ANNA CAROLINA MORIZOT TOURINHO
FUNDAÇÃO XXXXXXX XXXXXX ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO
FGV DIREITO RIO
XXXX XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX
O PODER PÚBLICO INADIMPLENTE: Uma busca por mecanismos para garantir o cumprimento de obrigações do Poder Concedente em contratos de concessão de serviço público
Rio de Janeiro 2017
XXXX XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX
O PODER PÚBLICO INADIMPLENTE: Uma busca por mecanismos para garantir o cumprimento de obrigações do Poder Concedente em contratos de concessão de serviço público
Dissertação para obtenção de grau de mestre apresentada à Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx
Área de concentração: Direito da Regulação Orientador: Rômulo Sampaio Coorientadora: Patrícia Sampaio
Rio de Janeiro 2017
Xxxxxxxx, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx
O poder público inadimplente: uma busca por mecanismos para garantir o cumprimento de obrigações do poder concedente em contratos de concessão de serviço público / Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. – 2017.
140 f.
Dissertação (mestrado) - Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx. Orientador: Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx.
Inclui bibliografia.
1. Concessões administrativas. 2. Contratos. 3. Obrigação (Direito). 4. Serviços públicos.
I. Sampaio, Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. II. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx. III. Título.
CDD - 341.353
Dedico esta dissertação para meu pai, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, in memoriam. Esse sonho era seu e me enche de orgulho tê-lo realizado.
Este trabalho não é fruto da dedicação e do esforço de uma só pessoa. Se tem uma coisa que aprendi com essa dissertação, é que um trabalho acadêmico só é possível com o apoio de diversas pessoas, das mais diversas maneiras.
Agradeço em primeiro lugar à Marina, por ter sido uma companheira incrível no primeiro semestre de aulas, por ter escolhido o melhor dia dentro do calendário escolar para nascer e por sempre ter dormido bem, me permitindo usar as madrugadas para estudar. Se você não fosse um bebê tão incrível, eu não teria conseguido.
Ao Xxxxxxx, por seu um marido e pai maravilhoso, me dando todo o suporte que eu precisava para estudar, ouvindo minhas angustias e proferindo palavras de incentivo. Seu companheirismo, compreensão, paciência, e amor foram e sempre serão fundamentais para mim.
À minha mãe por todo amor, incentivo e por investir em mim e me apoiar nas minhas escolhas. Você é a minha melhor torcida!
À Xxxx, por cuidar da nossa família com tanto carinho e me ajudar com a Xxxxxx, fazendo com que minha falta fosse sentida o mínimo possível.
Ao meu orientador, Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, por ter me acolhido, por ter apoiado a escolha do meu tema e me dado a liberdade e segurança de seguir meu caminho, me guiando durante todo o percurso. À minha co-orientadora Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, por ser fonte de inspiração e por ser doce e exigente na medida certa para extrair sempre o melhor de mim.
Ao Professor Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx por ter sido tão atencioso e generoso na minha banca de qualificação, dando contribuições valiosíssimas que foram determinantes para a estruturação deste trabalho.
À Xxxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxxxx por todas as dicas, discussões, releituras, trocas de informação e palavras de conforto.
À minha tia, Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx, que tanto me ajudaram com os livros e textos.
Aos amigos e familiares que compreenderam minhas ausências e me deram palavras de conforto e incentivo durante todo este processo. Muito obrigada!
Hoje, no Brasil, há uma tendência de substituição no eixo de atuação da Administração com base na supremacia e na unilateralidade para uma ideia de consenso e bilateralidade. Entende-se que Administração e particular devem atuar em conjunto, de forma colaborativa e não em uma situação de subordinação do particular à Administração.
Isto porque, cada vez mais, o regime de prerrogativas especiais acaba servindo de base para o estímulo à ineficiência da Administração, geração de contratos mais onerosos, legitimação de práticas autoritárias e facilitação de desvios em razão da flexibilidade de alteração de cláusulas contratuais.
Diante deste contexto, é preciso rever a posição de supremacia que o poder concedente exerce em contratos de concessão de serviço público.
Buscou-se através do presente trabalho explicações na doutrina nacional e estrangeira que pudessem justificar esse desequilíbrio e as peculiaridades que cercam essa relação entre poder concedente e concessionárias nos contratos de concessão comum.
Em seguida, foram analisadas decisões dos Tribunais Regionais Federais para identificar quais são as possíveis formas de descumprimento contratual pela Administração Pública.
Por fim, foram analisados mecanismos para evitar que o poder concedente incorra no inadimplemento, para o compelir a cumprir suas obrigações e, finalmente, para compensar o concessionário por eventuais danos sofridos em razão do descumprimento de cláusula contratual.
Conclui-se, assim, que a melhor forma de garantir o interesse público é limitar o exercício dos poderes exorbitantes, que deve se dar apenas em situações excepcionais, de forma a garantir segurança jurídica e diminuir os custos de contratar com o poder público.
Palavras-Chave: Contrato de concessão. Inadimplemento. Poder concedente. Serviços públicos. Concessão.
Currently, in Brazil, there is a movement to change the relationship of the public and private sector from a supremacy of the Government status to a more consensual and collaborative relationship.
That is because this extraordinary power system used in the concession agreement is proving to be inefficient, costlier, and is being used to support authoritarian practices from the Government.
In that context, is urgent to reconsider this superior position that the Government exercise in concession agreements.
This paper searched in the national and international doctrine the reasons why it was understood to be important for the Government to have these special powers in such contracts. It was searched in judicial precedents what is the most common forms of the Government´s default. It was analyzed several preventive and reactive mechanisms to avoid the default to happen, to respond to the non-compliance compelling the Government to act as established in the contract, and to compensate the private partner in case it is impossible to meet the agreement.
It was understood that the best way to ensure the public interest is to reduce the extraordinary powers from the Government, ensuring legal certainty and reducing the costs to the Government as a partner.
Keywords: Concession contract. Public utilities. Contractual breach. Government contract.
1. A CONCESSÃO COMO CONTRATO 16
1.1 Um panorama dos contratos de concessão no ordenamento jurídico atual 16
1.2 A visão da doutrina tradicional sobre o contrato de concessão e suas peculiaridades 20
1.3 A concessão como contrato bilateral 26
1.4 A vinculação da Administração Pública ao contrato de concessão 31
2. O DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 41
2.1 Descumprimento ativo: alterações unilaterais pela Administração Pública sem a devida motivação 43
2.1.1 Alteração unilateral ou descumprimento? 46
2.1.3 A renegociação do contrato pelas partes como descumprimento contratual 53
2.2 Descumprimento passivo: descumprimento de obrigações contratuais pela Administração Pública por omissão 55
2.3 Descumprimento por ação de terceiros 66
3. MECANISMOS PARA EXIGIR O CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DO PODER CONCEDENTE 77
3.1.1 Matriz de riscos e obrigações: como evitar o inadimplemento das partes através de uma melhor alocação dos riscos do contrato 78
3.1.2 Alterações legislativas 85
3.1.3 Dispute boards ou Comitê de Resolução de Conflitos 93
3.2.1 Exceptio non adimpleti contractus 98
3.2.2 Medidas Judiciais 101
3.2.3 Métodos alternativos de solução de conflitos 109
3.3 Mecanismos de compensação 117
3.3.1 Reequilíbrio econômico-financeiro do contrato 117
3.3.2 Indenização por perdas e danos: A responsabilidade civil do poder concedente face ao inadimplemento 122
CONCLUSÃO 126
REFERÊNCIAS 136
INTRODUÇÃO
De todos os instrumentos utilizados pelo Poder Público para se associar ao privado na realização de atividades que se encontram na sua esfera de atuação, a concessão aparece como a mais antiga e frequente1.
No Brasil, a concessão de serviço público, entendida como a prestação de um serviço público por um particular, que atua por sua conta e risco a partir de uma delegação estatal, foi utilizada amplamente desde a época do Império2. A primeira linha férrea brasileira, por exemplo, vislumbrada por Barão de Mauá, foi feita por meio de uma concessão do Governo Imperial, e inaugurada em 30 de abril de 1854 por D. Pedro II3.
A partir do Governo de Xxxxxxx Xxxxxx, nos anos 1940, com a ascensão da política de intervenção direta do estado na economia – conhecida como “estado do bem-estar” ou “estado keynesiano”, caracterizada pela forte atuação do estado como desenvolvedor de serviços assistenciais e provedor direto das necessidades da população seja como planejador, produtor de bens e gestor direto de serviços públicos, empregador, ou através da alocação centralizada de capitais e nacionalização de setores estratégicos da economia – houve uma redução drástica na utilização das concessões de serviço público.
A opção pela desestatização de diversas atividades historicamente executadas pelo setor público só ressurgiu com o declínio deste estado keynesiano. A partir dos anos 70, com o elevado déficit fiscal decorrente de anos de investimentos estatais não lucrativos e o crescimento do desemprego e das taxas de inflação, cada vez mais se tornava insustentável o modelo de política pública que envolvia altos gastos com políticas de bem-estar social. Como explica XXXXXXXXXXXX MAJONE
[a]s políticas de nacionalização pareciam demonstrar uma evidência incontestável do fracasso do Estado Positivo. De um país a outro, empresas estatais foram questionadas por não conseguirem atingir nem seus objetivos sociais, nem os econômicos, por sua
1 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 115.
2 Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx conta que “O instituto da concessão de serviço público foi praticado largamente durante o século XIX e início do século XX. Verificou-se, então, uma sensível redução em sua utilização, coincidindo com a ascensão das concepções de intervenção estatal direta.” (As diversas configurações da Concessão de serviço público. In: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Editora Fórum, n.1, p.95- 136, jan./mar. 2003.)
3 DAYCHOUM, Xxxxxx Xxxxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. Regulação e Concorrência no setor ferroviário. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. P. 17.
falta de responsabilização e pela tendência de serem capturadas por políticos e sindicatos 4.
XXXXXXXXX XXXXXX XX XXXXXX, por sua vez, destaca
[É] difícil manter determinadas atividades titularizadas e prestadas diretamente pelo Estado nacional se, por um lado, ele não tem mais recursos para nelas investir, e, por outro, a mundialização impõe, como requisito da obtenção de recursos externos, o fim das regras de proteção de mercados, para que todos os agentes econômicos globalizados possam ter acesso a eles.5
Com isso, surgiu a proposta de um novo modelo de governança, “que incluísse a privatização de muitas partes do setor público, mais concorrência em toda a economia, maior ênfase na economia pelo lado da oferta e reformas de longo alcance no Estado do bem-estar.”6, o chamado Estado Regulador.
No Brasil, esse novo modelo ganhou força a partir de 1995, com a eleição de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx para Presidente, “quando houve uma intensificação nas privatizações, sendo o programa de desestatizações apontado como sendo um dos principais instrumentos do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”.7 Essa estratégia do Estado, ainda que tenha gerado um grande volume de recursos necessários para a recuperação da economia, por outro lado “lhe retirou grande parte do poder de comando sobre os serviços públicos, já que os investidores privados só carreariam seus recursos se presente um arcabouço institucional e normativo apropriado aos seus interesses de lucro e de segurança jurídica”.8
No contexto de crise econômica em que o país se encontra atualmente, os planos de desestatização voltam a ganhar força e a ser uma alternativa para, a curto prazo, balancear as contas públicas. De um lado, eles geram receitas por meio da alienação de ativos estratégicos. De outro, a transferência à iniciativa privada de atividades antes prestadas pelo poder público
4 XXXXXX, Xxxxxxxxxxxx. Do estado positivo ao estado regulador: causas e consequências da mudança no modo de governança. In Regulação Econômica e Democracia: o debate europeu. (Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx – Coord.) São Paulo: Singular, 2006. pp. 55 e 56.
5 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 46.
6 XXXXXX, Xxxxxxxxxxxx. Do estado positivo ao estado regulador: causas e consequências da mudança no modo de governança. In Regulação Econômica e Democracia: o debate europeu. (Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx – Coord.) São Paulo: Singular, 2006. p. 56.
7 GUERRA, Xxxxxx. Aperfeiçoando a regulação brasileira por agências: Quais lições podem ser extraídas do sesquicentenário modelo norte-americano?. In: Teoria do Estado Regulador. Organização Xxxxxx Xxxxxx. Curitiba: Juruá, 2015. p. 79.
8 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 52.
reduz os custos do Estado com essas atividades e ainda pode levar a uma maior eficiência, com a diminuição de gastos decorrentes de eventual ineficiência Estatal.9
A segurança jurídica e a estabilidade regulatória são pilares relevantes para garantir o interesse de um maior número de empresas privadas nas licitações, aumentando o número de interessados no processo de seleção do potencial concessionário, bem como estimulando o oferecimento de propostas mais competitivas. Na medida em que os particulares não precisem colocar uma margem adicional ao seu preço para se resguardar contra fatos imprevistos, aumentam as chances de se selecionar uma proposta mais atraente e eficiente para o Poder Público.
Esses fatos imprevistos podem ser de diversas matizes que vão desde a conjuntura política e econômica do país, passando por alterações nas prioridades e diretrizes de governo, até cláusulas exorbitantes e descumprimento injustificado do contrato pelo poder concedente.
O problema é que a simples edição de uma nova lei não garante a segurança jurídica necessária à atração de investimentos no Brasil. É necessário todo um arcabouço institucional que gere confiança no investidor de que os contratos serão respeitados e de que haverá meios seguros, imparciais e eficazes para a solução de eventuais conflitos no bojo do contrato.
Em tempos de Programa de Pareceria de Investimentos - PPI10 e desestatização, em que se pretende firmar novos contratos de concessão de serviço público e renegociar contratos já firmados, é preciso olhar para trás e avaliar quais foram as disputas que envolveram os contratos de concessão firmados, de forma a aprender com os erros do passado e, se for o caso, aprimorar os contratos de concessão futuros.
O objetivo deste trabalho é investigar como o concessionário pode se prevenir e como pode reagir diante do descumprimento injustificado do contrato de concessão de serviços públicos pelo poder concedente, identificando hipóteses de inadimplemento injustificado e propondo mecanismos para exigir o cumprimento do contrato.
Nossa hipótese é que existem diversas formas de o poder concedente descumprir o contrato, mas que o arcabouço jurídico que trata sobre concessões de serviços públicos não prevê mecanismos através dos quais a concessionária possa exigir o cumprimento das
9 Nesse sentido veja-se a posição de Xxxxx Xxxxxx: “É hora de privatizar”, publicado na Folha de S. Xxxxx em 17.09.2015. Disponível em: xxxx://xxx0.xxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/0000/00/0000000-x-xxxx-xx-xxxxxxxxxx.xxxxx. Acesso em: 30.06.2016.
10 O Programa de Parceria de Investimentos foi criado pelo governo através da Lei n. 13.334/2016 com o objetivo de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização.
obrigações assumidas pelo Poder Público no bojo desses contratos11. Essa ausência de coordenação entre a prática e a teoria dos contratos de concessão faz com que contratar com a Administração Pública seja um negócio de alto risco, o que dificulta a seleção de melhores parceiros privados e aumenta os custos de contratação com o poder público, trazendo prejuízos ao interesse público.
Ao tratarmos sobre descumprimento imotivado de cláusulas contratuais por parte do poder concedente estamos nos referindo a alterações unilaterais pela Administração, sem a adequada e expressa motivação e descumprimentos injustificados decorrentes de interesses políticos conflitantes, omissão, morosidade, desídia ou inércia do poder concedente na gestão do contrato de concessão. Não se trata, portanto, de atos praticados em atendimento a um interesse público superveniente, devidamente motivado.
A consecução dos objetivos desse estudo utilizará diferentes métodos de pesquisa, mediante o desenvolvimento de análise: (i) da legislação pertinente para identificar quais os mecanismos previstos para solução desses impasses no bojo do contrato de concessão, (ii) bibliografia especializada em busca de estudos sobre o inadimplemento do poder concedente no contrato de concessão; (iii) de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais para identificar os litígios que envolvem o inadimplemento do poder concedente em contratos de concessão, seja por ação ou omissão.
Para tanto, no primeiro capítulo buscamos entender o contrato de concessão no arcabouço jurídico atual. Assim, partimos de um levantamento sobre o contrato de concessão no direito positivo brasileiro e da visão da doutrina tradicional sobre concessões, para identificar como os contratos de concessão são entendidos pelo direito posto. Em seguida, analisamos as concessões como contrato, isto é, um acordo bilateral de vontades, para então avaliar como a Administração se vincula aos termos do acordo que ela própria propôs e firmou.
Constatamos que o arcabouço jurídico brasileiro das concessões foi todo pensado para uma delegação completa do serviço para o concessionário, isto é, considerando que o poder concedente não teria participação relevante na execução do projeto. Dessa forma, encontramos poucos dispositivos na Lei de Concessões que contemplam a possibilidade de assunção de obrigações pelo poder concedente no contrato de concessão e, consequentemente, que tratem sobre a hipótese de inadimplemento do poder público.
11 A Lei n. 8.987/95 trata apenas da hipótese de rescisão por descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mas não prevê como a concessionária pode compelir o poder concedente a cumprir com suas obrigações, para dar continuidade ao contrato.
No capítulo segundo mapeamos as hipóteses de descumprimento contratual pela Administração. Para tanto utilizamos um método de pesquisa empírico mediante a análise de decisões sobre temas envolvendo o inadimplemento da Administração Pública em contratos de concessão, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões, encontradas através de pesquisa de jurisprudência no Portal da Justiça Federal administrado pelo Conselho da Justiça Federal12. Subsidiariamente, fizemos buscas no Tribunal de Contas da União em busca de tema específicos que não retornaram resultados nos Tribunais ou que foram notoriamente analisados pelo órgão de controle.
Dentro desses parâmetros mais amplos, o recorte da pesquisa foi: decisões em que se discute o descumprimento de cláusulas contratuais pela Administração Pública em contratos de concessão do ano de 1995, quando foi editada a lei de concessões, até os dias de hoje.
Através de uma análise qualitativa das decisões levantadas verificamos que existem diversas formas possíveis de inadimplemento do poder concedente, que organizamos da seguinte forma (i) descumprimentos ativos, quando há alterações unilaterais do contrato pela Administração, sem a devida motivação e demonstração de um interesse público superveniente que a justifique, (ii) descumprimentos passivos, quando ela deixa de cumprir obrigações contratuais conforme pactuadas; (iii) descumprimento por ação de terceiros, como decisões do Poder Judiciário, dos órgãos de controle ou ação ou omissão de outros entes ou órgãos da Administração Pública.
No capítulo terceiro analisamos mecanismos para exigir o cumprimento de obrigações pela Administração Pública, sejam eles (i) preventivos, isto é, mecanismos que criem incentivos para evitar que a Administração descumpra o contrato; (ii) reativos, para uma vez descumprido o contrato, identificar quais seriam os instrumentos para compelir a Administração a cumprir o contrato; (iii) mecanismos de compensação, para exigir da Administração as compensações financeiras por seu inadimplemento.
Dentro dos mecanismos preventivos, analisamos como deve ser feita uma matriz de risco que reduza as chances de inadimplemento, propusemos alterações legislativas que possam garantir a previsão de penalidades e garantias contratuais para o concedente, bem como ponderamos as vantagens e desvantagens do mecanismo de dispute boards.
Quanto aos mecanismos reativos, analisamos os cenários em que o concessionário poderia alegar a exceção do contrato não cumprido para interromper a prestação do serviço,
12 xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxxx/Xxxxxxxx
medidas judiciais cabíveis em face do inadimplemento e a aplicabilidade de métodos alternativos de solução de conflitos como arbitragem, mediação e conciliação.
Por fim, configurada a hipótese de inadimplemento, analisamos as formas de compensação dos prejuízos sofridos pelo concessionário, seja mediante a utilização dos mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, seja através de indenização por perdas e danos.
1. A CONCESSÃO COMO CONTRATO
O primeiro passo para entender o inadimplemento do poder concedente em contratos de concessão é analisar o direito posto e o entendimento da doutrina sobre ele. Neste capítulo faremos uma análise dos contratos de concessão de serviços públicos no ordenamento jurídico atual e um estudo sobre como a doutrina entende esse arcabouço.
Em seguida, analisaremos a natureza jurídica dos contratos de concessão e como a Administração Pública se vincula a ele, em busca de respostas que justifiquem o desequilíbrio na relação entre poder concedente e o concessionário.
1.1 Um panorama dos contratos de concessão no ordenamento jurídico atual
Visando a retomada da economia e o reequilíbrio das contas públicas, o Governo Federal vem tomando uma série de medidas para estimular a desestatização e, em especial, a celebração e renegociação de contratos de concessão.
Nesse sentido, em 13 de setembro de 2016 foi publicada a Lei n. 13.334, conversão da Medida Provisória nº 727/2016, que criou no âmbito da Presidência da República, o Programa de Parcerias de Investimentos - PPI, destinado à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização.
De acordo com o art. 2º da Lei, o PPI tem como objetivo, dentre outros, “assegurar a estabilidade e a segurança jurídica, com a garantia da mínima intervenção nos negócios e investimentos; ” e “fortalecer o papel regulador do Estado e a autonomia das entidades estatais de regulação.”.
Em seguida, em 24 de novembro de 2016, a Medida Provisória 752, convertida na Lei nº 13.448 de 2017, dispôs sobre diretrizes gerais para a prorrogação e a relicitação dos contratos de parceria nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal. Conforme os artigos 2º e 3º da Lei, a prorrogação e a relicitação de que trata aplicam-se apenas a empreendimento público prévia e especificamente qualificado para esse fim no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Para tanto, o ministério ou a agência reguladora,
na condição de órgão ou de entidade competente, adotará no contrato prorrogado ou relicitado as melhores práticas regulatórias, incorporando novas tecnologias e serviços e, conforme o caso, novos investimentos.
Mais recentemente, em 12 de julho de 2017, foi editada a Medida Provisória nº 786, convertida na Lei n. 13.529/2017, que dispõe sobre a participação da União em fundo de apoio à estruturação e ao desenvolvimento de projetos de concessões e parcerias público-privadas.
O fundo tem como finalidade exclusiva financiar serviços técnicos profissionais especializados, com vistas a apoiar a estruturação e o desenvolvimento de projetos de concessão e parcerias público-privadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, até o limite de R$ 180.000.000,00 (cento e oitenta milhões de reais), permitindo a integralização de cotas por pessoas de direito público e privado e doações de estados estrangeiros, organismos internacionais e multilaterais em sua constituição.
Todas essas medidas visam a fomentar projetos de concessão e parcerias público- privadas através de um arcabouço jurídico que traga confiança para que o particular tenha interesse em investir nessas atividades fundamentais para o desenvolvimento do país.
Mas antes de criar programas específicos para estimular a participação de empresas privadas em concessões de serviço público, é preciso maturidade institucional para que eles possam se consolidar. É preciso analisar as regras aplicáveis aos contratos de concessão e verificar se o sistema posto traz as ferramentas e incentivos necessários para que o parceiro privado tenha estabilidade para contratar com a Administração Pública.
A Constituição Federal trata sobre a concessão em diversas passagens. O art. 21 prevê nos incisos XI e XII, respectivamente, que compete à União (i) explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (ii) explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) os portos marítimos, fluviais e lacustre.
O art. 25, § 2º, determina que cabe aos Estados explorar diretamente ou mediante concessão os serviços de gás canalizado, enquanto o art. 30, inciso V, atribui aos Municípios organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo, de caráter essencial.
Já a concessão de serviços públicos, especificamente, está prevista no art. 175 da Constituição Federal, o qual prevê que “[i]ncumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”. Determina ainda o parágrafo único do referido dispositivo que a lei disporá sobre (i) o regime das empresas concessionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão; (ii) os direitos dos usuários; (iii) política tarifária; (iv) a obrigação de manter serviço adequado.
Por fim, o art. 223 estabelece que compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
A Lei que regulamenta a concessão de serviços públicos prevista no art. 175 da Constituição Federal é a Lei n. 8.987, e só foi editada em 13 de fevereiro de 1995 (“Lei de Concessões”).
Em linha com o art. 2º, incisos II e III da Lei de Concessões, concessão de serviço público pode ser definida como a delegação da prestação de um serviço, precedido ou não da execução de obra pública, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, a um particular que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado.
Vale ressaltar que a Lei nº 8.987/95 dispõe sobre as chamadas concessões comuns de serviço público. Há ainda, pelo menos, outras duas modalidades de contratos de concessão, inseridas no art. 2º da Lei nº 11.079/2004 (“Lei das PPPs”) , que trata da contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública, nas modalidades (i) patrocinada, na qual há a concessão de serviços públicos ou de obras públicas, e, além de envolver a cobrança de tarifa dos usuários da prestação de serviço, o parceiro público contribui com uma contraprestação pecuniária e (ii) administrativa, na qual há uma prestação de serviço do qual a Administração Pública é usuária direita ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.
A diferença essencial entre os contratos de concessão comum e as parcerias público- privadas é o fato de a segunda modalidade envolver, além da tarifa cobrada aos usuários, uma contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado13.
Além dessas duas leis que disciplinam a concessão de serviço público de maneira geral, há também diversas leis que tratam da concessão de serviços específicos, como a Lei de Portos (Lei n. 12.815/2013) e a Lei de Telecomunicações (9.472/1997), dentre outras.
Para fins de delimitação da abrangência do conceito de concessão utilizado no presente trabalho, é importante esclarecer que, ao tratarmos de concessão de serviço público, estamos nos referindo tão-somente à concessão comum, prevista pela Lei n. 8.987/95, exceto quando expressamente mencionado em contrário.
De acordo com a Lei de Concessões, as concessões de serviços públicos serão regidas pelos termos do art. 175 da Constituição Federal, da Lei de Concessões, pelas normas legais pertinentes e pelas cláusulas indispensáveis dos contratos; ao passo que o art. 4º determina que toda concessão de serviço público será formalizada por meio de contrato, que deverá observar os termos da lei, das normas pertinentes e do edital de licitação.
O art. 124, da Lei n. 8.666/93 (“Lei de Licitações”), que trata dos contratos administrativos em geral, determina que se aplicam às licitações e aos contratos de concessão de serviços públicos os dispositivos da Lei que não conflitem com a legislação específica sobre o assunto.
Já o art. 3º, § 2º da Lei n. 11.079/2004 estabelece que as concessões comuns continuam regidas pela Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e pelas leis que lhe são correlatas, não se lhes aplicando o disposto nesta Lei. Tal dispositivo a nosso ver, não se justifica. Tanto a Lei de Concessões quanto a Lei de PPP tratam do mesmo gênero de contratos: contratos firmados entre o poder público e particular para prestação de serviços públicos. A Lei de PPP, editada quase
13 Isso é o que está estabelecido no art. 2o, § 3o da Lei nº 11.074/2004. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx destaca, no entanto, que, na prática, essa diferença não é tão clara e não se coaduna com as tendências evolutivas que os contratos de concessão vêm se submetendo. Em suas palavras “A possibilidade de ajuda econômica ou subsídio do Poder Público em favor do concessionário não é tema novo para os tratadistas da concessão. Xxxxxxxxx, Moderne e Devolvé há muito trataram do tema ressaltando que foi fruto da evolução do contrato de concessão de serviço público a ‘solidariedade financeira que pode se estabelecer entre concedente e concessionário’ concluindo que ‘não se pode mais definir a concessão pela remuneração somente sob a forma de tarifas’. (...) A posição predominante, no entanto, na doutrina nacional e estrangeira é em defesa da possibilidade de subsídios, não faltando exemplos na realidade das concessões direta ou indiretamente subsidiadas. (...) De fato, não se pode nem mesmo argumentar que no Brasil seja incomum a ‘solidariedade financeira’ entre concedente e concessionário. Há bom número de concessões (no setor de rodovias, por exemplo, ou de transportes ferroviários) em que a concedente responsabiliza-se por uma parte dos investimentos em modernização e ampliação, ou pelos custos de desapropriação, ou por gratuidades (para estudantes ou idosos, entre outros) eventualmente instituídas.”. (XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte: Fórum, 2006. pp. 76/78)
10 anos depois da Lei de Concessões, contempla em seus dispositivos importantes experiências obtidas através da aplicação da Lei de Concessões e do Direito Comparado14, os quais poderiam ser aproveitados também para aprimorar as concessões comuns.
No entanto, diante do direito posto, podemos concluir que o ordenamento jurídico aplicável às concessões comuns é a sua lei própria – Lei n. 8.987/93 – e a Lei n. 8.666/93, que rege os contratos administrativos em geral, no que não conflite com a primeira.
As cláusulas essenciais dos contratos de concessão, por sua vez, estão previstas no art. 23 da Lei e, dentre elas, destacamos as relativas (i) aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive os relacionados às previsíveis necessidades de futura alteração e expansão do serviço e consequente modernização, aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações; (ii) às penalidades contratuais e administrativas a que se sujeita a concessionária e sua forma de aplicação; (iii) à exigência de garantia do fiel cumprimento, pela concessionária, das obrigações relativas às obras vinculadas à concessão.
Destaca-se as cláusulas acima, pois, além de tratarem sobre a previsível necessidade de alteração do contrato, elas preveem penalidades contratuais e administrativas, bem como exigência de cumprimento de obrigações, tão-somente por uma das partes, qual seja, o concessionário, o que demonstra a peculiaridade deste tipo de contrato em virtude do desequilíbrio entre as prestações avençadas pelas partes.
Vejamos no ponto a seguir o racional por trás desse aparente desequilíbrio nas obrigações das partes contratantes nos contratos de concessão.
1.2 A visão da doutrina tradicional sobre o contrato de concessão e suas peculiaridades
Diversos autores buscam identificar quais seriam as características fundamentais da concessão de serviços públicos. Da definição de Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão, podemos extrair que as principais características do contrato de concessão são (i) delegação remunerada da prestação de serviço público, (ii) execução por conta e risco do particular; (iii) exploração, pelo particular, de acordo com as disposições contratuais e regulamentares; (iv) prazo determinado;
(v) reversão dos bens ao final do contrato.15
14 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Comentários à Lei de PPP – Parceria Público- Privada. Fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 47.
15 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 568.
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx traz uma definição detalhada:
São ajustes que se prestam a conceder temporariamente a gestão de serviços ou obras públicas delegáveis a particulares, pela via contratual de natureza bilateral, estruturados economicamente a partir de receita tarifária cobrada dos usuários, mas admitindo-se receitas alternativas na composição da remuneração do concessionário. Essas concessões pressupõem uma certa autonomia de gestão do concessionário, disciplinada e controlada pelo poder concedente. Há riscos econômico-financeiros envolvidos na concessão, porquanto a remuneração do concessionário estará proporcionada à exploração do negócio (risco de utilização). Fundamentalmente, o que é de relevo na caracterização da concessão está na assunção da obrigação de execução (ao modo de gestão) do serviço público pelo concessionário, extraindo sua remuneração diretamente da exploração do negócio (e de receitas
alternativas vinculadas ao negócio da concessão).16
Veja que o autor destaca a natureza bilateral do contrato, o que levaria ao entendimento de serem necessárias prestações sinalagmáticas, isto é, um dever mútuo de cumprimento das obrigações contratuais, ao contrário do que encontramos nos dispositivos da Lei. Aprofundaremos esse ponto mais adiante.
Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, antes do advento da Lei de Concessões, afirmava que o que define um contrato como administrativo – gênero do qual o contrato de concessão é espécie – é “a existência de um interesse público específico, que é aquele definido em lei e cometido à cura da Administração Pública que, para satisfazê-lo, irá buscar uma prestação obrigacional adequada.”17 Trata-se, assim, de um ajuste que a Administração celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para promover fins públicos, sob um regime de direito público18.
Sobre o objeto dos contratos de concessão, podemos estabelecer, em linhas gerais, algumas características da concessão de serviço público, a saber: (i) prestação de um serviço, demandado pelos cidadãos, e cujo provimento tenha sido atribuído ao Estado; (ii) prestação contínua e permanente pelo concessionário, (iii) oferecida aos cidadãos de maneira universal,
(iv) tendo por objeto uma atividade econômica, isto é, que possa ser objeto de uma troca econômica na qual os indivíduos tenham liberdade para se engajar ou não; (v) passível de fruição individual e mensuração do quanto fruído para fins de definição do preço; (vi) cujo pagamento seja feito através de tarifa diretamente pelo usuário19.
16 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. pp.65 e 66
17 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. x. 00.
00 XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 259.
19 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 178.
Trata-se, assim, de uma transferência por prazo determinado, de poderes e atribuições do poder público, para um particular que demonstre capacidade para gerir e prestar adequadamente o serviço objeto de delegação.
É preciso reconhecer que o objeto dos contratos de concessão são serviços essenciais para a população, razão pela qual, devem estar sujeitos a um regime especial que assegure a continuidade, a qualidade e a universalidade do serviço.
Por essa razão, é da essência da concessão de serviço público que o Estado continue como titular do serviço público prestado, transferindo, temporariamente, ao particular a função de prestar o serviço, como se fosse o próprio Estado, assumindo o serviço por sua conta e risco.
É pelo fato de o Estado continuar como titular do serviço, fiscalizando e visando ao pleno atendimento do interesse público, que se justifica a existência de determinados poderes extraordinários do Estado na relação contratual com o particular, como os de promover fiscalizações autoritárias, o poder-dever de retomar o serviço concedido a qualquer tempo, de intervir nas atividades prestadas e de modificar regras relativas à sua prestação, por razões de interesse público. Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx explica:
Por óbvio, o consenso entre a Administração e o particular, que dá ensejo ao ato obrigacional e à consequente responsabilidade das partes contratantes, não será idêntico àquele firmado entre particulares; a razão disso está na própria relevância do fim a ser atendido pela Administração, que é inteiramente diverso daquele perseguido pelo particular. Enquanto a Administração busca atingir o bem estar geral, o particular age, tão somente, em seu benefício.20
Esses poderes extraordinários ou prerrogativas, que colocam a Administração Pública em situação de supremacia em relação ao concessionário, são as tradicionalmente chamadas cláusulas exorbitantes.
As cláusulas exorbitantes não estão expressamente previstas na Lei de Concessões, mas decorrem de uma leitura sistemática da Lei, em especial do art. 29, o que faz com que a doutrina as aborde de maneiras diferentes.
Celso Antônio Bandeira de Mello21 afirma que são poderes do concedente: (a) poder de inspeção e fiscalização que autoriza o poder concedente a estar permanentemente atualizado sobre o comportamento do concessionário em relação ao serviço, inclusive acompanhando de
20 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 21.
21 BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed, ver, atual.. São Paulo: Malheiros, 2013. pp 744/750.
perto os registros da empresa; (b) poder de alteração unilateral de cláusulas regulamentares, que confere a possibilidade de alteração das condições de funcionamento do serviço, desde que o objeto não seja descaracterizado pelas alterações impostas, (c) poder de extinguir a concessão antes de findo o prazo inicialmente firmado, sempre que o interesse público assim recomendar (encampação) ou por inadimplência do concessionário (caducidade); (d) poder de intervir na concessionária e assumir a gestão direta do serviço, quando for indispensável para assegurar a regularidade do serviço; (e) poder de aplicar sanções ao concessionário inadimplente previstas no edital (o contrato não poderia inovar; ao participar da licitação, o interessado já deveria ter conhecimento das possíveis sanções a que estaria sujeito) ou em regulamento anterior à concessão.
São poderes decorrentes de uma posição de supremacia da Administração Pública, que garantiriam ao poder concedente as prerrogativas de unilateralmente alterar, rescindir, intervir, fiscalizar e punir a concessionária prestadora do serviço.22
Xxxx Xxxxxxxx, por sua vez, entende que o poder de alterar unilateralmente os contratos sequer poderia ser considerado uma cláusula exorbitante, pois seria uma competência típica dos contratos de concessão:
Logo, não é exato falar de cláusulas exorbitantes ou de competência extraordinária ao se tratar de alterações unilaterais dos contratos administrativos – pois estas só são excessivas em relação às contratações de direito privado. Se tais prerrogativas exorbitam do direito privado, elas orbitam no direito público. A relação administrativa concessionária tem como nota típica essa característica natural aos contratos administrativos: a competência detida pela Administração de modifica-los unilateralmente.23
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx afirma que a Administração teria também um poder de direção e controle, que se manifestaria inclusive através de “ordens, atos de disposição, organização, direção e planejamento do serviço público”, mas pondera que este poder “deve ser exercido dentro de limites razoáveis, não podendo a fiscalização fazer-se de tal modo que se substitua a gestão da empresa”24.
Além da supremacia do interesse público como fundamento das cláusulas exorbitantes, outro conceito fundamental para a compreensão da relação entre o poder concedente e o
22 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do contrato administrativo à administração contratual. In: Revista do Advogado n. 107. Ano XXIX. Dezembro de 2009. p. 75.
23 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 377.
24 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 85/87.
concessionário, e da antiga noção do exercício de poder estatal com contornos autoritários, é a definição da expressão “serviço público”.
De origem francesa, a doutrina dos serviços públicos tem sua gênese com Xxxx Xxxxxx, conhecido como pai da “Escola de Bordeaux” ou “Escola do serviço público”, nas primeiras décadas do século XX. Em um contexto de grandes transformações, Xxxxxx sustentava que o Estado deveria ser mais do que um poder soberano, e baseado na ideia de solidariedade social, haveria certas atividades que deveriam ser por ele prestadas por serem indispensáveis à realização e ao desenvolvimento social.25
Duguit não relacionava a caracterização de serviço público com o monopólio estatal. De acordo com sua visão, certas atividades, mesmo sendo exercidas por particulares, poderiam ser objeto do regime de serviço público quando prestadas pelo Estado.
Xxxxxx Xxxx, por sua vez, vai além da noção de Xxxxxx, para afirmar que serviços públicos são atividades prestadas pelo Estado sob o regime de direito público. Para ele caracterizaria o serviço público “(i) a titularidade de tais atividades pelo Estado; (ii) a interdição da prestação em regime de liberdade, só sendo admitida sua prestação por particulares recebedores de uma outorga específica do Poder Público; e (iii) a sujeição de todos os prestadores a um regime jurídico único, fortemente regulado e pautado por prerrogativas publicísticas (publicatio).”26
Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx explica que, com a consolidação desta doutrina, a única maneira de os particulares explorarem atividades objeto de publicatio era na condição de delegatário de serviço público. Isso fez com que se firmasse a ideia de que serviço público era não apenas um dever estatal, mas uma prerrogativa, um privilégio. Em suas palavras:
Com o tempo, o segundo aspecto predominou sobre o primeiro. Mesmo quando o Estado se mostrasse incapaz de prover de maneira ampla e satisfatória aos cidadãos determinado serviço público (por incapacidade financeira, de gestão ou técnica), os particulares somente poderiam atender à demanda da sociedade se o Poder Público decidisse delegar sua prestação. Caso não houvesse a delegação, restaria a contradição: a atividade por ser considerada serviço público era vedada ao particular mesmo que não fosse oferecida de modo universal pelo seu titular. A publicatio passou a significar não apenas uma decisão política de compromisso (o Estado tendo o dever de prover uma atividade), mas uma avocação de privilégio (de reserva de domínio sobre aquela atividade), demarcando a transposição dos móveis das concessões
25 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 83 e ss.
26 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Uber, WhatsApp, Netflix: os novos quadrantes da publicatio e da assimetria regulatória. In Revista de Dir. Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, na 14, n 56, p. 75-108, out-dez, 2016. p. 77.
medievais (franquia do acesso ao domínio) e do absolutismo (acesso a um privilégio realengo) para a realidade moderna (delegação da prestação de um serviço público).27
Foi baseada nessa concepção, na qual os serviços públicos passam a ser entendidos não só como um dever estatal, mas como um plexo de prerrogativas, que se fundou a doutrina tradicional sobre os contratos de concessão.
O entendimento de que o contrato de concessão possui, por natureza, cláusulas exorbitantes, no entanto, não é prerrogativa do direito francês ou brasileiro. Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx explica que “é digno de nota que a exorbitância interna é relativamente semelhante em todos os sistemas jurídicos, ao menos em um primeiro e superficial juízo.”28
O autor explica que, nos Estados Unidos, a cláusula padrão sobre alterações de contratos da Federal Acquisition Regulation (FAR), que edita a maioria das normas sobre contratos administrativos, prevê, por exemplo, que o poder concedente pode, a qualquer momento, fazer alterações no contrato, respeitado o seu escopo geral. Na França atual, embora não haja uma norma tratando expressamente sobre alteração de contratos, tem sido garantido à Administração poderes para fazer alterações unilaterais, desde que respeitado o equilíbrio financeiro do contrato, com base na jurisprudência. Portanto, em ambos os sistemas, assim como no Brasil, não é possível alterar unilateralmente as condições essenciais do contrato, sem garantir o correspondente reequilíbrio econômico-financeiro do contrato29.
Outras prerrogativas estatais são garantidas pelos três sistemas, tais como a possibilidade de a Administração inspecionar a execução do contrato administrativo, o poder de rescisão por culpa do contratado ou quando o contrato não for executado nos exatos termos pactuados30, e a possibilidade de rescisão unilateral do contrato.
27 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. 1ª ed. 1 reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pp. 59 e 60.
28 XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e o Contrato: supremacia do interesse público “versus” igualdade, um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 46 e ss.
29 Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx destaca que a origem da exorbitância, no entanto, é bastante diferente nos três sistemas. Nos Estados Unidos, as prerrogativas especiais conferidas ao Estado surgiram em resposta a circunstâncias de guerra, por isso, a exorbitância no sistema americano é, ao menos em sua origem, circunstancial e não estrutural. Já na França e no Brasil as origens da exorbitância residem no papel central exercido pelo Estado na cultura jurídica e na sociedade, de forma que seu alcance é mais amplo e sua natureza mais estrutural do que circunstancial. pp. 84/88
30 Trata-se da doutrina da conformidade estrita (strict compliance doctrine) que prevê “que o Estado não é obrigado a aceitar a obra ou o serviço que não esteja estritamente conforme as especificações do contrato”. (XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e o Contrato: supremacia do interesse público “versus” igualdade, um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 50).
Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx, por sua vez, explica que é com base na ideia de prossecução do interesse público que a doutrina sempre defendeu a flexibilidade dos contratos administrativos:
Sempre celebrado para a prossecução de um determinado interesse público, o contrato administrativo deveria ser maleável, de forma a poder adaptar-se e acompanhar as próprias alterações sofridas por tal interesse. (...)
Em suma, pode-se dizer que este princípio da prossecução do interesse público se manifesta através de um conjunto de aspectos do regime jurídico do contrato administrativo que correspondem à trilogia clássica dos princípios consagrados pela Escola do serviço público – os princípios da continuidade, da adaptação e do primado do serviço público. .31
Sendo assim, com base nos princípios da continuidade, atualidade, adaptação e do primado do serviço público trazidos pela escola do serviço público e, principalmente, com base no princípio da supremacia do interesse público, a doutrina construiu a dogmática jurídica dos contratos de concessão a partir da ideia de que se pode exigir do particular contratado alterações contratuais a despeito de sua concordância, desde que mantidas condições essenciais do contrato.
Mais do que em qualquer outro tipo de contrato administrativo, no contrato de concessão as cláusulas exorbitantes são mais nítidas e menos questionáveis; em razão da essencialidade dos serviços objeto do contrato, se justificaria a extensão dos poderes de alteração unilateral e de supremacia jurídica da Administração sobre o concessionário.32
1.3 A concessão como contrato bilateral
Muito já se discutiu acerca da natureza jurídica dos contatos administrativos em geral. Até o final do século XIX não havia um enquadramento específico pela doutrina dos contratos celebrados entre a Administração Pública e particulares, de modo que as concessões eram tratadas como contratos de direito privado, isto é, como livre manifestação de vontade entre as partes, com paridade de direitos, regidos pelo direito civil.33
No Brasil, noticia Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx que Xxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxx defendia que a concessão tinha natureza de negócio jurídico bilateral, que só poderia se perfazer
31 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Réquiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, pp. 118/119.
32 GONÇALVES. Xxxxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra. Xxxxxxxx, 0000.x. 237/238
33 GONÇALVES. Xxxxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra. Xxxxxxxx, 0000.x. 180
mediante acordo de vontade entre as partes e complementa que a lógica adotada pela corrente se fundava em que:
Viabilizada a partir de uma convergência (acordo) de vontades, durante toda a vigência da concessão haveria um liame sinalagmático de natureza contratual. Concedente e concessionário seriam, a um só tempo, e mutuamente, credores e devedores da outra parte. 34
Antes disso, autores alemães como Xxxx Xxxxx, Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx concebiam a concessão de serviço público como um ato administrativo unilateral. Essa corrente sustentava que não poderia existir a figura de um contrato administrativo, já que o instituto em questão não observa os princípios clássicos da figura do contrato, tais como (i) da igualdade entre as partes, uma vez que o Estado deve preservar sua supremacia; (ii) da autonomia da vontade do Estado, que deve seguir estritamente o quanto previsto em lei; e (iii) a força obrigatória das convenções, já que sempre que o interesse público determinasse, o Estado poderia alterar as cláusulas contratuais. A ausência dessas características, essenciais para a definição de contrato, desnaturaria o seu caráter bilateral. O Estado, portanto, praticaria um ato unilateral com o qual o particular contratado consentiria.
Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx explica que no direito alemão a maior parte dos contratos com a Administração era regida pelas normas do direito privado. O racional por trás da adoção desse sistema é que “o Estado só manda unilateralmente”, portanto, para celebrar contratos de forma consensual com o particular, a questão deveria ser resolvida através da celebração de contratos do direito privado. Caso a questão estivesse inserida em um contexto de direito público, aplicar- se-iam as regras de direito público e seria, portanto, inviável a celebração de contratos35.
Mesmo depois de identificadas peculiaridades que justificaram a criação de um contrato de direito público, como questões cujo conteúdo e natureza eram exercício típico da função administrativa, a preocupação sempre foi assegurar que o particular não fosse prejudicado pela celebração desses contratos, de forma que “[n]a Alemanha, o contrato de direito público tem sido sempre identificado como aquele em que ‘ao dever jurídico-privado do particular se contrapõe um dever jurídico-público da Administração (Münch)”36.
34 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 136 e 137.
35 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Réquiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 1990, p. 42.
36 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Réquiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 1990, pp 48 e ss.
Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx explica que assim como na Alemanha, na Itália, as contratações do poder público até hoje são regidas pelas regras do direto privado, salvo exceções mais recentes.37
Uma terceira corrente entendeu a concessão como um ato complexo, em que haveria um ato unilateral preliminar praticado pelo Estado, que seria aperfeiçoado através de contrato entre as partes. Essa corrente é baseada na doutrina francesa sobre concessão de serviços públicos, desenvolvida por Xxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx e adotada pela jurisprudência do Conselho de Estado, que afirmava que haveria uma parte da relação que seria regulamentar – compreendendo a organização e o funcionamento do serviço e que não estaria sujeita a um debate entre as partes, sendo proposta unilateralmente pela Administração – e uma parte contratual, que trataria sobre prazos de duração, benefícios financeiros e sobre a garantia ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato.38-39
O foco da preocupação sobre a natureza jurídica da concessão está em atribuir maior ou menor relevo aos interesses privados, isto é, se se deve priorizar a estabilidade da relação e os direitos garantidos pela concessão ao concessionário ou o interesse público, que pode exigir alterações e até a extinção antecipada do contrato. 40
Foi na doutrina francesa, na qual os doutrinadores brasileiros se basearam, que surgiu o conceito de contrato administrativo, em um esforço de criação de um instituto jurídico próprio e regido pelas regras de direito público, derrogatórias das regras gerais do direito civil.
De acordo com a doutrina francesa, para um contrato ser caracterizado como administrativo, deve conter um, entre os três requisitos a seguir (i) receber tal qualificação por lei; (ii) ter por objeto a execução de um serviço público; (iii) conter cláusulas exorbitantes. 41
Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx explica que através da sistematização das decisões do Conselho de Estado, os autores franceses consolidaram “o caráter de especialidade atribuído aos contratos administrativos, considerados autônomos e absolutamente inconfundíveis com os
37 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 29.
38 XXXXXXXXX, Xxxxx xx. Xxxxxx xx Xxxxx Administratif. 9ª ed. Paris: Librairie General de droit et jurisprudence, 1969. p. 222 e 223.
39 No Brasil, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx afirma que “a êsses contratos precede atos administrativos unilaterais ou convencionais, mas que se não confundem com os contratos. Assim, ao contrato sôbre a equação econômico-financeira das concessões de obras ou de serviços públicos, antecede o ato-união da concessão. Este é o ato jurídico principal do qual o contrato sôbre a equação econômico-financeira é simplesmente adjeto (“Contrato de Direito Público ou Administrativo” in xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxx/xxxxXxxx/00000/00000).
40 GONÇALVES. Xxxxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra. Almedina, 1999.p. 178.
41 BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed, ver, atual.. São Paulo: Malheiros, 2013. pp 628.
contratos celebrados pela administração” 42, e esse entendimento se espalhou por diversos países da Europa.43
Por outro lado, nos Estados Unidos, onde impera um pensamento de igualdade, nenhuma distinção classificatória é feita entre contratos de direito público e direito privado, de forma que tal dicotomia é praticamente ignorada pelo ordenamento jurídico. Como explica Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx, a Suprema Corte Americana firmou entendimento, no emblemático caso Xxxxx vs. Estados Unidos de 1934, no sentido de que “quando os Estados Unidos se envolvem em uma relação contratual, seus direitos e deveres são aí geralmente governados pelo Direito aplicável aos contratos entre indivíduos privados”44
A questão que se mostra através do estudo do histórico dos contratos concessões, e de como os diversos sistemas jurídicos o concebem, é que nem sempre se entendeu necessário que houvesse um desequilíbrio tão patente em desfavor do concessionário para que os serviços fossem prestados adequadamente.
No Brasil, tradicionalmente, embora não haja mais dúvidas quanto à natureza pactual do contrato de concessão, entende-se que isso não diminui a supremacia da Administração e da função pública a ela atribuída.45, isto é, o fato de ser entendido como um contrato bilateral não afasta a necessidade de que a Administração se valha de cláusulas exorbitantes quando entender necessário para o atendimento do interesse público.
Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx ressalta que há no contrato de concessão o estabelecimento de vínculos recíprocos, ainda que não seja em seu âmago um singelo sinalagma; há um caráter contratual, mas não uma natureza bilateral comutativa simples. Isto porque o contrato de concessão acarreta vínculos que alcançam terceiros, os usuários, de forma que “mais do que ter caráter contratual, a concessão constitui um vínculo negocial de emparceiramento entre os interesses privados e públicos.”46
42 Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx de Xxxxxxx ensina que “somente após a existência de posicionamento jurisprudencial a respeito é que a doutrina, a partir da obra de Xxxxxx Xxxx passa a discutir a teoria do contrato administrativo – esse sujeito a regras especiais, ao lado dos contratos de Direito privado na Administração, sujeitos ao regime do Código Civil.” (Teoria do contrato administrativo: uma abordagem histórico-evolutiva com foco no direito brasileiro. São Paulo, 2010. Tese de livre docência - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, p. 122. 43 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 34.
44 XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e o Contrato: supremacia do interesse público “versus” igualdade, um estudo comparado sobre a exorbitância no contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 134 e ss.
45 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 374 e 375.
46 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 149.
Fernando Dias Menezes de Almeida47 destaca que a doutrina – nacional e europeia – ainda se prende excessivamente na característica de regime especial de direito público e especialmente nas prerrogativas consubstanciadas nas cláusulas exorbitantes, como forma de garantia do interesse público. No entanto, são questionáveis os fundamentos teóricos e a aptidão desses instrumentos para assegurar a consecução dos interesses públicos.
Quanto ao fundamento teórico, o autor questiona a concepção clássica de que a Administração está em uma situação de desigualdade em relação às pessoas privadas e prossegue, citando Saxxxx Xxxxxxx, afirmando que à supremacia e à unilateralidade vem se substituindo o consenso e a bilateralidade, em que o cidadão não é mais posto em uma situação de subordinação face à Administração.
Quanto à suposta garantia do interesse público, Fexxxxxx Xxxx Xxxxxxx xe Alxxxxx xponta que, observando-se a prática brasileira, o regime de prerrogativas especiais nos contratos administrativos acaba servindo como instrumento de (i) estímulo à ineficiência da Administração, pois com a facilidade de rescindir ou alterar contratos, a Administração nem sempre se planeja para firmar contratos de forma organizada e eficiente.; (ii) geração de contratos mais onerosos para administração em decorrência do custo adicional das incertezas geradas pelas cláusulas exorbitantes; (iii) legitimação de práticas autoritárias dos governantes através do uso de medidas unilaterais e até mesmo de coação moral decorrente da ameaça do uso de tais medidas; (iv) facilitação de desvios em relação à probidade administrativa em razão da flexibilidade de alteração de cláusulas contratuais.
Duxxxx xá fazia críticas à diferenciação entre contratos de direito público e de direito privado, ressaltando que tal categorização tem o risco de conduzir a consequências deletérias dando uma roupagem jurídica a condutas pelas quais os detentores do poder tendem a se eximir dos compromissos regularmente assumidos no bojo do contrato.
Dixxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx xnsina que o Estado vem progressivamente abandonando a pretensão de ser mentor da sociedade, para ser dela parceiro:
Certo é, também, que a postura, velha de mais de dois séculos, erguida sobre a tríade supremacia, imposição e unilateralidade – reputadas como atributos permanentes e inafastáveis da Administração Pública em suas relações com os administrados -, vem cedendo paulatinamente espaço à consensualidade e à negociação, pois que se vêm
47 ALXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xe. Mecanismos de consenso no direito administrativo. In Direito administrativo e seus novos paradigmas (Alxxxxxxx Xxxxxx xe Aragão e Flxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx – Coordenadores). Belo Horizonte: Forum, 2008. P. 330 e ss.
mostrando como qualidades muito mais eficientes para a satisfação dos interesses públicos (...)48
Maxxxx Xxxxxx Xxxxx xambém refletiu essa mudança de pensamento da doutrina brasileira nas atualizações de seu livro “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos” e alterou seu entendimento de que as cláusulas exorbitantes se fundavam na supremacia do interesse público para a tese de que o único valor supremo é a dignidade da pessoa humana, afirmando que a expressão “interesse público”, “costuma ser invocada para a satisfação de interesses escolhidos pelo governante, o que é absolutamente incompatível com a ordem jurídico-constitucional vigente”49.
Constata-se, assim, que a despeito das peculiaridades que envolvem os contratos de concessão, estes devem ser entendidos como um contrato bilateral, que prevê direitos e obrigações para ambas as partes. Estas obrigações devem ser respeitadas, como forma de garantir a segurança jurídica e o interesse dos particulares em contratar com a Administração e prestar um serviço da melhor forma possível, com previsibilidade na execução do projeto em que se envolveram.
Para conciliar o interesse público e o interesse do particular, há uma tendência mais recente na doutrina brasileira de trazer a relação entre concedente e concessionário para um patamar de parceria, colaboração e equilíbrio nos deveres e obrigações, como forma de aprimorar a eficiência dos contratos.
Tal tendência, no entanto, não pretende descartar as peculiaridades que cercam os contratos de concessão, mas reconhecer que este contém obrigações bilaterais entre concedente e concessionário, às quais a Administração livremente se vincula.
1.4 A vinculação da Administração Pública ao contrato de concessão
Como visto, muito já se discutiu sobre a natureza do contrato administrativo, a ponto de se questionar se este poderia mesmo ser denominado contrato, já que por contrato se pressupõe
48 MOXXXXX XXXX, Dixxx xx Xxxxxxxxxx. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In Direito administrativo e seus novos paradigmas (Alxxxxxxx Xxxxxx xe Aragão e Flxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx – Coordenadores). Belo Horizonte: Forum, 2008. p. 548.
49 JUXXXX XXXXX, Maxxxx. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12ª ed., São Paulo: Dialética, 2008. p. 59.
um ato de autonomia da vontade e equivalência entre os contratantes, o que não poderia existir nos contratos administrativos em razão da supremacia do interesse público. Tratar-se-ia, portanto, de um ato jurídico bilateral e não de um contrato.
Superado este entendimento, a doutrina brasileira passou a entender os contratos administrativos como espécie do gênero contrato bilateral. Este contrato, no entanto, seria regido por um regime especial, que contemplasse limitadores à discricionariedade dos administradores – licitação, dotação orçamentária, autorização legal específica - e cláusulas exorbitantes, representativas da posição de supremacia da Administração.
Apesar de consolidado o entendimento de que os contratos administrativos têm natureza de contrato bilateral, e de que o princípio da supremacia do interesse público não pode ser entendido como sinônimo de autoritarismo estatal, a doutrina desconsidera a possibilidade de a Administração Pública descumprir as cláusulas contratuais. É o que explica Flxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx
Ao se afastar das teorias que negavam a existência do contrato administrativo, contraditoriamente a doutrina brasileira acabou por esvaziar o contrato como fonte de obrigação para a Administração. Como se costumou asseverar, descaberia obrigar a Administração a cumprir o quanto pactuado num contrato, exigir a execução da norma contratual em favor do particular em muitas situações, porquanto não seria possível que ‘o interesse público ficasse vergado ao interesse do particular.’ (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p.568).
(...)
Sendo, em qualquer hipótese, a relação obrigacional assimétrica, e só podendo a Administração obrigar-se pela Lei, jamais poderia o particular contratado invocar o contrato para exigir que a Administração cumprisse o quanto se houvera obrigado.50
Com base nessa ideia, o cumprimento do contrato administrativo estaria sujeito a uma análise constante de conveniência e oportunidade pela Administração, que a qualquer momento poderia culminar com a alteração unilateral do contrato para atender a um suposto interesse público.
Havendo a superveniência de fato modificativo ou impeditivo da continuidade do contrato, ou se a obrigação contraída não tiver mais utilidade ou aderência aos objetivos que deram origem à contratação, nada impede que as partes negociem e alterem o contrato administrativo, assim como nos contratos privados.
A alteração contratual, por si só, não deve ser vista como algo negativo. Especialmente se considerarmos que contratos de concessão são firmados por longos períodos, de 25, 30 anos,
50 MAXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do contrato administrativo à administração contratual. In: Revista do Advogado n. 107. Ano XXIX. Dezembro de 2009. p. 76.
é preciso ter em mente que inovações tecnológicas, metodológicas e otimizações nos processos de prestação de serviços são não apenas desejáveis como esperadas.
A incompletude é inerente a tais contratações e, especialmente por se tratar de atividades de alta complexidade ou potencialmente conflitivas, elas devem ser adaptadas às circunstâncias ao longo da execução do contrato.51
Egxx Xxxxxxxx Xxxxxxx xessalta que “nada mais adequado que falar em segurança advinda da certeza da mudança”52. Isto porque ambas as partes envolvidas no contrato de concessão devem estar interessadas em aprimorar o serviço de maneira a prestá-lo da forma mais eficiente e adequada possível, sendo certo que o sucesso do projeto favorecerá a todos. Para tanto, não há dúvidas de que será necessário realizar ajustes durante a execução do contrato para adaptá-lo a novas realidades. Nesse sentido, o autor destaca que o pacta sunt servanda não deve ser óbice à adaptação consensual que traga ganhos de eficiência e qualidade na prestação dos serviços aos usuários.
O poder de intervenção unilateral da Administração sobre a concessão, no entanto, deve ser exercido com cautela, sob pena de não haver concessionário interessado em assumir o risco de atividade sobre a qual não tem qualquer controle ou previsibilidade (ou ao menos, concessionário bem-intencionado interessado em assumir tal atividade).
O desequilíbrio com que a doutrina enfrentava a vinculação da Administração Pública e do particular ao contrato administrativo fica claro na lição de Flxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx:
(...) durante muito tempo nossa cultura jurídica sustentou que a Administração não deveria estar submetida ao contrato se e quando isso contrariasse o interesse público. Como essa é uma dicção dúctil, aberta e suscetível de ser preenchida ao alvedrio do administrador (AZXXXXX XXXXXXX XXXX, 2002), o contrato administrativo transformou-se num conjunto de obrigações vinculantes apenas do privado. Sob influência do caráter autoritário da concepção de supremacia incondicional do interesse público, abriu-se campo para a relação obrigacional desigual, a partir da qual o privado deve cumprir estritamente tudo a que se obrigou (sob o risco de sofrer severas penas, unilateralmente aplicadas), mas a Administração cumprirá o pactuado se e quando o interesse público (por ela revelado, também unilateralmente) permitir.53
51 Nesse sentido, Maxxxx Xxxxxx Xxxxx xontua “É descabido que a Administração seja constrangida a manter um contrato imprestável ou deixar de ter suas necessidades atendidas em virtude da formal vinculação à licitação. Se houver respeito à isonomia e obtenção de condições vantajosas, a alteração pode (e deve) ser promovida.” (A inviabilização da concessão de serviço público e o cabimento da sua extinção. In: Revista de Direito Contemporâneo. Ano 4. Vol. 26. Set-out 2016. p. 94 e 108).
52 MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 37 e ss.
53 MAXXXXX XXXX, Flxxxxxx xx Xxxxxxx. Do contrato administrativo à administração contratual. In: Revista do Advogado n. 107. Ano XXIX. Dezembro de 2009. p. 77.
No entanto, o art. 29, inciso VI, da Lei n. 8.987/95, dispõe expressamente que incumbe ao poder concedente cumprir e fazer cumprir as disposições regulamentares do serviço e as cláusulas contratuais da concessão.
Tendo sido o contrato de concessão objeto de licitação, não é possível a alteração substancial do objeto, sob pena de se configurar uma burla ao processo licitatório, capaz de frustrar a competição. A Lei n. 8.987/95, prevê expressamente em seu art. 14 que toda concessão de serviço público deve observar a vinculação ao instrumento convocatório. O art. 41 da Lei de Licitações54, aplicável subsidiariamente às concessões de serviços públicos, ainda é mais explícito ao estabelecer que a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.
Dixxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx xai além ao afirmar que não apenas a Administração, mas todas as esferas de poder devem respeitar o quanto disposto no edital e no contrato, em suas palavras, “é vedado ao Estado-Legislador, ao Estado-Jurisdição e, principalmente, ao Estado-Administração não atender, nas suas esferas, à força vinculante dos contratos.” 55
Marçal Justen Filho56 explica que no contexto jurídico atual, em que as competências estatais estão inseridas em um Estado de Direito, houve uma reestruturação do exercício de poder e a submissão do poder fático a limites jurídicos, de forma que não há mais que se falar em prerrogativas estatais, com contornos de totalitarismo e arbítrio estatal, mas em um dever- poder que decorre da natureza funcional da atividade, que visa exclusivamente à satisfação do interesse público. Para tanto, será preciso que o agente demonstre que a solução proposta é conveniente e apropriada para a satisfação do interesse público.
Assim, entende-se que o exercício de poderes exorbitantes pelo poder concedente deve se dar em situações excepcionais e de forma bem fundamentada, para que esse risco não seja considerado relevante para o concessionário, trazendo segurança jurídica e diminuindo os custos transacionais de contratar com o poder público. Para tanto, o ideal seria que os contratos de concessão previssem alguns parâmetros claros e objetivos para que a concessionária possa identificar, em cada caso, de antemão, quais seriam essas possíveis situações excepcionais que poderiam dar ensejo ao exercício dos poderes exorbitantes pelo poder concedente.
54 É possível encontrar menção ao princípio da vinculação ao edital em diversos dispositivos da Lei de Licitações, a saber, art. 3º, art. 54, § 1o , art. 55, XI.
55 MOXXXXX XXXX, Dixxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 23.
56 JUXXXX XXXXX, Maxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. pp. 167 e 168.
É preciso considerar quais são os interesses privados, para que se possa atingir aos interesses públicos. Afinal, as principais razões que justificam a realização de uma concessão são (i) a necessidade de recursos privados para financiar projetos que, por sua complexidade ou magnitude, o Poder Público não teria condições de financiar por si só, (ii) trazer para a prestação dos serviços públicos a expertise e a eficiência do setor privado.
Por isso, da mesma forma que devemos pensar nas razões que levam o Poder Público a realizar uma concessão, é preciso avaliar quais os incentivos que levam o parceiro privado a se envolver nessa relação.
Aplicando o instrumental da análise econômica do direito aos contratos de concessão, é preciso considerar que os particulares estão em busca da maximização do lucro e que quando decidem contratar com a Administração Pública, estão reagindo a determinados incentivos.57
É certo que, para atrair colaboradores sérios e competentes, é preciso oferecer uma remuneração adequada. De outro modo, só um aventureiro aceitaria entrar em um contrato tão oneroso, por sua conta e risco, sem garantia de que receberá a devida retribuição. Por devida retribuição é preciso considerar não só a garantia de respeito à equação econômico-financeira, no que se refere à remuneração recebida, mas também no que se refere à assunção de riscos.58 Maxxxx Xxxxxx Xxxxx xxplica que “quanto maior o risco do concessionário, tanto mais elevada será a tarifa. A incerteza sobre os custos necessários à efetiva obtenção dos benefícios pretendidos pelo empresário se traduz em custos de transação, o que significa que o empresário
transfere para o preço as incertezas e inseguranças que entranham sua atividade.”59
Por outro lado, é preciso garantir que o concessionário tenha controle gerencial das atividades prestadas, do contrário, se perderia um dos principais propósitos da concessão que é buscar na iniciativa privada um parceiro com expertise para aprimorar a gestão do serviço concedido. Nessa linha Fexxxxxx Xxxxxxxx xestaca que:
57 Um dos fundamentos da análise econômica do direito é a concepção dos indivíduos enquanto maximizadores de seu próprio bem-estar, o que se convencionou chamar de rational choice theory. A maximização racional indica que os indivíduos farão, em todas as atividades que exercem, escolhas que melhor atendam ao seu bem-estar. Para isso, levarão em conta o custo-benefício das decisões, tendo-se em consideração dinheiro, prestígio, poder, dentre outros fatores que aumentariam o seu bem-estar. Nas palavras de Flxxxx Xxxxxxx, “dizer que os indivíduos são maximizadores racionais de seus próprios interesses ou utilidades significa afirmar que as suas escolhas estão vinculadas ao maior proveito individual que possam obter delas.” (GAXXXXX, Flxxxx. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos. Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Editora Xxxxx Xxxxx, 0000 p. 252.)
58 MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 39.
59 JUXXXX XXXXX, Maxxxx. As Diversas Configurações da Concessão de Serviço Público. In: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Editora Fórum, n.1, p.95- 136, jan./mar. 2003.
A autonomia de gestão é vista por muitos como um direito do concessionário, do qual decorre um dever à Administração de respeito à sua esfera gerencial-administrativa (do concessionário). A preservação de um nível mínimo de autonomia de gestão é fundamental para a caracterização do modelo concessório.60
Pexxx Xxxxxxxxx, por sua vez, é categórico ao afirmar que a Administração não tem o direito de ingerência na gestão do serviço:
(...) a Administração não dispõe do direito de ingerência na gestão do serviço: se não concorda com a gestão do concessionário, por considera-la pouco adequada ao interesse público, o concedente poderá proceder ao resgate da concessão ou à rescisão do contrato; o que não pode é converter o concessionário num “agente” na sua inteira dependência, numa alter ego seu que deve constantemente adequar o serviço às suas concepções de gestão.61
Portanto, assim como o princípio da supremacia do interesse público, que se encontra na gênese das cláusulas exorbitantes dos contratos de concessão, a noção de prerrogativas estatais exorbitantes vem sendo reavaliada pela doutrina. Fexxxxxx Xxxxxxxx xxplica:
a ideia de prerrogativa exorbitante vai perdendo força, adquirindo conotação bastante diversa daquela que prevaleceu no passado. A (re)valorização da segurança jurídica e da força do contrato – e a consideração de que as incertezas e a suscetibilidade do contratado a interferência desta natureza geram o agravamento de custos transacionais
– concorreu para a alteração do panorama jurídico sobre a matéria. Atualmente, vige uma interpretação restritiva para o exercício de competências autoritárias no plano de contratos administrativos. Tal significa o reconhecimento de que as interferências administrativas em contratos administrativos devem ser excepcionalíssimas, legitimadas apenas em hipóteses anormais e cujo advento seja inevitável para garantir o interesse administrativo (justificativa que se procede à luz dos princípios da razoabilidade-proporcionalidade). E a hipótese há de ter cabimento ainda mais restritivo em concessão de serviços públicos, que conformam contratos complexos e longevos, os quais, via de regra, pressupõem investimentos bastante expressivos a serem aportados pelo concessionário.62
Vale lembrar que o contrato de concessão é um contato de longo prazo, que pressupõe altos investimentos e uma série de obrigações a serem cumpridas pelo concessionário, firmado com um contratante que detém diversas prerrogativas extraordinárias. É preciso que fique claro,
60 GUXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p.71.
61 GONÇALVES. Pexxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra. Xxxxxxxx, 0000.xx. 244/245
62 GUXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p.352.
até mesmo como forma de garantir a transparência da contratação pública, qual é a atratividade do projeto para o parceiro privado.
Como explica Maxxxx Xxxxxx Xxxxx, “[i]nvestimentos dessa ordem só se sustentam num cenário de conhecida estabilidade político-jurídica: regras claras previamente estabelecidas e depois respeitadas, que permitam dar consistência a projeções elaboradas com número certo de variáveis endógenas.”63
Assim, para que haja interesse legítimo do particular em contratar com a Administração nessas condições, é preciso que o Poder Público ofereça também uma série de garantias. É necessário um sistema em que o particular tenha benefícios e garantias que o incentive a adentrar nessa relação a despeito de suas peculiaridades.
Maxxxx Xxxxxx Xxxxx xá alertou que “[s]ob certo ângulo, as causas do desaparecimento das concessões no passado relacionam-se com a ausência de parâmetros de segurança e confiabilidade no âmbito da atividade administrativa.”64 É preciso, assim, aprender com os erros do passado, para buscar um regime de concessão de serviço público que gere os incentivos certos e atraia os investidores privados adequados para o serviço que se pretende prestar, de forma que a contratação seja feita da forma mais vantajosa para a Administração Pública, o particular e o usuário.
Regime este que considere que “[a] solidez institucional e a consistência na execução dos contratos são dados que atenuam os custos de transação – o que em sede de serviços públicos concedidos pode implicar melhores serviços, menores tarifas e lucros razoáveis.” 65; que busque a aplicação do princípio da eficiência econômica, no sentido de uma maximização da produção, como comando para conseguir a maior utilidade possível com os meios existentes66, de forma a aproveitar os recursos disponíveis da melhor forma possível, sem perdas desnecessárias decorrentes de custos de transação.
Isso significa que, a despeito das cláusulas exorbitantes e demais peculiaridades que cercam o Poder Público como ente contratante, a concessão de serviço público vigente sob um Estado de Direito não pode ter como alicerce o arbítrio e o autoritarismo da Administração Pública. É preciso reconhecer que existem direitos e garantias insuprimíveis dos particulares,
63 MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. X. 00.
00 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 60. 65 MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 35 e 36.
66 WOXX, Xxxx X.; XXXXXX, Xxxx; STXXXX, Xxxx. Direito Administrativo Vol. 1. Tradução do original alemão intitulado Verwaltungsrecht, vol. 1, 11 ed. ver. 1999. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. P. 212.
sob pena de restar infrutífera a realização de licitações para concessão de serviço público67 ou, pior, atrair pessoas mal-intencionadas para contratar com a Administração.
Todo contrato de concessão tem cláusulas impositivas de obrigações não só ao concessionário, mas também ao poder concedente; cláusulas estas cujo cumprimento deve ser considerado passível de ser exigido pela concessionária. Entendimento em contrário levaria à consequência de serem essas cláusulas redação meramente retórica, e a um poder concedente que poderia simplesmente deixar de cumprir com suas obrigações.
Ao tratar sobre o direito de o concessionário ter autonomia na gestão do serviço público, Pexxx xx Xxxxx Xxxxxxxxx xenciona a responsabilidade da Administração em cumprir os deveres a que se comprometeu:
O direito em questão constitui, pois, uma posição substantiva ativa do concessionário que implica imediatamente um dever para a Administração Pública de não perturbar ou, mais positivamente, de respeitar essa posição não pondo em causa a autonomia de gestão do concessionário – aliás, em relação à Administração concedente, o direito do concessionário pode ter como contrapartida o dever de ela não só não impedir ilegalmente o respectivo exercício como o de cumprir as obrigações que assumiu e que sejam indispensáveis para que o direito possa exercer-se (v.g. efetuar expropriações, dar posse de terrenos ao concessionário, entregar-lhe material em bom estado)68
Não é porque a Administração Pública está visando ao interesse público, que isso lhe garante carta branca para descumprir os contratos de concessão em violação a princípios jurídicos basilares como o princípio da boa-fé e a sua vertente que veda o venire contra factum proprium, assim como o princípio da moralidade, expressamente previsto no art. 37 da Constituição Federal.
Em uma análise superficial, é fácil identificar que o descumprimento de obrigações contratuais pelo poder concedente gera prejuízos ao concessionário. O que não é tão facilmente
67 A título exemplificativo, citamos abaixo trecho do acórdão Nº 2052/2014 do Plenário do Tribunal de Contas da União, que trata sobre a concessão do serviço público de transporte por meio de Trem de Alta Velocidade (TAV), julgado em 06/08/2014:
“5. Dando continuidade ao processo fiscalizatório, a ANTT encaminhou ao TCU o instrumento convocatório relativo à concessão em análise (Edital 1/2010). Pelo Acórdão 1.796/2011-Plenário, a segunda etapa também foi aprovada, mas com ressalvas, expedindo-se diversas determinações e recomendações àquela agência reguladora.
6. Neste ponto, uma observação: a título de modelagem, além da operação, manutenção e fornecimento do material rodante, ficava a cargo da futura concessionária todo o conjunto de obras necessárias à implantação do TAV.
7. Ocorre que, em razão da ausência de interessados, a licitação foi deserta. Uma das causas cogitadas para esse insucesso seria os excessivos riscos e atribuições da concessionária, responsável tanto pela operação ferroviária quanto pela execução da infraestrutura do empreendimento.”.
68 GONÇALVES. Pexxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra. Almedina, 1999. p.264.
perceptível são os prejuízos que o descumprimento de obrigações contratuais pelo poder concedente gera para o próprio interesse público.
O primeiro prejuízo ao interesse público é o custo do prejuízo causado ao concessionário. Ao deixar de cumprir uma obrigação imotivadamente, o poder concedente dará ensejo ao direto de reparação do concessionário, seja através do reequilíbrio econômico- financeiro do contrato ou de indenização, como veremos detalhadamente no terceiro capítulo, custo este em que o poder público não precisaria ter incorrido se tivesse cumprido o contrato conforme previsto.
O segundo prejuízo, indireto e mais difícil de calcular, é o custo da insegurança jurídica trazida com a instabilidade das ações do poder concedente, o que aumenta significativamente os custos de contratar com a Administração Pública69, em detrimento dos interesses coletivos e do bem comum.
Nesse sentido, Dixxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx xxplica que ao identificar o poder concedente como uma parte que reiteradamente descumpre o contrato, o mercado reagirá de duas formas possíveis: (i) o potencial concessionário, para se resguardar, irá considerar essa insegurança na elaboração da proposta a ser apresentada na licitação, o que acabará por repassar à sociedade o ônus da conduta instável do poder público, aumentando o preço do serviço prestado em prejuízo de todos os usuários; (ii) haverá um desincentivo à contratação com o poder público que diminuirá o número de interessados, a concorrência e, consequentemente, reduzirá a qualidade e/ou o incentivo para que o prestador de serviço entregue um serviço de qualidade, tudo isso, em prejuízo da prestação adequada do serviço delegado. Em suas palavras:
(...) há, por certo, toda a repercussão econômica, que pode ser imprevisivelmente muito alta, muito além daquela que, por via de acordo ou por força de sentença judicial, o Estado venha a pagar ao co-contratante lesado. Com efeito, a sociedade, que deverá arcar, em última análise, com seu tributo, para o custeio das indenizações, reagirá, retraindo o mercado, quando das licitações e das contratações com o Poder Público ou aumentando, como resposta, os seus preços, caso se arrisque a com ele contratar.70
Em ambos os cenários, quem arcará com os prejuízos decorrentes da ausência de vinculação do poder concedente ao contrato será o usuário do serviço. Por isso a importância
69 De acordo com J. Xuxx Xxxxx, dependendo do setor e do país, estima-se que essa insegurança se reflita em um aumento de 2 a 6% do custo do capital. Um aumento de 5% no custo do capital, por exemplo, representa uma redução de 35% no valor da outorga e um aumento nas tarifas de aproximadamente 20%. (Renegotiation p. 3.)
70 MOXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 33.
de se considerar e preservar os interesses do particular, conforme pactuado no contrato, como forma de garantir o pleno atendimento do interesse público.
2. O DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Considerando que, de acordo com a Lei n 8.987/95, o contrato de concessão é um contrato executado por conta e risco do concessionário, que deve obter sua remuneração e amortização dos investimentos mediante a exploração dos serviços, através da cobrança de tarifas pagas pelos usuários, entende-se que as obrigações contratuais do poder concedente se restringiriam à fiscalização e supervisão do contrato, de forma a garantir que o serviço está sendo prestado de forma satisfatória.
Se considerarmos ainda que o poder concedente possui o poder extroverso de alterar unilateralmente sempre que o interesse público demandar, poderíamos chegar à conclusão de que as hipóteses de descumprimento de cláusulas contratuais em contratos de concessão, pela Administração Pública, seriam praticamente nulas. Afxxxx, sempre que o poder concedente descumprisse suas obrigações, poderia se dizer que há um motivo de interesse público a justificar a conduta e, portanto, uma janela para se alterar unilateralmente o contrato. Talvez seja por essa razão que a doutrina pouco se dedica ao estudo do descumprimento dos contratos de concessão pela administração pública.
No entanto, há uma forte tendência de releitura do princípio da supremacia do interesse público, da aplicabilidade das cláusulas exorbitantes e da assimetria na relação entre a Administração Pública e o particular, em contraposição a um autoritarismo estatal, em favor dos administrados. Haxxxxx, assim, um “deslocamento do eixo da autoridade para a consensualidade”71.
Maxxxx Xxxxxx Xxxxx xxplica como se dá a relativização da fórmula tradicional de que a concessão é prestada por conta e risco do concessionário
Afirmar que o concessionário presta o serviço por sua própria conta reflete uma concepção política e jurídica não mais vigente. (...) Se o serviço permanece sendo público, como seria possível afirmar que passaria ele a ser prestado “por conta” do concessionário? É evidente que o serviço delegado é prestado por conta do poder concedente. O concessionário atua em nome próprio e assume inúmeros direitos e deveres, mas é incorreto atribuir ao interesse privado do delegatário relevância central na avença.
Não tem cabimento que serviço público seja desempenhado apenas no interesse público do poder concedente ou somente no interesse privado do concessionário.
71 MAXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do contrato administrativo à administração contratual. In: Revista do Advogado n. 107. Ano XXIX. Dezembro de 2009. p. 80.
Como acima apontado, o interesse na prestação do serviço concedido é comum e compartilhado pelo Estado, pela comunidade e pelo concessionário.72
A partir desse interesse comum e compartilhado pelas partes, na prestação do serviço concedido, verifica-se que ambas as partes têm obrigações e reconhece-se que pode haver o descumprimento do contrato pelo poder concedente.
Poderia haver, por exemplo, um conflito de interesses do poder público enquanto parte em um contrato de concessão e enquanto gestor em busca do bem-estar geral. Enquanto parte do contrato de concessão, o poder concedente tem interesse no cumprimento, pela concessionária, de suas obrigações contratuais da forma mais favorável para ele; ao passo que, como gestor, o poder público deveria ter interesse na manutenção da estabilidade e segurança jurídica nas relações contratuais, fundamentais para atrair o investimento de capital privado e atender ao interesse público mais amplo.
Pode haver fatores políticos que influenciam a continuidade do contrato, como as eleições e a entrada ou saída de chefes do Poder Executivo.
Há, ainda, alterações contratuais promovidas em virtude da ineficiência e desorganização pública na estruturação (licitação) e gestão do contrato, e até mesmo descumprimentos em virtude do comportamento de terceiros, que faz com que o poder concedente atrase o cumprimento de obrigações acessórias necessárias para que o particular possa desempenhar satisfatoriamente suas obrigações.
As razões que levam o poder concedente a inadimplir o contrato, portanto, são de diversas matizes e muitas delas não têm qualquer relação com interesse público superveniente. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx afirmam que, nos contratos administrativos, “sob o pálio de um intangível e onipresente interesse público, fazem letra morta dos termos e condições contratuais e impõem as alterações que o populismo melhor demanda, por meio da redução de preços, descumprimento de direitos do contratado, mudanças unilaterais e os mais diversos tipos de desmandos.”. 73
O uso do poder extroverso da Administração Pública para alterar os contratos é, como se verá, uma das possíveis formas de descumprimento desses instrumentos, através do qual a Administração se utiliza de uma faculdade legal e contratual sua, mas de forma desviada ou
72 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. As Diversas Configurações da Concessão de Serviço Público. In: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Editora Fórum, n.1, p.95- 136, jan./mar. 2003.
73 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Levando a sério a remuneração nos contratos públicos de longo prazo. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno. A lógica das Concessões e Parcerias Público-Privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 491.
com vício de finalidade. É dizer: a Administração utiliza uma prerrogativa, em tese, lícita, de forma ilícita, o que torna a alteração nula e violadora não só do princípio da vinculação ao instrumento contratual, mas também aos direitos do contratado. É o que chamaremos a seguir de descumprimento ativo.
Além das alterações contratuais não autorizadas pelo ordenamento jurídico, há também as hipóteses de descumprimento caracterizadas pela inobservância de deveres comissivos previstos no contrato (i.e. obtenção de licenciamento, promoção de desapropriações). É o que veremos a seguir sob a denominação de descumprimentos passivos.
Por fim, há ainda uma terceira hipótese de descumprimento que se configura quando o contrato é descumprido em razão de intervenções ou ineficiência de terceiros, que compõem o poder público em qualquer das esferas de poder, seja o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário, dos quais o concessionário e a Administração dependem para cumprir suas obrigações.
2.1 Descumprimento ativo: alterações unilaterais pela Administração Pública sem a devida motivação
Como visto no capítulo anterior, a alteração unilateral do contrato não necessariamente caracteriza um descumprimento. Em contratos de longo prazo, como os de concessão, espera- se que ocorram diversas alterações, já que é parte de seu escopo a adequada prestação do serviço, objeto este que pode se alterar com o passar do tempo, diante da necessidade de adaptação, expansão e de modernização do serviço, bem como aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações, conforme previsto no art. 23, V, da Lei de Concessões.
No que se refere aos requisitos para a alteração unilateral do contrato, a Lei de Concessões se limita a estabelecer como condição o reestabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, concomitantemente a sua alteração, caso necessário.
A Lei de Licitações, aplicável subsidiariamente, no que couber, à Lei de Concessões74, determina em seu art. 65, que os contratos administrativos poderão ser alterados, com as devidas justificativas, unilateralmente pela administração, quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos e quando necessária a
74 De acordo com o art. 124 da Lei n. 8666/93 “Aplicam-se às licitações e aos contratos para permissão ou concessão de serviços públicos os dispositivos desta Lei que não conflitem com a legislação específica sobre o assunto.”
modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei.75.
Ressalva ainda o parágrafo quarto do referido dispositivo que no caso de supressão de obras, bens ou serviços, se o contratado já houver adquirido os materiais e posto no local dos trabalhos, estes deverão ser pagos pela Administração pelos custos de aquisição regularmente comprovados e monetariamente corrigidos, podendo caber indenização por outros danos eventualmente decorrentes da supressão, desde que regularmente comprovados.
Por fim, o parágrafo sexto determina que em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.
A legislação brasileira se alinha com a doutrina francesa. Xxxxx xx Xxxxxxxxx explica que um dos poderes exorbitantes do poder concedente, que se justifica pelo caráter de serviço público da atividade exercida pelo concessionário, é a possibilidade de modificação unilateral do contrato. No entanto, essas modificações só poderiam incidir sobre a parte regulamentar do contrato e não sobre a parte contratual (duração, vantagens financeiras). Por isso, se as alterações representarem uma ruptura no equilíbrio econômico financeiro da concessão, cabe à Administração indenizar o concessionário.76
O entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região é no sentido de que o poder de alteração unilateral do contrato é inerente à Administração Pública e pode ser exercido por ela ainda que não haja previsão contratual expressa. No entanto, a alteração unilateral só pode atingir as denominadas cláusulas regulamentares, isto é, aquelas que dispõem sobre o objeto do contrato e o modo de sua execução. Assim, entende-se inalteráveis unilateralmente as cláusulas econômicas, que estabelecem a remuneração e os direitos do contratado e dispõem acerca da equação econômico-financeira do contrato, sem que seja garantido o equilíbrio financeiro inicialmente ajustado entre as partes.77
75 De acordo com o parágrafo primeiro do referido dispositivo, o contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinqüenta por cento) para os seus acréscimos.
76 XXXXXXXXX, Xxxxx. Xxxxxx xx Xxxxx Administratif. 14ª ed. Paris: Librairie General de droit et jurisprudence, 1992. P. 300/301.
77 Por todos, confira-se trecho da ementa:“1. A doutrina é uniforme no admitir que o poder de alteração e rescisão unilateral do contrato administrativo é inerente à Administração Pública, podendo ser exercido ainda que nenhuma cláusula expressa o consigne, porém, a alteração somente pode atingir as denominadas cláusulas regulamentares, isto é, aquelas que dispõem sobre o objeto do contrato e o modo de sua execução. No que concerne às cláusulas econômicas, ou seja, aquelas que estabelecem a remuneração e os direitos do contratado perante a Administração e dispõem acerca da equação econômico-financeira do contrato administrativo, estas são inalteráveis, unilateralmente, pelo Poder Público sem que se proceda à devida compensação econômica do contratado, visando
Há que se considerar, portanto, que essas alterações unilaterais devam ser limitadas, seja para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro, seja por respeito ao procedimento licitatório, afinal, caso fosse facultado à Administração alterar substancialmente os termos do contrato, haveria uma verdadeira burla ao processo de licitação. Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx destaca o efeito perverso da alteração unilateral para a eficiência do contrato:
Perceba-se que o preço devido ao concessionário pela prestação dos serviços e assunção dos diversos riscos que o contrato lhe atribui é, no caso dos processos de desestatização, sempre determinado pela competição havida na licitação. Quando, entretanto, o Poder Público resolve realizar alteração no objeto do contrato de concessão comum e PPP, seja ela quantitativa ou qualitativa, não há mais pressão competitiva para determinar o novo preço a ser cobrado pelo parceiro privado por consequência da alteração do objeto do contrato. 78
Nesse sentido, Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx sintetiza que para ser legítima a alteração contratual esta deverá ser necessária para atingir a finalidade para que foi proposta, não implicar em violação ao processo de licitação, e preservar a equação econômico-financeira do contrato e os direitos do contratado.79
Veja-se que o primeiro ponto destacado pela autora é quanto ao atingimento do interesse público e a motivação do ato de alteração unilateral, em linha com o caput do art. 65, que determina que os contratos poderão ser alterados, “com as devidas justificativas”. Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx ensina que “todos os atos praticados pelo Estado, retratando o exercício de prerrogativas excepcionais ou que possam desestabilizar o vínculo, deverão ser objeto de formal e cumprida motivação”80, em razão do disposto nos arts. 1º, parágrafo único, 3º e 37 da Constituição Federal.
restabelecer o equilíbrio financeiro inicialmente ajustado entre as partes. Esse o magistério do saudoso jurista Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, in Licitação e Contrato Administrativo, 9ª edição, Revista dos Tribunais, 1990, pp. 181/2. É o que se encontra previsto nos arts. 37, XXI, e 175, III, da CF/88, bem como no art. 9º, § 4º, da Lei nº 8.987/95” (APELREEX 200370000433620, julgado em 26/01/2010, pela Terceira Turma do TRF4. Relator: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxx.)
78 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011.p. 105 e 106.
79 “Para que seja juridicamente legítima, a alteração contratual deve (i) ser necessária para se atingir a finalidade – o interesse público – que motivou a contratação; (ii) não implicar violação à exigência constitucional de licitação prévia e ao princípio da vinculação objetiva ao instrumento convocatório, com frustração de processo competitivo, o que requer que seja preservada a natureza do objeto contratual; e (iii) preservar a equação econômico-financeira do contrato e os direitos do contratado”. (XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx.A revolução silenciosa: o fim dos limites à mutabilidade dos contratos de concessão. In: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxx-xxxxx/x- revolucao-silenciosa-o-fim-dos-limites-a-mutabilidade-dos-contratos-de-concessao . Acesso em 05.11.2017.)
80 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 169.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, ao tratar sobre o poder modificação unilateral pela Administração, afirma que esta “como em todas as competências públicas, deve obediência à legalidade e gerará atos válidos desde que exercida em seu âmbito próprio, de modo motivado, proporcional e razoável.”81
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, por sua vez, explica que é através da motivação do ato de alteração unilateral que se faz o controle acerca da regularidade do ato de alteração unilateral:
Daí ser imperativo que o poder público exponha e justifique as novas circunstâncias e as razões que qualificam como determinantes da alteração contratual mediante uma suficiente motivação. Nessa devem conter-se não apenas as razões que a Administração concebeu à emissão do conteúdo do ato, mas, ainda, a demonstração de todos os elementos colhidos no curso do procedimento, inclusive os provenientes de manifestação de terceiros interessados, e as considerações destes para a decisão extraída82
Não há, portanto, como exercer um controle de legalidade da alteração unilateral do contrato pela Administração Pública quando a decisão se baseia genericamente no interesse público, com fundamento no art. 58, I, da Lei de Licitações, sem demonstrar quais seriam esses interesses e a adequação da medida para o atendimento deles.
Diante dessa constatação, temos que a alteração unilateral do contrato de concessão pelo poder concedente, sem que haja a devida motivação, representa uma verdadeira arbitrariedade e um descumprimento do contrato de concessão, com uma pretensa roupagem de legalidade através da menção ao poder exorbitante da Administração Pública. Vejamos a seguir como esses descumprimentos estão presentes na jurisprudência.
2.1.1 Alteração unilateral ou descumprimento?
Em linha com o art. 9º, § 4º, da Lei de Concessões, o entendimento pacífico da jurisprudência é no sentido da impossibilidade de alteração unilateral pelo poder público de cláusulas econômicas do contrato de concessão, que possam impactar a equação econômico- financeira do concessionário, sem a devida compensação.
81 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 377.
82 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Alteração unilateral do contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 225.
Os Tribunais Regionais Federais, em linha com o entendimento do STJ, reconhecem a impossibilidade de alteração unilateral do contrato de concessão pela administração para criar um novo encargo para as empresas concessionárias de transporte interestadual, ao estabelecer uma isenção tarifária não prevista no contrato e sem o correspondente reequilíbrio.
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GRATUIDADE DE TRANSPORTE TERRESTRE INTERESTADUAL AO IDOSO. INDEFERIMENTO. XXXXXXXXX QUE DEMANDA A CORRESPONDENTE FONTE DE CUSTEIO. EXIGÊNCIA DA CARTA MAGNA DE 1988. CONTRATOS DE CONCESSÃO, PERMISSÃO E AUTORIZAÇÃO FIRMADOS PELO ESTADO COM AS EMPRESAS DE TRANSPORTE. MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-
FINANCEIRO. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Trata-se de Agravo de Instrumento, interposto contra decisão proferida pelo Juiz Federal da 3ª Vara-PB, Dr. XXXXXX XXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXX, em sede de ação civil pública, ajuizada com o fito de assegurar ao idoso o direito ao passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual, sob o argumento de auto-aplicabilidade do art. 40 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). 2. Precedente do STJ: "(...) Ao estabelecer um serviço de transporte de natureza assistencial em favor dos idosos de baixa renda o legislador exigiu, como condição de eficácia do dispositivo, a edição de legislação específica para regulamentar sua execução na integralidade. Diante da inexistência de legislação específica não há que se falar em eficácia do dispositivo legal. O serviço de transporte coletivo rodoviário se realiza por ações de empresas mediante contratos de concessão, permissão ou autorização firmados com o Poder Público. São portanto contratos administrativos nos quais, desde a celebração, deve estar prevista a forma de ressarcimento, pelo Estado, das despesas da empresa na execução do serviço público. Mesmo nos contratos administrativos, ao poder de alteração unilateral do Poder Público contrapõe-se o direito que tem o particular de ver mantido o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, considerando-se o encargo assumido e a contraprestação pecuniária garantida pela Administração. A Constituição Federal exige que nenhum benefício ou serviço da seguridade social seja criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio (...) " (STJ, Corte Especial, AGSS nº 1404/DF, Relator: Min. Xxxxx Xxxxxxx, julg. 25/10/2004, publ. DJ:06/12/2004, pág. 177, decisão unânime). 3. Agravo de Instrumento conhecido mas improvido. Agravo Regimental prejudicado.83
83 AG 200505000272255, julgado em 27/04/2006 pela Primeira Turma do TRF5. Relator: Desembargador Federal Xxxxx Xxxxxxxx. No mesmo sentido, confira-se a decisão proferida na AC 00191645120084029999, julgada em 29/06/2009 pelo TRF2. Relator: Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xx Xxxx:
“APELAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. CONCESSÃO DA RODOVIA XXXXX. MORADORES DO MUNICÍPIO DE RESENDE. PREÇO PÚBLICO (OU TARIFA), E NÃO IMPOSTO. RAZOABILIDADE. ISENÇÃO TARIFÁRIA CONCEDIDA JUDICIALMENTE. EQUILÍBRIO ECONÔMICO FINANCEIRO DO CONTRATO DE CONCESSÃO. LEIS 8.987/95 E 8.666/93. PROVIMENTO.
(...) A cobrança da tarifa de pedágio é feita da universalidade de usuários dos serviços prestados pela concessionária, inclusive a realização de obras de manutenção, monitoramento, operação da rodovia, prestação de serviços médicos e de socorro emergencial, prestação de serviço mecânico de urgência, entre outras atribuições.
7. A Lei n. 8.987/95 – Lei das Concessões – prevê, no art. 9º, que caso haja alteração unilateral do contrato que interfira no inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo. Tal regra é também contemplada na Lei n. 8.666/93 – Lei das Licitações – no art. 58. (...)
O STJ se posicionou sobre o tema da concessão de isenção tarifária não prevista no contrato de concessão configurar uma violação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato em decisão de 2004, proferida pela Corte Especial:
AGRAVO REGIMENTAL - GRATUIDADE DE TRANSPORTE TERRESTRE INTERESTADUAL AO IDOSO - SUSPENSÃO SEGURANÇA - INDEFERIMENTO - MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO- FINANCEIRO DO CONTRATO - LESÃO À ORDEM PÚBLICA NÃO
CONFIGURADA. 1. Não se examina em pedido de suspensão lesão à ordem jurídica, cuja análise fica resguardada às vias recursais ordinárias. 2. Ao estabelecer um serviço de transporte de natureza assistencial em favor dos idosos de baixa renda o legislador exigiu, como condição de eficácia do dispositivo, a edição de legislação específica para regulamentar sua execução na integralidade. Diante da inexistência de legislação específica não há que se falar em eficácia do dispositivo legal. 3. O serviço de transporte coletivo rodoviário se realiza por ações de empresas mediante contratos de concessão, permissão ou autorização firmados com o Poder Público. São portanto contratos administrativos nos quais, desde a celebração, deve estar prevista a forma de ressarcimento, pelo Estado, das despesas da empresa na execução do serviço público. 4. Mesmo nos contratos administrativos, ao poder de alteração unilateral do Poder Público contrapõe-se o direito que tem o particular de ver mantido o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, considerando-se o encargo assumido e a contraprestação pecuniária garantida pela administração. 5. A Constituição Federal exige que nenhum benefício ou serviço da seguridade social seja criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio. 6. Não havendo lesão a quaisquer dos bens jurídicos tutelados pela norma de regência, é de ser negada a suspensão requerida. 7. Agravo não provido84
Há também casos em que se pretendia a redução da tarifa através de ato unilateral, o que foi rejeitado pelo Tribunal Regional da 4ª Região. Destaca-se que no trecho da decisão abaixo transcrito, a Corte consignou seu entendimento de que tal alteração tem repercussões negativas que podem colocar em risco a própria execução do contrato e a continuidade e regularidade da prestação do serviço:
(...) Essa interpretação resulta do texto da Lei Maior, nos arts. 37, XXI, e 175, III, da CF/88, que garante ao concessionário do serviço público a justa remuneração pela prestação do serviço, o que se verifica por meio da tarifa. Ora, permitir que o Poder Público, por ato unilateral, alterasse o valor da tarifa, reduzindo-o, seria infringir o intento constitucional, comprometendo o equilíbrio econômico- financeiro do contrato de concessão, com repercussões negativas na prestação do serviço público e no próprio desdobramento do contrato, pondo em risco a continuidade e a regularidade da prestação do serviço.85
84 AGSS 200401195814, julgado em 25/10/2004, pela Corte Especial do STJ. Relator: Xxxxx Xxxxxxx.
85 APELREEX 200370000433620, julgado em 26/01/2010, pela Terceira Turma do TRF4. Relator: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxx. Na mesma linha foi a decisão no AG 200504010193581, julgado pela mesma turma do TRF$ e relator em 22/05/2006 e no AGA 200404010177066, julgado em 30/06/2005.
O STJ também já se posicionou quanto à legalidade das alterações unilaterais do contrato de concessão quando “serviram para melhor adequação dos objetivos do projeto (art. 65, I, "a", da Lei 8.666/93), bem como respeitaram os limites percentuais previstos em lei (art. 65, § 1º, da Lei 8.666/93).”86
A decisão, proferida em 2016, e que discute a alteração contratual em contrato de concessão de transporte público coletivo, traz à luz a discussão sobre a aplicabilidade dos limites quantitativos previstos art. 65 da Lei n. 8666/93 aos contratos de concessão.
Marçal Justen Filho87 entende que o parágrafo primeiro do referido dispositivo, que determina limites de acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, o limite de até 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos, é inaplicável aos contratos de concessão.
De acordo com o autor, a restrição prevista no dispositivo é incompatível com a natureza dos contratos de concessão pois visam um controle dos gastos estatais, o que não seria aplicável aos contratos de concessão pois não há transferência de recursos públicos ao concessionário.
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx explica que o entendimento de que não há limites quantitativos pré-definidos para a alteração de contratos de concessão era defendido por especialistas no tema88, mas ignorados pela burocracia estatal.
Sustenta a autora que, com o advento da Lei n. 13.448/2017, esse entendimento foi pacificado através do art. 22 que expressamente prevê que “as alterações dos contratos de parceria decorrentes da modernização, da adequação, do aprimoramento ou da ampliação dos serviços não estão condicionadas aos limites fixados nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.”89 .
Vale destacar, ainda, que de acordo com art. 1º, § 2º, da Lei nº 13.334/17, são considerados contratos de parceria “a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados
86 RESP 201303492982, julgado em 27/09/2016, pela Segunda Turma do STJ. Relator: Xxxxxx Xxxxxxxx.
87 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. x. x. 000/000.
00 Xxxx já era o entendimento de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx que afirma que “nas concessões a competência para alterações vai muito além da Lei 8.666/1993 (máxime no art. 65, a delimitar numerus clausus as modificações ditas quantitativas e qualitativas). As normas da Lei de Licitações que circunscrevem as alterações não se aplicam ao regime concessionário (restrições interpretam-se restritivamente).” (XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 379).
89 A revolução silenciosa: o fim dos limites à mutabilidade dos contratos de concessão. In: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxx-xxxxx/x-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxx-x-xxx-xxx-xxxxxxx-x- mutabilidade-dos-contratos-de-concessao . Acesso em 05.11.2017.)
que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante”.
Nessa toada, embora as alterações unilaterais pela administração nos contratos de concessão não estejam sujeitas aos limites quantitativos previstos no parágrafo 1º, do art. 65, da Lei n. 8.666/93, o cumprimento dos demais requisitos do art. 65 e parágrafos, notadamente, no que se refere à apresentação das “devidas justificativas”, para realizar a alteração unilateral do contrato, quando (i) houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos; (ii) necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, devem ser observados. Nas palavras de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx
(...) não se está a defender a degeneração do contrato: as alterações (unilaterais e bilaterais) exigem respeito ao pacto e à sua razão de existir – definida pela realidade socioeconômica a ele subjacente. A juridicidade do pacto importa o dever das partes de desempenharem com afinco os melhores esforços para o seu cumprimento. Eles devem acatamento à natureza contratual das tarefas que lhes foram atribuídas – e também à legalidade, motivação e proporcionalidade.90
Conclui o autor que, as condições para a alteração unilateral dos contratos de concessão seriam (i) competência do agente, (ii) respeito à natureza da cláusula modificada, (iii) motivação, (iv) simultâneo reequilíbrio do contrato.
No que se refere ao necessário reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já reconheceu a ilegalidade de decisão unilateral da administração que reduziu o escopo do contrato, sem considerar os investimentos feitos pelo concessionário para a execução do contrato na forma originalmente pactuada, sob o fundamento de que “ao ser feita a redução dos recursos financeiros da concessionária e dos encargos a ela atribuídos, deixou-se de considerar o investimento de trezentos milhões de reais que, por exigência da Administração, a empresa foi compelida a realizar.”91
Sendo assim, pode-se afirmar que os Tribunais entendem ser ilegais as alterações unilaterais do contrato de concessão que não respeitam o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, seja através de (i) concessão de isenções tarifárias sem previsão contratual ou correspondente fonte de custeio, (ii) alteração do valor das tarifas, (iii) redução do escopo do
90 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 380.
91 AG 199804010608142, julgado em 29/04/1999, pela Terceira Turma do TRF4. Relatora: Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx.
contrato, sem a correspondente compensação pelos investimentos já realizados pelo concessionário, isto é, sem o concomitante reequilíbrio econômico-financeiro.
As alterações unilaterais dos contratos de concessão que não respeitam o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, conforme previsto no art. 9º, §4º da Lei de Concessões, nem à exigência constitucional de motivação, portanto, podem ser consideradas um descumprimento do contrato pelo poder concedente.
2.1.2 Alterações Tácitas
Além das alterações contratuais expressas vistas no item acima, o poder concedente pode agir de forma diferente da prevista no contrato, alterando de fato as cláusulas contratuais, sem, no entanto, alterá-las formalmente.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx explica que existem situações em que o poder concedente pretende alterar o contrato, mas não quer garantir os correspondentes efeitos legais, isto é, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Para tanto, busca subterfúgios para implementar a alteração de forma disfarçada, como, por exemplo, quando pretende reduzir a tarifa e para não o fazer diretamente, toma uma série de providencias acessórias, buscando esse efeito de forma indireta92.
É também o caso quando o poder concedente cumpre irregularmente com suas obrigações ou altera prazos contratuais informalmente. Nesta hipótese, jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região já reconheceu que se houver um prejuízo ao concessionário, ele deverá ser indenizado:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. RODOVIAS. ALTERAÇÃO UNILATERAL PELO PODER PÚBLICO. CLÁUSULAS ECONÔMICAS DO CONTRATO DE CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO. PEDÁGIO. REMUNERAÇÃO. EQUAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA DO CONTRATO ADMINISTRATIVO. PRESERVAÇÃO. CONSEQÜÊNCIA. PROTEÇÃO DO CONCESSIONÁRIO PELA CONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO, UNILATERALMENTE, ALTERAR AS CLÁUSULAS ECONÔMICAS DO CONTRATO DE CONCESSÃO DO SERVIÇO PÚBLICO SEM COMPENSAR O CONCESSIONÁRIO. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA.
92 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 445.
(...)
Por outro lado, se o respeito ao equilíbrio econômico-financeiro inicia1, na hipótese de alteração unilateral do ajuste, constitui dever da Administração contratante; com muito mais razão é direito daquele e dever desta, nos casos em que o órgão ou entidade contratante abusa de sua posição privilegiada para descumprir ou cumprir irregularmente suas prestações, ou ainda suspender os prazos contratuais, obrigando o particular a suportar encargos excessivos, os quais, por não terem sido cogitados quando da elaboração da proposta ou da celebração do contrato, representam insuportáveis prejuízos, mormente numa conjuntura em que o custo do dinheiro é altíssimo e a inflação avilta a moeda a cada dia.
(...)
Essa interpretação resulta do texto da Lei Maior, nos arts. 37, XXI, e 175, III, da CF/88, que garante ao concessionário do serviço público a justa remuneração pela prestação do serviço, o que se verifica por meio da tarifa. Ora, permitir que o Poder Público, por ato unilateral, alterasse o valor da tarifa, reduzindo-o, seria infringir o intento constitucional, comprometendo o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, com repercussões negativas na prestação do serviço público e no próprio desdobramento do contrato, pondo em risco a continuidade e a regularidade da prestação do serviço. (...)”93
A decisão supracitada reconhece expressamente que o poder concedente estaria se valendo de sua posição privilegiada, isto é, de seus poderes extroversos, para descumprir ou cumprir irregularmente as obrigações previstas no contrato, violando o equilíbrio econômico- financeiro do contrato.
Esse também é o entendimento do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que já tratou de situação semelhante à narrada por Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, em que o poder concedente pretendeu, por via transversa, obter uma verdadeira revisão do valor da tarifa sem obedecer ao procedimento previsto no contrato de concessão. Consta do acórdão que “não se pode conferir e prestigiar poderes regulatórios absolutos, imunes ao controle judicial, quando há densidade jurídica na argumentação de desrespeito ao ato jurídico perfeito (...).”. Por fim, a decisão ainda destaca que a conduta ilegal do poder concedente compromete a ordem pública e a segurança jurídica, ao fragilizar a confiança legítima do concessionário quanto ao cumprimento efetivo dos contratos, trazendo preocupante precedente que pode colocar em risco a credibilidade estatal de respeitar ajustes e o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão.94
Assim, a alteração tácita do contrato, isto é, alterações não formalizadas, através da utilização de recursos lícitos para fins ilícitos, para se alcançar uma alteração sem o consequente reequilíbrio econômico financeiro do contrato, configuram um descumprimento do contrato.
93 Apelação/Reexame Necessário n. 0032025-25.2007.404.7000, julgado em 02 de março de 2010, pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Relator: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxx.
No mesmo sentido, condenando a alteração unilateral pela Administração de cláusulas econômicas do contrato de concessão confira: APELREEX 43362 PR 2003.70.00.043362-0, julgada em 26 de janeiro de 2010, pela Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Relator: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxx;
94 AC 00001335320124025101, julgada em 02/04/2014 pelo TRF2. Relator: Xxxx Xxxxxxx Xxxxx.
2.1.3 A renegociação do contrato pelas partes como descumprimento contratual
É preciso lembrar que, diferentemente dos contratos privados, os contratos com a administração devem ser regidos por uma série de normas e princípios de direito público, que impedem que as partes pactuem livremente sobre a contratação.
O primeiro requisito a ser respeitado é a licitação, procedimento que objetiva abrir uma competição entre os interessados, de forma a escolher a proposta mais vantajosa para o poder público. Se, após a licitação e assinatura dos contratos, as partes pudessem pactuar livremente a alteração de suas cláusulas, sem qualquer tipo de limite, o processo prévio de licitação seria absolutamente inócuo.
Tendo em vista que a contratação foi precedida de um processo de licitação para seleção do melhor prestador do serviço, considerando determinados parâmetros pré-estabelecidos, não é possível alterar livremente essas premissas após a assinatura do contrato, ainda que seja essa a vontade das partes, sob pena de burla ao processo licitatório.
Não é por outro motivo que o art. 65, II, da Lei n. 8.666/93, lista as situações específicas em que é possível que as partes, de comum acordo, pactuem a alteração do contrato, a saber: a) quando conveniente a substituição da garantia de execução; b) quando necessária a modificação do regime de execução da obra ou serviço, em face de verificação técnica da inaplicabilidade dos termos contratuais originários; c) quando necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o valor inicial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço; d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx afirma que o Estado que deixa de cumprir suas obrigações, ou mesmo trava sucessivas negociações de prorrogações, buscando com seu atraso se beneficiar às custas do contratante, incorre em abuso de poder, este entendido como a utilização das cláusulas exorbitantes para fins que a ordem jurídica não reconhece:
Como no caso da inadimplência crônica, poder-se-ia pretender que a Administração tivesse o poder de procrastinar indefinida e habitualmente a satisfação de sua obrigação pecuniária contratual? Como, obviamente, não tem tal poder, resta irrespondível que se está diante da versão pública do abuso de direto: um abuso de poder, ou seja, o uso de um poder ‘que a ordem jurídica não reconhece´.95
As balizas para renegociação do contrato são uma proteção não só para o concessionário, que pode ficar sujeito às pressões do poder público, mas também para o próprio poder concedente e para interesse público geral. Afinal, se as partes tivessem plena liberdade para renegociar, sem respeitar os critérios estabelecidos no edital e na licitação, teríamos um campo fértil para corrupção.
No que se refere à proteção do próprio poder concedente, Luis Guash96 explica que não é só o governo que age oportunisticamente quando se depara com as inseguranças regulatórias. Uma vez que o particular tenha garantido uma concessão de infraestrutura e não haja mais competidores para acompanhar de perto a execução do contrato, o particular pode começar a tomar medidas para controlar o governo, como insistindo em renegociar as cláusulas depois de assinado o contrato ou através de captura regulatória.
O fato de o particular, uma vez dentro do projeto, ter muito mais informações sobre o serviço concedido do que o governo ou qualquer outro operador e reconhecer seu poder de negociação, faz com que ele busque renegociar o contrato de maneira mais benéfica do que a prevista na licitação.
Nesse sentido, um arcabouço regulatório sólido, que evite comportamentos oportunistas seja do governo ou do particular, e que proteja os contratantes de efeitos econômicos externos ao contrato, pode ser determinante no desempenho do setor e na incidência de renegociação.
Um estudo do Banco Mundial realizado em 2001 aponta que, excluindo o setor de telecomunicações, mais de 40% dos contratos de concessão foram renegociados, sendo que,
95 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 26/27.
96 XXXXX, X. Xxxx et al. Renegotiation of Concession Contracts in Latin America. The World Bank Latin America and Caribbean Region. April 2003. p. 4
dentre estes, 60% foram renegociados dentro de 3 anos da assinatura do contrato de concessão, cujo prazo de vigência é de 15 a 30 anos.97
Por mais que se entenda que alterações contratuais serão necessárias, o índice de renegociação indicado parece ser além do razoável, e uma vez realizada em um espaço de tempo tão curto após a assinatura do contrato, isso indica ou que os contratos foram mal formulados ou que está ocorrendo um comportamento oportunista pelos concessionários ou pelo poder concedente.
Dessa forma, é preciso que os atos de renegociação sejam devidamente motivados, para que seja possível ter parâmetros de controle também para as alterações do contrato por acordo entre as partes, sob pena de configurarem verdadeiro descumprimento contratual, em clara afronta ao procedimento licitatório.
2.2 Descumprimento passivo: descumprimento de obrigações contratuais pela Administração Pública por omissão
Identificamos como descumprimento passivo o inadimplemento de obrigações contratualmente previstas, pelo poder concedente, em virtude de sua omissão em situações nas quais era esperado um ato comissivo.
Analisaremos nos tópicos a seguir as hipóteses de descumprimento, pelo poder concedente, de obrigações de fazer, de pagar e de exigir obrigações de terceiros.
2.2.1 Obrigação de fazer
É comum em contratos de concessão que o poder concedente assuma obrigações de fazer, acessórias ao objeto principal do contrato, mas das quais o concessionário depende para desempenhar suas obrigações contratuais.
97 XXXXX, X. Xxxx et al. Renegotiation of Concession Contracts in Latin America. The World Bank Latin America and Caribbean Region. April 2003. p. 5
Existem situações nas quais o contrato de concessão prevê o cumprimento de uma obrigação inicial pelo poder concedente, antes mesmo do início da prestação do serviço, como condição sine qua non para que o concessionário possa cumprir sua parte e iniciar seus trabalhos. O descumprimento ou o atraso no cumprimento dessas obrigações pelo poder público impactará todo o plano de negócios elaborado pelo concessionário.
É o caso de o contrato de concessão prever que o poder público fará as desapropriações necessárias para a construção de uma rodovia e este não o faz no prazo estabelecido, inviabilizando a execução do contrato de concessão pelo concessionário e, consequentemente, e cobrança da tarifa que remuneraria os custos investidos. Trata-se de clara violação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato:
Configurada a quebra da equação econômico-financeira do contrato de concessão para reformulação da SC/401 e rodovias acessórias, pela desídia do poder concedente em proceder às desapropriações que lhe competia, e pela impossibilidade de cobrança do pedágio, conforme previsão contratual, fonte principal e exclusiva para o aporte de recursos financeiros à concessionária, o que inviabilizou a consecução integral do contrato de concessão, revelando-se procedente o pedido de rescisão contratual. - Qualquer modificação realizada pela Administração Pública nas cláusulas contratuais que implique ônus para o particular e a quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato deve ser acompanhada de uma indenização. - Procedente a pretensão em relação aos danos emergentes, aqueles correspondentes aos valores aplicados no empreendimento, e ao custo financeiro dos desembolsos respectivos, considerados não apenas os custos diretos mas também aqueles necessários à sua execução. - São devidos lucros cessantes, correspondente aos valores que as apelantes deixaram de ganhar, representado pela tarifa do pedágio prevista no contrato ora rescindido e que deixou de ser cobrada em razão dos obstáculos criados pelos apelados, tudo a ser apurado em liquidação de sentença.98. (grifamos)
No caso do Aeroporto de Confins, a concessionária ajuizou ação em face da União Federal e da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC buscando provimento judicial, no sentido de que lhe fosse assegurado o direito à revisão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de serviços de ampliação, manutenção e exploração do Aeroporto Internacional de Confins, na Cidade de Belo Horizonte, cumulado com pedido de declaração de inadimplemento, por parte do poder concedente, impondo-lhe, ainda, obrigação de fazer,
98 TRF4. AC 200204010213207. Relator: Desembargador Federal Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Data do julgamento: 14/04/2004, Quarta Turma. Data da publicação: 02/06/2004.
consistente na finalização das obras e adimplemento das obrigações atribuídas ao Poder Público, no referido contrato99.
O intuito da concessionária no caso em questão não é a rescisão do contrato ou apenas o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, mas exigir que o poder concedente cumpra as obrigações assumidas no contrato, para que a concessionária possa cumprir as dela, de acordo com o originalmente pactuado.
Há também os casos de descumprimento de obrigações de fazer pela Administração quando o contrato já está em curso, como as obrigações de responder a requerimentos100 ou homologar reajustes de tarifas previstos nos contratos101: Obrigações acessórias previstas no contrato, quando descumpridas pelo poder concedente, podem impactar de maneira significativa a prestação do serviço pela concessionária.
SUSPENSÃO DE LIMINAR. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA PARA ASSEGURAR O REAJUSTE DE TARIFAS DE PEDÁGIO PELA EMPRESA CONCESSIONÁRIA.
99 “Trata-se de Agravo de Instrumento interposto contra decisão proferida pelo juízo da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, nos autos da ação ajuizada por CONCESSIONARIA DO AEROPORTO INTERNACIONAL DE CONFINS S/A contra a União Federal e a Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC, em que se busca a concessão de provimento judicial, no sentido de que seja assegurado às autoras o direito à revisão do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de serviços de ampliação, manutenção e exploração do Aeroporto Internacional de Confins, na Cidade de Belo Horizonte, cumulado com pedido de declaração de inadimplemento, por parte do poder concedente, impondo-se-lhe, ainda, obrigação de fazer, consistente na finalização das obras e adimplemento das obrigações atribuídas ao Poder Público, no referido contrato. Indeferido o pedido de antecipação da tutela recursal formulado na inicial, a recorrente noticiou que postulara, sem sucesso, perante o juízo monocrático, autorização para proceder ao depósito judicial do valor correspondente ao montante da outorga fixa descrita nos autos, com data de pagamento prevista para o dia de amanha (07/5/2016), razão por que requer o deferimento do aludido pleito, nestes autos. *** Registro, inicialmente, que o indeferimento do pedido formulado, em aditamento, pela autora de demanda, perante o juízo monocrático, no sentido de que lhe fosse autorizado realizar o depósito judicial do valor correspondente à referida outorga fixa, não foi objeto de exame no decisum aqui impugnado, mas sim, em outra decisão, circunstância essa que, em princípio, não autorizaria o seu conhecimento no bojo deste agravo de instrumento, em face do princípio do tantum devolutum quantum appellatum. A todo modo, em homenagem aos princípios da razoabilidade, da economia e da celeridade processual e considerando que o depósito judicial é modalidade de suspensão da exigibilidade do pagamento em referência, impõe-se a concessão da medida postulada, de forma a se evitar a proliferação indevida de recursos e, por conseguinte, o aumento indesejado do já elevado acervo processual em curso em nossos Tribunais. Com estas considerações, defiro o pedido formulado às fls. 1838/1840, para assegurar à autora, ora recorrente, o direito de realizar o depósito judicial do valor correspondente à outorga fixa descrita na inicial, no montante ali indicado (R$ 60.666.666,67 - sessenta milhões seiscentos e sessenta e seis mil seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e sete centavos), perante o juízo monocrático, restando sobrestada, por conseguinte, a sua exigibilidade, após a efetivação do depósito em referência. Intimem-se, com urgência, via FAX, a União Federal e o Sr. Presidente da Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC do inteiro teor desta decisão, cientificando-se, também, ao juízo monocrático, na dimensão eficacial do art. 1008 do CPC vigente. (...)” (Agravo 00234496020164010000, julgado em 06/05/2016 pelo TRF1. Relator: Desembargador Federal Souza Prudente – grifamos)
100 AC 9604022334, julgado em 18/11/1999 pela Terceira Turma do TRF4. Relatora do acórdão: Marga Xxxx Xxxxx Xxxxxxx.
101 Na mesma linha, confira-se a AC 200670000302276, julgado em 03/03/2010, pela Quarta Turma do TRF4. Relator: Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx.
1. Não há como se concluir por ofensa à ordem ou à economia públicas em decisão concessiva de tutela antecipada que apenas assegurou o cumprimento de cláusula contratual livremente firmada entre as partes e não questionada administrativamente ou em juízo.
2. Perigo de dano inverso. O simples descumprimento de cláusulas contratuais por parte do governo local viola o princípio da segurança jurídica e inspira riscos nos contratas com a Administração.
3. Agravo regimental provido.102
Encontramos, ainda, notícias de casos em que fatores políticos interferem na execução dos contratos de concessão, como, por exemplo, quando há o encerramento do mandato do chefe do poder executivo e a transição de um governo para outro103. Exemplo disso foi o Vice-Prefeito e Secretário de Transportes, Xxxxxxxx Xxx Xxxxxx, que, ao assumir seu cargo na Prefeitura do Rio de Janeiro, afirmou que não haveria reajuste nas tarifas de ônibus da cidade, a despeito do previsto no contrato de concessão assinado em 2010104.
Foi necessário que as concessionárias de transportes ingressassem com ação judicial para ter assegurado seu direito de cobrar o valor da tarifa na forma do Edital de Licitação e Contrato de Concessão firmado entre as partes, o que foi garantido pelo juízo da 15ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro nos seguintes termos:
Em razão de todo o exposto, estando configurada a ilicitude da inércia do Poder Público em proceder, na forma do contrato, o reajuste anual da tarifa - elemento que evidencia a probabilidade do direito dos Autores, bem como a inegável urgência da pretensão na medida em que existem evidentes riscos de prejuízos à própria higidez do sistema de transporte e ao resultado útil do processo, coexistem os requisitos legais que autorizam o acolhimento do pedido de tutela de urgência. Ademais, registre-se que não há risco de irreversibilidade da medida (art.300,§2º CPC).
Por todo o exposto, concedo liminarmente a tutela de urgência deprecada na inicial para determinar ao Município que cumpra o contrato de concessão, com a implementação do reajuste do valor da Tarifa modal do Bilhete Único Carioca - BUC para utilização no Serviço Público de Transporte de Passageiros por Ônibus do Município do Rio de Janeiro no valor de R$ 3,95 (três reais e noventa e cinco centavos), conforme decidido anteriormente pela Administração Municipal, a partir do décimo primeiro dia posterior ao da data de sua intimação. Deve o Município informar aos usuários e à população acerca do valor reajustado da tarifa ao longo de 10 dias antes do início da sua efetiva cobrança, bem como informe que o aludido reajuste da tarifa está sub judice. 105
102 AG 2897 PR 2008.04.00.002897-5, julgada em 3/01/2008 pela Terceira Turma do TRF4. Relator: Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxx
103 XXXXX, X. Xxxx et al. Renegotiation of Concession Contracts in Latin America. The World Bank Latin America and Caribbean Region. April 2003. p.3.
104 xxxx://x0.xxxxx.xxx/xxx-xx-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxx-xxxxxxxx-xx-xxx-xxx-xxx-xxx-xxxxxxxx-xxxxxx-xx-xxxxxx-xxx- sobe.ghtml
105 Decisão proferida em 25 de maio de 2017, pela Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, nos autos do processo nº 0095493- 06.2017.8.19.0001. Grifos nossos.
Não podemos deixar de mencionar notícia, de grande repercussão nacional, de que executivos da Odebrecht denunciaram que efetuavam pagamentos para os candidatos a Prefeito, com maiores chances de ganhar as eleições de cidades do Estado de São Paulo, onde a empresa possuía contratos de concessão de saneamento básico, para garantir que estes novos prefeitos não rescindiriam os contratos firmados, em virtude de interesses políticos106. Sobre esse ponto, Mauricio Portugal destaca:
Em primeiro lugar, é preciso ter em vista que os contratos de concessão comum ou PPP são contratos de longo prazo, que duram mais que uma gestão governamental. (...) Nesse contexto, para que sejam viáveis as concessões comuns e PPPs, é indispensável alguma proteção para que o parceiro privado não seja espoliado por decisões oportunistas do governante da vez, reduzindo, por exemplo, tarifas ou exigindo níveis de serviço superiores ao originalmente pactuados desarrazoadamente, apenas com objetivo de ganhos políticos temporários.107
Mesmo antes de serem sancionadas as Leis 8.666/93 e 8.987/95, já havia decisões dos Tribunais, em favor do concessionário, diante do descumprimento de contratos de concessão pelo fato de o poder concedente deixar de homologar o cálculo para reajuste das tarifas a que o concessionário tem direito, nos termos do contrato de concessão, exigindo a continuação da prestação do serviço delegado, mesmo que com a retribuição pecuniária defasada:
ADMINISTRATIVO E CIVIL. CONTRATO DE CONCESSÃO DE TRANSPORTE AEREO. DEFASAGEM NO VALOR DAS TARIFAS. PREJUIZO. INDENIZAÇÃO. - A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967, SOB A REDAÇÃO DA EMENDA N. 01/69, ASSEGURAVA, NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PUBLICOS, A MANUTENÇÃO DO EQUILIBRIO ECONOMICO E FINANCEIRO DO PACTO, POR MEIO DA FIXAÇÃO DE TARIFAS REAIS, SUFICIENTES, INCLUSIVE, PARA A JUSTA REMUNERAÇÃO DO CAPITAL E A EXPANSÃO DOS SERVIÇOS (ART. 167, II). - O MESMO PRINCIPIO, COM MAIOR ABRANGENCIA, ENCONTRA-SE ESCULPIDO NO ART. 37, XXI, DA NOVA CARTA POLITICA. - DEMONSTRADA, DE FORMA SOBEJA, POR VIA DE PROVA PERICIAL E DOCUMENTAL, A OCORRENCIA DE EFETIVA DEFASAGEM NO VALOR DAS TARIFAS DO TRANSPORTE AEREO, COM GRAVES E VULTOSOS PREJUIZOS A EMPRESA CONCESSIONARIA, EM CONSEQUENCIA DE
106 Nesse sentido, a reportagem do jornal Folha de São Paulo:
“A justificativa frequente era manter ou promover projetos de saneamento básico nessas cidades, favorecendo a Odebrecht Ambiental.
(...)
Isso porque, de acordo com o delator, a empresa estava amarrada à boa vontade do prefeito eleito: "Tem sempre a ameaça de 'viu, vou cancelar o seu contrato'".
xxxx://xxx0.xxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxx/0000/00/0000000-xxxxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxx-0-xx-xxxxxxx-xx-0000-xxx- delator-da-odebrecht.shtml
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011.pp. 105 e 106.
OMISSÃO DO PODER CONCEDENTE, IMPÕE-SE A REPARAÇÃO DOS DANOS POR MEIO DO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO. - NÃO COMPORTA CENSURA LAUDO PERICIAL SOBEJAMENTE FUNDAMENTADO, QUE NÃO SOFREU IMPUGNAÇÃO NA FASE PROCESSUAL PROPRIA, NEM SE OFERECEU QUALQUER ALEGAÇÃO CONTRA A CAPACIDADE TECNICA DO EXPERTO OFICIAL. – (...)108
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx pontua que “presentes os pressupostos legais e contratuais, o Estado deverá alterar as tarifas (elevando-as ou reduzindo-as). Não se admitirá sequer a omissão do Estado como instrumento de evitar a decisão.”109
A jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região já se posicionou no sentido de que “tratando-se de dever/obrigação do Poder Público Concedente, apresenta-se manifestamente abusiva a sua omissão, a sua inércia, em homologar os cálculos de reajuste apresentados pela concessionária de serviço público, bem denotando a plena sindicabilidade judicial” 110.
108 APELAÇÃO 00084118219914010000, julgada em 29/06/1992 pela Terceira Turma do TRF1. Relator: Xxxx Xxxxxxx Xxxx.
109 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 447.
110 Por todos, veja-se a ementa abaixo, que trata de decisão proferida em sede de apelação interposta nos autos da ação proposta pela AMÉRICA LATINA LOGÍSTICA MALHA PAULISTA S.A., concessionária do setor ferroviário, cujo contrato de concessão está sujeito à fiscalização da ANTT que, além da União, é Ré na ação em questão:
ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. CONTRATO DE CONCESSÃO. REAJUSTE DE TARIFAS. PREVISÃO CONTRATUAL. IMPERATIVO LEGAL. DIREITO SUBJETIVO DA CONCESSIONÁRIA. INÉRCIA DO PODER CONCEDENTE. APLICAÇÃO DE MULTA. COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO. SINDICABILIZAÇÃO JUDICIAL. (...) 3. Desde o enraizamento da consciência relativa à instabilidade econômica das relações jurídicas de trato sucessivo, sedimentou-se a necessidade de reajustamento dos contratos firmados com o Poder Público. 4. O direito subjetivo ao reajuste tarifário decorre do próprio regramento constitucional da delegação de serviços públicos, pois, se da concessionária é exigida a obrigação de manter o serviço adequado (artigo 175, parágrafo único, IV, CRFB), não pode ser relegada a contrapartida da obrigação, ou seja, o direito de receber montante tarifário compatível com esse ônus. Precedentes. 5. Ademais, o reajuste caracteriza mera atualização dos valores das tarifas, imperativo à manutenção da sua expressão econômica ao longo do tempo (recomposição do valor real da moeda), tendo em vista os aumentos de custos pertinentes ao fenômeno inflacionário. Exatamente por isso, em se tratando de contrato de concessão de serviço público, impõe-se seja assegurado o reajuste periódico das tarifas praticadas, a fim de se preservar o equilíbrio econômico-financeiro da avença. 6. Tratando-se de dever/obrigação do Poder Público Concedente, apresenta-se manifestamente abusiva a sua omissão, a sua inércia, em homologar os cálculos de reajuste apresentados pela concessionária de serviço público, bem denotando a plena sindicabilidade judicial - notadamente porque, ao fixar multa por descumprimento contratual em prejuízo da concessionária, valendo-se arbitrariamente de sua posição de supremacia, o Concedente, indiretamente, negou a homologação dos reajustes tarifários, pretendendo a continuação da prestação do serviço delegado, mesmo que com a retribuição pecuniária congelada à data da conclusão do negócio jurídico. 7. No momento em que o próprio Poder Concedente reconhece, administrativamente, a regularidade do reajuste implementado pela delegatária, mas impõe em prejuízo desta multa por ausência de prévia homologação dos montantes praticados faticamente (homologação inexistente por inércia, omissão, administrativa), traz à evidência o seu comportamento contraditório, em afronta ao venire contra factum proprium e ao tu quoque, enquanto preceitos parcelares da boa- fé objetiva (retirados, com lucidez, da feição subjetiva do princípio da segurança jurídica, mais precisamente da proteção da confiança). 8. Em síntese: a implementação do reajuste tarifário levada a efeito pela concessionária, nos estritos limites do contrato de concessão, diante do conteúdo axiológico extraído da
Portanto, existem situações, nada incomuns em contratos de concessão, em que o descumprimento de obrigação de fazer pelo poder público acarreta em desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, por se tratarem de condições necessárias para que o concessionário possa cumprir com a sua parte no pactuado; a jurisprudência vem se posicionando a favor do concessionário nessas hipóteses.
2.2.2 Obrigação de pagar
De acordo com o art. 11 da Lei de Concessões, desde que previsto no edital, o poder concedente poderá garantir à concessionária a possibilidade de utilizar outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas.
Tais receitas alternativas e complementares seriam decorrentes da exploração indireta dos bens concedidos para a prestação do serviço, como por exemplo, através da locação de espaço para lojas, restaurantes, quiosques, propagandas em outdoors, etc.
Discute-se, no entanto, se dentro do escopo do art. 11, estaria previsto algum tipo de apoio do poder concedente.
Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx defende que o art. 11 garante uma abertura para que o poder público faça arranjos de estruturas tarifárias que garantam o pagamento integral, parcial, alternativo ou complementar, do valor da tarifa que deixaria de ser cobrada do usuário.111
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, por sua vez, afirma que admitir o pagamento integral da tarifa pelo poder concedente desnaturaria o instituto da concessão, configurando uma verdadeira contratação de prestação de serviços. Para o autor, haverá ainda concessão quando a
doutrina e da jurisprudência pátrias, com base na norma positivada, apresenta-se revestida de juridicidade e, portanto, impeditiva de qualquer sancionamento por parte do Poder Concedente - que, por omissão reiterada (inércia) no cumprimento de seu dever contratual de homologação de tabelas tarifárias não pode criar situação jurídica prejudicial à delegatária, em homenagem à proibição de comportamento contraditório dos sujeitos contratantes (mesmo que investidos de poderes supremos). 9. Preliminar de nulidade afastada. Apelação provida, no mérito.” (TRF-4 - AC: 50160299120104047000 PR 5016029- 91.2010.404.7000, Relator: XXXXXXX XXXXXX XXXXXX, Data de Julgamento: 14/08/2013, TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: D.E. 14/08/2013.)
111 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. As parcerias público-privadas no saneamento ambiental. In Parcerias Público-Privadas. Coordenador: Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx. 2ª ed. 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 303/304.
remuneração, ainda que em parte custeada com recursos públicos, for vinculada ao desempenho do concessionário, ou seja, quando o risco do negócio for assumido pelo particular.112
Um fator relevante na discussão da interpretação do art. 11 foi o fato de o art. 24 da Lei
n. 8.987/95, que previa que o poder concedente poderia garantir uma receita bruta mínima ou, no caso de obras viárias, o correspondente a um tráfego mínimo, durante o primeiro terço do prazo da concessão, ter sido vetado sob o argumento de que “garantias como essa do estabelecimento de receita bruta mínima, além de incentivarem ineficiência operacional da concessionária, representam, na realidade, um risco potencial de dispêndio com subsidio pelo poder público.”
Autores como Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão sustentavam que diante do veto do referido dispositivo, não seria possível interpretar o art. 11 de modo a garantir um pagamento por parte do poder concedente, dado que “não se pode, via hermenêutica, repor aquilo que o veto retirara.”113
Xxxxxxxx Xxxxxxxx explica, no entanto, que a doutrina vinha se consolidando no sentido de aceitar “‘(...) a abertura do modelo para uma diversidade de composições remuneratórias do concessionário, admitindo-se inclusive o custeio parcial ou integral da execução da concessão por recursos públicos.”114
No entanto, com o advento da Lei das PPPs, houve uma alteração no ordenamento jurídico no que se refere ao pagamento direto de contraprestação pela administração pública em contratos de concessão comum. Isto porque, de acordo com a referida Lei, concessão patrocinada é definida como “concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.” (art. 2º). E o parágrafo 3º do referido dispositivo ainda complementa que “não constitui parceria público- privada a concessão comum, assim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.”
Com isso, a partir do momento que uma concessão comum previsse o pagamento de contraprestação pecuniária pelo parceiro público ao ente privado, ela se enquadraria no conceito
112 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. pp. 103 e ss.
113 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos serviços públicos. 1ª ed. 2007,p 613.
114 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 239.
legal do art. 2º da Lei de PPP e seria considerada uma parceria público-privada, a ela se aplicando o regramento da Lei n. 11.079/2004 e não mais a Lei n. 8.987/95115.
Diante deste cenário, Xxxxxxxx Xxxxxxxx entende que “a criação da concessão patrocinada produz alteração quanto à identificação das hipóteses fáticas de ajustes de concessão comum, que não mais comportam contraprestação pecuniária do poder público integrada à composição remuneratória.”116
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx também afirma que uma vez que o contrato de concessão preveja a hipótese de pagamento direto pela Administração, este seria disciplinado pela Lei de PPP.117
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, discorda do posicionamento dos autores supracitados ao afirmar que é possível, assim como na concessão patrocinada, a contraprestação do poder público nas concessões comuns, com a diferença que nestas o caráter da contribuição é excepcional.118 Há que se considerar, no entanto, a dificuldade que seria operacionalizar, na prática, o que seria uma situação excepcional a ensejar o pagamento de contraprestação pelo poder público em um contrato de concessão comum. O conceito é muito amplo e seria difícil aferir em quais situações ele se aplicaria.
Diante do art. 2º, § 3º, da Lei das PPPs, entendemos que, em havendo o pagamento de contraprestação pelo poder público, incidiria a normativa prevista na Lei de PPP, tratando-se não mais de concessão comum, prevista na Lei n. 8.987/95, mas de concessão patrocinada.
Assim, na hipótese de um contrato, classificado como contrato de concessão comum, prever o pagamento de contraprestação de poder público, entende-se que a ele se aplicaria, subsidiariamente, o regramento previsto na Lei de PPP, no que couber.
No entanto, é preciso considerar que muitos projetos de concessão comum podem se tornar economicamente inviáveis e não se sustentar apenas com a remuneração através da tarifa paga pelos usuários. Não faria sentido que o poder concedente, titular da prestação do serviço,
115 A Lei 11.079/2004 prevê alguns outros requisitos para que a concessão comum seja considerada uma parceria público-privada. Além de obrigatoriamente envolver uma contraprestação pecuniária pelo poder público, é preciso ainda que (i) o valor do contrato não seja inferior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais); (ii) período de prestação do serviço não seja inferior a 5 (cinco) anos; (iii) não tenha como objeto único o fornecimento de mão- de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública. Portanto, fora desses parâmetros, em tese, seria possível a realização de uma concessão comum, com contraprestação pecuniária pelo poder público, mas ela não poderia ser considerada uma parceria público- privada.
116 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 241.
117 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 413/414.
118 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Parcerias na Administração Pública. 5ª ed, São Paulo: Atlas, 2005. p. 54 e 55.
não pudesse contribuir de alguma forma para a manutenção do contrato e para que o projeto voltasse a se tornar viável.
Nesse sentido art. 17 da Lei de Concessões prevê a possibilidade de o poder concedente contribuir com a concessão através do subsídio, desde que previamente autorizado em lei.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx explica que subsídio não se confunde com preço: o primeiro, seria uma subvenção estatal, necessariamente com caráter de liberalidade, enquanto o segundo teria um caráter de contraprestação, isto é, seria um pagamento correspondente a uma prestação realizada pelo particular.119
O subsídio, diferente da contraprestação, seria concedido nas hipóteses em que o projeto precisasse de uma ajuda de custo para se tornar autossustentável e, em seguida, conseguir obter sua remuneração adequada através de tarifas módicas. Nas palavras de Xxxxxxxx Portugal:
O conceito de contraprestação se refere geralmente a pagamento em contrato bilateral, sinalagmático, e aponta, portanto, para alguma proporcionalidade entre as obrigações das partes: entre, de um lado, o pagamento; e, do outro, o servico prestado, ou o título ou direito sobre bem que foi transferido pelo contrato.
Já o conceito de subsidio aponta geralmente para a cobertura de custos, para um apoio financeiro dado por um ente estatal para tornar viável a realização de empreendimentos ou obras de interesse público ou a prestação de serviços de interesse ou utilidade pública.120
Do ponto de vista contábil e de tributação, contraprestação também não se confunde com subsídio, na medida em que este seria destinado a cobrir déficits e não contempla remuneração do concessionário.121
Sendo assim, e conforme previsto no art. 17 da Lei de Concessão, os subsídios são permitidos nas concessões comuns, como uma forma de “assegurar a viabilidade financeira de certos empreendimentos cujo custeio, já avaliadas as hipóteses de receita secundárias somadas à receita tarifária, demandaria prever algumas tarifas acima do patamar adequado enquadrável no conceito de modicidade.”122
119 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003. pp. 335 e ss.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. 10 anos da Lei de PPP e 20 anos da Lei de Concessões. Viabilizando a implantação e melhoria de infraestruturas para o desenvolvimento social. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx/00-xxxx-xx-xxx-xx-xxx-00-xxxx-xx-xxx- deconcessoes. p. 226.
121 Para maiores explicações sobre os aspectos contábeis e tributários que diferenciam contraprestação e subsídio veja-se o artigo de Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. “Os subsídios governamentais em concessões comuns: natureza jurídica do repasse público e a sua legalidade”. In Teoria do Estado Regulador, Vol. II. P. 163-183.
122 CAGGIANO. Xxxxxxx Xxxxxxx. “Os subsídios governamentais em concessões comuns: natureza jurídica do repasse público e a sua legalidade”. In: Teoria do Estado Regulador, Vol. II. p. 178.
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx afirma que essa “solidariedade financeira”, entre poder concedente e concessionária, é mais comum na prática do que se supõe e que o subsídio pode se materializar de diversas formas:
(...) não faltam exemplos da prática de ‘solidariedade financeira’ entre concedente e concessionário, tais como: concessões subsidiadas ou subvencionadas; divisão dos ônus da concessão, em termos de assunção de obrigações de custeio de obras ou desapropriações pelo concedente; favores ou incentivos fiscais; ou mesmo assunção de concessões por entidades da própria administração indireta, como empresas públicas e sociedades de economia mista, que acabam, ainda que indiretamente, por colocar o Poder Público como responsável final pelos riscos do empreendimento.123
O autor exemplifica que no setor de rodovias ou transportes ferroviários, é comum que haja previsão contratual de que o concedente deve se responsabilizar por uma parte dos investimentos em modernização e ampliação e pelos custos de desapropriação e gratuidade, bem como o oferecimento de linhas de créditos favorecidas por meio do BNDES, e de aportes diretos para socorro em momentos de crises.
Na prática, portanto, o subsídio é utilizado para compor a equação econômico-financeira de contratos de concessão comum, e, no entendimento de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, não há motivo para vedar tal prática:
Não há cabimento em inviabilizar formas perfeitamente satisfatórias de associação entre os setores público e privado mediante a invocação de soluções concebidas no puro plano da teoria, que não encontram respaldo nem na ordem jurídica existente nem na realidade dos fatos.
A solução adotada no estrangeiro também pode ser praticada no Brasil. Não há particularidade no regime jurídico brasileiro que afaste a alocação de recursos públicos para a manutenção de serviço concedido. O conceito de concessão de serviço público não apresenta, tal como já apontado, uma definição precisa e exata.
O conceito de concessão de serviço público exige que a remuneração do concessionário seja variável em função do desempenho obtido por meio da atividade concedida. Isso não significa impossibilidade de uma parcela da remuneração ser arcada pelo Estado.”124
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx noticia que no direito francês, “Laubadère, Moderne e Devolvé há muito trataram do tema [dos subsídios], ressaltando que foi fruto da evolução do contrato de concessão de serviço público ‘a solidariedade financeira que pode se estabelecer entre
123 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2006. p. 72.
124 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. As Diversas Configurações da Concessão de Serviço Público. In: Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, Editora Fórum, n.1, p.129.
concedente e concessionário’ e concluindo que ‘não se pode mais definir a concessão pela remuneração somente sob a forma de tarifas”125.
Entendemos, assim, que não há ilegalidade na concessão de subsídios, desde que respeitadas as características do instituto, isto é, desde que os repasses governamentais sejam destinados a cobrir custos operacionais e de investimentos, sem contemplar uma margem de lucro para o concessionário.
Nesse diapasão, ainda que não seja possível o pagamento de contraprestação em contratos de concessão comum, seria possível o descumprimento de obrigação de pagar pelo poder público, na hipótese de não pagamento dos subsídios pactuados no contrato.
A ausência de pagamento pela Administração Pública de valor pactuado – seja a título de contraprestação ou subsídio – trará efeitos nefastos para o contrato. Xxxxxxxx Xxxxxxxx, ao tratar do inadimplemento do poder concedente no que se refere ao pagamento de contraprestação em contratos de parceria público-privada, explica que “como os projetos são estruturados com base num fluxo financeiro regular, o desequilíbrio causado pela ausência de pagamento da contraprestação coloca em risco a continuidade e a qualidade do serviço”126.
A mesma lógica se aplica aos subsídios garantidos pelo poder concedente nos contratos de concessão: o concessionário contará com determinado valor para estruturar seu projeto e o inadimplemento do poder concedente quanto ao pagamento desse valor irá impactar todo o fluxo de pagamento das obras e a prestação do serviço em questão.
Esses subsídios podem representar uma parte substancial do projeto, de forma que o seu inadimplemento pode significar a inviabilidade de o concessionário continuar prestando o serviço. É preciso, assim, que haja um meio eficaz para a concessionária exigir do poder concedente o cumprimento das obrigações de pagar por ele assumidas.
2.3 Descumprimento por ação de terceiros
Uma terceira forma de descumprimento contratual pela administração pública se dá quando o contrato é descumprido em razão de intervenções ou ineficiência de terceiros, que
125 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2006. p. 76.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Comentários à Lei de PPP – Parceria Público- Privada. Fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007. pp. 135 e 136.
compõem o poder público, dos quais o concessionário e a administração dependem para cumprir com suas obrigações.
Esse terceiro pode estar em qualquer das esferas de poder, seja o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. Nesse sentido, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx ensina que “é vedado ao Estado-Legislador, ao Estado-Jurisdição e, principalmente, ao Estado-Administração não atender, nas suas esferas, à força vinculante dos contratos.” 127
Quanto à interferência do Poder Judiciário na execução das cláusulas dos contratos de concessão, há entendimento da jurisprudência no sentido de que o concessionário não pode ser penalizado por decisões, que desrespeitam a força vinculante dos contratos e o seu equilíbrio econômico-financeiro, impostas pelo Estado-Juiz:128
Todavia, o que se constata é que não só o Poder Judiciário, mas o Tribunal de Contas da União129– vinculado ao Poder Legislativo –, o Ministério Público, e diversos órgãos do Poder Executivo contribuem de maneira relevante para o descumprimento dos contratos de concessão.130
127 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 23.
128 APELAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. CONCESSÃO DA RODOVIA XXXXX. MORADORES DO MUNICÍPIO DE RESENDE. PREÇO PÚBLICO (OU TARIFA), E NÃO IMPOSTO. RAZOABILIDADE. ISENÇÃO TARIFÁRIA CONCEDIDA JUDICIALMENTE. EQUILÍBRIO ECONÔMICO FINANCEIRO DO CONTRATO DE CONCESSÃO. LEIS 8.987/95 E 8.666/93. PROVIMENTO.
(...)
6. Nos termos do contrato de concessão celebrado entre a Apelante e a União Federal, eventual concessão de isenção tarifária não gera qualquer direito à compensação. Ocorre que, no caso, tal isenção foi imposta pelo Estado-Juiz, sem que houvesse qualquer previsibilidade a esse respeito quando da pactuação da concessão. A cobrança da tarifa de pedágio é feita da universalidade de usuários dos serviços prestados pela concessionária, inclusive a realização de obras de manutenção, monitoramento, operação da rodovia, prestação de serviços médicos e de socorro emergencial, prestação de serviço mecânico de urgência, entre outras atribuições.
7. A Lei n. 8.987/95 – Lei das Concessões – prevê, no art. 9o., que caso haja alteração unilateral do contrato que interfira no inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo. Tal regra é também contemplada na Lei n. 8.666/93 – Lei das Licitações – no art. 58 (AC 434400 RJ 2008.02.01.019164-7, julgada em 29 de Junho de 2009 pela SEXTA TURMA ESPECIALIZADA do TRF2. Relator: Desembargador Federal XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXXXX DA GAMA.)
129 A Instrução Normativa TCU n. 27/98, dispõe sobre a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União dos processos de desestatização, e determina que a fiscalização dos processos de outorga de concessão ou de permissão de serviços públicos será prévia ou concomitante. Nesse sentido, o TCU tem competência para emitir recomendações, que podem ou não ser cumpridas, e determinações, que devem ser seguidas sob pena de multa. 130 Nesse ponto é relevante destacar que o ato ou omissão de outros órgãos ou entes das Administração Pública podem dar ensejo ao descumprimento de prazos também pelo concessionário. Nesse sentido, veja-se trecho da ementa proferida no julgamento do Agravo n. 00391133420164010000, julgado em 04/08/2017 pelo TRF1. Relator: Des. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxx: “(...) O descumprimento dos marcos intermediários do cronograma de construção motivados por ocorrências no processo de licenciamento ambiental, não imputáveis à TRANSMISSORA, desde que justificados e aceitos pela fiscalização da ANEEL, poderão ocasionar a revisão dos prazos dos cronogramas de construção, propostos pela TRANSMISSORA. (...) Em suma, o que se observa é que o empreendedor realizou uma previsão de obtenção da LP e da LO em até 12 (doze) meses da assinatura do
A fim de demonstrar como a ação ou omissão de outros órgãos da administração pública podem impactar o cumprimento dos contratos de concessão, descreveremos a seguir um panorama do licenciamento ambiental no setor de transmissão de energia elétrica no Brasil.
A escolha do licenciamento ambiental no setor elétrico para ilustrar o tema do descumprimento dos contratos por omissão de órgãos da Administração Pública não foi por acaso. O setor elétrico no Brasil tem demandado grande preocupação nos últimos anos, estando sempre à beira de uma crise de desabastecimento, o que exige uma atuação estatal rápida e eficiente. Um estudo do Banco Mundial realizado em 2007131 já indicava que “o licenciamento ambiental é seguramente um dos gargalos na regulação do setor elétrico”.
Em 2015, a concessionária Transnorte Energia desistiu de realizar a obra da linha de transmissão prevista para ligar Manaus (AM) a Boa Vista (RR). Conforme amplamente noticiado nos jornais, a linha que foi leiloada em 2011 deveria estar em operação em janeiro de 2015. No entanto, em novembro daquele mesmo ano a Licença Prévia não tinha sido expedida. Posto de outra forma, passados 4 anos, a viabilidade ambiental do empreendimento sequer estava confirmada, de forma que não se sabia se haveria autorização do órgão ambiental para a obra ser executada132.
Além do prejuízo de 250 milhões de reais investidos pela concessionária no empreendimento, cujo ressarcimento pretende pleitear do governo, a não implementação das linhas de transmissão impacta substancialmente no abastecimento de energia de Boa Vista e região, que, em parte, depende de usinas térmicas a óleo, mais caras e mais poluentes, e outra parte de importação de energia da Venezuela, cuja rede é precária, com cortes frequentes de
Contrato de Concessão e teve frustrada essa expectativa. Porém o não alcance dos prazos estimados no cronograma do Contrato de Concessão não enseja o reconhecimento automático de excludente de responsabilidade, a menos que tenham sido descumpridos os prazos contidos nos regulamentos específicos, referentes ao processo de licenciamento ambiental, em tempo suficiente para caracterizar o nexo de causalidade com o atraso verificado. Nesse contexto, entendo presente a fumaça do bom direito a autorizar a concessão da medida pleiteada. Com efeito, apesar de concedidas as licenças dentro do prazo estabelecido pelos órgãos ambientais, considerando o cronograma estabelecido no Contrato de Concessão para a obra em questão e o disposto em sua Subcláusula Quinta da Cláusula Quinta, reputo, num exame perfunctório, próprio do agravo de instrumento, relevantes as alegações da parte agravante, no sentido de que o extenso prazo gasto para o licenciamento ambiental, não havendo causa que possa ser imputada à contratada, configura causa de excludente de responsabilidade a justificar a exclusão do ônus decorrente do atraso no cumprimento do contrato a quem não deu causa. Registre-se que a própria Xxxxx, apreciando o recurso administrativo, asseverando que as análises das licenças ambientais podem levar até 24 (vinte e quatro) meses, de acordo com a legislação pertinente, reconhece que, "diante de um cronograma de implantação de 50 (cinquenta) meses, dispensar metade ou mais desse tempo com licenciamento ambiental pode significar um razoável desafio aos empreendedores" (fl. 346).”
131 Relatório Principal do estudo “Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil. Uma contribuição para o debate.” Disponível em: xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx. Acesso em 02/08/2017. p. 96.
132 xxxx://xxxxxxxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxx,xxxxx-xxxx-xxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxx- linhao,10000001373. Acesso em 15.07.2017.
abastecimento.
Em janeiro de 2017, a concessionária responsável pelas linhas de transmissão da energia elétrica gerada pela Usina de Belo Monte – que representam o maior projeto de transmissão já realizado no Brasil - fez um apelo ao Ministro de Minas e Energia para interceder pelo andamento do processo de licenciamento ambiental do projeto. O empreendimento, que tem investimentos previstos de 10 bilhões de reais, sendo 6.5 bilhões de reais em recursos privados, e que deve gerar cerca de 15 mil empregos indiretos durante dois anos, não tem ainda Licença Prévia do IBAMA133.
O licenciamento ambiental das linhas de transmissão de energia elétrica constitui, portanto, o exemplo mais notório de atrasos no cumprimento de obrigações, em razão de atos de terceiros.
Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União já apurou que “em obras de transmissão de energia elétrica a cargo da Chesf, (...) os prazos estabelecidos nos leilões da Aneel não vêm sendo cumpridos (83% das linhas de transmissão e 63% das subestações), apresentando atrasos médios de quatorze meses e de três meses, respectivamente, quando comparados ao cronograma inicial estabelecido pela citada agência reguladora”134.
Em um levantamento realizado pelo geógrafo Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx (ex-presidente do IBAMA e ex-secretário especial de Meio Ambiente) 135 junto a 100 profissionais com experiência no licenciamento ambiental de empreendimentos de energia – entre empresários, consultores, advogados e especialistas da área – contatou-se que a percepção de quem atua no setor é que os principais problemas do licenciamento ambiental são, dentre outros: (i) “falta de qualidade dos projetos, dos estudos ambientais e de uma avaliação global do processo em detrimento de análises pontuais e isoladas; e custos elevados para cumprimento de algumas exigências.”; (ii) “a interferência do Ministério Público no processo de licenciamento, o fato de os técnicos ambientais não terem a proteção da lei para fazer suas análises sem qualquer tipo de ingerência, ao mesmo tempo em que os empresários têm que conviver com a insegurança jurídica e a possibilidade de revogação das licenças a qualquer momento”; (iii) “a dificuldade de obtenção das declarações solicitadas pelos órgãos ambientais; a falta de fiscalização dos empreendimentos após a emissão das licenças; e a “ideologia ambiental” de “preservação a
133 xxxx://xxxxxxxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxx,xxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxx- ambiental-de-linha-de-transmissao,10000099372. Acesso em 10.08.2017.
134 TC 029.387/2013- 2.
135 Informações obtidas através do Instituto Acende Brasil, um Centro de Estudos que desenvolve ações e projetos para aumentar o grau de Transparência e Sustentabilidade do Setor Elétrico Brasileiro. Estudo disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/Xxxxxxx_00.xxx
qualquer custo”; (iv) “(...): à falta de transparência, de diálogo e acordo entre os atores envolvidos no licenciamento; à imprevisibilidade dos processos e dos prazos; à lentidão e à burocracia, o que inclui documentação complicada, demora nas vistorias e dificuldade para renovação de licenças.”.
As dificuldades e percepções dos agentes do setor se confirmam através de estudos, decisões judiciais e fiscalizações do próprio Tribunal de Contas da União. Vejamos.
O Acórdão n. 308/2017, do Plenário do Tribunal de Contas da União, avaliou possíveis atrasos na execução das obras de diversas linhas de transmissão de energia elétrica que pudessem comprometer o escoamento de energia eólica e solar na região Nordeste sob a responsabilidade da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco - Chesf.
Um dos atrasos apurados foi a demora na requisição da Licença de Instalação (LI), em 8/1/2014, mais de 14 meses após a expedição da Licença Prévia da Linha de Transmissão Paraíso/Lagoa Nova II.
O TCU reconheceu que a Chesf não teve responsabilidade por este atraso, uma vez que além de o IDEMA/RN, órgão estadual responsável pela expedição da licença, ter exigido a apresentação de uma série de informações em caráter complementar, exigiu também que “a Chesf realizasse a inscrição no Cadastro Ambiental Rural - CAR dos mais de 300 imóveis afetados pelo traçado da LT Paraíso - Lagoa Nova Cl, como condição para sua concessão”. Considerando que atender tal exigência oneraria sobremaneira o empreendimento, a Chesf realizou diversas reuniões tentando demonstrar a ilegalidade da exigência. Sem êxito, se viu obrigada a entrar com ação judicial contra o IDEMA/RN e pleitear a antecipação dos efeitos da tutela para suspender a exigência do órgão.
Sendo assim, o TCU reconheceu que “o licenciamento socioambiental provocou atrasos na execução dos trabalhos, uma vez que o modus operandi de cada órgão ambiental estadual é distinto e não há regramento geral que torne esses procedimentos mais previsíveis” 136.
Além de atender diversas exigências do órgão responsável pela expedição da licença ambiental, é preciso cumprir com as determinações de diversos outros órgãos interessados, tais como Estados, Prefeituras, IPHAN, FUNAI, DNIT, INCRA, etc, e lidar com a falta de cooperação e coordenação entre eles.
Em outro caso, o TCU constatou que a morosidade dos órgãos envolvidos na emissão das licenças necessárias para a construção das linhas de transmissão culminou com a situação absurda de haver, durante um determinado período, nos Estados da Bahia e do Rio Grande do
136 Xxxxxxx n. 308/2017, do Plenário do Tribunal de Contas da União.
Norte, 48 (quarenta e oito) usinas eólicas aptas a operarem, mas sem o correspondente empreendimento de transmissão concluído, impedindo a entrada no Sistema Interligado Nacional (SIN) de um volume de energia em torno de 570 MW médios e gerando um valor a ser arcado pelo consumidor, em decorrência dessa desconexão, da ordem de R$ 929.590.729,00 (novecentos e vinte nove milhões, quinhentos e noventa mil, setecentos e vinte e nove reais). Os fatores que deram origem a esse descompasso foram assim descritos:
9.2.4.2. do ponto de vista regulatório, morosidade de oito meses, por parte da Xxxxx, em expedir uma Declaração de Utilidade Pública, instrumento necessário para a regularização do terreno para fins de transmissão;
9.2.4.3. do ponto de vista fundiário, empecilhos tanto para aquisição do terreno da subestação quanto para a constituição da faixa de servidão administrativa da linha de transmissão, a exemplo de valorização e especulação imobiliária, imóveis sem registros ou ocupados por posseiros e vinculação da regularização fundiária – por parte dos órgãos ambientais –para a concessão de licença;
9.2.4.4. do ponto de vista do meio ambiente:
9.2.4.4.1. leilões contemplando estudos ambientais realizados pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE, sem que tais estudos contem com a participação formal dos órgãos ambientais, em que pese a importância do critério socioambiental na definição da viabilidade do empreendimento e na determinação do cronograma da obra;
9.2.4.4.2. obtenção do licenciamento prévio após o procedimento licitatório, ficando os riscos da não viabilização ambiental do empreendimento transferidos para o concessionário, que fica propenso à ocorrência de atrasos já que pode se deparar com novas exigências não previstas no leilão
9.2.4.4.3. previsão, nos leilões, de oito meses para licenciamento, enquanto, na prática, o prazo médio de obtenção do licenciamento é de vinte meses, em razão, dentre outros, da desconsideração do envolvimento do Iphan e da inadequação de traçado de linha de transmissão e de localização de subestação;
(...)
9.2.4.5. descumprimento do prazo de execução das obras de transmissão, objeto dos Contratos nºs 019, 020 e 021/2010, pela Chesf;137
Diante dessas dificuldades para coordenar os órgãos envolvidos, dificilmente os prazos estabelecidos nos contratos são cumpridos, causando enormes prejuízos financeiros não só para as concessionárias, mas para todo o sistema elétrico, afetando diretamente os consumidores, que arcam não só com os custos das ineficiências, mas com a baixa qualidade do serviço prestado.
Um estudo elaborado pela Senado Federal, de julho de 2015, denominado “Os gargalos do licenciamento ambiental federal no Brasil” identificou, por exemplo, que o IBAMA vem falhando em dar orientações claras e objetivas para os empreendimentos licenciáveis, a despeito de sua expertise técnica. O estudo atribui esta falha à sobrecarga de trabalho do órgão que
137 Acórdão Nº 1616/2014 – TCU – Plenário, julgado em 18/6/2014.
impede os analistas de se dedicarem à elaboração de um manual consolidado com diretrizes robustas. 138
Nesta linha, o Acórdão TCU nº 2.219/2009 realizou uma auditoria no IBAMA para avaliação dos instrumentos de controle ambiental adotados e apurou as seguintes falhas: (i) carência de padronização dos procedimentos, (ii) excesso de discricionariedade no processo de licenciamento ambiental, (iii) ausência de acompanhamento dos benefícios potenciais e efetivos decorrentes do licenciamento de obras.
Diante disso, determinou, dentre outras medidas, que o IBAMA elaborasse “padrões e normas específicas para os procedimentos e critérios técnicos e metodológicos adotados no processo de licenciamento ambiental federal, por tipologia de obra e que sejam passíveis de padronização”. Em relatório de auditoria anual de contas, do exercício de 2015, o IBAMA declarou que:
Com o intuito de promover a modernização do Licenciamento Ambiental Federal, em 2009, o Ibama iniciou os estudos para a elaboração Programa de Fortalecimento do Licenciamento Ambiental Federal (ProLAF), o qual teve sua execução iniciada em 2011. No entanto, somente no exercício de 2015, que foi possível identificar um avanço mais perceptível do Programa, em vista do desenvolvimento de ferramentas para subsidiar a organização dos dados e a melhoria contínua dos procedimentos da Avaliação de Impacto Ambiental.
(...)
Atualmente, estão em desenvolvimento três projetos no Prolaf: (a) desenvolvimento de ferramentas para o processo de Avaliação de Impacto Ambiental - AIA, (b) mapeamento de competência e plano de capacitação; e (c) Sistema Integrado de Gestão Ambiental (Siga). 139
Os entraves referentes à metodologia de análise dos pedidos de licença associados à dificuldade de formação de um corpo técnico competente são fatores que contribuem para a demora e a baixa qualidade da análise feita pelo IBAMA, fazendo com que o órgão ambiental contribua para os atrasos nos prazos estabelecidos nos contratos de concessão.
Ultrapassadas as dificuldades perante os órgãos ambientais competentes para o licenciamento do empreendimento, é preciso enfrentar ainda os questionamentos do Ministério Público acerca das licenças ambientais concedidas. Com o apoio do Poder Judiciário, o órgão de controle consegue, por diversas vezes, suspender a licença emitida e paralisar o empreendimento:
138 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Gargalos do Licenciamento Ambiental Federal no Brasil. Estudo – Consultoria Legislativa do Senado Federal. Julho de 2015.p. 18.
139 xxxx://xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx_xx_xxx/xxxxxxxxx_xx_xxxxxxxxx_xxxxx_xx_xxxxxx_0000.xxx. pp.
9 e 10.
1. Trata-se, na origem, de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal contra Companhia Hidroelétrica do São Francisco - CHESF, com o objetivo de condenar a ré a não construir a Linha de Transmissão de 230Kv correspondente ao trecho Fortaleza/Pici, que perpassa bairros habitacionais, salvo se respeitada a distância mínima supracitada entre as linhas elétricas e as residências. (...) 4. O Tribunal de origem, com base no conjunto probatório dos autos, consignou que "no caso em análise, a aplicação do princípio da precaução sustenta-se pelos possíveis danos ao meio ambiente e à saúde dos habitantes da região que poderão ser causados pela construção da linha de transmissão de energia elétrica no trecho Fortaleza/Pici. Segundo estudos acostados pelo MPF nos autos, os danos provenientes dos campos eletromagnéticos na saúde da população poderiam ocasionar doenças como leucemia, câncer no cérebro e alterações no potencial genético. Tais danos, portanto, se de fato vierem a ocorrer, são de cunho irreversível. Por todas essas razões, norteado pelo princípio da precaução, entendo pela necessidade de realização de perícia técnica a respeito dos campos eletromagnéticos formados pela construção dos referidos 'linhões', confrontando-se com os limites de exposição humana e determinando-se a distância mínima segura entre as linhas e as residências dos habitantes da região" (fls. 1.427-1.428, e-STJ).140
Como indica o estudo realizado pelo Banco Mundial, o Ministério Público é frequentemente apontado como um tomador de posições intransigentes, atentando sempre para o cumprimento estrito da lei, sem levar em consideração os custos e benefícios e o interesse público mais abrangente141.
É preciso destacar, no entanto, que nem sempre o Ministério Público encontra o apoio do Poder Judiciário, nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região já decidiu em desfavor do Ministério Público sob o fundamento de que a paralisação de empreendimento de transmissão de energia elétrica traria grande prejuízo à sociedade:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EMPREENDIMENTO RELATIVO À LINHA DE TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA.EXISTÊNCIA DE LIDE. POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.
(...) IV. Para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, a Resolução nº 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA - reiterou a necessidade de licença ambiental, a depender de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório (EIA/RIMA). V. A disposição da Lei nº 9.985/2000 quanto à necessidade de plano de manejo nas unidades de conservação não possui o condão de afastar a norma inserta na Lei nº 6.938/81. O Plano de Manejo foi previsto pela Lei nº 9.985, de 18/07/2000, a qual instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC
-, e estabeleceu critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação. VI. Se as conseqüências ambientais decorrentes de um empreendimento e as respectivas medidas de proteção puderem ser criteriosamente avaliadas por meio do estudo de impacto ambiental e das demais providências no decorrer do procedimento de licenciamento, a ausência de plano de manejo, por si só,
140 RESP 201400397810, julgado em 10/11/2015, pela Segunda Turma do STJ. Relator: Xxxxxx Xxxxxxxx.
141 Relatório Principal do estudo “Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil. Uma contribuição para o debate.” Disponível em: xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx. Acesso em 02/08/2017. p. 12.
não impede a concessão da licença prévia. A licença ambiental possui prazo de validade definido e o descumprimento das condições nela estabelecidas podem acarretar a modificação, suspensão ou até mesmo o cancelamento da outorga. VII. A Política Nacional do Meio Ambiente possui, dentre seus objetivos, o equilíbrio entre desenvolvimento sócio-econômico e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, idéia consubstanciada no princípio do desenvolvimento sustentável. VIII. Considerando-se que o empreendimento diz respeito à transmissão de energia elétrica, serviço indispensável, a respectiva paralisação traria grave prejuízo à sociedade, o que não se coaduna com a Política Nacional do Meio Ambiente, porquanto um de seus objetivos, conforme já mencionado, é a harmonização entre desenvolvimento sócio-econômico e meio ambiente ecologicamente equilibrado. IX. Existência de lide reconhecida. Mérito analisado com base no Artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil. X. Apelação desprovida.
Verifica-se, assim, que o movimento do Ministério Público de questionar as licenças ambientais emitidas pelos órgãos competentes, muitas vezes sem qualquer embasamento técnico que sustente o pleito, é um risco relevante a ser considerado no projeto da concessão.
O TCU destaca, por outro lado, que a ausência de padronização e o excesso de discricionariedade no processo de concessão das licenças dá margem a atuação do Ministério Público. Cita como exemplo a ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal no Pará contra Coordenador Substituto da COHID por ter validado estudos ambientais do projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, apesar de os técnicos do órgão os considerarem incompletos.142
Como forma de resolver o impasse do Ministério Público com os órgãos licenciadores, o estudo do Banco Mundial sugere uma articulação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para incluir no planejamento estratégico do órgão ministerial a definição de metas para aumento da eficiência, aperfeiçoamento e desburocratização das análises dos projetos e políticas do setor hidrelétrico.143
Os diversos fatores que contribuem para os atrasos na obtenção das licenças ambientais trazem prejuízos não só para o concessionário, mas para o poder concedente, os usuários, enfim, ao sistema de energia elétrica como um todo.
O Acórdão n. 308/2017, que avaliou os atrasos na execução das obras de linhas de transmissão de energia elétrica sob a responsabilidade da Chesf conclui que “considerando todo o período de atraso, a Chesf teve, até 29/4/2016, uma frustração total de receita no montante aproximado de R$ 26.029.693,00, redução essa que poderá ocasionar impactos negativos no desempenho da Chesf.”. É importante ressaltar que nem todos os atrasos apurados na
142 Acórdão 2212/2009 do Plenário do Tribunal de Contas da União. Dara da sessão: 23/09/2009.
143 Relatório Principal do estudo “Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil. Uma contribuição para o debate.” Disponível em: xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx. Acesso em 02/08/2017. p. 45.
fiscalização em questão foram decorrentes de problemas com o licenciamento socioambiental, sendo que alguns deles foram atribuídos à atuação da própria Chesf.
Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx explica que “dificuldades no processo de licenciamento ambiental, antes circunscritas ao segmento de geração, começam a criar obstáculos e acarretar ônus no segmento de transmissão, com reflexos em toda a cadeia de energia elétrica. Para mitigar riscos na expansão da geração, foram incluídas, nos contratos de concessão de geração, cláusulas que garantem receita aos geradores em caso de atraso na disponibilização de instalações de transmissão que impeçam a entrega da energia gerada após o início da vigência dos contratos de comercialização no ambiente regulado.”144
Veja-se: a falta de coordenação entre a construção dos empreendimentos de geração e de transmissão criam o cenário absurdo em que um parque de geração de energia elétrica, plenamente funcional, não pode despachar energia por falta de linhas de transmissão. E para que o concessionário responsável pela geração de energia elétrica não seja onerado pelo desencontro dos cronogramas, o Poder Público precisa pagar pela energia produzida e não distribuída.
Portanto, ainda que os contratos de concessão do serviço de transmissão de energia elétrica prevejam a compensação do tempo de atraso na obtenção das licenças ambientais com a prorrogação do contrato pelo tempo correspondente145, fato é que a imprevisibilidade no processo de licenciamento traz um custo alto para todos os envolvidos no sistema.
O concessionário, ao elaborar seu projeto de empreendimento, precisa considerar os custos a serem investidos e um cronograma para obtenção do licenciamento. A falta de comunicação entre os órgãos, a falta de padronização dos critérios e exigências, a imprevisibilidade quanto ao tempo que a atividade demandará, bem como quanto a possíveis questionamentos do Ministério Público faz com que não haja previsibilidade quanto ao cumprimento do cronograma estabelecido no contrato de concessão, culminando com um descumprimento dos prazos pactuados no contrato de concessão.
Esses custos decorrentes da insegurança quanto ao cumprimento de cláusulas contratuais, que dependem da atuação de órgãos da administração para serem implementadas, serão repassados ao usuário, que em última instância, arcará com os custos das ineficiências da
144 DUTRA, Xxxxx Xxxxxxxxx. Regulação do setor elétrico no Brasil. In: Regulação no Brasil: Uma visão multidisciplinar. Org. Xxxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 251.
145 Tal disposição tem previsão expressa no o art. 57, § 1º , V, da Lei n. 8.666/93, aplicável subsidiariamente às concessões de serviço público. O dispositivo prevê que dá ensejo à prorrogação do prazo, assegurada a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, o impedimento de execução do contrato por fato ou ato de terceiro reconhecido pela Administração em documento contemporâneo à sua ocorrência.
Administração Pública.
3. MECANISMOS PARA EXIGIR O CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DO PODER CONCEDENTE
É para situações como as expostas acima que se busca uma resposta. O que fazer quando o poder concedente, injustificadamente, por desídia, por inércia, ou até mesmo por pressões políticas, deixa de cumprir uma cláusula contratual expressa, causando prejuízos ao concessionário e à prestação do serviço concedido? O que é possível exigir do poder concedente? Como compelir o poder concedente a cumprir com suas obrigações? O que fazer para evitar esse descumprimento?
A Lei n. 8.987/95 – Lei de Concessões, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, prevê em seu art. 38 que a inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais.
O dispositivo supracitado regula tão-somente a hipótese de aplicação de sanções decorrentes da inexecução do contrato por parte do concessionário, sem explicitar como se daria a solução do conflito na hipótese de descumprimento de cláusulas contratuais pelo poder concedente.
O art. 39, por sua vez, prevê expressamente que “o contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial especialmente intentada para esse fim.”. O parágrafo único do referido artigo complementa que “na hipótese prevista no caput deste artigo, os serviços prestados pela concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em julgado.”.
Note-se que a Lei de Concessões só traz a possibilidade de aplicação de sanção contratual pelo poder concedente em face do concessionário, sem que haja previsão expressa do caminho contrário, como há em contratos bilaterais comuns.
Não há, portanto, previsão expressa na Lei 8.987/95, sobre como a concessionária poderia compelir o poder concedente a cumprir determinada obrigação contratual; de acordo com a Lei nº 8.987/95, a única alternativa para o concessionário em face do inadimplemento do poder concedente é a rescisão do contrato, e ainda assim, somente pela via judicial, e sem possibilidade de paralisação dos serviços até que ocorra o trânsito em julgado.
Como veremos ao final deste capítulo, sempre que sofrer um prejuízo, o concessionário poderá pleitear o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato ou indenização por perdas e danos. No entanto, nosso intuito com o presente capítulo é identificar como o concessionário poderia compelir o poder concedente a cumprir com suas obrigações, isto é, agir conforme previsto no contrato, e não somente reparar um dano depois que este estiver configurado.
Diante disso, trataremos nos itens a seguir sobre alternativas encontradas no ordenamento jurídico brasileiro para evitar o descumprimento de obrigações e, uma vez descumpridas, compelir o poder concedente a cumprir suas obrigações contratuais.
3.1 Mecanismos preventivos
Mecanismos preventivos seriam ferramentas, contratualmente previstas, a serem incluídas nos contratos de concessão comum e utilizadas pelo concessionário como forma de reduzir as chances de o inadimplemento contratual pelo poder concedente acontecer ou de contorná-lo antes que seja necessário que as partes entrem em um litígio.
Tais ferramentas visam evitar gastos desnecessários em virtude de atrasos pelo poder concedente, distribuir melhor os riscos do contrato, evitando situações em que o poder concedente fique responsável por obrigações que poderiam ser melhor desempenhadas pelo concessionário, bem como trazer incentivos adequados para que a administração busque uma melhor gestão do contrato.
3.1.1 Matriz de riscos e obrigações: como evitar o inadimplemento das partes através de uma melhor alocação dos riscos do contrato
No regime tradicional das concessões, embora a Administração Pública transfira a atividade para que o particular a execute em nome próprio, assumindo os riscos inerentes desta execução, ela permanece com um papel central quanto à estruturação do objeto da concessão.
É a Administração Pública quem tomará as decisões estratégicas, definindo as principais regras da atividade a ser explorada, o projeto a ser executado e as regras fundamentais de gestão
e prestação do serviço. Resta, assim, ao concessionário, executar o serviço da forma mais eficiente possível, implementando as diretrizes ditadas pelo poder concedente.
Nesse contexto, o risco assumido pelo particular se limitaria às decisões por ele assumidas na execução da atividade, cabendo ao Estado a responsabilidade pela viabilidade do empreendimento. Assim, quanto maior a ingerência estatal na atividade, menor seria a responsabilidade do particular. 146-147 Segundo Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx:
“Não são raros os segmentos de serviços públicos que permanecem sob um esquema de concessão mais tradicional, em que o Estado assume praticamente a gestão do empreendimento, sobrando ao empresário a gestão de sua empresa (concessionária) e os riscos que a essa atividade restrita são inerentes 148
A Lei de Concessões trouxe algumas novidades para esse sistema. A primeira delas foi incluir expressamente na letra da lei que o concessionário assumia a prestação do serviço por sua conta e risco (art.2º) e que atendidas as condições do contrato, considera-se mantido o seu equilíbrio econômico financeiro (art. 10).
Um aspecto fundamental para a estruturação de contratos de concessão é uma adequada alocação de riscos. Como explica Xxxxxxxx Xxxxxxxx, “a matriz de riscos e o sistema de equilíbrio-econômico financeiro constituem os aspectos mais centrais do contrato, pois estipulam o conjunto de incentivos para a ação de cada parte na relação contratual.”.149
É da natureza do contrato de concessão que o concessionário tenha um nível mínimo de autonomia na gestão do serviço, o qual deve ser respeitado pelo poder concedente. A ampliação da autonomia na gestão do concessionário implicará a ampliação dos riscos inerentes à execução do contrato.150
Na matriz de riscos é que ficará estabelecido qual das partes será responsável por lidar com eventos incertos, que tragam bônus ou ônus, e afetem a continuidade das atividades. Disso decorre que é na matriz de riscos que se fixa o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, já
146 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. A experiência brasileira nas concessões de serviço público e as parcerias público- privada. In Parcerias Público-Privadas. Coordenador: Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx. 2ª ed. 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 159/161.
147 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. A inviabilização da concessão de serviço público e o cabimento de sua extinção.
In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, nº 26, v. 4, 2016. P. 97.
148 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. A experiência brasileira nas concessões de serviço público e as parcerias público- privada. In Parcerias Público-Privadas. Coordenador: Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx. 2ª ed. 1ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 165.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011. p. 78.
150 GUIMARÃES, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. 2ªed. rev., atual., ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. pp.71 e 72
que este equilíbrio se dá através da manutenção, ao longo do contrato, da distribuição de encargos e benefícios nela previstos.
Uma matriz de riscos bem elaborada faz com que mais investidores sejam atraídos para contratar com a Administração e façam melhores propostas. Aumenta-se assim, o número de participantes na licitação, e o aumento da concorrência e maior segurança quanto a distribuição de riscos, aumenta também a qualidade das propostas. Dessa forma, poder concedente e parceiro privado conseguem explorar os serviços com melhor qualidade e melhor preço, em benefício do usuário.
A alocação de parte dos riscos é feita por lei, no entanto, os demais riscos, cuja alocação não está prevista em lei, poderão ser tratados no edital e no contrato de concessão, de acordo com as peculiaridades de cada setor e de cada contrato específico. Conforme veremos a seguir.
3.1.2.1 Distribuição de riscos previstos na lei
A Lei de Concessões estabelece como regra geral que a concessão se dá por conta e risco da concessionária, sendo garantido que os contratos poderão prever mecanismos de revisão de tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico financeiro (art. 2º e art. 9º, § 2º). Além disso, estabelece também alguns riscos específicos como, por exemplo, que ressalvado o imposto sobre a renda, o risco pela alteração da carga tributária – seja para mais ou para menos – dão ensejo à revisão da tarifa (art. art. 9º, § 3º). Dessa forma, o risco tributário
é do poder concedente não podendo ser alocado ao parceiro privado.
A Lei de Licitações, aplicável subsidiariamente às concessões, por sua vez, prevê não só que o risco tributário é do poder concedente, mas é mais abrangente que a Lei 8.987/95 ao alocar a ele também o risco de “superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados” (art. 65,
§ 5º). Portanto, riscos tributários, regulatórios e de alterações na legislação, que afetem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, devem ser alocados ao poder concedente.
A Lei 8.666/93 prevê ainda, em seu art. 57, §1º, um rol de hipóteses específicas em que é possível a prorrogação do prazo para manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. São basicamente riscos de duas categorias – eventos provocados pela Administração e causas de força maior ou caso fortuito – a saber: (i) alteração do projeto ou especificações, pela
Administração; (ii) superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato; (iii) interrupção da execução do contrato ou diminuição do ritmo de trabalho por ordem e no interesse da Administração; (iv) aumento das quantidades inicialmente previstas no contrato, nos limites permitidos por esta Lei; (v) impedimento de execução do contrato por fato ou ato de terceiro reconhecido pela Administração em documento contemporâneo à sua ocorrência; (iv) omissão ou atraso de providências a cargo da Administração, inclusive quanto aos pagamentos previstos de que resulte, diretamente, impedimento ou retardamento na execução do contrato, sem prejuízo das sanções legais aplicáveis aos responsáveis.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx lembra que, como regra, os prazos previstos nos contratos devem ser cumpridos fielmente pelas partes. Isto porque a exiguidade do prazo pode ser fator de desincentivo a participação de eventuais interessados, diminuindo assim a concorrência na licitação. Por isso, a alteração dos prazos deve ser entendida como exceção, e ser concedida tão somente quando da ocorrência de eventos supervenientes graves e relevantes, sob pena de violação aos princípios fundamentais que norteiam a licitação e dos contratos administrativos151.
Por fim, merece destaque o art. 65, II, “d”, que trata da possibilidade de alteração dos contratos, por acordo entre as partes, “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.”
Os riscos não tratados especificamente pela lei poderão ser alocados caso a caso nos contratos de concessão.
3.1.2.2 Critérios para distribuição de riscos
151 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 1122.
A máxima para uma alocação eficiente de riscos em contratos é: a parte que tiver melhores condições para evitar ou remediar determinado risco, ao menor custo, deve ser a responsável por ele.152
Mauricio Portugal avalia que existem 3 critérios, que devem ser aplicados para uma repartição eficiente de riscos153, que determinam que o risco deve ser alocado para (i) a parte que tem o menor custo para evitar um risco indesejável de ocorrer ou de aumentar as chances de um evento desejável ocorrer; (ii) a parte que tem melhor capacidade de gerenciar consequências danosas decorrentes de um evento indesejável; (iii) a parte que tem menor possibilidade de repassar o custo do evento danoso a terceiros, afinal a possibilidade de repassar o custo a terceiro tira o incentivo da parte de prevenir e remediar adequadamente consequências indesejáveis.
A administração sempre irá repassar seus custos, direta ou indiretamente, para o contribuinte. O parceiro privado, por sua vez, ao ser responsabilizado por riscos que ele não tem como prevenir ou remediar, tende a (i) fazer seguro e repassar seu custo para a Administração ou o usuário; (ii) embutir no preço à Administração o custo de lidar com os eventos indesejáveis, de forma que a Administração pagará por eles, ainda que esses eventos não venham a se concretizar.
É importante destacar que não há uma única resposta correta para alocação de riscos. Cada setor e cada contrato tem suas peculiaridades e mesmo que haja uma praxe consolidada em determinado setor, nada impede que uma nova forma de alocação também se mostre eficiente e traga os incentivos certos.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx ensina que “a regra é transferir os riscos ordinários e inerentes à atividade objeto do empreendimento ao particular delegatário. Já os riscos extraordinários (inclusive aqueles de natureza política) devem ser arcados pelo Estado.”.154
Uma vez observados esses critérios, verifica-se que as chances de inadimplemento contratual são bastante reduzidas, afinal, assume o risco a parte que tem maior controle e maior interesse em prevenir e remediar o risco.
Trata-se, assim, de mapear os riscos atinentes a cada contrato e verificar qual parte tem maior incentivo para minimizá-lo, maior capacidade de gerenciá-lo e menor possibilidade de
152 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. A inviabilização da concessão de serviço público e o cabimento de sua extinção.
In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, nº 26, v. 4, 2016. X. 00.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011. p. 81 e ss.
154 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. A inviabilização da concessão de serviço público e o cabimento de sua extinção.
In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, nº 26, v. 4, 2016. P. 96.
repassá-lo a terceiro, gerando o incentivo para que ela de fato busque contornar os riscos identificados da maneira mais eficiente.
3.1.2.3 A medida certa da flexibilização dos contratos
É certo que em contrato de longo prazo espera-se que ocorram diversas alterações, já que naturalmente se torna necessário com o passar do tempo, que sejam feitas adaptações, expansões e de modernização do serviço, bem como aperfeiçoamento e ampliação dos equipamentos e das instalações, nos termos do art. 23, V, da Lei de Concessões.
No entanto, estudos indicam155 que há uma flexibilização excessiva no Brasil quanto à possibilidade de revisão dos contratos com a Administração Pública, que faz com que o particular não tenha o devido cuidado ao elaborar suas propostas, por ter a confiança de que poderá repactuar o contrato após vencida a licitação. Uma vez transferida a concessão, ninguém tem maior conhecimento sobre o negócio do que o particular, que o acompanha no dia a dia, fazendo com que ele busque renegociar o contrato de maneira mais benéfica do que a prevista na licitação. Tal prática traz um enorme risco de seleção adversa.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx ensina que o reequilíbrio econômico-financeiro depende de um evento posterior à formulação da proposta, não bastando a simples insuficiência da remuneração. Em suas palavras “não se caracteriza rompimento do equilíbrio econômico- financeiro quando a proposta do particular era inexequível. A tutela à equação econômico- financeira não visa que o particular formule proposta excessivamente baixa e, após vitorioso, pleiteie elevação da remuneração”.156.
Embora a lei e os contratos em geral tragam uma matriz de alocação de riscos, nem sempre a alteração contratual, seja através da prorrogação de prazos ou através de outros mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro, é tratada como exceção.
Merece destaque, nesse sentido, a Medida Provisória 752, convertida na Lei nº 13.448 de 2017, que dispõe sobre diretrizes gerais para a prorrogação e relicitação dos contratos de parceria, nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal.
155 XXXXX, X. Xxxx et al. Renegotiation of Concession Contracts in Latin America. The World Bank Latin America and Caribbean Region. April 2003. p. 5
156 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 1182
A Lei em questão prevê que com o objetivo de assegurar a continuidade da prestação dos serviços, o órgão competente poderá realizar a relicitação do objeto dos contratos de parceria cujas disposições contratuais não estejam sendo atendidas ou cujos contratados demonstrem incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente. (art. 13).
Vale destacar um trecho da exposição de motivos que fundamentou a medida provisória:
A Medida Provisória, de outro lado, faculta ao Poder Concedente, em comum acordo com concessionário, adotar o procedimento de relicitação de contratos de parceria vigentes no setor rodoviário, ferroviário e aeroportuário cujos parceiros demonstrem ausência de capacidade em cumprir com as obrigações assumidas contratualmente. Trata-se de alternativa inovadora de “devolução coordenada e negociada” da concessão, evitando-se o processo de caducidade, muitas vezes moroso e com longa disputa judicial, em que, normalmente, os usuários da concessão são os principais penalizados pela má prestação do serviço até a conclusão do processo.
A não ser que se entenda que tenha ocorrido algum fato superveniente excepcional, capaz de alterar drasticamente as condições do contrato, a Lei nada mais é que um reconhecimento do Poder Público de que os contratos de concessão dela objeto – dos aeroportos, por exemplo, firmados, o mais antigo, há apenas 6 anos – não foram adequadamente formulados. Vejamos a lição de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx sobre o tema:
Caracteriza-se uma modalidade de atuação culposa quando o evento causador da maior onerosidade era previsível e o particular não o levou em conta. (...) Cabia-lhe o dever de formular proposta tomando em consideração todas as circunstâncias previsíveis. Presume-se que assim tenha atuado. Logo, sua omissão acarretou prejuízos que deverão ser por ele arcados. Rigorosamente, nessa situação inexiste rompimento do equilíbrio economico-financeiro da contratação.157
A Lei, por sua vez, não exige que se demonstre fato superveniente que tenha levado a concessionária à incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente. Determina apenas que, para qualificação do contrato para relicitação, o contratado apresente: (i) justificativas e elementos técnicos que demonstrem a necessidade e a conveniência da adoção do processo de relicitação, com as eventuais propostas de solução para as questões enfrentadas; (ii) renúncia ao prazo para corrigir eventuais falhas e transgressões e para o enquadramento previsto no art. 38, § 3º, da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995,
157 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p.1183.
caso seja posteriormente instaurado ou retomado o processo de caducidade; (iii) declaração formal quanto à intenção de aderir, de maneira irrevogável e irretratável, ao processo de relicitação do contrato de parceria, nos termos do Projeto de Lei; e (iv) informações necessárias à realização do processo de relicitação, em especial as demonstrações relacionadas aos investimentos em bens reversíveis vinculados ao empreendimento e aos eventuais instrumentos de financiamento utilizados no contrato.
A Lei sinaliza, portanto, aos interessados em contratar com a Administração que eles não precisam ter o cuidado de elaborar adequadamente suas propostas e analisar a matriz de risco, já que na hipótese de não conseguirem cumprir com suas obrigações, é possível que haja uma relicitação do contrato.
Tal mecanismo traz o incentivo para o particular agir oportunisticamente, como, por exemplo, apresentar uma proposta competitiva, possivelmente infactível para a realização do projeto em sua integralidade, com a intenção de, após assumir a concessão, requerer a alteração contratual, pleiteando o reequilíbrio econômico-financeiro. Xxxx não consiga alterar as condições do contrato a seu favor, ou entenda que apenas parte da concessão é lucrativa, ele explora o projeto o quanto lhe é conveniente e, em seguida, o devolve quando não houver mais potencial lucrativo que lhe interesse.
Nesse contexto, entende-se que este tipo de programa deve encontrar limites. Se hoje é reconhecido que houve um problema na licitação nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, é preciso extrair um aprendizado desta experiência, usar a referida lei para corrigi-la e, em seguida, buscar mecanismos para que o comportamento oportunista não aconteça.
A possibilidade de devolução e relicitação dos contratos, como regra, não parece trazer os incentivos para que poder público e particular busquem maneiras de estruturar a concessão de maneira eficiente e responsável, devendo ser utilizado tão-somente em casos excepcionais.
3.1.2 Alterações legislativas
Conforme visto, entendemos que a Lei das PPPs teria muito a agregar às concessões comuns, não havendo lógica para ser vedada a aplicação dos mecanismos cabíveis previstos na referida lei às concessões comuns.
De fato, é preciso considerar que a Lei das PPPs foi editada quase 10 anos depois da Lei de Concessões sendo esperado, portanto, que ela traga em seu conteúdo propostas inovadoras em relação à Lei de Concessões, decorrentes das experiências vividas no período.
O primeiro passo, portanto, seria revogar o art. 3º, § 2º, da referida Lei que expressamente veda sua aplicação às concessões comuns. Tal vedação restringe a margem de negociação do poder público, aumentando o custo de contratação, sem trazer benefícios.
Ademais, ao buscarmos soluções alternativas para garantir o cumprimento do contrato pela administração pública, muitas vezes, esbarramos no princípio da legalidade estrita, segundo o qual, a Administração Pública só pode atuar conforme a lei expressamente determina.
Vejamos a seguir algumas propostas de mudança legislativa que podem trazer mais segurança jurídica para o concessionário de que o poder concedente irá cumprir suas obrigações contratuais assumidas e, consequentemente, mais estabilidade para os contratos de concessão, atraindo mais e melhores investidores.
3.1.2.1 Penalidades contratualmente previstas para o poder concedente
A Lei n. 8.987/95 ao estabelecer em seu art. 23 as cláusulas essenciais dos contratos de concessão, prevê no inciso VIII tão somente a possibilidade de penalidades contratuais e administrativas para a concessionária.
A ausência de previsão de penalidades contratuais para o poder concedente teria como pano de fundo a ideia de que a concessão de serviço público é uma delegação completa da prestação do serviço, que deverá ser executada por conta e risco do concessionário, sem que o poder concedente seja responsável por qualquer obrigação contratual.
Tal entendimento, como visto não se aplica à realidade dos contratos de concessão brasileiros, onde se verifica a necessidade de um grande comprometimento do poder público, seja com obrigações de fazer ou até mesmo com obrigações de pagar (subsídios), para que seja possível viabilizar o projeto pretendido.
Nesse sentido, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx destaca a desconexão entre a teoria e a prática dos contratos de concessão
Muito embora já tenhamos constatado que esse traço da definição clássica [a ideia segundo a qual a concessão seria um contrato, cujos riscos seriam suportados exclusivamente pelo concessionário] tem sido teoricamente, como também na prática, posto em questão, seja em função da não rara ‘solidariedade financeira’ entre concedente e concessionário (concessões subsidiadas ou subvencionadas; divisão dos ônus da concessão, em termos de assunção de obrigações de custeio de obras ou desapropriações pelo concedente; favores ou incentivos fiscais; ou mesmo a assunção de concessões por entidades da própria administração indireta, como empresas públicas e sociedades de economia mista que acabam, ainda que indiretamente, por colocar o Poder Público como responsável final pelos riscos do empreendimento), seja em razão da diversificação das formas de remuneração do concessionário (admitindo-se em alguns casos, até mesmo o pagamento direto do concessionário pela administração pública), é imprescindível admitir que este conceito continua a demonstrar força e influenciar a legislação, a doutrina e a jurisprudência atuais.
(...)
Muito embora inequivocamente majoritária, essa posição – que doravante denominaremos doutrina tradicional do risco na concessão – não disfarça um despreocupado apego à repetição de textos clássicos, cujo questionamento parece-nos fundamental na atualidade.158
Uma vez que o poder público se comprometa contratualmente a cumprir determinadas obrigações, é preciso que haja no contrato incentivos para que ele as cumpra, sob pena de se ferir a legítima expectativa do concessionário de que o contrato será cumprido, sem que tal descumprimento traga qualquer consequência para o poder público inadimplente. Nesse sentido, Xxxxxxxx Xxxxxxxx ensina que:
“É lugar comum na literatura sobre contratos que duas são as funções das penalidades: incentivar o cumprimento do contrato (deterrence function) e promover liquidação antecipada de valores destinados à recomposição do patrimônio da parte afetada pela quebra do acordo. (...)
A definição das penalidades deve, portanto, tanto quanto possível, considerar a busca da maximização da eficiência econômica do contrato – o que, aliás, tem sido objeto de diversas discussões no plano da análise econômica do Direito; discussões, essas, que devem ser lembradas na formatação das penalidades contratuais, à vista das peculiaridades de cada projeto”.159
Nesse sentido, o art. 5º, II, da Lei nº 11.079/2004 prevê a possibilidade de inclusão no contrato de parceria público-privada de cláusulas de penalidades aplicáveis à Administração Pública em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas.
158 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O risco no contrato de concessão de serviço público. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2006. pp. 102 e 103.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Comentários à Lei de PPP – Parceria Público- Privada. Fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 116.
O art. 55, VII, da Lei n. 8.666/93 também traz disposição prevendo que os direitos e as responsabilidades das partes, bem como as penalidades cabíveis e os valores das multas são cláusulas necessárias em todos os contratos.
No entendimento da doutrina tradicional, no entanto, não seria cabível a aplicação de penalidades ao poder concedente em contratos de concessão comum.
Ao tratar de cláusulas exorbitantes em contratos de concessão de serviço público, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de Melo160 considera a aplicação de sanções ao concessionário inadimplente um poder extraordinário do poder concedente. A contrario sensu, seria possível depreender que não poderia haver penalidades, previstas no edital ou regulamento, para desestimular o inadimplemento do poder concedente.
Esse entendimento é reforçado quando, ao tratar dos direitos do concessionário, o autor
afirma:
Perante o concedente, os direitos do concessionário cifram-se ao respeito à parte contratual da concessão, isto é, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e também que não lhe seja exigido, sob cor de cumprimento de suas obrigações, o desempenho de atividade estranha ao objeto da concessão, pois é o objeto que identificará tal ou qual concessão. Obviamente, assiste-lhe também direito a que se obedeçam todas as limitações legais concernentes aos poderes do concedente ou na forma delas constituídas (quanto a sanções, intervenção, etc.).”
Constata-se, assim, que o autor não considera o cumprimento do contrato pela Administração Pública como um direito do concessionário. Não cogita de qualquer forma de o concessionário compelir o poder concedente a cumprir com suas obrigações previstas nas cláusulas contratuais, se utilizando dos instrumentos mais comuns dos contratos do direito civil, isto é, as multas e sanções contratuais, restando a ele tão-somente, como único recurso, pleitear o reequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato para compensar o prejuízo financeiro decorrente do inadimplemento.
No que se refere ao poder sancionatório da Administração em face do concessionário, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx entende que, em virtude do princípio da legalidade, não seria possível instituir, seja no edital, no contrato ou em atos normativos do Poder Executivo, uma penalidade não prevista em lei.
Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, por sua vez, entende que a vantagem ilícita obtida pela Administração através do descumprimento do contrato não pode ficar sem sanção:
160 BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed, ver, atual.. São Paulo: Malheiros, 2013. pp 744/750.
Ao coagir seu co-contratante a desembolsar recursos próprios para custear a prestação de interesse público, a Administração, além de violar a garantia patrimonial da equação econômico-financeira, viola também, indiretamente, a imutabilidade do objeto do contrato impondo o acréscimo de um financiamento adjeto, não pactuado e, por vezes, até ruinoso.
(...)
Hoje resta induvidoso que essa vantagem ilícita não pode ficar sem sanção na ordem jurídica, mesmo quando o Poder Público aufere vantagens indevidas de contratos nulos ou inexistentes.”161
Sendo assim, considerando que ao contrário das Leis 8.666/93 e 11.079/2004, a Lei n. 8.987/95 não autoriza expressamente a previsão de penalidades aplicáveis ao poder concedente por descumprimento do contrato, seria necessária uma alteração legislativa para garantir segurança jurídica ao edital e ao contrato que contemplassem tal previsão.
A previsão de multas e penalidades contratualmente previstas, assim como acontece na Lei das PPPs, seria fundamental para trazer maiores incentivos para que o poder concedente faça uma gestão mais responsável do contrato desde a sua gênese – avaliando com mais cautela as obrigações que pretende assumir – até sua execução, com maior controle das obrigações previstas de forma a não incidir no descumprimento e evitar o pagamento de multa.
Como vimos no capítulo anterior, na prática dos contratos de concessão comum, o poder concedente assume uma série de obrigações contratuais. Diante disso, é preciso que os contratos de concessão possam refletir a realidade dos fatos, isto é, que assim como nos demais contratos administrativos em que a administração possui obrigações, possam prever penalidades que incentivem o poder concedente a cumprir as obrigações assumidas e, assim, garantir a devida execução do contrato nos termos pactuados.
3.1.2.2 Garantias da Administração Pública para cumprimento do contrato
A Lei de Parcerias Público-Privadas – Lei nº 11.079/2004 prevê que as obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser garantidas mediante: (i) vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV
161 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. A inadimplência da Administração Pública e suas consequências. In:
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 47, 1994. p. 28.
do art. 167 da Constituição Federal; (ii) instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; (iii) contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; (iv) garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público; (v) garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade; (vi) outros mecanismos admitidos em lei.
Xxxxxxxx Xxxxxxxx explica que a necessidade de prestação de garantia pela Administração Pública se dá porque nas diversas esferas de governo, a classificação da qualidade de crédito é baixa, sendo necessário que os contratos prevejam garantias de pagamento ao concessionário.162
Se tal fato é expressamente reconhecido em contratos de parceria público-privado, não haveria qualquer impedimento para que o sistema de garantias fosse aplicado à contratos de concessão comum que contenham previsão de pagamento de subsídios pelo poder concedente.
Diferentemente da previsão de penalidades contratuais, que não encontra previsão legal na Lei de Concessões, a garantia está prevista no art. 23, V, da Lei de Concessões que prevê que é cláusula essencial do contrato de concessão a relativa “aos direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária”. Nota-se que, no caso das garantias, não há restrição à aplicação dos dispositivos somente à concessionária, como acontece no art. 23, VIII, que trata sobre as penalidades contratuais.
Nos termos da redação do art. 23, inciso V, não haveria sequer o argumento de violação ao princípio da legalidade estrita para impedir que seja possível a previsão de garantia pela Administração Pública no contrato de concessão comum, que contenha alguma forma de repasse financeiro por ela.
Ainda que se entenda que o propósito de se fazer uma concessão comum é desonerar a Administração Pública, delegando ao concessionário os custos para execução dos serviços, fato é que se o contrato prevê algum tipo de desembolso por parte do poder concedente – isto é, já admitiu ser necessário algum grau de apoio estatal para que o projeto se torne viável – nada mais justo que houvesse a correspondente garantia para trazer segurança e reduzir os custos do projeto.
162 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. 10 anos da Lei de PPP e 20 anos da Lei de Concessões. Viabilizando a implantação e melhoria de infraestruturas para o desenvolvimento social. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx/00-xxxx-xx-xxx-xx-xxx-00-xxxx-xx-xxx- deconcessoes. p. 289.
Em contratos de parceria público-privado os pagamentos feitos pelo poder concedente são chamados de contraprestação conforme previsto no art. 6º da Lei de PPP, enquanto na Lei de Concessões, há previsão apenas de um possível subsídio (art. 17 da Lei de Concessões) 163. Sob o ponto de vista do planejamento do projeto, no entanto, o efeito é o mesmo: ambos são valores a serem pagos pelo poder concedente para viabilizar o desenvolvimento do projeto e que serão considerados para formulação da equação econômico-financeira do contrato. Ao tratar sobre garantias nos contratos de PPP, Xxxxxxxx Xxxxxxxx explica:
Deverão ser garantidos quaisquer pagamentos devidos pela Administração Pública concedente à concessionária, em virtude do contrato de PPP, tanto no período pré-operacional (aporte público), quanto ao longo da operação (contraprestação pública).
Em projetos com grandes obras de implantação em que os custos com fatores críticos como desapropriação/desocupação, condicionantes ambientais e interferências sejam total ou parcialmente arcados pelo parceiro privado, mas reembolsados ou indenizados pela Administração, o sistema de garantias deverá cobrir os pagamentos em virtude de eventuais reequilíbrios do contrato, indenizações, ou reembolso do Poder Concedente a concessionaria para cobertura dos custos de responsabilidade da Administração Publica.164
A mesma lógica se aplica às obrigações previstas pelo poder concedente em contratos de concessão comum.
É certo que os subsídios previstos nos contratos de concessão podem não ser concedidos mediante o pagamento em dinheiro de valores, mas através de descontos, isenções, promessas de financiamentos com condições mais favoráveis, dentre outros, mas na hipótese de inadimplemento, qualquer desses benefícios pode ser convertido em perdas e danos a serem quitados com o valor da garantia.
Poderia se argumentar ainda que o pagamento de indenização pelos danos sofridos, assim como o equilíbrio econômico-financeiro do contrato já estão previstos na Lei de
000 Xxxxxxxx Xxxxxxxx explica a diferença entre os conceitos:
“O conceito de contraprestação se refere geralmente a pagamento em contrato bilateral, sinalagmático, e aponta, portanto, para alguma proporcionalidade entre as obrigações das partes: entre, de um lado, o pagamento; e, do outro, o serviço prestado, ou o título ou direito sobre bem que foi transferido pelo contrato.
Já o conceito de subsidio aponta geralmente para a cobertura de custos, para um apoio financeiro dado por um ente estatal para tornar viável a realização de empreendimentos ou obras de interesse público ou a prestação de serviços de interesse ou utilidade pública.” (XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. 10 anos da Lei de PPP e 20 anos da Lei de Concessões. Viabilizando a implantação e melhoria de infraestruturas para o desenvolvimento social. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx/00-xxxx-xx-xxx-xx-xxx-00-xxxx-xx-xxx- deconcessoes. p. 226)
164 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. 10 anos da Lei de PPP e 20 anos da Lei de Concessões. Viabilizando a implantação e melhoria de infraestruturas para o desenvolvimento social. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx/00-xxxx-xx-xxx-xx-xxx-00-xxxx-xx-xxx- deconcessoes. p. 299.
Concessão, de modo que a criação de garantias não seria necessária para garantir o cumprimento do contrato.
No entanto, é preciso lembrar que o art. 100 da Constituição Federal determina que a execução de obrigações contra os entes governamentais se dê através do sistema de precatórios, que faz com que o tempo para recebimento de valores reconhecidamente devidos seja tão incerto que é incapaz de trazer qualquer segurança para o concessionário.
Não é por outro motivo que o art. 16 da Lei das PPPs prevê que a União, seus fundos especiais, autarquias, fundações públicas e empresas estatais dependentes, estão autorizados a participar no limite global de seis bilhões de reais em Fundo Garantidor de Parcerias Público- Privadas, que terá por finalidade prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais, distritais, estaduais ou municipais em virtude das parcerias de que trata a Lei.
Ainda que, em tese, nas PPPs a dependência do parceiro privado com os pagamentos do governo seja maior, a incerteza do parceiro privado, seja na PPP ou na concessão comum, quanto ao recebimento dos valores pactuados fará com que o preço a ser ofertado na licitação seja menos competitivo, em detrimento da administração pública.
Heloisa Caggiano165 noticia que no contrato de concessão comum firmado pela Município do Rio de Janeiro para a construção da transolímpica havia previsão de um repasse de recursos públicos, a título de subsídio, na fase de realização das obras viárias, isto é, nos primeiros quatro anos do contrato, e portanto, havia também uma cláusula de garantia pelo poder público.
A despeito da clareza do art. 23, V, da Lei de Concessões, tal cláusula de garantia foi retirada através de aditivo contratual em virtude de determinação do Tribunal de Contas do Município que entendeu que a cláusula de garantia não era compatível com o modelo de concessão comum.
Por outro lado, Caio Cesar Figueiroa166 conta que no edital da Concorrência Internacional nº 01/2017, para concessão da Rodoanel – TrechoNorte, em São Paulo, foram incluídas duas novas formas de garantia ao concessionário, a saber, a conta de reserva de outorga e a recomposição automática do contrato.
165 CAGGIANO. Xxxxxxx Xxxxxxx. “Os subsídios governamentais em concessões comuns: natureza jurídica do repasse público e a sua legalidade”. In Teoria do Estado Regulador, Vol. II. p. 178/179.
166 FIGUEIROA, Xxxx Xxxxx. Por um controle laico das Agências Reguladoras. Sobre algumas cláusulas contratuais disruptivas desenvolvidas pela ARTESP. In: xxxxx://xxxx.xxxx/xxxxxxx/xxx-xx-xxxxxxxx-xxxxx-xxx- agencias-reguladoras-04112017 . Acesso em 04/11/2017.
A conta de reserva de outorga é uma conta bancária destinada ao depósito de valores de outorga fixa e variável. O mecanismo cria um fundo com liquidez para garantir o reequilíbrio do contrato durante a sua execução. O poder concedente, por sua vez, fará resgates parciais em marcos temporais definidos no contrato. Ademais, havendo atraso de mais de 180 dias na assinatura do Termo de Transferência do Sistema Existente, a concessionária poderá entender que o contrato deixou de ser válido, tendo direito a um reembolso parcial do saldo da conta.
Já a recomposição automática do equilíbrio econômico-financeiro do contrato poderá ocorrer nas hipóteses taxativas previstas no contrato. Há uma ordem prioritária nos mecanismos possíveis para recomposição automática, a saber: (i) a possibilidade de desconto da Outorga Variável, por período de até 12 (doze) anos, a partir da data da Recomposição Automática; (ii) o ressarcimento ou indenização no limite da disponibilidade da Conta Reserva de Outorga; e, em último caso, (iii) a aplicação dos mecanismos tradicionais (prorrogação e redução de prazo, revisão tarifária, indenização, alteração dos encargos contratuais, etc.).
Dessa forma, os diversos mecanismos de garantia podem reduzir drasticamente a insegurança jurídica dos processos de renegociação dos contratos, os custos de transação e consequentemente, os custos para a contratação do parceiro privado; bem como aumenta o número de possíveis interessados em participar do projeto, razão pela qual deveriam ser considerados também na elaboração de contratos de concessão comum que prevejam repasses do poder público ao concessionário.
3.1.3 Dispute boards ou Comitê de Resolução de Conflitos
Os dispute boards foram utilizados de forma pioneira nos Estados Unidos, na década de 70, quando da execução do contrato de construção do túnel Eisenhower no Colorado, em um contexto de “necessária adoção de mecanismos adequados, especializados e rápidos para a solução de conflitos de interesses”.167.
Trata-se de um órgão colegiado, normalmente formado por três experts nomeados pelas partes quando da assinatura do contrato, em geral engenheiros e advogados, que deverão
167 XXXX, Xxxxxxx. Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.
acompanhar a execução do contrato desde a sua origem e que terão poderes para emitir recomendações ou decisões em caso de controvérsias. Xxxxxxx Xxxx define como:
Os disputes boards (DB) são os painéis, comitês, ou conselhos para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham a sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute Review Boards- DRB) ou tomar decisões (Dispute Adjudication Boards- DAB) ou até tendo ambas as funções (Combined Dispute Boards- CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes foram outorgados pelas partes.”168
Esses experts não têm responsabilidade pessoal por suas decisões, exceto se comprovado dolo ou má-fé, o que lhes garante independência para opinar e decidir da forma que entenderem cabível.
Como explica Xxxxxx Xxxxxxxx, nos dispute boards, “a controvérsia será dirimida pelo colegiado de experts, que integra a relação contratual e acompanha a sua execução, com melhores condições, em tese, de prevenir e solucionar problemas, em virtude da redução da assimetria de informações e da celeridade da decisão”169
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx aponta que o referido órgão colegiado, que acompanha a execução do contrato desde o início, estaria “familiarizado com as plantas, os orçamentos, o diário de obras, as fotografias, os relatórios, as correspondências entre as partes e tudo mais que se relaciona com a obra, além de acompanhar in loco o próprio avanço físico do empreendimento.” Dessa forma, ele entenderia passo a passo como funciona o negócio e estabeleceria uma relação de diálogo com os contratantes, que evitaria que, em caso de controvérsias, um litígio fosse instaurado.170
Vale lembrar também o alto custo envolvido na resolução de controvérsias através do judiciário, seja em razão da ausência de expertise dos juízes sobre temas tão especializados, seja em razão da demora na obtenção de uma decisão final.
Arnoldo Wald noticia que “os dispute boards são muito usados por bancos de desenvolvimento, como o Banco Mundial, bem como em obras públicas e privadas em diversos
168 XXXX, Xxxxxxx. A arbitragem contratual e os Dispute Boards. In: Revista de Arbitragem e Mediação, v. 2, n. 6, p. 9-24, jul./set. 2005. p. 18.
169 Xxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. A arbitragem nos contratos da Administração Pública e a Lei nº 13.129/2015: novos desafios. In: Revista Brasileira de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 13, n. 51, p. 59-79, out./dez. 2015.p. 61.
170 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. O Dispute Board e os Contratos de Concessão. In: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxx-xxxxxx-xxxxxx/x-xxxxxxx-xxxxx-x-xx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx Acesso em 29.09.2017.
países. Outros organismos internacionais importantes, como a CCI e a Fidic, também os adotam, e sua utilização está prevista, até mesmo, em algumas legislações nacionais, como, por exemplo, as da Inglaterra e do México.”171
No Brasil, diante da ausência de disciplina legal sobre o tema, seria possível se utilizar dos regulamentos sobre o funcionamento dos dispute boards de várias instituições renomadas, como, por exemplo, a Câmara de Comércio Internacional172, a Federação Internacional dos Engenheiros Consultores173, a Dispute Resolution Board Foundation174, a Associação dos Árbitros Americanos175, o Instituto de Engenharia176, dentre outras.
Xxxxxx Xxxxxxxx afirma que o instituto ainda é pouco comum no Brasil, apesar de ter um grande potencial para solução de controvérsias, “especialmente em contratos de grande vulto econômico e complexidade da Administração Pública, tal como ocorre, por exemplo, nos contratos de infraestrutura”. 177
De acordo com os dados disponibilizados pela Dispute Resolution Board Foundation178, atualizados em abril de 2017, os dispute boards foram adotados em dois projetos brasileiros: na expansão da linha 4 do metrô de São Paulo e na expansão da Usina de Itaipu. No entanto, nos Estados Unidos, principalmente, e em diversos outros países do mundo, os dispute boards já vêm se consolidando como uma prática usual. Gilberto Vaz e Xxxxx Xxxxxx destacam a experiência do Banco Mundial com a utilização do instituto:
A experiência do Banco Mundial, aliás, é especialmente importante para a história dos Dispute Boards, com destaque para o contexto dos países latino-americanos. A atuação da instituição em sede de DB remonta à construção da hidroelétrica El Cajon em Honduras, na década de 80, quando, pela primeira vez na sua história, o Banco recomendou a adoção de um modelo de junta de resolução de conflitos em um contrato, o que se deu com extremo sucesso. A partir de então, o Banco Mundial veio ampliando o uso do método, o que, com o suporte da Dispute Resolution Board Foundation, desembocou na consolidação, em seu Procurement of Works atual, da
171 XXXX, Xxxxxxx. Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.
172 xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxx/xxxxxxx-xxxxxx/xxxxx/#xxxxxxx_0
173 xxx.xxxxx.xxx
175 xxx.xxx.xxx
176 xxx.xx.xxx.xx
177 Xxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. A arbitragem nos contratos da Administração Pública e a Lei nº 13.129/2015: novos desafios. In: Revista Brasileira de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 13, n. 51, p. 59-79, out./dez. 2015.p. 61.
178 xxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxxxxxx-xxxx/xxx-xxxxxxxx/ . Acesso em 01.12.2017.
obrigatoriedade de Dispute Boards para muitos dos projetos que financia, em observância a determinadas faixas de preço.179
As vantagens dos dispute boards são várias. Dentre elas, podemos mencionar (i) a informalidade, o animus de colaboração preponderante em relação à litigiosidade, a comunicação aberta, decorrentes do maior entrosamento entre os representantes das partes; (ii) o profundo conhecimento dos experts que, já que acompanharam a obra desde o início, tendem a trazer melhores soluções; (iii) possibilidade de solução de conflitos em tempo real, muitas vezes de forma amigável, sem que seja, de fato, necessário levar o pleito aos dispute boards;
(iv) mesmo quando instaurado o procedimento, os processos são mais céleres180; (v) os custos são divididos igualmente entre as partes e costumam ser muito menores se comparados aos custos de um conflito levado à arbitragem.
Por outro lado, a utilização do mecanismo em contratos com a Administração Pública suscita uma série de dúvidas. A primeira delas seria a ausência de disciplina legal, que traria insegurança quanto à possibilidade de utilização dos dispute boards em contratos que devem observar ao princípio da legalidade estrita, levando ao entendimento de que só seria possível a utilização do mecanismo se houvesse autorização legislativa expressa.
Outro ponto seria compatibilizar a possibilidade de utilização das cláusulas exorbitantes pela Administração, alterando unilateralmente o contrato em busca da preservação do interesse público, em detrimento das decisões do board.
Quanto ao argumento da ausência de disciplina legal, entendemos que tal argumento não se sustenta à luz do previsto no art. 23, inciso XV, da Lei de Concessões, que prevê expressamente que o contrato de concessão deverá ter como cláusula essencial “modo amigável de solução das divergências contratuais.”.
Não fosse suficiente o dispositivo supracitado, o art. 23-A da Lei n 8.987/95 prevê ainda que o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996.
179 XXX, Xxxxxxxx Xxxx; XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Os Dispute Boards e os contratos administrativos: são os DBs uma boa solução para disputas sujeitas a normas de ordem pública? In: Revista de Arbitragem e Mediação, v. 10, n. 38, p. 131-147, jul./set. 2013.
180 De acordo com Xxxxxxx Xxxx, “as controvérsias podem ter solução imediata, embora sejam normalmente resolvidas entre 90 e 180 dias, em contraposição à arbitragem, em que a resolução da disputa pode demorar de 1 a 3 anos, especialmente havendo perícia, e ao Poder Judiciário, cuja demora para o julgamento é ainda maior.” (Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.)
Já existe, portanto, no ordenamento jurídico a autorização necessária para que o poder concedente possa estabelecer no contrato de concessão cláusula prevendo os dispute boards, que nada mais são do que um modo amigável privado de solução de divergências contratuais. É certo que o procedimento e as normas que regerão o mecanismo devem estar detalhados no edital e no contrato, para que fique claramente estabelecido como o mecanismo irá funcionar no caso concreto.
No que se refere às cláusulas exorbitantes e à possibilidade de alteração contratual pelo poder concedente com base no interesse público, como vimos no item 2.1.1 acima, tais alterações devem ser devidamente fundamentadas, sob pena de configurarem verdadeiro descumprimento contratual. Sendo assim, partindo-se da premissa de que o recurso às cláusulas exorbitantes para alteração unilateral do contrato será utilizado em situações, de fato, excepcionais e devidamente fundamentadas, inclusive à luz do princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes necessidade, adequação e proporcionalidade no sentido estrito, temos que não haveria maiores dificuldades na implementação dos dispute boards.
Em investimentos de longo prazo e de grande vulto financeiro, a previsão de um mecanismo preventivo de litígios, como os dispute boards, pode significar um ganho de tempo e redução de gastos significativos, aumentando em muito a eficiência do projeto.
Importante destacar que tal mecanismo não exclui a possibilidade de se levar o conflito à arbitragem ou ao judiciário, pelo contrário, ele deve ser entendido como uma alternativa prévia à instauração do litígio. Nesse caso, as recomendações ou decisões dos disputes boards poderão ser usados como evidência para instruir eventual procedimento litigioso.
A previsão dos disputes boards como mecanismo preventivo de litígios pode representar, assim, a redução dos custos do contrato, o aumento do número de interessados nos projetos com o poder público, uma redução significativa nos custos do projeto e, consequentemente, mais e maiores investimentos em infraestrutura.
3.2 Mecanismos reativos
Os mecanismos reativos seriam acionados na hipótese de não se chegar a uma solução consensual para o inadimplemento do poder público. Analisamos neste item como soluções tradicionalmente utilizadas em contratos entre privados poderiam ser aplicadas na relação com
o ente público, bem como métodos alternativos de solução de conflitos, tais como arbitragem, mediação e conciliação.
3.2.1 Exceptio non adimpleti contractus
Em contratos do direito privado, quando uma das partes não cumpre com suas obrigações tempestivamente, a outra parte pode alegar a exceção do contrato não cumprido para não cumprir com suas obrigações também e cessar a execução do contrato.
No entanto, a exceção do contrato não cumprido - exceptio non adimpleti contractus –, comumente usada nos contratos do direito privado, não se aplicaria aos contratos de concessão comum quando o inadimplemento é da Administração.
Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx ensinava que “o princípio maior da continuidade do serviço público, (...) veda a paralisação da execução do contrato mesmo diante da omissão ou atraso da Administração no cumprimento das prestações a seu cargo.”.181.
Esse entendimento foi incorporado ao ordenamento jurídico através do art. 39 da Lei de Concessões, que determina que o contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial especialmente intentada para esse fim; ressalvado que os serviços prestados pela concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em julgado.
Sendo assim, diante do inadimplemento do Poder Público, restaria ao particular pleitear uma indenização pelos prejuízos suportados e, no limite, a rescisão do contrato.
No entanto, esse entendimento vem sendo relativizado pela doutrina e pela jurisprudência em situações em que o inadimplemento da Administração cria um encargo extraordinário e insuportável para o particular.
Nesse sentido, Alexandre Aragão afirma que a situação não pode ser levada ao extremo de colocar em perigo a existência da concessionária, ainda que considere a decisão judicial requisito inafastável para a suspensão dos serviços:
181 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Malheiros. 19ª edição. São Paulo, 1994. p. 200.