos anteriormente108, ou seja, uma lei de natureza é um preceito ou uma regra racional que visa proibir o homem de fazer algo que possa destruir a sua própria vida ou, ainda, que proíbe omitir ou não contribuir para melhor preservá-la. Ou seja, esta primeira formulação do conceito de contrato feita por Xxxxxx está subordinada à concepção de lei de natureza, portanto, o contrato neste sentido surge como uma regra de proteção à vida e bem-estar do contratante.
Prosseguindo, Xxxxxx afirma que, ao transferir109 voluntariamente esse direito a todas as coisas, o homem não pode tornar nulo seu próprio ato voluntário. Aquele que abandonou seu direito, diz Xxxxxx, tem o dever de não tornar nulo seu próprio ato voluntário. Pois se assim proceder estará caindo no que Xxxxxx chama de injúria ou injustiça. Xxxxxx explica que a injustiça ou injúria correspondem à controvérsia de atitude, ou seja, não se pode desfazer voluntariamente
107 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 113. “That man be willing, when others are so too, as far-forth as for peace and defence of himself he shall think it necessary, to lay down this right to all things, and be contented with so much liberty against other men, as he would allow other men against himself”.( XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 80).
108 Quando traçamos importantes elucidações da teoria hobbesiana presentes no Capítulo XIV do Leviathan.
109 Apenas para relembrar o que já expomos no texto Precisões do Capítulo XIV, Xxxxxx estabelece uma distinção entre renunciar e transferir um direito. No primeiro caso, não importa em favor de quem o indivíduo contratante irá renunciar, já no segundo existe uma pessoa, ou pessoas, a quem o direito será destinado.
aquilo que foi antes feito voluntariamente (o que também é chamado de absurdo). Logo, é cláusula também do contrato que o homem não pode ou não deve tornar nulo um ato voluntário. Mais ainda, ao transferir ou renunciar um direito, o homem o faz exclusivamente porque espera receber algum bem para si, posto que um ato voluntário tem por excelência o objetivo de trazer ou fazer o bem para aquele que agiu de forma voluntária. Logo, é cláusula do contrato que a ação voluntária visa a algum bem para aquele que a pratica. Por dedução, Xxxxxx afirma que há direitos que fica impossível o homem renunciar ou transferir, posto que fogem do escopo de produzir um bem para aquele que transfere ou renuncia. Sendo assim, é cláusula do contrato que o homem não pode transferir ou renunciar determinados direitos. A partir disso, Xxxxxx especifica quais são estes direitos, os quais compõem novas cláusulas do contrato, isto é: a resistência a ataques contra a vida e a resistência àqueles que tentam ferir ou aprisionar o corpo, em termos mais precisos, não será conteúdo de contrato algum o abandono, entrega ou transferência da vida daquele que contrata, nem mesmo será cláusula de contrato deixar-se aprisionar, posto que o homem deve garantir sua liberdade de ir e vir.110
Após estabelecer as cláusulas expostas acima, Xxxxxx formula a sua proposição conceituando contrato e que se tornou a mais conhecida111, isto é, “a transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato.”112 Sendo assim, nesta formulação, há três elementos que precisamos retomar, isto é, „transferência‟, „mútua‟ e „direitos‟. A transferência como já mencionamos acima, diz respeito ao ato de transferir algo a alguém. Trata-se de um ato direcionado. Ao contrário da renúncia que não visa a um receptor determinado, a transferência exige um receptor, isto é, alguém a quem se destina a coisa ou direito que o contratante está transferindo. A palavra mútua significa a reciprocidade exigida no contrato, isto é, o „eu contratante‟ opera na certeza de que o „outro contratante‟ irá igualmente fazer. O contrato
110 Questão retomada nas discussões sobre o alcance e o limite do contrato social no próximo capítulo.
111 Precisamos atentar para o necessário esclarecimento de que não se trata do conceito de contrato social, aqui estamos apenas apresentando a teoria dos contratos elaboradas por Xxxxxx e, portanto, esta definição corresponde a uma das definições propostas por Xxxxxx mais conhecida desta sua teoria contratual.
112 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 115. “The mutual transferring of right is that which men call CONTRACT”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82).
exige igual envolvimento de todas as partes contratantes. Já o direito diz respeito ao poder e/ou liberdade que cada homem possui enquanto homem, o direito pressupõe dispor, ter, usufruir de algo, em outras palavras, ter direito a algo significa poder ou ter a liberdade de chamar este algo de meu de forma legítima. Para melhor compreender este conceito hobbesiano, é oportuno retomar aqui uma passagem da obra Dialogue em que Xxxxxx está se ocupando de traçar a distinção entre lei e direito,
(...) a lei me obriga a fazer ou a me abster de fazer algo, e portanto deposita sobre mim uma obrigação. Mas meu direito é uma liberdade que a lei me concedeu de fazer qualquer coisa que ela não me proíbe e deixar de fazer qualquer coisa que ela não me ordene.113
Assim compreendido o que corresponde a cada termo utilizado por Xxxxxx ao redefinir o conceito de contrato, podemos visualizar mais rigorosamente o que Xxxxxx está dizendo.
Xxxxxx ainda determina que a transferência do acordado pode ser feita imediatamente por ambas as partes, ou pode ser feita posteriormente por uma ou ambas as partes. Dessa forma, um contratante pode entregar sua parte agora e deixar que o outro entregue a sua mais tarde. Neste sentido o contrato é chamado de pacto ou convenção. Ou se ambas as partes acordam em entregar a coisa no futuro, isso chama-se promessa ou fé. Quando a transferência não é mútua, mas uma das partes deseja transferir na esperança de ganhar amigos, serviços ou outros benefícios, ou ser recompensado no céu, isso chama-se graça, favor, mas não é contrato. Portanto, as partes contratantes podem escolher (ou acordar) o tempo de entrega da matéria ou objeto do contrato, desde que obrigatoriamente cumpram com a promessa. Pois, segundo Xxxxxx, aquele que já cumpriu sua parte do contrato merece que o outro contratante cumpra também a sua, sendo que este último tem o dever de o fazer. Por conseguinte, é cláusula contratual também a obrigação e/ou dever que o contrato gera nas partes contratantes.
113 XXXXXX, X., DFJ, 2001, p. 40-1. « For law obligeth me to do, or forbear the doing of something; and therefore it lays upon me an obligation. But my right is a liberty left me by the law to do any thing which the law forbids me not, and to leave undone any thing which the law commands me not”. (XXXXXX, X. DFJ, The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth, Vol. VI).
Ademais, Xxxxxx esclarece que os sinais que mostram a disposição dos contratantes em estabelecer o contrato podem dar-se na forma expressa ou por inferência. Expressos, quando os pronunciamos com palavras, dizendo exatamente o que elas significam. Já os contratos por inferência,
Os sinais por inferência são às vezes consequências de palavras, e às vezes consequência do silêncio; às vezes consequência de ações, e às vezes consequência de omissão de ações. Geralmente um sinal por inferência, de qualquer contrato, é tudo aquilo que mostra de maneira suficiente a vontade do contratante.114
Os sinais que configuram um contrato podem se dar no passado, presente ou futuro. O motivo é que todo contrato configura-se em uma transferência mútua de direitos, assim, mesmo que uma das partes deixe para entregar sua parte posteriormente, ele está obrigado a tal. “(...) na compra e na venda e em outros atos de contrato, uma promessa é equivalente a um pacto, e portanto obrigatória.”115 Hobbes lembra que um contrato pressupõe duas consequências factuais: o mérito e a obrigação. Aquele que primeiro entregou sua parte (direito) é dito merecedor (merit) de receber da outra parte contratante o que lhe é devido. Este último tem a obrigação (due) de entregar. Também no caso em que alguém é vencedor de algo, ou quando por exemplo, se lança dinheiro para um número de indivíduos e alguns apanham tal dinheiro, nestes casos, o vencedor e aquele(s) que apanham o dinheiro são ditos merecedores. (contudo isso não é um contrato, é uma doação). Hobbes faz uma reflexão importante, uma analogia interessante de como acontece a transferência do direito no caso do prêmio oferecido e do dinheiro lançado. Ou seja, você transfere o direito ao oferecer o prêmio ou lançar o dinheiro, mas o direito só será efetivado para alguém no momento do certame (existe a indeterminação de para quem vai o direito até o momento da realização do ato). Em seguida, Xxxxxx dirá
114 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 116. “Signs by inference are: sometimes the consequence of words, sometimes the consequence of silence; sometimes the consequence of actions, sometimes consequence of forbearing an action; and generally a sign by inference of any contract is whatsoever sufficiently argues the will of the contractor”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 83).
115 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 117. “(...) in buying and selling, and other acts of contract, a promise is equivalent to a covenant, and therefore obligatory”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 83).
que existem dois tipos de mérito: no contrato, o mérito é por nosso próprio poder e pela necessidade do outro contratante; já na doação o mérito advém da bondade de quem parte a doação. Assim, no contrato um contratante merece que o outro contratante se desfaça de seu direito, mas no caso da doação um não merece que o doador se desfaça de seu direito. Apenas quando o doador se desfizer, este um (que pegou o dinheiro, que ganhou o prêmio) terá o direito, e não os outros.
No contrato, mereço do contratante que ele se desfaça de seu direito. No caso da doação, não mereço que o doador se desfaça de seu direito, e sim que, quando dele se desfizer, ele seja meu e não de outrem.116
Aqui Hobbes estabelece que esta seria a diferença entre meritum congrui e meritum condigni. Ou seja, Deus oferece o paraíso para aqueles homens que conseguem viver segundo os preceitos divinos, logo, aqueles que conseguem viver assim merecerão o paraíso, ex congruo. Entretanto, nenhum homem pode reclamar o direito ao paraíso com base na sua retidão, mas apenas esperar pela graça de Deus, ex condigno. De tais diferenciações pode-se perceber mais claramente que o contrato gera direitos e obrigações entre os contratantes.
A partir destas novas condições ou cláusulas contratuais apontadas por Xxxxxx é possível formularmos o conceito de contrato, até então verificado, nos seguintes termos: o contrato é uma ação voluntária, expressa ou inferida de forma indubitável, realizada pelos contratantes, que consiste na transferência mútua de direitos com fins de benefício próprio; sendo o objeto do contrato entregue de forma imediata ou posterior. Pelo referido ato, as partes envolvidas ficam obrigadas a cumprir o contrato.
Esclarecendo as condições em que contratos são elaborados, Xxxxxx afirma que a transferência de um direito implica também os meios de usufruir tal direito. Um exemplo que Xxxxxx oferece é o da transferência de uma terra, o que implica que junto com ela o individuo transfira também tudo o que está sobre ela, seja vegetação, bens, etc.
Expondo, ainda, as cláusulas que identificam um contrato válido, Xxxxxx esclarece que é impossível fazer contrato com os
116 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 118. “In contract I merit at the contractor´s hand that he should depart with his right; in this case of gift, I merit not that the giver should part with his right, but that when he has parted with it, it should be mine rather than another´s”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 84).
animais. Isso porque os animais não entendem a nossa linguagem, portanto, fica impossível saber da sua aceitação ou não do contrato. Logo, como foi mencionado acima, a mútua aceitação é uma cláusula do contrato. Pelas mesmas razões, Xxxxxx diz ser impossível fazer contratos com Deus, pois não saberíamos se eles foram aceitos ou não por Deus, muito embora, o contrato com Deus possa ser possível através de revelação sobrenatural, como aconteceu com Xxxxxx e outros.
Uma cláusula muito importante dos contratos é aquela que diz que a matéria ou objeto destes, a qual deve ser algo possível. Isto é, o contratante tem plena convicção, no momento do contrato, que tem condições de cumprir com o contratado. Contudo, é também cláusula do contrato que ninguém fica obrigado mais do que o esforço em realizar o comprometido. Isto é, Xxxxxx esclarece que ao contratar o homem assume a obrigação de cumprir com o que prometeu, entretanto, pode surgir um fato posterior ao contrato que o impeça de realizar o contratado. Uma vez que esse fato novo e posterior ao momento do contrato aconteça, o contratante fica obrigado a realizar algo equivalente ao contratado e, se nem isso for possível, fica obrigado à tentativa, ao esforço de cumprir o que estava comprometido. Pois, conforme afirma Xxxxxx, “(...) mais do que isto [ao esforço] ninguém pode ser obrigado”.117 Em suma,
(...) as convenções que firmamos não nos obrigam a cumprir exatamente a coisa que foi combinada, mas sim a fazer o máximo de nossos esforços por ela: pois só o nosso esforço está em nosso poder, as coisas não. (itálico nosso).118
Sendo assim, pelo o que vimos acima podemos sistematizar as principais cláusulas contratuais expostas por Xxxxxx como sendo:
1- Um contrato é realizado sempre entre duas ou mais pessoas capazes de expressar por linguagem ou sinais claros e evidentes a aceitação voluntária do contratado. Por conseguinte, não se pode firmar contrato com animais ou com Deus (salvo no caso de revelação);
117 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 120. “(...) endeavour of performing as much as is possible (for to more no man can be obliged)”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 86).
118 XXXXXX, X., DC, 2002, cap. II, p. 46. « (...) Covenants, therefore, oblige us not to perform just the thing itself covenanted for, but our utmost endeavour ; for this only is, the things themselves are not in our power ». (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. II).
2- A transferência do (s) direito (s) deve ser através da evidente aceitação tanto daquele que transfere o direito quanto daquele que recebe;119
3- A transferência de direitos é sempre mútua entre os contratantes;
4- O contrato é um ato da vontade, logo, pressupõe um bem e/ou benefício para o contratante;
5- O contratante fica obrigado apenas àquilo que lhe é possível, ou seja, nenhum contrato pode obrigar mais do que o maior esforço possivel do contratante em realizar o acordado. “(...) não se pode esperar que nenhuma convenção obrigue mais além do que o nosso melhor esforço seja pelo cumprimento da coisa prometida, seja por uma coisa equivalente”120;
6- Cumprir aquilo que é acordado é uma obrigação do contratante; 7- Quebrar ou descumprir um contrato é injúria ou injustiça;
8- A matéria do contrato precisa ser algo possível de ser cumprido pelo contratante;
9- Em se tratando do contrato social, o fim pelo o qual os homens renunciam ao direito de proteger e defender a si mesmo a partir de sua própria capacidade em favor de uma pessoa (o soberano), a qual passa a proteger e defender os contratantes, é a proteção; “(...) sem essa proteção não existe razão para que um homem se prive das suas próprias vantagens e faça de si mesmo uma presa dos demais”.121
119 “Para a transferência do direito, portanto, duas coisas são necessárias: uma da parte daquele que o transfere, que é a suficiente significação da sua vontade em transferí-lo; outra, da parte daquele a quem o direito é transferido, que é a suficiente significação de que o aceita”. (XXXXXX, T., EL, 2002, Parte I, cap. XV, p. 101). In transferring of right, two things therefore are required: one on the part of him that xxxxxxxxxxxx; which is, a sufficient signification of his will therein: on the part of him to whom it is transferred; which is, a sufficient signification of his acceptation thereof”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XV).
120 HOBBES, T., EL, 2002, Parte I, cap. XV, p. 105. “(...) no covenant is understood to bind further, than to our best endeavour, either in performance of the thing promised, or in something equivalent”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XV).
121 XXXXXX, T., EL, 2002, Parte II, cap. I, p. 136. “And without that security there is no reason for a man to deprive himself of his own advantages, and make himself a prey to others”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte II, cap. I).
10- É impossivel abandonar ou transferir alguns direitos através de contrato;
11- Aquele que cumpre primeiro sua parte no contrato merece que o outro cumpra sua parte, e este tem o dever de cumprir.
A partir destas cláusulas contratuais, as quais também podemos dizer que são princípios ou regras que determinam o que Xxxxxx considera ser um contrato válido ou não, podemos avançar significativamente na compreensão da teoria contratual hobbesiana. Tomando estas regras, estes princípios ou mesmo cláusulas, como chamamos, podemos agora considerar o que é um contrato válido e quando um contrato é inválido ou nulo.
c) Contratos válidos e contratos inválidos/nulos
Depois de termos visto e por consequência analisado o conceito e juntamente as cláusulas da teoria do contrato hobbesiana, agora podemos centrar nossa discussão nos contratos válidos e naqueles inválidos ou nulos122. Já fizemos algumas precisões importantes sobre o capítulo XIV do Leviathan, uma vez que ele é central para nossa discussão, agora vamos demonstrar que Xxxxxx dedica um considerável espaço no capítulo XIV a sua teoria da nulidade contratual. Dessa forma, é oportuno que nos detenhamos aqui um momento para expor e avaliar em que circunstâncias Xxxxxx considera que o contrato possa ser inválido ou nulo.
Aqui precisamos abrir um parêntese para esclarecer os termos jurídicos „validade‟, „invalidade‟ e „nulidade‟ ou „anulabilidade‟. Juridicamente um contrato é válido quando todos seus requisitos e pressupostos (cláusulas contratuais) são plenamente satisfeitos e/ou respeitados, por conseguinte, a invalidade do contrato é a falta ou o vício de um ou mais dos pressupostos ou requisitos contratuais, o que não produz os efeitos desejados pelas partes contratantes, como ocorre com o contrato celebrado pelo absolutamente incapaz. Da invalidade pode ocorrer a nulidade absoluta ou nulidade relativa (também chamada
122 Xxxxxx utiliza os termos „inválidos‟ e „nulos‟ indistintamente para significar o mesmo tipo de contrato, isto é, aqueles que ferem alguma cláusula e por isso ficam inutilizados ou sem sentido. Portanto, extintos de obrigação das partes contratantes.
anulabilidade) do contrato. Desta forma a nulidade absoluta (motivos anteriores a formação contratual) ocorre quando se ofende os preceitos contratuais, portanto, não produzirá quaisquer efeitos, visto que seu efeito é ex tunc, ou seja, será nulo e, por conseguinte sem efeitos desde a sua formação. Já a nulidade relativa, ou anulibilidade (motivos contemporâneos) trata-se tão somente do reconhecimento de que o contrato é defeituoso, o que não lhe tira a validade e, portanto os efeitos anteriores a constatação do defeito ou vício, visto que permanecerá eficaz enquanto não se mover ação que decrete tal nulidade, por ter a nulidade relativa. Por conseguinte, o contrato que se verifica a anulabilidade, produz efeito ex nunc, isto é, torna-se inválido apenas após a constatação do vício ou desrespeito de cláusulas contratuais. Partindo, assim, das concepções jurídicas de nulidades e/ou validades contratuais, - vale dizer, o que Xxxxxx não desconhecia e nem mesmo negligenciaria em sua teoria contratual, posto que era comprovadamente um grande conhecedor das questões jurídicas de sua época, - analisemos quais nulidades e validades contratuais Xxxxxx apontou em suas obras políticas.
De acordo com a concepção hobbesiana de contrato, todo contrato é um ato voluntário de todas as partes contratantes. Por conseguinte, é inválido ou nulo aquele contrato em que uma ou mais das partes não expressou por palavras ou sinais claros seu consentimento voluntário em realizar o contrato.123 Assim como, torna-se nulo aquele contrato em que uma parte contratante ignora a quem ele deve se reportar para cumprir sua obrigação decorrente do contrato, ou ainda, quando desconhece ao que ele está obrigado.124
Novamente, como assinalamos acima, para um contrato existir, ou seja, para ser válido deve necessariamente estar ancorado na aceitabilidade de todos os sujeitos contratantes, ou seja, é imprescindível que as partes contratantes aceitem os termos do contrato. Logo, afirma
123 “Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência. (...) Um sinal por inferência, de qualquer contrato, é tudo aquilo que mostra de maneira suficiente a vontade do contrante”. (XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 116). “Signs of contract are either express or by inference. (...) A sign by inference of any contract is whatsoever sufficiently argues the will of the contractor”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 82-3).
124 “(...) jamais pode-se entender que um homem seja obrigado a obedecer àquele a quem ele não conhece”. (XXXXXX,T., EL, 2002, Parte II, cap. II, p. 152). “(...) no man can be understood to be obliged to obey he knoweth not whom”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte II, cap. II).
Xxxxxx, é impossível fazer contrato com animais, pois eles não entendem ou falam, por conseguinte, eles não aceitam e transferem direitos, e “(...) sem mútua aceitação não há pacto possível”.125 Com Deus também é impossível fazer contrato, a não ser pela mediação de alguém (revelação). Isso porque, em referência a Deus, também não sabemos se ele aceitou ou não.
Considerando que ao transferir ou abdicar de um direito buscando em troca beneficiar-se, o então contratante, afirma Xxxxxx, fica obrigado
(...) a não impedir àquele a quem esse direito foi abandonado ou adjudicou o respectivo benefício, e que deve, é seu DEVER, não tornar nulo esse seu próprio ato voluntário; e que tal impedimento é INJUSTIÇA e XXXX.126
Portanto, configura-se em injustiça tornar nulo o próprio ato voluntário. Um homem, um contratante põe-se em obrigação para com o outro contratante e é seu dever cumprir o próprio ato voluntário ao estabelecer o contrato e com ele a transferência ou abdicação de direitos. Contudo, devemos lembrar que em Xxxxxx dever implica poder, isto é, o homem tem sim obrigação em cumprir o contrato firmado, portanto, manter seu ato voluntário, entretanto, se de fato o cumprimento de seu dever contratual tornar-se impossível, o contratante tem a liberdade de fazer o que pode, mas não o impossível. Em outros termos, o contratante fica obrigado apenas àquilo que é o equivalente ao seu dever, ou àquilo que lhe é possível fazer. Pois como afirma Xxxxxx, ao impossível ninguém pode ser obrigado.
Xxxxxx sublinha que o assunto, objeto do contrato, é sempre um algo possível e por vir, além de constituir-se essencialmente em uma deliberação.
A matéria ou objeto de um pacto é sempre alguma coisa sujeito à deliberação (porque fazer o pacto é um ato da vontade, quer dizer, um ato, e o último ato, da deliberação), portanto sempre se entende
125 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 119. “(...) and without mutual acceptation, there is no covenant.” (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 85).
126 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 114. « not to hinder those to whom such right is granted or abandoned from the benefit of it; and [it is said] that he ought, and it is his DUTY, not to make void that voluntary act of his own, and that such hindrance is INJUSTICE, and INJURY”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 81).
ser alguma coisa futura, e que é considerada possível de cumprir por aquele que faz o pacto.127
Por conseguinte, Xxxxxx assinala que prometer o que sabe não ser possível de cumprir não se configura um contrato, mas uma falsa promessa. Não obstante, se depois se torna impossível aquilo que se pensava ser possível128 no momento do contrato, isso é um contrato válido. E o contratante fica obrigado a dar algo de igual valor àquilo que havia prometido. Caso isso não seja possível, deve se esforçar ao máximo para dar o que consegue, pois pelo esforço o contratante é responsável, mais do que isso não. Nos termos hobbesianos,
Mas só depois se verificar ser impossível o que antes se considerava possível o pacto é válido e, embora não obrigue à própria coisa, obriga ao valor equivalente. Ou então, se também isso for impossível, a tentativa sem fingimentos de cumprir o mais possível; porque a mais do que isto ninguém pode ser obrigado.129
Como bem pondera Warrender, “Para Hobbes, „dever‟ implica
„poder‟, e o indivíduo não pode, portanto, ser obrigado a fazer o que lhe é impossível”.130
Os contratos feitos a partir do medo, no estado de natureza, criam obrigações, por exemplo, se concordamos em pagar um resgate ou um serviço em troca de nossa vida a um inimigo, somos obrigados a
127 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 120. “The matter or subject of a covenant is always something that falleth under deliberation (for to covenant is an act of the will; that is to saw an act, and the last act, of deliberation) and is therefore always understood to be something to come, and which is judged possible for him that covenanteth to perform”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 86).
128 Nesta consideração hobbesiana podemos perceber o quão, efetivamente, são frágeis os contratos firmados no estado de natureza, uma vez que a natureza humana é regida por imperiosas paixões, como por exemplo, o medo e a esperança, assim, a contingência é muito grande e latente.
129 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 120. “But if that prove impossible afterwards which before was thought possible, the covenant is valid and bindeth, though not to the thing itself, yet to the value; or, if that also be impossible, to the unfeigned endeavour of performing as much as is possible (for to more no man can be obliged)”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 86).
130 “For Hobbes, „ought‟ implies „can‟, and the individual cannot therefore be obliged to perform an impossibility”. (XXXXXXXXX, Xxxxxx. The Political Philosophy of Xxxxxx : His Theory of obligation. Oxford at the Clarendon Press : London, 1957. Pág. 32).
fazer isso. “(...) quando não há outra lei (como é o caso na condição de simples natureza) que proíba o cumprimento, o pacto é válido”.131
Um contrato anterior torna nulo um posterior. Ou seja, se o sujeito transfere um direito hoje, não pode querer transferir o mesmo direito amanhã.
Um contrato em que o sujeito acorda não se defender é sempre
nulo.
Porque (...) ninguém pode transferir ou renunciar a seu direito de evitar a morte, os ferimentos ou o cárcere (o que é o único fim da renúncia de um direito), portanto a promessa de não resistir à força não transfere qualquer direito em pacto algum, nem é obrigatória. Porque embora se possa fazer um pacto nos seguintes termos: Se eu não fizer isto ou aquilo, mata-me; não se pode fazê-lo nestes termos: Se eu não fizer isto ou aquilo, não resistirei quando vieres matar-me.132
Todo contrato que obrigue o contratante a se autoacusar é nulo.
Conforme afirma Xxxxxx, “um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo, sem garantia de perdão, é igualmente inválido”.133
Para melhor visualizarmos e sistematizarmos estas possibilidades de nulidade e/ou invalidade contratual nomeadas e consideradas por Hobbes, vamos retomá-las e citá-las abaixo. Portanto, são contratos nulos e/ou inválidos:
1) Todo contrato em que não se tenha a total e unânime aceitação voluntária dos termos do contrato por todos os contratantes;
2) Aquele contrato em que o contratante esteja em condição de ignorância de sua obrigação, ou ainda, desconhecendo a quem está vinculado pela obrigação contratual;
131 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 120. “Where no other law (as in the condition of mere nature) forbiddeth the performance, the covenant is valid”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 86).
132 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 121. “For (...) no man can transfer or lay down his right to save himself from death, wounds, and imprisonment (the avoiding whereof is the only end of laying down any right) and therefore the promise of not resisting force in no covenant transferreth any right, nor is obliging. For though a man may covenant thus unless I do so, or so, kill me, he cannot covenant thus unless I do so, or so, I will not resist you, when you come to kill me”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 87).
133 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 121. « A covenant to accuse oneself, without assurance of pardon, is likewise invalid”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 87).
3) Contratos com animais ou com Deus (salvo se for por revelação);
4) Contratar o impossível de realizar ou cumprir;
5) O contrato anterior anula o posterior;
6) Contrato em que o contratante acorde em não se defender;
7) Contrato em que obrigue o contratante a se autoacusar;
8) Contrato em que se abdique da própria vida134.
Na perspectiva de Xxxxxxxxx, todas estas nulidades ou invalidades contratuais apontadas acima, estão na categoria de contratos inválidos ab initio, ou seja, são contratos inválidos na sua constituição, em uma ou mais cláusulas. Contudo, argumenta o autor, ainda existe a possibilidade de contratos válidos ab initio, tornarem-se inválidos durante a realização de seus termos. “Assim, pode acontecer que um contrato que satisfaça todas estas condições, é invalidado em um momento posterior à realização do contrato”.135 Em outros termos a classificação assumida por Xxxxxxxxx quanto às nulidades contratuais possíveis estão de acordo com as nulidades determinadas pela jurisdição, isto é, a nulidade absoluta e a nulidade relativa ou anulibilidade. Sendo que a primeira é a nuliade inerente a formação do contrato, portanto, não produz os efeitos desejados pelos contratantes, ou mesmo não produz obrigações, portanto seu efeito é ex tunc. Já o contrato anulável é aquele que por um defeito ou vício de uma ou mais cláusulas torna-se inválido, portanto com efeito ex nunc.
Uma primeira forma de um contrato plenamente válido em suas cláusulas tornar-se inválido trata-se da execução do comprometido ou então do perdão dos contratantes. Desta forma, o homem pode ser liberado do contrato de duas formas: executando-o ou sendo perdoado. A execução é o fim natural da obrigação; já o perdão, é a restituição da liberdade, como sendo uma retransferência do direito no qual a obrigação consistia.
Também pode-se chegar à nulidade de um contrato quando uma ou mais das condições e/ou cláusulas contratuais falharem, isto é, tornarem-se impossíveis. Como já mencionou-se acima, o contrato precisa dar-se a partir de uma matéria possível, realizável pelos
134 Salvo algumas exceções que podem ocorrer conforme Hobbes aponta no De Cive (cap. VI) e no De Homine (11.6).
135 “Thus it may happen that a covenant which satisfies all these conditions, is invalidated at a time subsequent to the making of the covenant”. (XXXXXXXXX, X., 1957, p. 36).
contratantes, contudo, se após realizado o contrato concluir-se que a matéria é impossível, então, o contrato será inválido ou nulo. Ou seja, pode haver uma mudança de circunstância durante o período em que os contratantes deveriam efetivar o acordado e com isso a realização daquilo que seriam obrigados pelo contrato, torna-se impossível. Neste sentido, Xxxxxx sublinha que o medo, por exemplo, pode causar a nulidade de um contrato anteriormente válido.
A causa do medo que torna inválido um tal pacto deve ser sempre algo que surja depois de feito o pacto, como por exemplo, algum fato novo, ou outro sinal da vontade de não cumprir; caso contrário, ela não pode tornar nulo o pacto. Porque aquilo que não pode impedir um homem de prometer não deve ser admitido como impedimento do cumprimento.136
Por exemplo, um homem pode entrar em acordo com um amigo em saltar de paraquedas, contudo, no dia em que marcaram para realizar o salto, este homem recebe a notícia de que um outro alguém sofreu um acidente e morreu ao realizar um salto de paraquedas. Tal fato, surgido momentos antes do salto dos dois amigos, desencadeia o medo de um dos amigos e o faz desistir do salto. Neste caso, o contrato pode ser considerado nulo porque o homem, um dos amigos, foi abalado em sua convicção em cumprir o acordo por um fato posterior ao contrato, logo não caracteriza injustiça sua desistência, apenas covardia. No momento em que os amigos selaram o acordo, ambos compartilhavam da vontade em realizar o salto de paraquedas. Não obstante, se no momento do contrato, um dos amigos, já tinha em mente desistir, não cumprir o contrato, ou se já tinha dúvida ou medo em realizar o salto, mas concordou de forma enganosa, nesta situação, nem se caracterizaria um contrato propriamente, mas uma falsa promessa, como já sabemos. O motivo do medo só pode ser algo posterior ao contrato, jamais algo presente no momento do contrato. Logo, uma cirscunstância não prevista, uma possibilidade não analisada, ou mesmo um engano da razão no momento do contrato, todas estas são razões para que um
136 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 119. “The cause of fear which maketh such a covenant invalid must be always something arising after the covenant made (as some new fact or other sign of the will not to perform), else it cannot make the covenant void. For that which could not hinder a man from promising, ought not to be admitted as a hindrance of performing”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 85).
contrato, em tese, válido, possa se tornar inválido.137 Portanto, a nulidade do contrato hobbesiano, não parece estar presa no momento específico da realização do contrato, mas pode surgir legitimamente durante a efetivação dos termos contratados.
Outra forma de um contrato previamente válido tornar-se nulo é a “menor suspeita razoável torna nulo esse pacto”.138 Considerando o estado de natureza, Xxxxxx argumenta que em uma situação contratual em que ambas as partes acordantes não entregam de imediato o direito, se de uma das partes surgir a mínima suspeita razoável, o contrato torna- se nulo. Tal nulidade é possível e legítima, uma vez que no estado de natureza não existe nada para garantir a palavra dos acordantes. Assim, os contratantes precisam confiar unicamente na palavra, promessa, uns dos outros. Porém, como sabemos, de acordo com Xxxxxx, a palavra empenhada por um homem é uma garantia, no mínimo, frágil e vulnerável. Considerando que “a força das palavras (...) é demasiado fraca para obrigar os homens a cumprirem seus pactos”139 e que
(...) os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de algum poder coercitivo.140
Hobbes acrescenta que só é possível dispor, a partir da natureza do homem, de duas formas de reforçar esta palavra dada, isto é, através do medo das consequências de faltar à palavra empenhada e o do orgulho do homem em mostrar, aparentar, que não precisa faltar a ela. Ou seja, ou medo das consequências ou orgulho, são duas formas de tornar mais categórica a palavra dada, contudo, nem o medo, nem o orgulho podem efetivamente garantir, assegurar o cumprimento da
137 Portanto, poderia parecer que esta consideração hobbesiana sobre a mudança de circunstância e assim a legítima invalidação do contrato, está se contradizendo a afirmação de Xxxxxx de que um homem não pode afirmar um contrato de forma voluntária e depois voltar atrás, haja vista ser um contrassenso desfazer um ato voluntário. Contudo, esta é uma falsa contradição. O homem não pode simplesmente, sem razões genuinas e legítimas, desfazer um ato voluntário, mas se comprovada a mudança de pespectiva, de circunstância, um ato voluntário pode dar lugar a um outro ato voluntário.
138 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 118. “upon any reasonable suspicion it is void”. (XXXXXX, T., Lev.,1994, cap. XIV, p. 84).
139 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap. XIV, p. 121. “The force of words being too weak to hold men to the performance of their covenants”. (XXXXXX, T., Lev.,1994, cap. cap. VI , p. 87).
140 XXXXXX, X., Xxx., 2003, cap. XIV, p. 119. “(...) the bonds of words are too weak to bridle men‟s ambition, avarice, anger, and other passions, without the fear of some coercive power”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. XIV, p. 84).
palavra empenhada. O que efetivamente vai dar essa garantia, essa segurança é um poder superior. Portanto, no Estado Civil em que o súdito pode contar com o soberano absoluto, este contrato não seria nulo, uma vez que o soberano faria valer a palavra empenhada por ambos os contratantes.
Entretanto, a possibilidade de tornar-se nulo ou inválido um contrato no Estado Civil pela razão de uma „suspeita razoável‟, ou seja, justa ou legítima, existe. Expliquemos: pode existir circunstâncias em que o soberano perde o poder e deixa assim o súdito desprotegido, nesta situação, o súdito retoma sua liberdade e pode tornar nulo um contrato que teme não ser cumprido sem a „espada‟ do soberano. Esta situação pode ser visualizada, por exemplo, durante uma guerra civil. O soberano pode ser gravemente ferido ou mesmo morto e neste vácuo de poder soberano, o súdito fica a mercê de sua própria força novamente, como no estado de natureza. Neste caso, pode surgir a suspeita razoável ou legítima que dá amparo suficiente para romper um contrato.
Enfim, a teoria dos contratos de Xxxxxx parece oferecer uma considerável margem de possibilidades de invalidade e/ou nulidade. Os contratos podem ter, efetivamente, uma nulidade intrinseca às cláusulas ou termos contratuais no momento da efetivação deste, ou ainda, estas cláusulas podem apresentar alguma falha ou incoerência no momento da realização do acordado.141 Ou seja, a nulidade pode ser uma constatação prévia, como no caso de contratos com animais, pode ser uma nulidade durante o cumprimento do acordado no contrato, como no caso da
„suspeita razoável‟. A partir destas considerações de validade, invalidade e/ou nulidade contratual, pode-se concluir que a teoria contratual hobbesiana considera como contrato inválido ou nulo todo aquele contrato que tenha alguma de suas cláusulas feridas ou desrespeitadas, seja no ato ou na realização do mesmo. Ou ainda aquele contrato, por alguma razão (como circunstâncias ou variáveis desconhecidas, inesperadas ou equivocadamente analisadas), deixa de ter aplicabilidade ou fazer sentido e assim torna o contrato obsoleto ou mesmo impossível de ser cumprido.
141 Conforme bem sistematizou Xxxxxxxxx em sua obra The Political Philosophy of Xxxxxx
(1957).
d) O contrato social: da guerra a paz
No capítulo I apresentamos, em detalhes, como vive e como se relaciona o homem no estado de natureza hobbesiano. Hobbes nos mostra um homem vivendo em condições de miserabilidade, embrutecimento e dominado pelo medo. O outro é visto absolutamente como um obstáculo ou mesmo inimigo, logo, o que predomina entre estes homens miseráveis e embrutecidos é uma relação de guerra de todos contra todos. Diante deste terrível cenário ou condição em que vive o homem em estado de natureza, ele chega à compreensão de que tal vida não se sustenta e que é necessário sair desta condição. Que estratégia será eficiente para realizar tamanha mudança? O que fazer para mudar esta realidade mortífera? A resposta é o contrato social, ou contrato de união, contrato de submissão, contrato de obediência, contrato de autorização; enfim, os nomes atribuídos por Xxxxxx ou mesmo pela literatura secundária da teoria hobbesiana, são muitos, mas a compreensão e a importância deste ato decisivo na vida do homem em estado de natureza é compartilhado e plenamente entendido por todos.
É no capítulo XIX da parte I da obra Elements, que Xxxxxx anuncia pela primeira vez nesta obra como o homem funda a sociedade, ou corpo político, como ele chama neste momento. Nesta passagem, vamos perceber que já aparecem termos caros a Hobbes como, por exemplo, a própria concepção de união, de submissão absoluta, de paz, de proteção, enfim, todos conceitos que no Leviathan ele irá melhor desenvolver e aprofundar. Analisemos a passagem,
A realização da união consiste nisso, que todo homem, pela convenção, obrigue a si mesmo a um e o mesmo homem, e a um e o mesmo conselho, por meio de quem todos são nomeados e determinados a fazer aquelas ações que o dito homem ou conselho deverá ordená-los a fazer e a não fazer, que ele ou eles deverão proibir, ou ordená-los a não fazer. (...) Esta união feita dessa maneira, é o que os homens atualmente chamam de um corpo político (body politic), ou sociedade civil; e os gregos chamam isso de pólis, ou seja, uma cidade, que pode ser definida como sendo uma multidão de homens unida como uma pessoa
por um poder comum, em favor da sua paz, defesa e benefício comum.142
Nota-se que esta longa, mas importantíssima passagem, expressa uma primeira compreensão do que acontece entre os homens, enquanto multidão, para que a sociedade seja possível. Esta união entre os homens em aceitar que alguém, uma pessoa143, tome para si a posição de uma espécie de juíz144 é feita na esperança de com isso estabelecer e garantir a paz necessária para a vida e bem-estar deste homem. Por conseguinte, o homem aceitaria unir-se na submissão absoluta a esta pessoa. Notemos que nesta primeira explicitação do conceito de contrato social, realiza-se um contrato de união em que cada parte contratante compromete-se em entregar a uma pessoa o poder soberano de governar a todos, tendo como fim ou benefício à paz, a proteção e o bem comum. Logo, tem-se um contrato realizado a partir das centrais cláusulas contratuais estabelecidas por Hobbes de reciprocidade, de transferência de um direito e de ato centrado na vontade, portanto, com o objetivo de trazer algum benefício para o contratante.
Xxx como na obra Elements, Xxxxxx descreveu o contrato social como uma união, assim também faz na obra De Cive,
Essa submissão das vontades de todos à de um homem ou conselho se produz quando cada um deles se obriga, por contrato, ante cada um dos demais, a não resistir à vontade do indivíduo (ou conselho) a quem se submeteu; isto é, a não lhe recusar o uso de sua riqueza e força contra quaisquer outros (pois supõe-se que ainda
142 HOBBES, T. EL, 2002, Parte I, cap. XIX, p. 131. “The making of union consisteth in this, that every man by covenant oblige himself to some one and the same man, or to some one and the same council, by them all named and determined, to do those actions, which t said man or council shall command them to do; and to do no action which he or they shall forbid, or command them not to do. (...) This union so made, is that which men call now-a-days a BODY POLITIC or civil society; and the Greeks call it {polis}, that is to say, a city; which may be defined to be a multitude of men, united as one person by a common power, for their common peace, defence, and benefit”. (XXXXXX, X., Elements of Law. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, Parte I, cap. XIX).
143 Esta ideia de pessoa será desenvolvida por Xxxxxx de forma mais pontual e completa na obra Leviathan.
144 Neste momento, a figura que nas obras seguintes tomará corpo como a figura do soberano absoluto, nesta passagem está ainda descrito muito mais como uma espécie de juiz, alguém que pura e simplesmente tem o dever ou o poder de mediar e/ou decidir as controvérsias típicas da natureza humana. Esta pessoa, o soberano, é descrito aqui por Xxxxxx como aquela figura que irá organizar e dissipar as disputas entre os homens, dando sempre e por último, a palavra final.
conserve um direito a defender-se contra a violência); e isso se chama união.145
Nota-se que, apesar de Xxxxxx fazer uso da palavra contrato, o que ele evidencia nesta primeira definição de contrato social é esta ideia de união no sentido de não resistir à vontade de um indivíduo ou conselho. Ou seja, o contrato social é esta união das vontades individuais em direção à submissão da vontade única daquele indivíduo ou conselho.
Xxxxxx voltará a apresentar uma outra elaboração do conceito de contrato social no capítulo VI, na segunda parte da obra De Cive, denominada „Domínio‟. Agora, o contrato social assume uma conceitução mais direta, contudo mais obscura, declara Xxxxxx,
(...) cada cidadão, ao pactuar com seu concidadão, assim lhe diz: Transfiro meu direito àquele, com a condição de que também lhe transfiras o teu.146
Enquanto na definição anterior pode-se dizer que o direito transferido pelos contratantes é o direito de governar-se, nesta definição não fica claro qual é o direito que o contratante está transferindo. Apenas temos certeza da cláusula da reciprocidade e da vontade expressa pelos contratantes.
Já no capítulo VII, Xxxxxx reafirma o conceito de contrato social, apenas nestes outros termos, “Desisto de meu direito, em favor do povo, para o vosso bem, sob a condição de que também renuncieis a vosso direito, para meu bem”. 147 Percebe-se que o contrato social visa a estabelecer ou garantir o bem para todos, a partir do abandono ou desistência do direito individual que vigorava no estado de natureza. O homem entende que para sua segurança e esperança de bem-estar, o
145 XXXXXX, X. DC, 2002, cap. V, p. 96. “This submission of the will of one man or one council, is then made, when each one of them obligeth himself by contract to every one of the rest, not to resist the will of that one man or council, to which he hath submitted himself, that is, that he refuse him not the use of his wealth and strenghth against any others whatsoever, for he is supposed still to retain a right of defending himself against violence: and this is called UNION”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. V).
146 XXXXXX, X. DC, 2002, cap. VI, p. 117. “(...) each citizen compacting with his fellow, says thus: I convey my right on this party; upon condition that you pass a yours to the same”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. VI). 147 XXXXXX, X. DC, 2002, cap. VII, p. 125. « I give up my right unto the people for your sake, on condition that you also deliver up yours for mine”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. VII).
direito absoluto individual deve dar lugar ao direito absoluto de um indivíduo, ou melhor, de uma pessoa.
Finalmente, é no capítulo XVII do Leviathan que Xxxxxx apresenta a formulação mais concreta do contrato social firmado entre os homens: o enunciado propriamente dito do contrato social. Xxxxxx só o faz depois de bem e repetidas vezes ter esclarecido sua teoria contratual. Isto é, depois de ter explicitado em que condições um contrato é feito, de que forma ele pode ser feito, por quais motivos se realiza um contrato e quem pode ou está apto a realizar contratos válidos, conforme esclarecemos nas discussões anteriores. Uma vez isto feito, Xxxxxx enuncia o contrato social nos seguintes termos:
Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.148
Assim sendo, o homem, por sua única e absoluta vontade, concorda em transferir a um terceiro o seu direito de governar-se. Desse modo autoriza este terceiro a realizar todas as ações em seu nome. Por conseguinte, este ato voluntário, esta autorização, enfim, este contrato firmado entre os homens faz nascer o grande e absoluto soberano. Esta passagem é muito conhecida e debatida pelos leitores de Xxxxxx pois é considerada a formulação madura de contrato social exposta por Xxxxxx.149 Nesta formulação do contrato social Xxxxxx expõe com mais clareza os termos do contrato, isto é, que direito os contratantes estão transferindo, a partir de qual condição e para qual finalidade, ou seja, um contrato de transferência do direito de autogovernar-se em prol do governo absoluto de um soberano, na condição de que todos os contratantes assim procedam e com o
148 XXXXXX, T., Lev., 2003, cap.XVII, p. 147. “I authorise and give up my right of governing myself to this man, or to this assembly of men, on this condition, that thou give up thy right to him, and authorize all his actions in like manner”. (XXXXXX, T., Lev., cap. XVII, p. 109). Este mesmo contrato Xxxxxx já havia expressado na obra De Cive. O conteúdo é o mesmo, apenas a forma muda um pouco: “Transfiro meu direito àquele, com a condição de que também lhe transfiras o teu.” (XXXXXX, T., DC, 2002, cap. VI, p.117). I convey my right on this party; upon condition that you passa yours to the same”. (XXXXXX, T., De Cive. The English Works of Xxxxxx Xxxxxx. Molesworth. Vol. I, cap. VI).
149 Até mesmo por muitos leitores é considerada „a‟ formulação do contrato social. Desconsiderando todas as outras passagens tanto no Leviathan quanto mais nas outras obras em que Xxxxxx se refere ao contrato social que funda o Estado Civil.
fundamental e preciso objetivo de ter a paz e segurança garantidos. Embora na formulação expressada acima, Xxxxxx não mencione a finalidade do contrato social propriamente, temos fortes ou mais, temos contundentes afimações hobbesianas que dão conta de sabermos que a finalidade do contrato social é seguramente a busca pela paz, segurança e bem-estar dos contratantes. Ainda, por tudo o que esclarecemos anteriormente sobre a teoria do contrato exposta por Xxxxxx em suas obras, tal como os casos de validade, invalidade e nulidade contratual, podemos concluir momentaneamente que o contrato social é um contrato válido.
e) Causa e origem do Estado
Para Xxxxxxx, o que fundamenta em Hobbes a instituição do Estado não é o medo da morte violenta, mas sim a vaidade. Isto porque, segundo Xxxxxxx, no estado de natureza a guerra de todos contra todos não advém do medo da morte violenta, mas sim do desejo de cada homem superar, se impor ao outro, ou seja, a guerra é decorrência da vaidade. “Todo homem é (...) o inimigo dos outros homens, porque cada um deseja se sobrepor aos demais, e portanto, os agride”. 150 Sendo assim, o Estado é criado para evitar, limitar, regrar esta vaidade. Por conseguinte, o Estado não é criado porque o homem teme o outro, mas porque ele quer que o outro o tema. “Só o Estado é capaz de conter o orgulho de modo duradouro; de fato, não teria nenhuma raison d‟être se o apetite natural do homem não fosse o orgulho, a ambição e a vaidade”.151
Assim, para Xxxxxxx, a vaidade é o verdadeiro fundamento do Estado hobbesiano. Mas, então, por que Xxxxxx diz ser o medo da morte
150 “Todo hombre es (...) el enemigo de los otros hombres, porque cada uno desea sobrepasar a los demás y, por lo tanto, los agrede.” (XXXXXXX, Xxx. La filosofia política de Xxxxxx: Su fundamento y su génesis. Fundo de cultura econômica de Argentina: Buenos Aires, 2006. Pág. 35).
151 “Sólo el Estado es capaz de contener el orgullo de modo duradero; de hecho, no tendría ninguna raison d‟être si el apetito natural del hombre no fuera orgullo, ambición y vanidad.” “Sólo el Estado es capaz de contener el orgullo de modo duradero; de hecho, no tendría ninguna raison d‟être si el apetito natural del hombre no fuera orgullo, ambición y vanidad.” (XXXXXXX, L. 2006, p. 36).
violenta o fundamento, se pergunta retoricamente Xxxxxxx. A justificativa, segundo Xxxxxxx, é que ao definir o fundamento do Estado como sendo a vaidade do homem em estado de natureza, significa considerar o homem mau por natureza. Em outros termos, dizer que a guerra de todos contra todos é decorrência da vaidade do homem, da paixão em se sobrepor ao outro é dizer que o homem é mau por natureza. Concordamos que a vaidade é uma paixão própria do homem hobbesiano, contudo, discordamos do peso decisório que Xxxxxxx dá a esta paixão para o estabelecimento do contrato social. Não se tem apoio teórico suficiente na literatura hobbesiana para concluir que a vaidade é a paixão que leva o homem a estabelecer o contrato social.152 Mais sólido e coerente é o argumento de que o ataque ou a guerra contra o outro se dá muito mais, ou mesmo tão somente pela vulnerabilidade, igualdade e insegurança que cada homem cultiva em relação ao outro. O outro é muito mais alguém que nos amedronta, que tememos, do que alguém que desejamos amedrontar ou que nos tema. Logo, é o medo e o medo do outro, em especial que provoca ou desencadeia o estado de guerra e por consequência legitima o Estado. Para Xxxxxx, “a opinião ligada à crença de dano proveniente do objeto, chama-se medo.”153 Ou seja, toda vez que um objeto externo (seja real ou imaginário) desperta a opinião do homem de que pode causar-lhe algum dano, algum mal, aí manifesta-se a paixão medo. E no estado de natureza, a opinião ou a pressuposição de que sofrerá algum dano de terceiros é uma opinião constante e dominante para o homem. Logo, o medo é uma paixão que acompanha o homem pré-político absolutamente. Assim, muito mais do que se sobrepor ao outro homem em decorrência de sua vaidade, o homem precisa se sobrepor em decorrência de seu medo. O medo, assim, é uma paixão absolutamente irresistível. Para tornar visível a força dessa paixão, poderíamos imaginar uma situação em que uma pessoa está no mar revolto, em situação de afogamento. A força irresistível do medo da morte se manifesta explicitamente e de forma puramente passional, quando essa pessoa em processo de afogamento
152 Vale dizer que a vaidade é paixão importante sim a partir do momento em que a consideramos em relação a guerra de opiniões presentes no estado de natureza. Isto é, o homem tem opiniões distintas e divergentes sobre si mesmo e os outros, em parte pela vaidade que o domina, o que contribuiria para esta ser uma paixão influente no estabelecimento do contrato social, embora não a paixão determinante, conforme pontua Xxxxxxx.
153 HOBBES, T. Lev., 2003, cap. IV, p. 34. “Aversion with an opinion of hurt from the object, FEAR”. (XXXXXX, T., Lev., 1994, cap. IV, p. 30).
encontra a tentativa de ajuda de alguém que, em vão, tenta agarrá-la e tirá-la da água, mas não consegue porque a que está se afogando “luta contra” seu salvador. O medo da pessoa que está se afogando é tão grande e tão irresistível que mesmo sabendo (racionalmente) que alguém está tentando ajudá-lo a sair daquela situação de morte iminente, ele se debate desfavoravelmente a sua própria salvação. Se debate a ponto de agarrar o seu salvador o levando para a morte também. Assim, é o medo hobbesiano no estado de natureza, um medo que supera ou está para além da racionalidade. Um medo agravado, cerceado ou fundado na imaginação.
Entretanto, nem só de medo vive ou sobrevive o homem hobbesiano. Não estamos falando da vaidade proposta por Xxxxxxx, mas falamos da esperança. A esperança é uma paixão que não se manifesta em sua intensidade aparente como o medo, mas que se manifesta de forma mais velada, no entanto, de forma inabalável. Voltando à pessoa em vias de afogamento, constata-se que, apesar de todos os indícios de morte iminente do homem em situação de afogamento, ele mantém até o último momento a esperança de sair daquela situação e continuar vivendo. A esperança é uma paixão que também pode estar para além do cálculo racional. Isto é, racionalmente o homem compreende que suas chances são nulas, mas a sua incansável paixão da esperança o leva a ainda assim a manter alguma faísca de sonho em sair daquela situação. Por conseguinte, concordamos que o medo e a esperança, de fato, são as paixões que reinam no estado de natureza e, portanto, são fundacionais para o Estado. Não despresando a influência das demais paixões, posto que, o homem efetivamente é demasiadamente complexo em sua passionalidade para concluirmos a exclusividade de determinadas paixões.
O homem, assim, resolve entregar toda sua força e poder a uma pessoa. Por conseguinte, cada homem celebra pactos com todos os outros homens. Ao instituir o Estado, e, portanto o soberano absoluto, o homem tem clara e objetivamente um fim.
A causa final, finalidade e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver em repúblicas, é a precaução com a sua própria