OS POSSÍVEIS USOS DA BLOCKCHAIN NO CONTRATO DE TRABALHO THE POSSIBILITIES OF BLOCKCHAIN IN THE EMPLOYMENT CONTRACT
OS POSSÍVEIS USOS DA BLOCKCHAIN NO CONTRATO DE TRABALHO THE POSSIBILITIES OF BLOCKCHAIN IN THE EMPLOYMENT CONTRACT
Victória Cardoso Ferreira1
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo propor uma análise acerca da utilização da blockchain, tecnologia que consiste em uma base de dados que fornece registros inalteráveis, públicos e distribuídos de transações, e suas implicações na esfera jurídica, ressaltando seus possíveis usos na relação de emprego. Para tanto, se faz uma conceituação acerca da blockchain, seu funcionamento e das vantagens trazidas por essa tecnologia, bem como a possibilidade de criação de contratos inteligentes (smart contracts), contratos escritos em linguagem de programação que preveem a execução de determinado resultado quando a condição descrita for preenchida, garantindo transparência e segurança quanto ao negociado. Por fim, após uma reflexão acerca da implicação dos contratos autoexecutáveis na esfera jurídica, o estudo propõe que a tecnologia em comento seja utilizada em diferentes aspectos da relação de emprego, tais como registro de jornada e recebimento de salários, possibilitando um contrato de trabalho diferenciado, mais transparente e seguro tanto para o empregador quanto para o empregado, solucionando conflitos jurídicos comuns na Justiça do Trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Blockchain. Smart contract. Direito do Trabalho. Contrato de trabalho.
ABSTRACT: This paper aims an analysis about the employment of blockchain, a technology that consists of a database that provides unalterable, public and distributed records of transactions, and their implications in the legal area. In order to do so, we conceptualize the blockchain, its operation and the advantages brought by this technology, making considerations about the possibility of creating smart contracts, which are programs that execute a given procedure after certain condition is fulfilled. Finally, after a reflection on the implication of self-executing contracts in the legal sphere, this paper proposes that the technology under discussion can be used in different aspects of the employment relationship, such as the control of the working hours and the payment of wages, enabling differentiated employment contract, more transparent and safer for both the employer and the employee, solving common legal conflicts in the Labor Court.
KEY-WORDS: Blockchain. Smart contract. Labour Law. Employment Contract.
1 Sócia do Silveiro Advogados. Advogada trabalhista, OAB/RS 109.897, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Porto Alegre/RS, Brasil
1 INTRODUÇÃO
No final do século XX, o jurista e criptógrafo Xxxx Xxxxx compartilhou pela primeira vez o conceito de “smart contract” (contrato inteligente), termo utilizado para definir transações de computador que executam os termos de um contrato automaticamente baseado nas condições pré-estabelecidas (NG, 2018). Xxxxx referiu que os termos de um contrato poderiam ser traduzidos em código e, quando uma das funções fosse satisfeita, o contrato automaticamente poderia executar o resultado previsto, sendo, portanto, autoexecutável.
Alguns anos depois, em 2008, Xxxxxxx Xxxxxxxx publicou o artigo “Bitcoin: A Peer-to- Peer Cash System”, trazendo pela primeira vez o conceito de blockchain, tecnologia que pode ser definida como uma base de dados que fornece registros inalteráveis, públicos e distribuídos de transações (WATTERS, 2016). Tal conceito, pensado originalmente enquanto código para a criptomoeda referida, torna ainda mais concreta a ideia de Xxxxx quanto à criação de contratos inteligentes, vez que a utilização da tecnologia não se restringe ao campo das finanças.
Tecnologias como a blockchain estão cada vez mais em voga e tem o potencial de revolucionar a indústria e alterar os paradigmas da nossa sociedade, vez que garantem a segurança e transparência das transações em uma forma de tecnologia pública e descentralizada. Contudo, ainda não há uma regularização da blockchain e os projetos que envolvem seu uso estão em sua maioria em uma fase experimental (WATTERS, 2016). O contrato inteligente (smart contract), por exemplo, é um avanço disruptivo que terá impacto de longo alcance nas finanças, na governabilidade e em diversos setores (NG, 2018), mas ainda há poucos profissionais do direito refletindo sobre a aplicabilidade desses contratos e seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro.
Este trabalho tem como objeto realizar uma análise acerca da blockchain e seus possíveis usos no contrato de trabalho, seja em aspectos técnicos, como para viabilizar um inefável registro de jornada, seja pensando na relação de emprego a partir de um smart contract. Para tanto, em um primeiro momento, o presente estudo traz o conceito da blockchain e uma breve explicação sobre seu funcionamento, suas vantagens e campos de aplicação, utilizando como referencial teórico artigos publicados em periódicos, revistas e sites relacionados à
tecnologia da informação. Em um segundo momento, reflete-se sobre o impacto da blockchain na esfera jurídica à medida que a tecnologia permite a criação de contratos autoexecutáveis, ressaltando a importância dos profissionais de direito acompanharem a implementação das inovações tecnológicas a fim de garantir suas utilizações de acordo com a legislação vigente. Por fim, no último tópico, discute-se sobre a utilização da blockchain no contrato de trabalho, sugerindo sua utilização em sistemas de controle de jornada e pagamentos de salário e refletindo sobre seus possíveis impactos na área trabalhista, a fim de solucionar por derradeiro litígios relativos à labor extraordinário sem correta contraprestação.
Espera-se que o presente trabalho possibilite uma maior clareza de conceitos ao profissional do direito engajado com a criação de smart contracts, incentivando ainda o pensamento crítico quanto à aplicabilidade das novas tecnologias a fim de melhorar as relações jurídicas estabelecidas em nossa sociedade e garantir juridicidade às operações realizadas com o uso da blockchain.
2 O CONCEITO DE BLOCKCHAIN
A blockchain pode ser conceituada como uma espécie de “livro registro” gerenciada por computadores pertencentes à uma rede peer-to-peer (ROUSE, 2018) configurando uma cadeia de registros imutáveis, públicos e distribuídos. Trata-se de uma cadeia de registros imutáveis e distribuídos porque os registros estão encadeados aos outros por meio de chaves públicas, entradas e saídas, distribuídos não apenas em um único servidor, mas replicado em milhões de máquinas distribuídas pelo mundo, sendo impossível a alteração desses registros após a inserção na cadeia (PIRES, 2016, p. 56). Diz-se, ainda, que tais registros são públicos porque a única condição necessária para um indivíduo ter acesso aos registros da block chain é o uso da Internet, sendo relevante destacar que nenhuma empresa ou indivíduo pode reivindicar a propriedade destes registros (PIRES, 2016, p. 56).
A blockchain tem como pilares a segurança das operações, descentralização de armazenamento, integridade de dados e imutabilidade de transações (XXXXX, FILHO, LEAL, 2017). Em um artigo publicado na revista Harvard Business Review, os professores Xxxxx
Iansiti e Xxxxx X. Lahani referem que “com a blockchain, podemos imaginar um mundo no qual contratos estão inseridos em códigos digitais armazenados em base de dados transparentes e compartilhadas, onde os contratos estarão protegidos de eliminação, adulteração e revisão” (IANSITI, XXXXXX, 0000, pp. 118-127). Explicam, ainda, que cada acordo, cada processo, cada tarefa e mesmo cada pagamento teria um registro digital e uma assinatura que poderia ser validada, armazenada e compartilhada.
Dentre as vantagens trazidas pelo uso da blockchain, podemos citar segurança, transparência e autonomia (GARRIGUES, 2018). Vez que os registros são entrelaçados e interdependentes, distribuído de forma descentralizada em uma infinidade de bancos de datos diferentes, a blockchain configura um sistema inviolável, sendo, ainda, duplamente seguro por ser necessário uma chave privada para criptografar uma transação e uma chave pública como endereço para definir o receptor. Isto também garante transparência e autonomia, já que todos os membros de uma rede participam da validação de trocas integradas em uma cadeia de blocos (contribuindo para a verificação da solvência e confiabilidade dos transmissores e receptores das transações) e, mais importante ainda, isto é feito de forma automática em razão do funcionamento da própria tecnologia, excluindo intermediários (humanos) para validação das transações (GARRIGUES, 2018).
Assim, o sistema de cadeia de blocos, ao simplificar procedimentos administrativos e otimizá-los, tornando-os automáticos, promove economia de tempo, redução dos custos de infraestrutura, bem como maior confiança e segurança nas operações (LALANDE, 2018). A economia de tempo, por exemplo, resta evidente se comparármos que o processamento de transações pode durar apenas alguns minutos em casos de pagamentos globais, enquanto a redução dos custos se dá mediante a eliminação dos custos operacionais e intermediários através do acesso confiável a uma base de dados distribuída e consistente (XXXXX, FILHO, XXXX, 2017).
O uso da blockchain é bastante significativo no campo das finanças, setor que mais tem investido na sua aplicação, tendo em vista que sua origem está intimamente ligada à criptomoeda bitcoin (XXXXX, FILHO, 2017). Todavia, discute-se também o uso nas áreas de segurança, energia, imobiliário e até mesmo em campos governamentais, questionando-se, por
exemplo, se a implementação da blockchain pode acarretar no “fim dos cartórios” e inclusive licitações (SETA, 2018). Da mesma forma, se discute o uso da blockchain nos sistemas de economia colaborativa, vez que a tecnologia possibilitaria, por exemplo, o aluguel de imóveis ou caronas sem intermediários como o “AirBnb” e “Uber”, estreitando ainda mais a relação entre o consumidor final e o prestador de serviços (LALANDE, 2018).
Não obstante, importante ter em mente que, enquanto a blockchain desponta como a tecnologia do futuro, sendo constantemente avaliada como a maior revolução desde a Internet (BRIS, 2017), a aplicabilidade da blockchain já é uma realidade, estando cada vez mais presente na sociedade em que vivemos, sendo utilizada para gerenciamento de dados, segurança na rede, rastreamento de carga, transações de propriedades, registro predial, redes sociais, entre muitas outras atividades (LAMOUNIER, 2018). No campo jurídico, por facilitar o registro de dados de forma segura e imutável, a blockchain pode ser utilizada também para autenticação de documentos, registros de provas de autoria e contratos inteligentes (ROSË, 2018), validando o que for acordado entre as partes por meio de uma public key infrasctructure, ou seja, uma estrutura descentralizada, cujos elementos são a autoridade de certificação, autoridade de registro, banco de dados certificados e loja de certificados (VACCA, 2004).
Com efeito, a blockchain traz inegáveis benefícios na esfera jurídica, haja vista que proporciona maior confiança e segurança nas transações e compartilhamento de informações, potencial redução de custos e otimizando as relações, possibilitando, ainda, a execução forçada dos direitos e obrigações criados com a utilização da blockchain. Assim, vez que a blockchain possui muitas aplicações tangíveis inclusive na área jurídica, é mister que o operador do direito esteja familiarizado com esta tecnologia, com direito contratual e com o estudo de áreas correlatas àquelas afetadas pela blockchain, questionando-se sobre os possíveis usos da blockchain e suas implicações no âmbito legal.
O ordenamento jurídico permite a elaboração de contratos por meio eletrônico, conforme se verifica da leitura do artigo 104, III do Código Civil,2 de modo que a criação de
2Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei
contratos inteligentes não é vedada pela legislação. Contudo, há muitos desafios a serem enfrentados para garantir o uso lícito da tecnologia, sendo indispensável a presença de um especialista para garantir a legalidade do pactuado. Assim, o profissional do direito deve estar sensível às novidades e estar atualizado quanto à aplicabilidade da blockchain em consonância com a legislação vigente e seu potencial nas relações contratuais, a fim de conferir a juridicidade necessária para as operações realizadas com esta nova tecnologia.
3 O USO DA BLOCKCHAIN NA CRIAÇÃO DE SMART CONTRACTS
O estudo da blockchain ganha relevância na esfera jurídica à medida que possibilita a de criação de contratos auto-executáveis. A partir da tecnologia blockchain, é possível desenvolver contratos auto-executáveis, determinando, por exemplo, pagamentos automáticos e transferência de ativos de acordo com o cumprimento das condições negociadas (IANSITI, XXXXX, 2017, pp. 118-127). As partes podem acordar condições para transação recorrente de bens, produtos e serviços e implementarem tais condições na blockchain, de modo que, atingidas tais condições, as ações previstas serão executadas de forma autônoma e irreversível (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LAWTECHS & LEGALTECHS, 2017).
Chama-se de smart contract (contrato inteligente, em português) os “programas de computador replicados e executados todos os nós da rede, ou por um conjunto predeterminado de nós denominados validadores” (BRAGA, FILHO, 2017). Diferentemente dos contratos tradicionais, o smart contract é escrito em linguagem de programação, semelhante à usada na programação orientada a objetos (LIMA, 2018), prevendo determinado resultando quando a condição descrita for preenchida, possibilitando não só a autoexecução de uma obrigação, como estabelecendo sanções autoexecutáveis em caso de mora ou inadimplemento. A título ilustrativo, esclarece-se que o smart contract poderia ser usado no setor imobiliário para a compra e venda de imóveis ou aluguel dos mesmos – no caso do aluguel, o smart contract poderia verificar se o valor correspondente ao aluguel estaria disponível nos fundos do locador e, caso positivo, transferiria automaticamente para a carteira do locatário, que, através do smart contract, transferiria a chave de acesso ao imóvel ao locador (LIMA, 2018). Funcionaria, como
bem exemplificou Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, como uma máquina de refrigerantes, que caso o usuário preencha os requisitos (depositar determinada quantia de dinheiro na máquina, suficiente para aquisição da bebida escolhida), a máquina invariavelmente irá fornecer o refrigerante selecionado (XXXXXXXXX, 2016).
Importante ter em mente que, devido à própria tecnologia da blockchain, que determina a execução de um resultado caso uma condição específica seja cumprida, os contratos inteligentes diferenciam-se dos contratos tradicionais à medida que esses envolvem uma interpretação e julgamento humanos, enquanto nos contratos inteligentes, por se basearem em um sofware rígido e previsível, com sustentação matemática, não possuem a mesma flexibilidade (ARRUDA, 2017), sendo autoexecutáveis. Por tal motivo, indispensável a presença de um profissional jurídico na elaboração do contrato, a fim de garantir que a relação ali estabelecida esteja em consonância com a legislação vigente.
Há quem diga que, tendo em vista que uma das principais “vantagens” da blockchain é a dispensa de intermediários para transações, argumentando que, em razão a autoexecutoriedade dos contratos obtida através da criação de smart contracts, não seria necessário o envolvimento de advogados (XXXXXXX, XXXXX, 2017, pp. 118-127). No entanto, verifica-se que muitas aplicações em blockchain estão sendo realizadas sem a correta análise legal e regulamentar (ARRUDA, 2017) e há sérias dúvidas sobre o que aconteceria caso um código errado acarretasse na suspensão indevida de determinada obrigação, como ocorreria a rescisão judicial desses contratos e qual jurisdição aplicável (LIMA, 2018). Nesta senda, seria ingenuidade ignorar a importância dos operadores de direito, que por sua vez devem estar inteirados acerca das novas tecnologias a fim de promover adequado aconselhamento jurídico e, porque não, evitar disputas judiciais acerca dos direitos e obrigações originados dos contratos inteligentes. Cabe ao direito acompanhar as mudanças sociais e adequar-se às inovações tecnológicas, possibilitando que os contratos inteligentes sejam aplicados objetivando segurança jurídica e a melhor funcionalidade possível.
No cenário atual, tem-se que não só o crescimento da blockchain, como também das tecnologias disrupitivas causam um significativo impacto nas relações de trabalho, sendo necessário que o direito acompanhe as inovações tecnológicas e se adeque à nova realidade.
Nesse sentido, interessante refletir sobre os possíveis usos da blockchain na criação de contratos de trabalho, possibilitando a resolução de antigos problemas que acabam sendo objeto de litígio na Justiça do Trabalho e ao mesmo tempo modernizar as relações de emprego, garantindo maior segurança e transparência à relação havida entre empregado e empregador, bem como assegurando o cumprimento dos direitos trabalhistas.
4 A UTILIZAÇÃO DO SMART CONTRACT E DA BLOCKCHAIN NO CONTRATO DE TRABALHO
O Direito do Trabalho é tido como um dos ramos mais litigiosos do Direito, o que se diz com base no número expressivo de demandas que são ajuizadas na Justiça do Trabalho. Apenas entre janeiro a setembro de 2018, foram ajuizadas 1.287.208, o que é um número bastante significativo mesmo levando em conta a considerável diminuição do ajuizamento de demandas após a vigência da Lei nº 13.467/2017 – no mesmo período, antes da reforma, o número de ajuizamento de reclamatórias ultrapassou dois milhões (BRASIL, 2018). São inúmeros motivos que levam os trabalhadores a pleitearem em Juízo o cumprimento dos direitos trabalhistas, mas é possível afirmar com segurança que grande parte das reclamatórias tem como objeto direitos relativos à jornada de trabalho e o correto pagamento dos salários (DESIDÉRIO, 2016).
O integral registro da jornada de trabalho é um tema recorrente nas reclamatórias trabalhistas. Independentemente do modo com que é feito o registro, seja biométrico ou manual, em muitos casos os empregados que vão à Juízo referem que o sistema de cartão ponto pode ser burlado ou manipulado pela própria empresa, que impediria os funcionários de registrarem integralmente as horas extras. Ainda, mesmo nos casos em que os registros de jornada são plenamente válidos, não são raras as ocasiões em que as horas extras não são adimplidas corretamente em razão de equívocos no cálculo, sendo devidas diferenças aos funcionários. Obviamente, raciocínio inverso pode ser utilizado na perspectiva do empregador, que investe em modernos sistemas de registro de jornada para, ao final, os mesmos serem considerados inválidos quando confrontados pela prova testemunhal que, apesar de ter um papel relevante na
Justiça de Xxxxxxxx, ainda se revela como um meio de prova frágil que muitas vezes não condiz com a realidade.
Com a implementação da blockchain nos meios de controle de jornada, os dilemas acerca do integral registro do labor não mais existiriam. Isto porque se trata de um sistema inviolável, transparente e de extrema segurança, que permite a execução de determinada obrigação nos exatos moldes firmados entre as partes. Assim, o smart contract permitiria pactuar o pagamento de salário de acordo com as cláusulas estabelecidas entre o empregador e o empregado, considerando, por exemplo, os dias efetivos de trabalho, horas extras prestadas, adicional decorrente do labor noturno e até mesmo a imposição de sanções ao empregador quando desrespeitadas as leis trabalhistas, como o pagamento de indenização referente ao período suprimido do intervalo intrajornada mínimo, na forma do artigo 71, §4º da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).3 Da mesma forma, poderia ser utilizado a fim de restringir o funcionamento do sistema utilizado pelo empregado à duração da jornada de trabalho, impossibilitando a prestação de labor em período não autorizado pelo empregador, evitando litígios acerca de eventual labor não registrado. O funcionário, portanto, receberia a exata contraprestação devida pelo seu trabalho, sem que a empresa pudesse se desvencilhar de tal obrigação ou ainda arcar com uma condenação que lhe pareça injusta face à verdadeira jornada de trabalho praticada.
Com efeito, o smart contract pode ser utilizado para facilitar e tornar certo o pagamento de salário, possibilitando a contraprestação em criptomoeda de acordo com o período trabalhado. No caso de um empregado comissionista, por exemplo, o smart contract poderia estar vinculado ao banco de dados da empresa, relacionando estritamente as vendas realizadas por determinado empregado com as comissões a serem recebidas. Ao fim do mês, havendo fundos nas contas da empresa, invariavelmente ocorreria o pagamento da remuneração integral
3 Art. 71 - Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas.
(...)
§ 4º A não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.
de acordo com a quantia previamente estabelecida entre as partes, de forma imediata e no exato dia estabelecido no smart contract, sem deixar margens para atrasos ou pagamento a menor por parte do empregador (COX, 2018). Mesmo raciocínio pode ser utilizado para a concessão das férias de acordo com as faltas injustificadas, possibilitando que o direito fosse exercido de acordo com as proporções previstas no artigo 130 da CLT,4 e inclusive para a aplicação da justa causa por abandono de emprego, preceituada no artigo 482, alínea “i” da CLT.5 Inexistindo registro de jornada em trinta dias consecutivos ou sessenta dias intercalados ao longo de um ano, automaticamente haveria a extinção contratual. As verbas rescisórias seriam pagas de forma automática de acordo com a modalidade de rescisão do contrato de trabalho.
Contudo, vale frisar que ainda deve ser discutida quais as possibilidades de rescisão contratual de um contrato autoexecutável, ou ao menos, como ocorreria a rescisão, tendo em vista que se trata de um contrato a princípio irrevogável. Parece certo que o contrato se rescindiria automaticamente havendo “pedido de demissão” do empregado, afinal, segundo a lógica da programação, se o funcionário não trabalhar, não receberá a contraprestação, podendo o smart contract prever, nessa ocasião, o recebimento das verbas rescisórias. Todavia, há dificuldades de se entender como seria possível a despedida imotivada pelo empregador ou mesmo o que aconteceria caso descumprida alguma obrigação acessória do contrato de trabalho ou alguma situação não prevista pelo código programado, que fosse verificada apenas no campo real, e não virtual, implicasse na rescisão do contrato. Ao que parece, seria necessário um terceiro para incrementar cláusulas contratuais ou mesmo firmar um novo smart contract para rescindir o antigo contrato, motivo pelo qual é imprescindível que o processo seja acompanhado de um advogado familiarizado com o uso desta tecnologia.
4 Art. 130 - Após cada período de 12 (doze) meses de vigência do contrato de trabalho, o empregado terá direito a férias, na seguinte proporção:
I - 30 (trinta) dias corridos, quando não houver faltado ao serviço mais de 5 (cinco) vezes; II - 24 (vinte e quatro) dias corridos, quando houver tido de 6 (seis) a 14 (quatorze) faltas; III - 18 (dezoito) dias corridos, quando houver tido de 15 (quinze) a 23 (vinte e três) faltas;
IV - 12 (doze) dias corridos, quando houver tido de 24 (vinte e quatro) a 32 (trinta e duas) faltas.
5 Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: (...)
i) abandono de emprego;
Feitas tais considerações, ao menos em relação ao que é possível programar e verificar no campo virtual, tem-se que o uso da blockchain pode trazer grandes vantagens às relações de emprego, tornando as obrigações mais sólidas e garantindo direitos de patrimonial. A aplicação da blockchain nos registros de jornada solucionaria por derradeiro eventuais discussões acerca da correta anotação da jornada de trabalho e correspondente contraprestação, trazendo mais segurança tanto para o empregador quanto para o empregado, facilitando o processo remuneratório e o tornando mais prático e inquestionável. O smart contract garantiria que o empregador cumprisse todas as obrigações de caráter pecuniário automaticamente, protegendo o empregado de uma possível atitude desonesta do empregador, já que impossibilitado o descumprimento das obrigações pactuadas (TIKHOMIROV, 2017).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A blockchain é uma poderosa ferramenta tecnológica, criada de acordo com os ideais de segurança das operações, descentralização de armazenamento, integridade de dados e imutabilidade de transações, o que traz maior garantia de cumprimento das obrigações e otimiza as relações pactuadas. Tendo em vista suas vantagens e o próprio funcionamento da tecnologia, é evidente que a mesma causará um grande impacto nos setores financeiros, imobiliário, governamental, entre tantos outros, sendo necessário refletirmos sobre sua aplicabilidade, bem como suas implicações na esfera jurídica.
Por trazer mais segurança e transparência entre as partes, a blockchain é uma das ferramentas indicadas para a criação de smart contracts, contratos autoexecutáveis elaborados com linguagem de programação para impor que, sendo determinada condição cumprida, o resultado programado seja automaticamente executado. Todavia, considerando a rigidez própria desse tipo de contrato e eventuais problemas que podem surgir quanto à impossibilidade de alteração de cláusulas ou rescisão contratual, indispensável a presença de um operador do direito na elaboração do contrato, sendo mister que o profissional envolvido esteja inteirado acerca das novas tecnologias, seu funcionamento e implicações, buscando, inclusive, soluções jurídicas a partir das inovações tecnológicas.
Considerando que o contrato de trabalho pode gerar um litígio judicial entre as partes em razão do descumprimento das obrigações pactuadas, verifica-se que a utilização da blockchain se mostra uma excelente maneira de trazer segurança e infalibilidade em aspectos importantes como o registro da jornada de trabalho e correspondente contraprestação, o que contribui para a concreta efetividade dos direitos e obrigações das partes e consequente diminuição do número de reclamatórias ajuizadas na Justiça do Trabalho. Com o uso da blockchain, poder-se-ia obter um registro inequívoco da jornada de trabalho do empregado e, criando um smart contract, facilitaria o processo de pagamento de salários e inclusive de outros direitos como férias, adicional noturno e até mesmo garantindo indenizações automáticas no descumprimento de alguma obrigação. O smart contract, portanto, traria maior confiabilidade em relação ao pactuado e garantiria o exato cumprimento das obrigações pactuadas e garantia dos direitos trabalhistas, vez que muitos aspectos poderiam ser registrados e autoexecutáveis.
Atualmente, conceitos como blockchain e smart contract são muito recentes e pouco explorados no cenário brasileiro, mas prometem uma revolução nos paradigmas de diversos setores, inclusive em aspectos que impactam diretamente a vida do cidadão comum, como as transações financeiras, aluguéis de imóveis e relações de trabalho. Diante o exposto, é de suma importância que o Direito acompanhe as inovações tecnológicas e as mudanças sociais, refletindo não apenas sobre sua regularização, como também na melhor forma de aplica-las ao campo jurídico, otimizando operações que fazem parte do nosso cotidiano e trazendo soluções jurídicas para antigos problemas de nossa sociedade.
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