A FORMA DO CONTRATO-PROMESSA
A FORMA DO CONTRATO-PROMESSA
– EXCEPÇÕES AO PRINCÍPIO DA EQUIPARAÇÃO
Xxxx Xxxxx Xxxxxx*
Sumário: 1. Noção. 2. A eficácia real da promessa. 3. Transmissão dos direitos e obrigações das partes. 4. Contrato-Promessa bilateral e unilateral. 5. O princípio da equiparação. As ex- cepções relativas à forma e à substância. 5.1 A forma do contrato-promessa. 5.1.1 O contrato-
-promessa bilateral assinado por uma das partes. 5.1.2 Os contratos-promessa previstos no art. 410.º n.º 3 do Cod. Civil. 5.1.3 A arguição da nulidade e o abuso de direito. 5.1.4 A renúncia à invocação da nulidade decorrente da inobservância das formalidades previstas no art. 410.º n.º 3. 5.2 As normas não extensivas ao contrato-promessa.
1. Noção
O contrato-promessa está definido no Código Civil como sendo «a con- venção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato» (art. 410.º n.º 1 do Cód. Civil)1. O contrato objecto do contrato-promessa, e que as partes se obrigam a realizar, denomina-se por contrato prometido (por exemplo, compra e venda, arrendamento, trespasse, cessão de quotas, etc.). Daqui decorre que a prestação devida no contrato-promessa traduz-se numa prestação de facto positivo consistente na emissão de uma declaração de vontade negocial destinada a celebrar um outro contrato, denominado por contrato prometido. A título de exemplo, num contrato-promessa de com- pra e venda as partes obrigam-se a realizar no futuro o prometido contrato de compra e venda, respectivamente, como comprador e como xxxxxxxx0.
* Assistente do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto (ISCAP/IPP). Ad- vogado.
1 Todas as disposições legais referidas sem menção expressa ao respectivo diploma legal per- tencem ao Código Civil.
2 Xxxxxxxxx XXXXXXX XXXXX in “Contrato-Promessa – Uma Síntese do Regime Vigente”, pág. 12, 9.ª ed., 2007, nota de rodapé n.º 4, não se mostrar impensável «nem destituído de interesse, que possa concluir-se um contrato-promessa cujo objecto seja também um contrato-promessa».
Estamos em face de um instituto de enorme importância prática e relevância social, sendo muito variadas as razões que, frequentemente, estão na base da sua utilização. Através do contrato-promessa preten- dem as partes assegurar a celebração do contrato prometido quando existe algum obstáculo, material ou jurídico, que impede a sua imediata realização. Assim sucede quando, a título de exemplo, uma das partes não dispõe, de imediato, das importâncias necessárias para celebrar o contrato prometido; ou quando o contrato prometido ainda não pode ser celebrado por se tratar de coisa futura, ou por não ser possível, des- de logo, cumprir determinadas formalidades legalmente impostas, pre- tendo, porém, as partes assegurar a sua celebração; mutatis mutandis quando se torna necessário obter o consentimento de terceiro. Nestes casos (como noutros) o contrato-promessa surge como o instrumento natural destinado a assegurar às partes a posterior celebração do con- trato pretendido realizar, isto é, o contrato prometido.
O contrato-promessa não se confunde com meros actos de negocia- ção que integram o denominado “iter negotii”. É que estes actos, embora possuindo relevância jurídica – podendo inclusivamente desencadear responsabilidade pré-contratual –, limitam-se a integrar o processo for- mativo dos negócios jurídicos, estando, porém, desprovidos de eficácia contratual. Diversamente, o contrato-promessa tem eficácia “inter par- tes” pois através dele as partes (frequentemente designadas por promi- tentes) ficam vinculadas à realização do contrato prometido. Ademais, e com vista a evitar posteriores negociações, deve o contrato-promessa definir, desde logo, o conteúdo do contrato prometido.
O contrato-promessa encontra a sua disciplina nuclear nos arti- gos 410.º a 413.º, 441.º, 442.º, 755.º n.º1 al. f) e 830.º do Cód. Civil. Algumas destas disposições legais já não mantêm a sua redacção originária em virtude de terem sido objecto de diversas alterações le- gislativas. Com efeito, no ano de 1980, o legislador alterou de modo substancial a disciplina do contrato-promessa3. Esta reforma legisla- tiva não teve uma longa vida, porquanto passados 6 anos o legislador
3 Vide Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho.
realizou nova intervenção legislativa4. Já recentemente5, o legislador realizou nova intervenção legislativa, embora de menor alcance do que as anteriores6.
2. A Eficácia Real da Promessa
Como é consabido, o contrato-promessa, como regra geral, apenas produz efeitos “inter partes” (art. 406.º). Admite, porém, o art. 413.º que a partes atribuam eficácia real «à promessa de transmissão ou consti- tuição de direitos reais sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a regis- to». Com a atribuição de eficácia real ao contrato-promessa este passa a ter eficácia “erga omnes” própria dos direitos reais, pelo que surge um direito de crédito dotado de eficácia real, e, nessa medida, oponível a terceiros (art. 406.º n.º 2). Deste modo serão ineficazes todos os actos de disposição ou oneração referentes ao bem objecto do contrato pro- metido, desde que não estejam registados antes do contrato-promessa. Daqui resulta que a posterior alienação do bem prometido vender não afasta a possibilidade do promitente fiel recorrer à execução específica do contrato-promessa (art. 830.º) e, dessa forma, obter uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do promitente faltoso. Estando o contrato-promessa dotado de eficácia real é sempre possí- vel o recurso à execução específica, sendo nula a clausula expressa ou tácita (existência de sinal ou clausula penal) que pretenda afastá-la.
Dispõe o art. 413.º sobre os requisitos do contrato promessa do- tado de eficácia real. De acordo com a referida disposição legal, para que um contrato-promessa goze de eficácia real torna-se necessário:
a) que haja uma declaração expressa nesse sentido (art. 413.º n.º 1);
b) que a promessa conste de escritura pública ou de documento particular autenticado; todavia, caso a lei não exija forma tão solene para o contrato prometido, torna-se suficiente a existên-
4 Vide Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro.
5 Vide Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.
6 No âmbito da Insolvência vide art. 106.º do Código da Insolvência e da Recuperação das Em- presas; no que toca ao contrato-promessa de transmissão de direitos reais de habitação peri- ódica vide arts. 17.º a 19.º do Decreto-Lei 275/93, de 5 de Agosto.
cia de documento particular com o reconhecimento da assina- tura da parte que se vincula ou de ambas (art. 413.º n.º 2)7;
c) que o contrato-promessa seja inscrito no registo (art. 413.º n.º 1); só após a inscrição no registo do contrato-promessa este adquire eficácia real.
Destarte, ainda que estejam respeitados os requisitos referidos nas alíneas a) e b) supra, mas não se encontre o contrato-promessa inscrito no registo, gozará o contrato-promessa de eficácia meramen- te obrigacional.
3. Transmissão dos Direitos e Obrigações das Partes
Resulta do art. 412.º que o complexo de direitos e obrigações que integram o contrato-promessa são, em princípio transmissíveis por morte ou por acto entre vivos. No que concerne à transmissão por mor- te do promitente aplicam-se as regras dos arts. 2024.º e seguintes8. Vale dizer, se A e B celebram um contrato-promessa de compra e ven- da de um edifício, através do qual A promete vender a B que reciproca- mente promete comprar o referido edifício, e se A morrer sucedendo-
-lhe, por ex., o cônjuge e um filho (C e D), transmitir-se-á para estes a posição de A, pelo que poderão exercer os direitos de que aquele era titular, assim como podem ser forçados a cumprir as obrigações do “de cujus” (isolada ou conjuntamente conforme o resultado da sucessão).
Já no que toca à transmissão por acto entre vivos aplicar-se-ão as regras da cessão da posição contratual (art. 424.º).
Todavia, os direitos e obrigações emergentes do contrato-promes-
7 Por força do Decreto-Lei n.º 250/96, de 24 de Dezembro, foram abolidos os reconhecimentos notariais feitos por semelhança e sem menções especiais relativas aos signatários. Dispõe o art. 2.º que «a exigência em disposição legal de reconhecimento por semelhança ou sem determinação de espécie considera-se substituída pela indicação, feita pelo signatário, do nú- mero, data e entidade emitente do respectivo bilhete de identidade ou documento equivalente emitido pela autoridade competente de um dos países da União Europeia ou do passaporte». 8 Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/06/2013, in xxx.xxxx.xx (Proc. 360/09.8TCGMR.G1): «A morte do promitente vendedor não faz caducar o contrato promessa, pois os direitos e obrigações que resultam desse contrato, que não sejam exclusivamente pes- soais, transmitem-se aos sucessores” (artº 412º, nº1 CC)».
sa de natureza exclusivamente pessoais não são transmissíveis. Des- te modo, caso o contrato-promessa tenha para um ou para ambos os promitentes natureza “intuitu personae” não serão transmissíveis os respectivos direitos e obrigações. Impede assim a lei a transmissão da posição contratual quando o contrato-promessa ser revele absoluta- mente indissociável da pessoa dos promitentes.
4. Contrato-promessa bilateral e unilateral
O Código Civil admite a existência e distingue “lado a lado” o con- trato promessa bilateral (ou sinalagmático) do contrato-promessa uni- lateral (não sinalagmático). No contrato promessa bilateral ambas as partes se vinculam à celebração do contrato prometido. Por seu turno, no contrato-promessa unilateral apenas uma das partes se vincula à celebração do contrato prometido, ficando a contraparte livre de cele- brar ou não este último contrato. Fica, no entanto, o promissário titular de um direito de crédito dirigido à celebração do contrato prometido. Se não for pelas partes fixado o prazo dentro do qual o vínculo é eficaz pode o tribunal, a requerimento do promitente, fixar ao promissário um prazo para o exercício daquele seu direito, sob pena de caducidade do mesmo (cfr. art. 411.º do Cód. Civil).
Com respeito às promessas unilaterais importa referir a denomina- das promessas unilaterais remuneradas9. Tratam-se de contratos em que apesar de só uma das partes se obrigar à celebração do prometido contrato, o promissário se obriga à realização de uma prestação.
Será o caso de só o promitente vendedor se vincular à celebra- ção do contrato prometido, ficando o promissário livre de celebrar, ou não, este último contrato, mas em que as partes convencionam uma prestação (em regra, uma importância pecuniária) que o promissário entregará ao promitente, para a hipótese de optar por não firmar o pro- metido contrato.
Não existem dúvidas quanto ao carácter oneroso deste tipo de con-
9 Xxxx XXXXXXX XXXXX in “Contrato-Promessa” pág. 41. Sobre esta temática também XXXXXX XX XXXXX, in Sinal e Contrato-Promessa, pág. 35 e seguintes, 13.ª edição, 2010, Almedina.
tratos, pois o promitente ao imobilizar o bem prometido vender não o faz com a intenção de proporcionar uma liberalidade ao promissário, mas antes com o intuito de fixar uma contrapartida pelo direito con- cedido a este último. O mesmo já não se dirá quanto à sua natureza sinalagmática. Com efeito, no contrato-promessa bilateral (sinalagmá- tico) sobre ambas as partes incidem obrigações de idêntica natureza unidas por um vínculo de reciprocidade, na medida em que ambas as partes se vinculam à celebração do prometido contrato. Estaremos aqui em face de um sinalagma perfeito ou de primeiro grau. Porém, nos contratos-promessa remunerados a obrigação que recai sobre o pro- missário não se traduz na celebração do contrato prometido mas, em regra, no pagamento de um preço pela imobilização do bem objecto do contrato prometido durante o prazo acordado. Daí que a doutrina venha apelidando esta categoria de contratos como sendo contratos de «si- nalagmaticidade imperfeita e de segundo grau»10, pois a obrigação de pagamento do preço pela imobilização não surge como correspectiva da obrigação de vender mas sim como correspectiva da imobilização do bem pertencente ao promitente pelo prazo estabelecido11.
O denominado “preço de imobilização” não se confunde com a clausula penal, pois o accionamento desta, independentemente da sua modalidade, pressupõe a existência de uma obrigação e o seu incumprimento. Diversamente, na promessa unilateral o promissário não se obriga a celebrar qualquer contrato, mantendo intacta a sua li- berdade de querer, ou não, celebrar o contrato definitivo. Daí que o pa- gamento do “preço de imobilização” não pressuponha o incumprimen- to imputável de uma obrigação mas antes o exercício de um direito.
5. O princípio da equiparação. As excepções relativas à forma e à substância
Preceitua o art. 410.º n.º 1 que à promessa de contratar «são apli-
10 Nesse sentido XXXXXX XX XXXXX, in Sinal e Contrato-Promessa, pág. 39.
11 Sobre a terminologia para qualificar a obrigação do promissário, XXXXXX XX XXXXX adopta as expressões “preço da promessa” ou “preço de imobilização” in Sinal e Contrato-Promessa, págs. 39 e 40.
cáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excep- tuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se de- vam considerar extensivas ao contrato-promessa». Consagra, assim, a referida disposição legal o princípio da equiparação ou princípio da correspondência, embora atenuado por duas excepções. Vale isto por dizer que, quanto aos requisitos e efeitos, são aplicáveis ao contrato- promessa quer as normas que disciplinam os contratos em geral, quer as normas que consagram a regulamentação específica do contrato prometido. Assim, serão aplicáveis ao contrato-promessa as normas sobre a capacidade das partes, sobre os vícios redibitórios ou sobre os requisitos do objecto (art. 280.º), sobre o incumprimento, ou as nor- mas que imponham determinadas proibições de aquisição no âmbito do contrato prometido.
Como vai dito, ao princípio da equiparação abre a lei duas rele- vantes excepções, a saber: não se aplicam ao contrato-promessa as normas relativas à forma do contrato prometido bem como as normas que, pela sua razão de ser, não se lhe devam considerar extensivas.
Xxxxxxx, então, cada uma das excepções.
5.1 A Forma do Contrato-Promessa
Encontrando-nos em face de uma das excepções ao princípio da equiparação, não se aplicam ao contrato-promessa as normas que disciplinam a forma do contrato prometido. Cabe, pois, questionar so- bre a forma que o contrato-promessa deverá revestir.
Como regime geral vigora para o contrato-promessa o princípio da liberdade de forma (art. 219.º), o que vale por dizer estarmos em face de um contrato consensual (por exemplo, o contrato-promessa de compra e venda de uma jóia ou de um quadro). A este regime, abre, porém, a lei duas excepções previstas nos ns.º 2 e 3 do art. 410.º. De- brucemo-nos sobre cada uma delas. Dispõe o n.º 2 do art. 410.º que «a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de do- cumento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral». Daqui decorre que
caso a lei exija para o contrato prometido a necessidade do mesmo revestir a forma escrita, o respectivo contrato promessa deverá ser, igualmente, reduzido a escrito e conter a assinatura de ambas as par- tes ou só de uma delas consoante ambas se vinculem à celebração do contrato prometido (promessa bilateral) ou apenas uma das partes se vincule à sua celebração (promessa unilateral). Quer isto significar que, no caso de promessa unilateral, apenas será necessário a assi- natura do promitente sendo suficiente, do lado do promissário, uma simples manifestação de vontade informal. Vale dizer, deve assinar o contrato-promessa quem seja, de facto, promitente. Trata-se de uma formalidade “ad substanciam” pelo que a sua inobservância acarreta- rá, em princípio, a nulidade do contrato-promessa (art. 220.º).12
Quanto à forma do contrato-promessa unilateral remunerado tem a doutrina pugnado pela necessidade, apenas, da assinatura do promi- tente vigorando quanto ao promissário o princípio da liberdade de forma.
5.1.1 O Contrato-Promessa bilateral apenas assinado por uma das partes Tem sido largamente debatida quer pela doutrina quer pela juris- prudência a questão da validade do contrato-promessa bilateral redu- zido a escrito mas apenas assinado por um dos promitentes, em regra apenas assinado pelo promitente-vendedor. Doutrina e jurisprudência acordam, de forma unânime, na nulidade do contrato-promessa por inobservância da forma legal (art. 220.º). Porém, no que tange a sa- ber se se verifica uma nulidade total ou parcial do contrato-promessa, duas soluções, colhidas dos institutos consagrados na parte geral do Código Civil, têm sido adiantadas. Parte substancial da doutrina pugna pela aplicação a esta temática do instrumento da redução do negócio jurídico (art. 292.º)13. Não falta, porém, quem sustente a aplicação do
12 Vide, nesse sentido, XXXXXX XX XXXXX, in Sinal e Contrato-Promessa, pág. 48.
13 A favor da aplicação do instituto da redução pronunciaram-se XXXXXXX XXXXX, ob. cit., págs. 26 a 32; XXXXXX XX XXXXX, in Sinal e Contrato-Promessa, pág. 50 e segts.; MENEZES LEITÃO in Direito das Obrigações, 8.ª edição, Almedina, pág. 224-225; GRAVATO MORAIS in Contrato-
-Promessa em Geral – Contratos-Promessa em Especial, 2009, Almedina, pág. 51-52, XXXXXXX XX XXXXX in Direito das Obrigações, 1987, Vol. I, pág. 257;
instituto da conversão ao contrato-promessa sinalagmático tão só as- sinado por um dos contraentes14. Os mecanismos das reduções ou da conversões são, como é consabido, distintos.
O instrumento da redução visa o aproveitamento do negócio jurídi- co, depois de expurgada a parte atingida pela invalidade. Destarte, no caso de contrato-promessa bilateral assinado apenas por um dos con- traentes, o negócio restringe-se a um contrato-promessa unilateral. To- davia, resulta da segunda parte do art. 292.º que a invalidade total se produzirá quando o contraente que xxxxx tenha interesse demonstre que o negócio «não teria sido concluído sem a parte viciada». Assim, o contraente interessado na invalidade total do contrato-promessa tem o ónus de alegação e prova dos factos demonstrativos que o mesmo não teria sido celebrado se não fosse bilateral. No caso de um contrato-
-promessa de compra e venda assinado só pelo promitente-vendedor, sobre este recai o ónus de alegação e prova de que não teria celebra- do o contrato e assumido a inerente obrigação de vender sem a cor- respectiva obrigação de comprar por banda da contraparte. Só nesse caso, o contrato-promessa será totalmente inválido. Por seu turno, o contraente interessado no aproveitamento do contrato-promessa, em- bora restringido a um contrato-promessa unilateral, encontra-se deso- nerado de provar que a vontade hipotética das partes seria a de man- ter o contrato-promessa ainda que limitado ao esquema de promessa unilateral, pois tem a seu favor uma presunção legal (art. 350.º n.º 1).
A aplicação do instituto da conversão (art. 293.º) implica, ao con- trário da redução, que se considere que a falta de assinatura de um dos contraentes origina a nulidade de todo o contrato-promessa. Exis- te, porém, uma diferença assinalável entre os dois institutos. No caso da redução, e como vai referido, o contrato-promessa mantém-se, ainda que parcialmente, válido, salvo se o contraente interessado na invalidade total provar que não o teria celebrado sem a parte inválida.
14 A favor da aplicação do instituto da conversão veja-se XXXXXX XXXXXX in Manuel dos Contra- tos, 2002, Coimbra Editora, pág. 213-214; XXXXXXX XXXXXX in Das Obrigações em Geral, 20.ª edição, 2000, Almedina, pág. 326.
No caso da conversão, sendo o contrato-promessa assinado apenas por um dos contraentes nulo, recairá sobre o contraente interessado na manutenção do contrato o ónus de prova de que a vontade hipotéti- ca de ambas as partes era a do aproveitamento do contrato-promessa convertido numa promessa unilateral.
De salientar que em qualquer uma das situações se impõe o recur- so aos ditames da boa-fé, de acordo com as regras da integração dos negócios jurídicos (art. 239.º).
Sobre esta temática já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça através do Assento de 29/11/198915, o qual firmou a seguinte doutrina:
«No domínio do texto primitivo do n.º 2 do artigo 410.º do Código Civil vigente, o contrato-promessa bilateral de compra e venda de imó- vel exarado em documento assinado apenas por um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como contrato-promessa unila- teral, desde que essa tivesse sido a vontade das partes».
O Assento não qualificou juridicamente a sua fundamentação, não deixando de modo claro e inequívoco a opção pelo instituto da redu- ção ou da conversão.
Posteriormente o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 25/03/1993, adoptou de forma clara a tese da redução. Do sumário deste acórdão consta o seguinte:
«I – O contrato-promessa bilateral de compra e venda, subscrito só por um dos promitentes, sofre de invalidade parcial, conduzin- do, em princípio à sua conservação quanto à declaração da parte que assinou o documento.
II – Será, porém, nulo, se o contraente que o subscreveu alegar e provar que o contrato não teria sido celebrado sem a parte viciada. III – O Assento de 29 de Novembro de 1989 tem de ser interpreta- do no sentido de consagrar a nulidade parcial do negócio e, por- tanto, a sua redução.»16
15 Publicado no Diário da República de 23/02/1990 I-Série-A.
16 In Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ – Ano I, T.II, pág. 39. No mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto de 18/12/1995 in Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, T.V, pág. 233 e Acórdão da Relação de Lisboa de 06/12/2007 in xxx.xxxx.xx (Proc. 8937/2006-2).
Todavia, esta temática não está encerrada na jurisprudência já que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 25/11/2003, adop- ta, de forma lapidar, a tese da conversão do contrato-promessa. Xxxx assim o sumário do referido acórdão:
«I – O Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/1989, presentemente com o valor de acórdão uniformizador de jurispru- dência, consagra a tese da nulidade total do contrato-promessa de compra e venda, sem prejuízo da sua conversão em promessa unilateral, nos termos gerais do art. 293.º do Cód. Civil.
II – Os pressupostos da conversão assentam na constatação de um negócio jurídico ferido de vícios que ponham em causa a sua eficácia e que, no caso, é a nulidade formal, por falta de assinatu- ra da promitente vendedora.
III – Os requisitos da conversão são objectivos e subjectivos, tra- duzindo-se os primeiros na substância e na forma e repousando os segundos na vontade hipotética das partes»17
Em nossa opinião, e tendo em conta o elemento sistemático da interpretação da lei, propendemos para a aplicação do instituto da re- dução. Desde logo, e tendo em conta a unidade do sistema jurídico, assiste-se hoje a uma preocupação por parte do legislador em tutelar os interesses do consumidor. Ora, a prática demonstra-nos à saciedade que uma quantidade apreciável de contratos-promessa têm por objecto mediato a compra de unidades habitacionais a contraentes profissio- nais, por via de regra empresas especializadas. De forma a melhor tute- lar os interesses do adquirente/consumidor, compreende-se deva recair sobre o promitente-vendedor, cada vez mais um profissional, o ónus de prova de que a vontade hipotética das partes seria a da não celebração do contrato-promessa sem a vinculação de ambos os contraentes.
Não desconhecemos que não será difícil ao promitente-vendedor, dada a natureza bilateral do contrato pretendido celebrar por ambas as partes, demonstrar que não pretenderia ficar vinculado à celebração do
17 In Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ – Ano XI, T.III, pág. 161.
contrato prometido sem a correspectiva vinculação da contraparte. Neste caso, terá a contraparte que alegar e provar – o que poderá ser difícil – que o promitente-vendedor teria igualmente celebrado o contrato-promessa, mesmo sendo este unilateral, se as partes tivessem previsto o vício.
Porém, mesmo que a vontade do promitente-vendedor seja contrá- ria à redução, pode esta ser imposta em consequência da boa-fé (art. 239.º). Com efeito, o promitente-vendedor poderá não ter qualquer in- teresse legítimo em invocar a nulidade total do contrato-promessa, po- dendo inclusivamente a arguição da nulidade revelar-se uma forma sub-
-reptícia de se desvincular ao contrato, restituindo apenas, caso tenha havido, o sinal em singelo (art. 289). Nestes casos, justifica-se, por via da aplicação do princípio da boa fé na execução dos contratos a redução imperativa do contrato para protecção do promitente-comprador, o qual poderá recorrer à execução específica (art. 830.º) ou à indemnização correspondente ao dobro do sinal ou aumento do valor da coisa prevista no art. 442.º n.º 2 desde que verificados os respectivos pressupostos.
Resta, apenas, analisar esta temática do ângulo do promitente- comprador que, não tendo assinado o contrato-promessa, não tem (ou perdeu) o interesse na conclusão do contrato definitivo.
Parece-nos que lhe assiste, nos termos gerais do art. 286.º, o direi- to de arguir a nulidade do contrato-promessa com fundamento na falta da sua assinatura. Só assim não será, ficando-lhe vedado o direito de arguir a nulidade, se se verificarem os pressupostos do abuso do direi- to, desde logo na tipologia do venire contra factum proprium.
5.1.2 Os Contratos-Promessa previstos no art. 410.º n.º 3
No que tange aos contratos-promessa relativos à celebração de contratos onerosos de transmissão ou de constituição de direitos re- ais sobre edifícios, ou suas fracções autónomas, construídos, em fase de construção ou apenas projectados, o art. 410.º n.º 3 preceitua que o documento escrito contenha «o reconhecimento presencial das as- sinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licen- ça de utilização ou de construção».
Consagra, deste modo, o art. 410.º n.º 3 uma disciplina específica relativa à forma dos contratos-promessa a que se dirige, a saber:
- devem ser reduzidas a documento escrito;
- devem conter o reconhecimento presencial da assinatura do pro- mitente ou promitentes;
- devem conter a certificação, pela entidade que realiza aquele re- conhecimento das assinaturas, da existência da licença de utilização ou construção.
Importa referir que a norma constante do art. 38.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006 de 29 de Março, atribuiu às câmaras de comércio e in- dústria, aos conservadores, aos oficiais de registo, aos advogados e aos solicitadores, poderes para fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar docu- mentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de docu- mentos nos termos prescritos na lei notarial. Tais actos, que a doutrina mais recente denomina de “titulação para-notarial” uma vez que se trata de actos que não são praticados por notário, conferem ao docu- mento a mesma força probatória que teria se estes actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.
Compreende-se a maior solenidade imposta aos referidos contra- tos-promessa tendo em conta a sua relevância social e dos respecti- vos prometidos contratos. Com a certificação da existência da licença de utilização (para o caso do edifício já se encontrar construído), ou da licença de construção (para o caso do edifício ainda não se encon- trar concluído), pretendeu o legislador proteger o adquirente (evitan- do que este venha a adquirir uma construção clandestina), bem como acessoriamente criar mais uma medida de combate à construção clandestina, tutelando deste modo o interesse público quanto à proi- bição de construção e alienação de edifícios não licenciados pelas competentes autoridades administrativas18.
18 Importa referir que, no que tange aos contratos definitivos, o Decreto-Lei n.º 281/99 de 26 de Julho impõe a apresentação da licença de utilização nos contratos que envolvam a trans- missão do direito de propriedade de prédios urbanos ou fracções autónomas.
Para o caso dos promitentes não observarem a forma imposta – isto é, redução a documento escrito – o contrato-promessa será nulo por inobservância da forma legalmente imposta (art. 220.º). Caso sejam inobservadas as formalidades correspondentes à falta de re- conhecimento presencial e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da licença de utilização ou de construção, estabelece a segunda parte do art. 410.º n.º 3 a seguinte disciplina: «contudo, o contraente que promete transmitir ou consti- tuir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte».
A lei não estabeleceu a sanção decorrente da inobservância das formalidades legalmente prescritas, apenas referindo que o promi- tente que promete transmitir (ou constituir) o direito só pode invocar a omissão destas formalidades quando tal se deva a culpa da outra parte. Compreende-se a solução legal se atentarmos que recai sobre o promitente transmitente, em regra o promitente-vendedor, o dever de dar cumprimento aos requisitos prescritos na referida disposição le- gal. Estando em causa a inobservância de requisitos formais, a sanção correspondente será a nulidade do contrato-promessa (cfr. art. 220.º) o que se ajusta ao fim visado por este normativo. Com efeito, ratio legis do formalismo prescrito no art. 410.º n.º 3 visou, em primeira linha, proteger o promitente adquirente não profissional de unidades habita- cionais, tendo em conta a natureza socialmente sensível deste tipo de contratos, evitando que, sem o seu conhecimento, o promitente-com- prador celebre um contrato-promessa que tenha por objecto mediato uma construção clandestina. Daí o apertado controlo consistente na exigibilidade do reconhecimento presencial e na exibição da respecti- va licença de construção ou utilização.
Pretende assim a norma tutelar, num primeiro momento, o inte- resse do promitente-comprador pelo que a nulidade consagrada de- verá ajustar-se a esse escopo. Com esse propósito tem a doutrina e a jurisprudência qualificado a referida nulidade como mista ou atípica, o que representa um desvio do regime-comum consagrado no art. 286.º. Com efeito, e de acordo com o art. 410.º n.º3, em princípio a nulidade
apenas pode ser invocada, nos termos gerais, pelo promitente adqui- rente. O promitente transmitente apenas pode invocar a nulidade do contrato-promessa quando a omissão dos aludidos requisitos tenha sido culposamente causada – seja através de dolo ou de simples ne- gligência – pelo beneficiário da promessa de transmissão ou de cons- tituição do direito real. Quanto a este, parece evidente não poder arguir a nulidade quando a falta de observância dos requisitos de forma lhe sejam imputáveis, pois tal arguição representaria um claro abuso de direito na tipologia “venire contra factum proprium”.
Poderá questionar-se se, sendo a nulidade aqui prevista uma nu- lidade atípica, pode a mesma ser invocada por terceiros interessados ou se a mesma é do conhecimento oficioso (cfr. art. 286.º). Actualmen- te, é pacificamente aceite o entendimento segundo o qual não pode a referida nulidade ser arguida por terceiros. Mutatis mutandis quanto ao seu conhecimento oficioso, sendo hoje aceite não ser a nulidade aqui prevista do conhecimento oficioso.
No que tange à arguição da nulidade por terceiros interessados pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, através do Assento n.º 15/94, de 28/06/199419, o qual firmou a seguinte doutrina:
«No domínio do n.º3 do artigo 410.º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser invocada por terceiros».
Deste modo, ficou arredada a possibilidade de arguição da nulida- de por terceiros como consequência da inobservância dos requisitos de forma especiais previstos na citada disposição legal.
No que concerne ao conhecimento oficioso da mencionada nuli- dade, foi o mesmo objecto do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/95, de 01/02/199520 o qual fixou a seguinte orientação:
«No domínio do n.º 3 do art. 410.º do Código Civil (redacção do Decre- to-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho), a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal».
19 Publicado no Diário da República de 12/10/1994, I-Série-A.
20 Publicado no Diário da República de 22/04/1995, I-Série-A.
Ficou destarte, também, excluída a possibilidade de conhecimento oficioso da nulidade como consequência da não observância de qual- quer das formalidades mencionadas na referida disposição legal21.
Estamos, assim, em face da nulidade, ainda que atípica, enquan- to modalidade de invalidade dos negócios jurídicos. Deste modo, e ao contrário do que sucede com a anulabilidade, a nulidade é insanável pelo decurso do prazo, pelo que pode ser arguida a todo o tempo.
Atendendo à natureza atípica da nulidade aqui prevista, deverá a mesma ser sanável no caso da licença de utilização ou de construção ser posteriormente exibida, quer porque foi posteriormente emitida, quer porque já existindo aquando da celebração do contrato-promes- sa, não foi, porém, exibida e certificada. Nestes casos, não existe para o promitente transmissário o risco de adquirir um edifício (ou fracção autónoma) clandestino, pelo que deixa de se justificar a aplicação do meio de tutela do direito consistente na nulidade do contrato-promes- sa com fundamento na preterição desta formalidade.
5.1.3 A arguição da nulidade e o abuso de direito
Apesar de estarmos em face de uma nulidade (ainda que atípica), importa apreciar as consequências decorrentes do comportamento do promitente-comprador posterior à celebração do contrato-promes- sa, designadamente quando este, não pondo em causa a validade do contrato, actua de forma a criar na contraparte uma fundada confiança de que o contrato-promessa será integralmente cumprido.
Julgamos ser necessário distinguir os dois tipos de formalidades previstos no n.º 3 do art. 410.º.
Com efeito, e reportando-nos à falta do reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes, a conduta do promitente-comprador seguindo um curso que revele objectivamente manter o interesse no cumprimento do contrato-promessa e na consequente celebração do
21 Estamos em face de uma nulidade, na medida em que é insanável pelo decurso do tempo, ainda que não seja do conhecimento oficioso nem susceptível de ser arguida por qualquer terceiro interessado.
contrato prometido, poderá constituir uma situação de abuso de direi- to, na tipologia “venire contra factum proprium”, caso decida mais tar- de arguir a nulidade do contrato com fundamento na omissão daquela formalidade - reconhecimento presencial das assinaturas.
Neste cenário, entendemos que se a conduta do promitente-com- prador gerou uma fundada confiança no promitente-vendedor, incul- cando-lhe no espírito que aceitava o contrato-promessa como válido, a arguição da nulidade do contrato pelo promitente-comprador é abusiva devendo ser impedida pela norma que proíbe o abuso do direito (art. 334.º).
É essa a orientação dominante na jurisprudência de que se des- taca, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/02/2010, segundo o qual «é ilegítimo o exercício do direito de arguição de nulidade prevista no nº 3 do artigo 410º do Código Civil, quando o promitente comprador criou no promitente vendedor a con- vicção de que o contrato definitivo seria outorgado, designadamente reforçando o sinal passado, e só veio invocar a nulidade quando já estava marcada data para a realização da escritura pública»22.
Esta doutrina tem vindo a ser acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, o qual, no seu acórdão de 29/11/2011, considerou que «co- mete abuso do direito, sob a forma de venire contra factum proprium, a promitente-compradora que ao longo de vários meses, até à propo- situra da causa, agiu sempre como se o contrato fosse inteiramente válido, jamais dando a entender à contraparte, fosse por que modo fosse, que iria servir-se da irregularidade formal do negócio para, com base nela, obter a sua anulação»23.
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Guima- rães, no seu acórdão de 17/12/2013 ao sustentar não poder «deixar de se considerar que, não obstante a nulidade do contrato-promessa, a conduta do autor, seguindo um determinado percurso, mostrando-
-se interessado no contrato e no seu cumprimento, no cumprimento
22 In xxx.xxxx.xx (Proc. 3958/08.8TBSXL.L1-6).
23 In xxx.xxxx.xx (Proc. 2632/08.0TVLSB.L1).
das obrigações que sobre si impendiam, de celebrar a escritura de compra e venda das frações e só decorridos mais de quatro anos após a assinatura do contrato-promessa, vem invocar a existência de irre- gularidades, constitui, claramente, uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que não pode deixar de se concordar que atuou com abuso de direito (artigo 334º) e, como tal, terá de improceder a questão da invocada nulidade do contrato-promessa que, assim, se terá de considerar convalidado»24. Já no que concerne à falta de certificação da licença de constru-
ção ou de utilização, adoptamos uma posição distinta.
Esta exigência visa tutelar os interesses dos promitentes-compra- dores numa zona socialmente sensível, protegendo o contraente mais fraco na aquisição de habitação própria, estando por isso em causa a protecção do consumidor e, acessoriamente, o próprio interesse pú- blico no combate a construção clandestina.
Estamos, assim, em face de normas de interesse e ordem públi- ca relacionadas com o licenciamento administrativo dos edifícios ou fracções autónomas, pelo que atendendo aos interesses subjacen- tes a esta formalidade não deverá o promitente-comprador ficar im- pedido de arguir a nulidade do contrato-promessa com fundamento na sua omissão. Outro entendimento, que considerasse aplicável o instituto do abuso de direito, implicaria convalidar um contrato-pro- messa insusceptível de ser cumprido, porquanto o art. 1.º do Decreto-
-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho, tendo natureza de norma imperativa, não permite a celebração do contrato prometido no caso de inexistir licença de utilização.
Aderimos, por essa razão, à doutrina firmada pelo Supremo Tribu- nal de Justiça, no seu acórdão de 13/05/2014, ao afirmar que «nos casos de nulidade decorrente de a prestação debitória ser (desde logo) ilegal, não existe qualquer actuação da parte susceptível de fa- zer desencadear o instituto do abuso de direito. A invalidade decorre da inobservância de normas legais de ordem pública, designadamen-
24 In xxx.xxxx.xx (Proc. 24/12.5TBAVV.G1).
te de ordenamento e estruturação do território nacional, visando a repressão da construção clandestina, sendo alheia a qualquer acção por banda da parte contratante»25.
5.1.4 A renúncia à invocação da nulidade decorrente da inobservân- cia das formalidades previstas no art. 410.º n.º 3
Assiste-se com frequência, aquando da celebração de contratos-
-promessa previstos no art. 410.º n.º 3, à introdução de uma cláusula segundo a qual os promitentes declaram prescindir do reconhecimen- to presencial das assinaturas e da certificação da licença de utiliza- ção (ou construção), renunciando ao direito de invocar a nulidade do contrato-promessa com fundamento na inobservância destas duas formalidades legais.
A jurisprudência e a doutrina têm-se revelado divergentes quanto à validade deste tipo de cláusulas.
Com efeito, alguma jurisprudência tem considerado que o direito de arguir a nulidade do contrato-promessa encontra-se na disponibili- dade das partes, pelo que se estas renunciaram ao direito de arguir a nulidade, não mais a podem invocar.
Nesse sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 23/03/2006, o qual firmou a seguinte doutrina quan- to ao reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes:
«Tratando-se de uma invalidade instituída em benefício das partes, portanto na sua disponibilidade, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes (ou apenas uma delas) renunciem, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocar a invalidade. Tal re- núncia é perfeitamente válida, tanto quanto é certo que o direito de pedir a anulação não se mostra abrangido pela disposição restritiva do artº 809º.»26
No mesmo sentido já se tinha pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 06/05/2004, o qual, referindo-se igual-
25 In xxx.xxxx.xx; (Proc. 5255/11.2TCLRS.L1.S1).
26 In xxx.xxxx.xx (Proc. 0630729).
mente à falta de reconhecimento presencial das assinaturas, conside- ra que «o direito dos autores de verem declarado nulo o contrato-pro- messa se encontra extinto, já que, tendo eles renunciado ao direito de anular, o não podem agora exercer. Não se nos afigura, por isso, necessário recorrer ao instituto do abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium (que, sem dúvida, sempre existiria) para considerar paralisado o respectivo direito.
Xxxxx, a nosso ver, terem inequivocamente as partes declarado que “prescindem mutuamente do reconhecimento das assinaturas em virtude do contrato ter sido outorgado na sua presença e renun- ciam à invocação desse facto” para que, agora, não possam os auto- res exercer o direito de pedir a declaração de invalidade do contrato, a que previamente renunciaram.»27
Em sentido inverso, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Jus- tiça no seu acórdão de 05/07/2007, segundo o qual «o não reco- nhecimento notarial das assinaturas acarreta a nulidade do contra- to, sendo irrelevante o facto de, previamente ao acto de assinatura do contrato, as partes, por mútuo acordo, dispensaram as referidas formalidades»28.
A mesma orientação foi acolhida pelo Supremo Tribunal de Jus- tiça no seu acórdão de 04/07/2013, ao afirmar que «Não obstante do contrato-promessa constar que se dispensa o reconhecimento das assinaturas, e que a nenhuma das partes outorgantes é lícito invocar qualquer nulidade, seja a que título for, designadamente daí adveniente, uma cláusula com este teor é nula por contrariar uma norma de interesse e ordem pública, que pretende defender os pro-
27 In xxx.xxxx.xx (Proc. 04B1291). No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/10/2012 (Proc. 7883/10.4TBVNG.P1) aqui se transcrevendo parte do seu sumário: III - Estando a nulidade decorrente da omissão das formalidades legais a que se refere o art. 410°, n° 3 do Cód. Civil na disponibilidade das partes, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes renunciem antecipadamente, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocá-la. IV - Se as partes declararam prescindir do reconhecimento presencial, deverá entender-se que pretenderam afastar toda e qualquer intervenção notarial na certifi- cação dos documentos que corporizam a licença de utilização.
28 In xxx.xxxx.xx. (Proc. n.º07B2027).
mitentes compradores – normalmente a parte mais fraca – contra a sua fraqueza negocial»29.
Na doutrina pronunciou-se XXXXXX XX XXXXX considerando ser nula
«a clausula pela qual promitente-comprador renuncia antecipada- mente ao direito de a invocar, para salvaguarda da ordem pública de protecção ou ordem pública social que ditou a norma legal, ou seja, para o proteger da sua própria fraqueza e inexperiência, ligeireza e inadvertência, na tomada de decisão temporã, em branco»30.
Para o Ilustre autor «a admitir-se a validade de cláusula pela qual o promitente-comprador renuncia antecipadamente ao direito de arguir a nulidade estaria aberta a porta para com a maior das facilidades os promitentes-vendedores incluírem nas promessas uma cláusula de estilo em que as partes declarariam prescindir das formalidades im- postas pelo art. 410.º, n.º 3, renunciando à invocação da respectiva omissão, e assim sabotar o sentido e fim de uma norma de protecção da parte mais fraca, o consumidor.31
GRAVATO MORAIS entende estarmos em face de dois tipos distintos de formalidades. Deste modo, e quanto ao facto dos promitentes pres-
29 In xxx.xxxx.xx. (Proc. n.º176/03.5TBRSD.P1S1). Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2010 (Proc. 3161/04.6TMSNT.L1.S1), firma idêntica doutrina, aqui se trans- crevendo o respectivo sumário: 1. Apesar de convalidada a nulidade de contrato promessa de compra e venda de imóvel emergente da falta de certificação notarial da licença de utilização, por se ter apurado que a mesma já existia à data da celebração do contrato, subsiste inteira- mente a outra causa da invalidade arguida pela parte interessada, decorrente da omissão de reconhecimento das assinaturas dos outorgantes.
2. Não resultando da matéria de facto apurada que tal omissão seja imputável ao promitente com- prador, nada obsta a que este se possa prevalecer da dita invalidade formal no confronto da so- ciedade imobiliária que figura como promitente vendedora, nos termos do nº3 do art.410º do CC;
3. Não pode generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de
– sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico – dependendo a subsistência do invocado abuso de direito da alegação e prova de ter ocorrido um particular e fundado «investimento de confian- ça» na estabilidade e definitividade do contrato promessa...
30 In Sinal e Contrato-Promessa cit.,, pág. 80.
31 In Sinal e Contrato-Promessa cit.,, pág. 80.
cindirem o reconhecimento presencial das suas assinaturas, renun- ciando ao direito de arguir a nulidade do contrato-promessa, considera
«que nada obsta a que tal aconteça», pois «trata-se de um direito que, atentos os interesses em jogo, se entende disponível»32.
Porém, no que concerne à convenção pela qual as partes prescin- dem a certificação da licença de construção ou de utilização, deste modo renunciando ao direito de arguir a nulidade do contrato-promes- sa, considera o ilustre autor33 que atendendo à «protecção prioritária conferida ao promitente-comprador, a admissibilidade de tal cláusula choca com o interesse da tutela da parte mais débil», pelo que «por esta via, facilmente se contorna a regra legal, com a complacência do mais fraco, podendo até abusar-se da sua posição precária».
Mais afirma o ilustre autor que «esta medida insere-se no domínio da protecção do consumidor, sendo que aí não se permite a renúncia a direitos, dada a natureza imperativa das disposições».
Concordamos com a doutrina firmada por GRAVATO MORAIS, tanto mais que recentemente se vem assistindo a um movimento legislati- vo que pugna pela desformalização dos negócios jurídicos.
Com efeito, se ambas as partes conscientemente prescindiram do reconhecimento presencial das suas assinaturas, terão renunciado ao direito de arguir a nulidade do contrato-promessa em consequência de tal omissão. Estamos no âmbito de direitos disponíveis, pelo que não se alcança que interesse juridicamente relevante poderá a lei preten- der acolher ao permitir ao promitente-comprador que livremente pres- cindiu do reconhecimento presencial das assinaturas surja, posterior- mente, a arguir a nulidade do contrato-promessa, precisamente com esse fundamento. Destarte, sendo esta formalidade estabelecida no interesse do promitente-comprador, encontrando-se, por isso, na sua disponibilidade, entendemos ser válida a renúncia antecipada ao direi- to de arguir a nulidade do contrato-promessa fundada na simples omis- são do reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes.
32 In Contrato-Promessa em Geral, cit., pág. 278.
33 In Contrato-Promessa em Geral, cit., pág. 279.
Porém, e no que respeita à convenção pela qual as partes prescin- dem da certificação da licença de construção ou utilização, conside- ramos já não ser a mesma legalmente admissível, assistindo ao pro- mitente-comprador o direito de arguir a nulidade do contrato (salvo se esta causa de invalidade se houver sanado). Como é consabido, esta formalidade visa em primeira linha proteger o promitente-comprador contra a aquisição de construções clandestinas (por exemplo, nos casos em que o promitente-vendedor lhe assegura que irá obter num curto espaço de tempo o licenciamento do prédio prometido vender) e, acessoriamente, actuar como medida destinada a tutelar o interes- se público no combate a construções clandestinas. Propendemos, por esta razão, para considerar nulo o contrato-promessa no qual ambas as partes convencionaram prescindir da certificação da licença de construção ou utilização, renunciando, em consequência, à invocação da nulidade decorrente da falta de certificação daquela licença.
Trata-se aqui de proteger a parte mais fraca, designadamente to- dos aqueles que recorrem à figura do contrato-promessa e, por falta de preparação ou por confiança nas falsas promessas do promiten- te-vendedor, ficam, posteriormente, impedidas de adquirir o prédio objecto do contrato prometido por falta de licença de utilização. Pois que o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho, contendo uma norma imperativa, proíbe que sejam celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova da existência da correspondente licença de utilização.
Nesta hipótese, e pelas razões aduzidas, entendemos ser inválida a convenção pela qual as partes renunciam ao direito de arguir a nuli- dade do contrato-promessa em consequência da falta de certificação da licença de construção ou utilização.
Vale isto por dizer que a omissão da formalidade prevista no n.º 3 do art. 410.º - certificação da licença de construção ou de utiliza- ção – acarreta, de acordo com o preceituado no art. 220.º a nulidade do contrato-promessa, a qual, em princípio e como vai acima referido, apenas poderá ser arguida pelo promitente comprador.
Nulidade que tem natureza retroactiva ficando os promitentes reciprocamente obrigados a restituir tudo o que prestaram durante a execução do contrato (art. 289.º).
5.2 As Normas Não Extensivas ao Contrato-Promessa
A segunda excepção ao princípio da equiparação reporta-se às normas do contrato prometido que, pela sua razão, não se devam con- siderar extensivas ao contrato-promessa (art. 410.º n.º1 parte final). Torna-se, assim, necessário atender à razão de ser da norma aplicável ao contrato prometido para determinar se a mesma é, ou não, aplicá- vel ao respectivo contrato-promessa. Assim, por exemplo, não serão aplicáveis ao contrato-promessa as normas relativas à transmissão da propriedade nos contratos de alienação (art. 879.º alínea a)). Com base neste critério será válido o contrato-promessa de compra e ven- da de coisa alheia (art. 892.º), bem como o contrato-promessa relativo à alienação de imóveis próprios ou comuns, quando vigore entre os cônjuges um dos regimes da comunhão, ainda que falte o consenti- mento de um dos cônjuges (art. 1682.º-A), ou o contrato-promessa de venda de coisa comum indivisa por um só dos comproprietários (art. 1408.º). Em ambos os casos o promitente não transmite a proprieda- de, apenas se obrigando a uma alienação em si mesma possível.
Porém, caso o promitente não adquira a coisa prometida vender ou não obtenha o consentimento necessário para celebrar o contrato definitivo, ocorrerá incumprimento de um contrato-promessa valida- mente celebrado por impossibilidade do mesmo. Quanto aos efeitos deste incumprimento haverá que apurar, com auxílio das normas da interpretação e integração (art. 236.º e 239.º) se o promitente alienan- te assumiu uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado. No primeiro caso, e desde que este demonstre que actuou de modo diligente com vista a obter o bem prometido vender ou a obter o con- sentimento necessário para a celebração do contrato prometido, não haverá incumprimento culposo do contrato-promessa, não estando obrigado, caso tenha havido sinal, a restituí-lo em dobro (art. 442.º n.º 2), mas apenas em singelo, assim como não haverá lugar à execução
específica (art. 830.º).
No caso do promitente alienante ter assumido uma obrigação de resultado, vinculando-se à celebração do prometido contrato, e tendo havido sinal, deverá restituir o mesmo em dobro (art. 442.º n.º 2), mas não será possível à contraparte recorrer à execução específica, na me- dida em que o contrato-promessa não produz quaisquer efeitos em relação a terceiros (art. 406.º n.º 2).
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