ALERTA SOBRE AS CRÍTICAS RECENTES AO PLC 29/2017
ALERTA SOBRE AS CRÍTICAS RECENTES AO PLC 29/2017
Entidades de grande respeito, como o Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e a Associação Brasileira de Gerência de Riscos (ABGR), estão sendo levadas a erro por alguns grupos de seguradores e resseguradores estrangeiros que têm medo de lei de contrato de seguro – tipo de lei comum no mundo civilizado. Estes oligopólios poderosos querem continuar livres para se esquivarem de responsabilidades no Brasil.
Porta-vozes da campanha dessas entidades de seguradoras e resseguradoras com capital estrangeiro divulgam NOTÍCIAS FALSAS sobre o Projeto de Lei de Contrato de Seguro brasileiro (PLC 29/2017), fazem interpretações enviesadas das suas normas e elogiam medidas do governo passado que criam uma ficção de paridade e de ampla negociação do contrato de seguro entre segurado e seguradora (Resolução CNSP 407/2021), afastando normas protetivas como a que impõe a interpretação mais favorável a quem não pôde redigir o contrato.
Esses proselitistas da falsa liberdade, que equiparam a ausência de regras à autonomia, tentam esconder o óbvio: quem escreve os seguros são as seguradoras e suas resseguradoras. Os segurados, no máximo, conseguem um arranjo menor, aqui ou ali, para evitar o descasamento absoluto entre o que precisam e o que lhes oferecem. Nenhum segurado consegue escrever as apólices. A essência de todo e qualquer contrato de seguro, massificado ou de grande risco, é a mesma, porque não existe operação de seguro sem padronização: os resseguradores e seguradores estabelecem e escrevem as apólices – caso contrário, não conseguem garantir. Os melhores corretores de seguro ajudam a evitar o divórcio completo para com as expectativas dos segurados, mas não conseguem reescrever as apólices nem no Brasil, nem nenhum lugar do mundo.
A respeito, seguem anexos os pareceres dos Professores Judith Martins-Costa e Xxxxxxxx Xxxxxxxxx sobre a Resolução CNSP 407/2021, juristas respeitados por todos e absolutamente desvinculados a qualquer interesse no setor de seguros.
Não há nem ficção de paridade, nem liberdade total para moldar o conteúdo da apólice mesmo nos regimes mais liberais de contrato de seguro, e mesmo nos chamados seguros de grandes riscos. Isso é invenção brasileira, importando de forma
descontextualizada as práticas europeias, onde a maioria dos países, como a Alemanha, a França e a Espanha, contam com leis de contrato de seguro muito mais protetivas ao segurado do que o PLC 29/2017.
Os defensores desse ultraliberalismo, que vem prejudicando as empresas e as pessoas seguradas no Brasil, informam falsamente que o PLC 29/2017 tem regra exigindo a autorização estatal prévia para as apólices de seguro. Isso é NOTÍCIA FALSA, entre as várias que serão respondidas em breve.
O Projeto de Lei, no art. 7º, determina que:
Art. 7º Só podem pactuar contratos de seguros sociedades que se encontrem devidamente autorizadas na forma da lei e que tenham elaborado e aprovado as condições contratuais e as respectivas notas técnicas e atuariais perante o órgão supervisor e fiscalizador de seguros.
Essa regra não é qualquer inovação do PLC 29/2017, e foi mantida na última revisão com anuência de entidades representativas do setor, como CNSeg e FENACOR. A crítica é dolosamente construída como se tratasse de um retrocesso arbitrário, não da forma como as coisas acontecem no mercado de seguros.
Nos seguros em geral, é obrigatório o registro PRÉVIO da apólice à celebração do contrato (art. 9º, Circular SUSEP 621/2021 – danos –; art. 2º, Circular SUSEP 667/2022 – pessoas). As críticas a esse modelo já são lugar comum: não há possibilidade de adequar pontualmente as apólices às necessidades concretas dos segurados, nem cumular diversos seguros. Na prática, como o registro prévio é feito para cumprir uma formalidade criada pela interpretação das autoridades do art. 36 do velho Decreto-Lei 73/1966, ele não traz qualquer vantagem. A própria SUSEP obriga a constar na apólice que “o registro do produto é automático e não representa aprovação ou recomendação por parte da Susep”.
No último governo, criou-se uma exceção para os chamados seguros de “grandes riscos” (art. 7º, Resolução CNSP 407/2021), cuja celebração não depende do registro prévio ou posterior da apólice, que deve apenas ser guardada pelas próprias seguradoras e apresentada quando exigido pela fiscalização da SUSEP.
O que garante, no entanto, que esses materiais serão efetivamente guardados? que as seguradoras irão disponibilizá-los corretamente ao segurado e à fiscalização, quando solicitado? que essa entrega esporádica, por fim, dará uma visão global às autoridades sobre as práticas de mercado que julga importante coibir?
Antes de tudo, cabe perguntar: um ato administrativo, editado pelo CNSP, pode afastar um requisito que, gostemos ou não, está em lei federal em pleno vigor?
Em nenhum momento, esses grupos seguradores e resseguradores propuseram uma revisão do Decreto-Lei 73/1966 para modificar esse estado de coisas, nem discutiram em juízo a vigência ou constitucionalidade dessa norma depois de 2019.
O Projeto de Lei, nesse ponto, nem poderia pretender dispor sobre tema, porque se trata de regras sobre as competências normativas e fiscalizatórias da SUSEP e do CNSP. Como o Supremo Tribunal Federal já decidiu (ADIn 2.244, 2.223), e provavelmente vai decidir de novo (ADIn 7.074), esse tema é reservado à Lei Complementar pelo art. 192 da Constituição, o que o PLC 29/2017 não pretende ser. Ou seja, se o Projeto de Lei minguasse as competências da SUSEP, seria inconstitucional.
Sendo o Projeto de Lei neutro quanto à necessidade de autorização estatal prévia à operação de certos seguros, a modificação desse regime passa pela interpretação e adequação do Decreto-Lei 73/1966. Poderíamos, por exemplo, interpretar o requisito de aprovação prévia, previsto em lei, apenas para os seguros socialmente sensíveis, como os seguros habitacionais e os obrigatórios, como é a prática na Alemanha.
Como se pode ver, nada disso passa pelo PLC 29/2017, que trata do contrato de seguro, não da fiscalização Estatal da atividade seguradora. O Projeto sequer menciona qual seria o “órgão supervisor e fiscalizador de seguros” para demarcar sua distância ao regime administrativo de fiscalização da atividade seguradora e resseguradora.
Basta ler o texto do PLC 29/2017, que foi intensamente debatido no Congresso Nacional durante quase vinte anos, contou com DUZENTAS propostas de emendas e foi atualizado por QUATRO Substitutivos, o último em dezembro de 2016.
Para acabar com as NOTÍCIAS FALSAS sobre a paridade entre segurados e seguradoras, e seguradoras e resseguradoras, lembrem-se que os seguros de riscos de engenharia e operacionais, essenciais para a indústria, são escritos pelas resseguradoras
internacionais, que se acostumaram a ser eminências pardas nas autoridades brasileiras. Como registra livro recente produzido por conhecidos técnicos do mercado:
Em abril de 2009, a Munich Re do Brasil Resseguradora S.A, divulgou para as seguradoras com as quais ela mantinha contratos de resseguro, o clausulado de seguros de riscos de engenharia – versão 04.2009, para ser utilizado por elas, de forma referencial. Este clausulado é praticamente o mesmo contido na Circular Sereg-2428/2007 [ato do IRB, então monopolista de resseguro, que impôs uma apólice de seguro de riscos de engenharia às suas seguradoras-cedentes cujo padrão se segue até hoje], com pequenas alterações na formatação e inclusão de novas cláusulas.
Registre-se que foi a Munich Re do Brasil, na época em que o grupo de técnicos do mercado de seguros e resseguros se reunião para atualizar as condições de coberturas que vinham sendo aplicadas pelo IRB-Brasil Re, quem coordenou os trabalhos de redação do novo clausulado dos seguros de riscos de engenharia [11].
Nota 11: Em março de 2006, a Munich Re Brasil, Scor, Transatlanctic, XL Re, AIU, Swiss Re, Converium, IRB-Brasil Re e a Fenaseg (atual CNSeg e FenSeg), contrataram as empresas Braga & Associados – Consultoria de Riscos Ltda. e a Cooper Brothers Serviços Técnicos em Seguros Ltda. para realizarem a atualização dos clausulados do ramo riscos de engenharia do IRB-Brasil Re [então monopolista]. O resultado do trabalho foi objeto de revisão pelo período de aproximadamente um ano, pelos representantes de todas as empresas indicadas, sob a coordenação da Munich Re Brasil. Este trabalho originou a Carta Sereg-2428/2007, do IRB-Brasil Re.
XXXXXX, Xxxxxx (org.). Seguros de riscos de engenharia no Brasil. São Paulo: Roncarati e Conhecer Seguros, 2021, p. 33.
Agora, como a captura regulatória acabou, como o Ministério da Fazenda está pondo ordem no mercado, os falsos defensores da liberdade estão desesperados, pregando o fim do mundo. Mas o mundo não vai acabar com o PLC 29/2017: haverá apenas um regime mais atual, equilibrado, representativo e plural para um contrato fundamental ao desenvolvimento social e econômico do país.
IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro
Nota Técnica sobre a Inconstitucionalidade da
RESOLUÇÃO CNSP Nº 407, DE 2021
O IBDS (Instituto Brasileiro de Direito do Seguro), por intermédio de seu ilustre presidente, Dr. XXXXXXX XXXXXXXXX, honra-me com a solicitação de elaboração de Nota Técnica dobre a inconstitucionalidade da Resolução CNSP nº 407, de 29 de março de 2021.
O capítulo da ordem econômica da Constituição de 1988 (artigos 170 a 192) tenta sistematizar os dispositivos relativos à configuração jurídica da economia e à atuação do Estado na economia, isto é, os preceitos constitucionais que, de um modo ou outro, reclamam a atuação estatal no domínio econômico, embora estes temas não estejam restritos a este capítulo do texto constitucional. Em sua estrutura, o capítulo da ordem econômica engloba, no artigo 170 os princípios fundamentais da ordem econômica brasileira, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos uma existência digna de acordo com a justiça social. Dentre esses princípios, podem ser destacados, por exemplo, a soberania nacional, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio-ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego. Os artigos 171 a 181 versam sobre a estruturação da ordem econômica e sobre o papel do Estado no domínio econômico, instituindo, segundo Xxxx Xxxx, uma ordem econômica aberta para a construção de uma sociedade de bem-estar1.
O artigo 171, revogado em 1995, tratava da diferenciação entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional e, juntamente com o artigo 172 (exigência de um regime jurídico para o capital estrangeiro de acordo com os interesses nacionais), são corolários da soberania econômica (artigo 170, I), assim como os artigos 176 (propriedade estatal do subsolo e regime da exploração mineral) e 177 (monopólio estatal do petróleo e seus
1 Xxxx Xxxxxxx XXXX, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 12ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, pp. 312-316.
derivados e dos materiais nucleares). Devo ressaltar, inclusive, que são derivados da soberania econômica, ainda, os dispositivos relativos à política de desenvolvimento tecnológico do país (artigos 218 e 219), situados fora do capítulo da ordem econômica.
Os artigos 173 e 175 disciplinam a atividade econômica do Estado a partir da prestação de atividade econômica em sentido estrito (artigo 173, setor preferencialmente dos agentes privados) e dos serviços públicos (artigo 175, setor de titularidade estatal), bem como o regime jurídico das empresas estatais. O artigo 174 enuncia o Estado como agente regulador, fiscalizador e planejador da economia. Os demais artigos (178 a 181) tratam de setores específicos da atividade econômica, como transportes, turismo e tratamento favorecido às empresas de pequeno e médio porte.
Além destes princípios estruturantes, a ordem econômica da Constituição de 1988 engloba dispositivos que tratam da ordem econômica no espaço e da ordem econômica no tempo. A ordem econômica no espaço está configurada nas disposições sobre política urbana (artigos 182 e 183) e sobre política agrícola e fundiária e reforma agrária (artigos 184 a 191). Estes artigos versam, essencialmente, sobre a projeção da ordem econômica e seus conflitos no espaço, prevendo reformas estruturais profundas na organização socioeconômica.
O artigo 192 (hoje reformado pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003) é a projeção da ordem econômica no tempo, ao cuidar do crédito, dos seguros e do sistema financeiro. O conflito projeta-se no tempo, diferindo a escassez no tempo, pois se define, pelo crédito, como os recursos serão distribuídos, em suma, quem irá receber recursos no momento presente e quem não irá ou quando outros setores terão (ou não) estes recursos. O Estado contemporâneo não pode se limitar a uma atuação mínima, mas deve dimensionar seus recursos de maneira a satisfazer o mais amplamente possível as necessidades sociais.
Neste contexto, o funcionamento do crédito, que estende o campo das trocas do presente e dos bens disponíveis para o futuro e aos bens a produzir, é essencial como instrumento de direção da política econômica tendo em vista a manutenção da atividade econômica, o crescimento e a ampliação das oportunidades de emprego2. Por sua vez, a atividade seguradora, como se sabe, tem importância fundamental para o processo econômico. É exercida por empresas3 que garantem a sua operacionalidade ao administrarem fundos comuns ou de poupança coletiva formada pelas contribuições – os prêmios – de cada um dos segurados. Essa administração tem por finalidade garantir, no decorrer de uma determinada duração temporal, geralmente longa, os interesses legítimos dos segurados que estão expostos a determinados riscos4. Por sua enorme importância para o sistema econômico, a legislação sobre seguros no Brasil é de competência exclusiva da União (artigos 21, VIII e 22, VII da Constituição5).
Estabelecia o antigo inciso II6, do art. 192 da Constituição, que o sistema financeiro nacional era estruturado de forma a promover o
2 Xxxxxxx xx Xxxxxxx XXXXXXX, Fundamentos do Direito Financeiro, São Paulo, RT, 1973, pp. 38-39, 42-43, 51, 199-203 e 276-277. Para o papel do Estado na política de crédito, vide, ainda, Xxxxxx XXXXXX, Droit fíconomique, Paris, PUF, 1971, pp. 215-221.
3 No setor de seguros, a própria noção de empresarialidade é essencial para a realização do contrato, conforme explicita o parágrafo único do artigo 757 do Código Civil: “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada”.
4 Vide, neste sentido, Xxxxxx XXXXXXX, Del Contratto di Assicurazione, Torino, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1909, pp. 11-13 e Xxxxxxx XXXXXXXXX; Xxxxxx xx Xxxxxxx X. XXXXXXXXXX & Xxxxxx XXXXXXXX, O Contrato de Seguro de acordo com o Novo Código Civil Brasileiro, 2ª ed., São Paulo, RT, 2003, pp. 39-40. Vide, ainda, Xxxxxx XXXXXXXXX, "O Conceito Unitário do Contrato de Seguro" in Xxxxxx XXXXXXXXX, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, Campinas, Bookseller, 2001, pp. 311-316 e 364-366; Xxxxx Xxxxxx COMPARATO, O Seguro de Crédito: Estudo Jurídico, São Paulo, RT, 1968, pp. 24- 26 e 159-161 e Xxxxx Xxxx xx Xxxxxx XXXX, Contrato de Resseguro: Tipologia, Formação e Direito Internacional, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, 2002, pp. 119-127.
5 Art. 21, VIII da Constituição de 1988: “Compete à União: VIII - administrar as reservas cambiais do país e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada”.
Art. 22, VII da Constituição de 1988: “Compete privativamente à União legislar sobre: VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores”.
6 Redação original do artigo 192 da Constituição: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: II –
desenvolvimento equilibrado no país e a servir aos interesses da coletividade, e seria regulado por lei complementar que disporia, inclusive, sobre a autorização e o funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador. O artigo 192 foi reformado pelas Emendas Constitucionais nº 13, de 21 de agosto de 1996, e nº 40 de 29 de maio e 20037, mas os princípios valorativos que devem ser aplicados ao sistema permanecem em sua essência, de tal forma que o dispositivo constitucional não perdeu a sua importância como vínculo entre o sistema financeiro, o sistema de seguros e o desenvolvimento.
As atividades desenvolvidas no setor securitário são atividade econômica em sentido estrito8. O papel do Estado é fundamental para garantir o interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro, fortalecer as relações econômicas de mercado e promover a expansão e a integração do mercado de seguros no processo econômico e social do país, coordenando a política de seguros com as políticas de investimentos monetária, creditícia e fiscal do Governo Federal. Por outro lado, garantir a solvência e a capacidade operacional das empresas seguradoras, gestoras de fundos provenientes de poupança pública, exige a autorização e o controle estatal sobre a atividade, visando justamente preservar os interesses dos segurados. Desse modo, é certo que a coordenação do setor financeiro nacional, no qual se inclui a atividade seguradora, deve ultrapassar a racionalidade individual dos seus atores e buscar o interesse público, a consecução de objetivos de política econômica do Estado brasileiro, como a própria preservação do mercado e das relações econômicas do nosso país.
autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem
como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador”.
7 A Emenda Constitucional nº 13/1996 retirou a expressão "órgão oficial ressegurador" do texto constitucional. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, retirou todos os incisos e parágrafos do artigo 192 e alterou a redação do seu caput.
8 Para a distinção entre atividade econômica em sentido estrito e serviço público, ambos espécies da atividade econômica em sentido amplo, vide, por todos, Xxxx Xxxxxxx XXXX, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 101-111.
O artigo 192 da Constituição de 1988, tanto em sua redação original9, como em sua redação alterada pela Emenda Constitucional nº 40, de 200310, exige que sua regulamentação se dê por meio de lei complementar, não lei ordinária. A necessidade de lei complementar diz respeito às novas leis que deverão ser elaboradas pelo Congresso Nacional sobre o Sistema Financeiro Nacional. O Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, foi recepcionado
9 Artigo 192 da Constituição de 1988 (redação original): “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: I
- a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso; II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador; III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente: a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais; IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas; V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo; VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União; VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento; VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.
§1º - A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.
§2º - Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados.
§3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”.
10 Artigo 192 da Constituição de 1988 (redação alterada pela Emenda Constitucional nº 40/2003): “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.
como lei complementar pela nova ordem constitucional11, sendo mantido no que não contrariasse os dispositivos constitucionais12.
Neste sentido, ainda que se referindo ao regime da Carta de 1967, é digno de menção o pensamento de Xxxxxxx Xxxxxxx: "Daí porque ser possível que lei ordinária regule matéria de lei complementar; basta que seja anterior à Constituição. (...) Não se trata, portanto de impossibilidade de a lei ordinária revogar a lei ordinária. Mas, de lei ordinária (a anterior) convertida em lei complementar (ratione materiae) pela Constituição; daí sòmente ser revogável por lei complementar. Com o correr do tempo, o legislador irá operando o preenchimento do campo da lei complementar, de tal sorte que, a final ter-se- á todo êsse setor preenchido por legislação complementar nova. E a antiga legislação prevalecerá, como lei complementar, enquanto não sobrevenha norma apta a modificá-la" 13.
Xxxxx Xxxxxx, já sob a Constituição de 1988, emite a mesma opinião: "O que importa para a nova Constituição é a adequação das leis anteriores com os seus preceitos substanciais, não sendo em nada relevante o saber-se como, no passado, se chegou à elaboração da regra. fí curial que, no futuro, isto é, depois da entrada em vigor da Constituição, os preceitos formais e substanciais são igualmente importantes para caracterizar a inconstitucionalidade. Dentro dessa linha de raciocínio, afigura-se clara a conclusão de que a lei preexistente que discipline matéria, no momento, reservada à lei complementar continua vigente" 14.
Portanto, a exigência de lei complementar do artigo 192 da Constituição não atinge a vigência do Decreto-Lei nº 73/1966, que continua em vigor até que uma nova lei ou novas leis, já sob a forma de lei
11 O Supremo Tribunal Federal já decidiu expressamente pela recepção do Decreto-Lei nº 73/1966 como lei complementar na ADI 2223/DF (Rel. Min. Xxxxxxxx Xxxxxx, DJe 5.12.2003). 12 Sobre o fenômeno da “recepção” das normas infraconstitucionais elaboradas anteriormente à nova Constituição, vide, por todos, Xxxxx XXXXXXXX, “Constituição e Leis a Ela Anteriores”, Revista Trimestral de Direito Público nº 4, 1993, pp. 15-30.
13 Xxxxxxx XXXXXXX, Lei Complementar na Constituição, São Paulo, RT, 1971, pp. 55-56.
14 Xxxxx Xxxxxxx XXXXXX, Lei Complementar: Teoria e Comentários, 2ª ed., São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Xxxxx Xxxxxx Editor, 1999, p. 137.
complementar, sejam elaboradas pelo Congresso Nacional. Com a recepção do Decreto-Lei nº 73/1966, além do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil), foram mantidos como órgãos do Sistema Nacional de Seguros Privados o CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) e a SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), com todas as suas atribuições. Durante a vigência da Constituição de 1988, o texto do Decreto-Lei nº 73/1966 foi modificado parcialmente com a aprovação da Lei Complementar nº 126, de 15 de janeiro de 2007.
Deste modo, a regulamentação da atividade securitária e ressecuritária só pode ser efetuada, por determinação expressa do texto do artigo 192 da Constituição de 1988, por meio de lei complementar, não de lei ordinária. Qualquer regulamentação deste tipo de atividade posteriormente à Constituição de 1988 que não ocorra por intermédio de lei complementar padece de inconstitucionalidade, dada a determinação constitucional expressa do artigo 192.
No entanto, o caso da Resolução CNSP nº 407, de 29 de março de 2021 é ainda pior, pois não se trata de lei ordinária regulamentando matéria de lei complementar, mas de um regulamento, uma resolução expedida por órgão administrativo, o CNSP, querer ir além do que a lei determina, violando a garantia constitucional da reserva de lei.
O artigo 32 do Decreto-Lei nº 73/196615 estabelece as competências do CNSP, inclusive seu poder normativo. A grande questão sobre o poder
15 Artigo 32 do Decreto-Lei nº 73/1966: “fí criado o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP, ao qual compete privativamente: I - Fixar as diretrizes e normas da política de seguros privados; II - Regular a constituição, organização, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades subordinadas a êste Decreto-Lei, bem como a aplicação das penalidades previstas; III - Estipular índices e demais condições técnicas sôbre tarifas, investimentos e outras relações patrimoniais a serem observadas pelas Sociedades Seguradoras; IV - Fixar as características gerais dos contratos de seguros; V - Fixar normas gerais de contabilidade e estatística a serem observadas pelas Sociedades Seguradoras; VI - delimitar o capital das sociedades seguradoras e dos resseguradores; VII - Estabelecer as diretrizes gerais das operações de resseguro; VIII - disciplinar as operações de co-seguro; X - Aplicar às Sociedades Seguradoras estrangeiras autorizadas a funcionar no País as mesmas vedações ou restrições equivalentes às que vigorarem nos países da matriz, em relação às Sociedades Seguradoras brasileiras ali instaladas ou que nêles desejem estabelecer-se; XI - Prescrever os critérios de constituição das Sociedades Seguradoras, com fixação dos limites legais e técnicos das
normativo do CNSP não é a sua suposta violação à “separação de poderes”, o que não corresponde à realidade constitucional contemporânea, mas, sim, o controle e os limites a este poder.
Em um Estado de Direito, a atuação estatal se pauta pela legalidade, em todas as suas dimensões, estatuída de acordo com a hierarquia normativa estabelecida pela Constituição16. A legalidade, princípio constante, entre outros, do artigo 37, caput da Constituição de 1988, é, na feliz expressão de Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, o “princípio basilar do regime jurídico- administrativo”17. Mesmo na seara econômica, em que a necessidade da rapidez das decisões e ações justifica a denominada “capacidade normativa de conjuntura”18, com a atribuição de poderes normativos a órgãos do Executivo, como o CNSP ou o Conselho Monetário Nacional, por exemplo, a legalidade não pode ser violada. Neste sentido, em seu clássico Direito Administrativo Econômico (Wirtschaftsverwaltungsrecht), Xxxxx Xxxxxx Xxxxx já destacava o princípio da legalidade da administração econômica (Prinzip der Gesetzmässigkeit der Wirtschaftsverwaltung), ou seja, a obrigatoriedade de todos os atos administrativos econômicos terem fundamento legal19.
operações de seguro; XII - Disciplinar a corretagem de seguros e a profissão de corretor; XIV - Decidir sôbre sua própria organização, elaborando o respectivo Regimento Interno; XV - Regular a organização, a composição e o funcionamento de suas Comissões Consultivas; XVI
- Regular a instalação e o funcionamento das Bolsas de Seguro; XVII - fixar as condições de constituição e extinção de entidades autorreguladoras do mercado de corretagem, sua forma jurídica, seus órgãos de administração e a forma de preenchimento de cargos administrativos; XVIII - regular o exercício do poder disciplinar das entidades autorreguladoras do mercado de corretagem sobre seus membros, inclusive do poder de impor penalidades e de excluir membros; XIX - disciplinar a administração das entidades autorreguladoras do mercado de corretagem e a fixação de emolumentos, comissões e quaisquer outras despesas cobradas por tais entidades, quando for o caso”.
16 Xxxxxx Xxxxxx XXXXX, Vorrang der privaten Wirtschafts- und Sozialgestaltung Rechtsprinzip: Eine Systematisch-axiologische Analyse der Wirtschaftsverfassung des Grundgesetzes, Berlin, Duncker & Humblot, 2006, pp. 308-315.
17 Xxxxx Xxxxxxx XXXXXXXX XX XXXXX, Curso de Direito Administrativo, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 89. Vide, ainda, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx XX XXXXXX, Direito Administrativo, 20ª ed., São Paulo, Atlas, 2007, pp. 58-59.
18 Vide Xxxx Xxxxxxx XXXX, “Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções Estatais, os Regulamentos e a Legalidade no Direito Brasileiro. As 'Leis-Medida'” in Xxxx Xxxxxxx XXXX, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 7ª ed., São Paulo, Malheiros, 2008, pp. 230-233.
00 Xxxxx Xxxxxx XXXXX, Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, 2ª ed., Tübingen, J. C. B. Xxxx (Xxxx Xxxxxxx), 1953, vol. 1, pp. 59-60.
No entanto, quando se fala em legalidade e em lei, a primeira distinção necessária que se deve fazer é a entre lei em sentido formal e lei em sentido material. Esta distinção foi criada no século XIX pelo publicista alemão Xxxx Xxxxxx, como forma de solucionar o conflito constitucional que durou de 1861 a 1866 entre o Rei da Prússia e o Parlamento prussiano sobre a natureza jurídica do orçamento e, consequentemente, sobre os poderes do Parlamento em aprovar a lei orçamentária e controlar, assim, as finanças estatais. Para resolver o conflito constitucional prussiano, Xxxxxx desenvolveu a teoria dualista da lei, que seria adotada pela maioria dos publicistas posteriores20.
De acordo com a teoria dualista da lei, as leis podem ser leis em sentido material e leis em sentido formal. A lei em sentido material é sinônimo de norma jurídica, podendo ser estatuída pelos mais variados órgãos, desde que dotados de poder normativo para tanto. Já a lei em sentido formal é a lei propriamente dita, a lei como ato promulgado pelo Poder Legislativo, fruto do processo legislativo21.
No caso brasileiro, o artigo 5º, II da Constituição de 1988, que repete a clássica expressão “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
20 Xxxx XXXXXX, Das Budgetrecht nach den Bestimmungen der Preussischen Verfassungs- Urkunde unter Berücksichtigung der Verfassung des Norddeutschen Bundes, Berlin, Verlag von J. Guttentag, 1871, pp. 3-11; Xxxx XXXXXX, Das Staatsrecht des Deutschen Reiches, reimpr. da 5ª ed., Goldbach, Keip Verlag, 1997, vol. 2, pp. 1-23 e 61-84 e Xxxxx XXXXXXXX, Gesetz und Verordnung: Staatsrechtliche Untersuchungen auf rechtsgeschichtlicher und rechtsvergleichender Grundlage, reimpr. da ed. de 1887, Aalen, Scientia Verlag, 1964, pp. 226-261. Especificamente sobre esta distinção em Xxxx Xxxxxx e em Xxxxx Xxxxxxxx, vide Xxxxx-Xxxxxxxx XXXXXXXXXXX, Gesetz und gesetzgebende Gewalt: Von den Anfängen der deutschen Staatsrechtslehre bis zur Höhe des staatsrechtlichen Positivismus, 2ª ed., Berlin, Duncker & Humblot, 1981, pp. 226-253; Xxxxxx Xxxxxx XXX, Lei e Reserva da Lei: A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, reimpr., Porto, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 1996, pp. 125-139 e Xxxx X. Xxxxxx xx XXXXXXX, Lei e Regulamento, Coimbra, Coimbra Ed., 2002, pp. 71-83 e 88-115. Para uma crítica de um contemporâneo de Xxxxxx a esta distinção, vide Xxxx XXXXX, Deutsches Verwaltungsrecht, reimpr. da 3ª ed., Berlin, Duncker & Humblot, 2004, §6, n. 1, pp. 64-67.
21 Xxxxxx Xxxxxx XXXXXXXX, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, pp. 20-25; Xxxxxx Xxxxx XXXX, “Lei e Regulamento” in Xxxxxx Xxxxx XXXX, Problemas de Direito Público, Rio de Janeiro, Forense, 1960, pp. 65-66; Xxxx Xxxxxx xx XXXXX, Processo Constitucional de Formação das Leis, 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, pp. 25-28; Xxxxxx Xxxxxx XXX, Lei e Reserva da Lei cit., pp. 17-31 e Xxxxxxx XXXXXX, Allgemeines Verwaltungsrecht, 16ª ed., München, Verlag X. X. Xxxx, 2006, pp. 65 e 68-69.
coisa senão em virtude de lei”, está tratando da lei em sentido material, da sujeição à norma jurídica em geral, ao ordenamento jurídico. A necessidade expressa de lei em sentido formal surge de forma destacada em outros dispositivos do texto constitucional, como, por exemplo, o artigo 5º, XXXIX, que determina que não há crime sem lei anterior que o defina, ou o artigo 150, I, que trata da legalidade tributária22.
Os regulamentos e atos normativos expedidos por órgãos do Poder Executivo, como decretos, resoluções, portarias, são, neste sentido, lei em sentido material, que se distinguem da lei em sentido formal não pelo seu conteúdo ou efeito vinculativo, mas pelo órgão elaborador das normas. Como foram promulgados por órgãos do Poder Executivo, atuam com base em uma lei em sentido formal, dependem de uma lei em sentido formal para serem válidos, vigentes e eficazes. Afinal, se o poder regulamentar não for limitado pela Constituição, alerta Forsthoff, corre-se o risco de se esvaziar o princípio da subordinação da Administração Pública à lei23.
A adoção de uma Constituição rígida reforça o regime da legalidade, pois implica na adoção de um sistema de hierarquia das fontes jurídicas. A Constituição, como norma de hierarquia mais alta que a da lei ordinária significa que o Poder Legislativo está subordinado ao Poder Constituinte. Geralmente, a Constituição é mais genérica que a lei ordinária, que é mais genérica do que os regulamentos ou outros atos normativos de hierarquia inferior, ou seja, há uma série escalonada de atos juridicamente relevantes que parte da Constituição, passa pela lei e pelos regulamentos até chegar aos atos meramente executivos. Como destaca Xxxxx Xxxxx, a Administração
22 Xxxxxx Xxxxxxxxx XXXXXXXX Xxxxx, Do Processo Legislativo, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, pp. 200-201 e Xxxx Xxxxxxx XXXX, “Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções Estatais, os Regulamentos e a Legalidade no Direito Brasileiro. As 'Leis-Medida'” cit., pp. 246-247. Em sentido contrário, entendendo que o dispositivo do artigo 5º, II da Constituição se refere à lei em sentido formal, vide Xxxxx Xxxxxxx XXXXXXXX XX XXXXX, Curso de Direito Administrativo cit., pp. 91-94 e 318-323.
23 Xxxx Xxxxxx xx XXXXX, Processo Constitucional de Formação das Leis cit., pp. 33-36; Xxxxx XXXXXXXXX, Lehrbuch des Verwaltungsrechts, 9ª ed., München, Verlag X. X. Xxxx, 1966, vol. 1, pp. 120-124 e 129-130; Xxxxxx XXXXXX, Principi di Diritto Amministrativo, Xxxxxx, Xxxxxxx, 0000, vol. 1, pp. 418-419 e Xxxxxxx XXXXXX, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., pp. 69-71.
Pública se encontra envolvida de tal forma neste escalonamento de funções jurídicas que todas as ações administrativas são ações dentro desta estrutura escalonada e hierarquicamente estruturada24.
Xxxx Xxxxx, em seu clássico Direito Administrativo Alemão (Deutsches Verwaltungsrecht), cuja primeira edição é de 1895, foi pioneiro em destacar as duas dimensões da legalidade: a supremacia da lei (Vorrang des Gesetzes) e a reserva da lei (Vorbehalt des Gesetzes). A primeira dimensão da legalidade, diretamente vinculada à hierarquia das fontes jurídicas, é a da primazia ou supremacia da lei. Para Xxxx Xxxxx, a supremacia da lei é um ato de vontade estatal jurídica que implica na força da lei. A primazia da lei significa que a Administração Pública é obrigada a agir de acordo com a lei, ou seja, proíbe infrações ou violações às leis existentes25. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxx Xxxx: “Entre o regulamento e a lei, como acertadamente observou Duguit, não há diferença substancial, mas formal, não há diferença de natureza, mas de grau ou hierarquia. O regulamento, exatamente como a lei, é um ato de natureza normativa; a distinção reside na subordinação do regulamento à lei. Mas o regulamento não é mera reprodução da lei. fí um texto mais minucioso, mais detalhado, que completa a lei, a fim de garantir a sua exata e fiel execução. fí fundamental, entretanto, que nesta sua função de complementar a lei, não a infrinja”26.
Da mesma maneira que os atos normativos do Executivo, em virtude da hierarquia das fontes jurídicas e da supremacia da lei, não podem revogar ou derrogar as leis ordinárias precedentes, assim como normatizar para além do que determinou a lei ordinária que os fundamenta, a matéria tratada pelos
24 Xxxxx XXXXX, Teoría General del Derecho Administrativo, Granada, Editorial Comares, 2004, pp. 219-223; Xxxxxx Xxxxx XXXX, “Lei e Regulamento” cit., pp. 62-63; Xxxxx XXXXXXXXX, Lehrbuch des Verwaltungsrechts cit., vol. 1, pp. 118-120 e Xxxxxxx XXXXXX, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., pp. 63-67.
25 Xxxx XXXXX, Deutsches Verwaltungsrecht cit., §6, n. 2, pp. 68-69; Xxxxxxx XXXXXX, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., p. 115 e Xxxxx XXXXXXXXX, “Vorrang und Vorbehalt des Gesetzes” in Xxxxx XXXXXXX & Xxxx XXXXXXXX (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 3ª ed., Heidelberg, C. F. Müller Verlag, 2007, vol. 5, pp. 184- 187.
26 Xxxxxx Xxxxx XXXX, “Delegações Legislativas” in Xxxxxx Xxxxx XXXX, Problemas de Direito Público cit., p. 99.
atos normativos do Executivo, como os regulamentos e similares, hierarquicamente inferiores perante a lei, também não pode ser matéria reservada à disciplina legislativa formal (reserva de lei)27. Esta é a segunda dimensão da legalidade, a da reserva de lei28. No nosso sistema constitucional, a reserva de lei, ou seja, o domínio exclusivo da lei ordinária deve ser constitucionalmente definido, afinal, trata-se de quais decisões políticas do Estado vão ganhar dignidade legislativa para obterem uma especial força jurídica29.
Estas considerações sobre as dimensões da legalidade, da supremacia e da reserva de lei, são extremamente úteis para que se possa traçar os contornos e os limites do poder normativo atribuído a órgãos do Poder Executivo, como o CNSP. Estes limites constitucionais e legais ficam mais evidentes quando estes órgãos ultrapassam suas atribuições constitucionais e legais e emitem normas manifestamente contrárias ao ordenamento constitucional brasileiro, como é o caso, aqui analisado, da Resolução CNSP nº 407, de 29 de março de 2021.
Dentre suas várias violações ao ordenamento, a Resolução CNSP nº 407/2021, em seus artigos 7º, parágrafo único, e 24, revogam, sem qualquer fundamento legal, o poder de fiscalização da SUSEP sobre os contratos de seguro para danos de grandes riscos. Como já exposto acima, as competências da SUSEP são instituídas por lei complementar, o Decreto-Lei nº 73/1966, não podendo ser reduzidas ou suprimidas por meio de simples resolução editada pelo CNSP.
A importância do papel ativo do Estado em relação a uma política de seguros privados justifica-se para garantir o interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro, fortalecer as relações econômicas do
27 Xxxxxx XXXXXX, Principi di Diritto Amministrativo cit., vol. 1, p. 421. Vide também Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx XX XXXXXX, Direito Administrativo cit., p. 81.
28 Xxxx XXXXX, Deutsches Verwaltungsrecht cit., §6, n. 3, pp. 69-73; Xxxxxx Xxxxxx XXX, Lei e Reserva da Lei cit., pp. 31-37 e 139-145; Xxxxxxx XXXXXX, Allgemeines Verwaltungsrecht cit., pp. 115-126 e Xxxx X. Xxxxxx xx XXXXXXX, Lei e Regulamento cit., pp. 83-88.
29 Xxxxxx Xxxxxxxxx XXXXXXXX Xxxxx, Do Processo Legislativo cit., pp. 201-202 e Xxxx X. Xxxxxx xx XXXXXXX, Lei e Regulamento cit., p. 264.
mercado e para promover a expansão e integração do mercado de seguros no processo econômico e social do país, evitar a evasão de divisas, preservar a liquidez e solvência das seguradoras e coordenar a política de seguros com as políticas de investimentos, monetária, creditícia e fiscal do Governo Federal (artigos 2º, 4º e 5º do Decreto-Lei nº 73/1966, ainda em vigor). No setor de seguros/resseguros há, como apontado, uma ampla atuação intervencionista do Estado, pois trata-se de uma atividade econômica que funciona na base da confiança e com a movimentação de grandes somas de recursos financeiros. Seguro e resseguro são fundamentais para o bom funcionamento do sistema econômico, além de consistirem em uma forma de redistribuição de recursos a partir da “dependência mútua” de pessoas que não se conhecem, mas que mantém relações jurídicas em comum a partir de um capital gerenciado em conjunto pelo segurador/ressegurador30. O controle e a fiscalização do Estado são, neste caso, essenciais, seja para garantia das reservas financeiras manipuladas pelas empresas seguradoras, seja para tornar efetiva a garantia ao segurado, ou seja, pelo “simples” fato de que os recursos manejados pelo setor securitário e ressecuritário são provenientes de poupança pública. Trata-se, portanto, de atividade econômica em sentido estrito, visando a consecução de objetivos de política econômica do Estado brasileiro, além da preservação do mercado e das relações econômicas no Brasil. O Estado brasileiro atua, direta ou indiretamente, no setor de seguros e de resseguros com base na preservação de relevante interesse coletivo (artigos 173, caput e 174, caput da Constituição).
A livre iniciativa, no texto constitucional de 1988 (artigos 1º, IV e 170, caput), não representa o triunfo do individualismo econômico, mas é protegida em conjunto com a valorização do trabalho humano, em uma ordem econômica com o objetivo de garantir a todos uma vida digna, com base na justiça social. Isto significa que a livre iniciativa é fundamento da ordem econômica
30 Xxxxx Xxxx xx Xxxxxx XXXX, Contrato de Resseguro cit., pp. 33-37 e 458-468.
constitucional no que expressa de socialmente xxxxxxx00, o que não representa nenhuma novidade na tradição constitucional brasileira, pois a livre iniciativa está presente como fundamento da ordem econômica constitucional desde 193432. Portanto, a livre iniciativa não pode ser reduzida, sob pena de uma interpretação parcial e equivocada do texto constitucional, à liberdade econômica plena ou à liberdade de empresa, pois abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas, como a iniciativa econômica individual, a iniciativa econômica cooperativa (artigos 5º, XVIII e 174, §3º e §4º da Constituição) e a própria iniciativa econômica pública (artigos 173 e 177 da Constituição, entre outros)33.
A Constituição de 1988 garante, além da iniciativa econômica privada, o livre exercício da atividade econômica, conforme prescreve o seu artigo 170, parágrafo único. O significado deste dispositivo é o da garantia da
31 Cf. Xxxx Xxxxxxx XXXX, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 200-208; Xxxxx Xxxxxx COMPARATO, “Regime Constitucional do Controle de Preços no Mercado”, Revista de Direito Público nº 97, janeiro/março de 1991, pp. 18-23 e Xxxxxxx Xxxxxxx xx XXXXX Xxxx & Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx XXXXXXXX, "Fundamentalização e Fundamentalismo na Interpretação do Princípio Constitucional da Livre Iniciativa" in Xxxxxxx Xxxxxxx xx XXXXX Xxxx & Xxxxxx XXXXXXXX (coords.), A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, pp. 709-741. Sobre as possibilidades e limites da livre iniciativa na Constituição de 1988, vide, ainda, Xxxxxxxx XXXXXXXXX, Constituição Econômica e Desenvolvimento, 2ª ed., São Paulo, Almedina, 2022, pp. 151-175.
32 Isto pode ser facilmente demonstrado a partir da leitura dos textos do artigo 115, caput da Constituição de 1934 ("Art 115 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica"), do artigo 145, caput da Constituição de 1946 ("Art 145 - A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano"), do artigo 157, I da Carta de 1967 ("Art 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: I - liberdade de iniciativa") e do artigo 160, I da Carta de 1969 ("Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: I - liberdade de iniciativa").
33 Sobre a iniciativa econômica pública, vide, ainda, Xxxxxxxxx XXXXXXX, "Pubblico e Privato nella Regolazione dei Rapporti Economici" in Xxxxxxxxx XXXXXXX (coord.), Trattato di Diritto Commerciale e di Diritto Pubblico dell'Economia, Padova, CEDAM, 1977, vol. 1, pp. 120-126; Xxxxx xx Xxxx XXXXXX, La Constitución Económica Española: Iniciativa Económica Pública "versus" Iniciativa Económica Privada en la Constitución Española de 1978, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1984, pp. 90-99; Xxxx Xxxxxxx Xxxxx XXXXXXXXX & Xxxxx XXXXXXX, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 2007, vol. I, pp. 958-959 e 982-986 e Xxxxxxxx XXXXXXXXX, Constituição Econômica e Desenvolvimento cit., pp. 165-175.
legalidade na esfera das atividades econômicas, ou seja, a não sujeição das atividades econômicas a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei e esta lei é lei em sentido formal. Trata-se, em suma, da reserva da lei na esfera das atividades econômicas34. O exercício das atividades econômicas, como liberdade pública, pode ser limitado, mas apenas por lei. O poder regulamentar atua nestas limitações apenas dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei em sentido formal, pois não pode afetar a garantia e o exercício da liberdade de exercício da atividade econômica35. Deste modo, o poder regulamentar atribuído ao CNSP não compreende o de inovar a ordem jurídica, restringindo a liberdade de atuação econômica.
Do mesmo modo, o poder normativo do CNSP não pode violar a competência exclusiva da União de legislar sobre direito civil e direito comercial (artigo 22, I da Constituição de 1988). A Resolução CNSP nº 407/2021, em vários de seus dispositivos, cria e regula as mais variadas formas contratuais, sem qualquer fundamento de validade em nenhuma lei ordinária. Novamente a garantia da reserva legal foi violada por um texto normativo editado por órgão administrativo, sem competência constitucional para legislar sobre contratos de modo a inovar o ordenamento jurídico.
A liberdade de atuação econômica é fundamento para a liberdade profissional, a autonomia privada, a liberdade de empresa, entre outras liberdades públicas36. Liberdade de iniciativa é a possibilidade de buscar os
34 Xxxxx Xxxxxxx XXXXXXXX XX XXXXX, Curso de Direito Administrativo cit., pp. 323 e 751- 754; Xxxx Xxxxxxx XXXX, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., p. 205 e Xxxx Xxxxxxx XXXX, "Crítica da 'Separação dos Poderes': As Funções Estatais, os Regulamentos e a Legalidade no Direito Brasileiro. As 'Leis-Medida'" cit., p. 247. Vide também Xxxxx xx XXXXXXXXX, Droit Public fíconomique, Paris, Dalloz, 1974, pp. 245-246; Xxxx-Xxxx XXXXXX, Droit Public fíconomique, 2ª ed., Paris, Economica, 2007, pp. 95-97 e Xxxxx XXXXXX & Xxxxxx XXXXX, Öffentliches Wirtschaftsrecht, 2ª ed., Heidelberg, C. F. Müller Verlag, 2008, pp. 77-79.
35 Xxxxx xx XXXXXXXXX, Droit Public fíconomique cit., pp. 244-262 e Xxxxxx XXXXXXXX,
Droit Public de l'fíconomie, Xxxxx, Xxxxxx, 0000, pp. 109-112.
00 Xxxxx Xxxxxx XXXXX, Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx cit., vol. 1, pp. 660-666; Xxxxx XXXXXX, Wirtschaftsverfassung und Wirtschaftsverwaltung: Ein exemplarischer Leitfaden, 2ª ed., Tübingen, J.C.B. Xxxx (Xxxx Xxxxxxx), 2005, pp. 21-22 e 38-41 e Xxxxxx Xxxxxx XXXXX, Vorrang der privaten Wirtschafts- und Sozialgestaltung Rechtsprinzip cit., pp. 272- 279.
fins autodeterminados; liberdade de concorrência é a possibilidade de não ver- se impedido de buscar tais fins, em função da atuação de concorrente que, em sua própria busca, bloqueia, de maneira imputada como ilegal, a atuação dos outros, e, por consequência, a própria concorrência; liberdade de contratar é possibilidade de escolha entre distintos parceiros econômicos ou de não escolher parceiro algum; liberdade contratual é a possibilidade de moldar os termos da parceria, de modelagem de conteúdos econômicos37.
Para Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, a autonomia da vontade compõe- se tradicionalmente de três princípios, quais sejam, a liberdade contratual, a obrigatoriedade dos efeitos contratuais (pacta sunt servanda) e da relatividade das convenções (res inter alios acta tertiis nec nocet nec prodest). Para o autor, o princípio da liberdade de contratar se expressa, em seus vários desdobramentos, “na liberdade de contratar ou não contratar, a de plasmar o conteúdo do contrato, a da escolha de com quem contratar, da forma contratual, do tipo contratual, do momento de contratar etc” 38. Xxxxxx de Xxxxxxx igualmente aborda a natureza dúplice da liberdade contratual, estabelecendo, de um lado, a “liberdade de conclusão” do negócio jurídico, “no sentido de ninguém poder ser constrangido a concluir contrato, ou outro negócio jurídico bilateral” e, de outro lado, a “liberdade de determinação do conteúdo negocial”, abrangendo, neste caso, a determinabilidade do objeto e da forma contratual39. Já Xxxxxxx Xxxxx entende que a liberdade de contratar se manifesta por seis maneiras: (1) liberdade de contratar ou deixar de contratar, (2) liberdade de determinar as cláusulas do contrato, (3) liberdade de negociar o conteúdo do contrato parta determiná-lo
37 Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx, ao tratar da autonomia privada, diferencia os conceitos da
“liberdade de celebração” e “liberdade de estipulação”. Vide Xxxxx Xxxx xx XXXXXXXXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p. 416. Ainda sobre este tema, Xxxxxxxx XXXXXX, Teoria Económica do Contrato, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pp.
499-500.
38 Cf. Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx XXXXXXX, “Relatório Brasileiro sobre Revisão Contratual apresentado para as Jornadas Brasileiras da Associação Xxxxx Xxxxxxxx” in Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx XXXXXXX, Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 182.
39 Vide Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984, vol. XXXVIII, pp. 39 e ss.
bilateralmente, (4) liberdade de modificar o regime legal do contrato nas suas normas dispositivas ou supletivas, (5) liberdade de escolher o outro contratante e (6) liberdade de celebrar contratos atípicos. A liberdade de contratar stricto sensu significa que o ato de contratar tem de ser praticado espontaneamente, nunca por imposição ou por obrigação40.
No entanto, para além dos discursos ideológicos ou doutrinários sobre a liberdade contratual plena, é de conhecimento de todos os agentes que atuam no setor de seguros que os conteúdos dos seguros empresariais são geralmente pré-determinados pelos grandes resseguradores internacionais, e mesmo empresas de grande envergadura não conseguem atingir um grau minimamente relevante de intervenção para a formulação desses conteúdos. Ou seja, a “livre negociação”, na prática, não existe. A suposta “liberdade” prevista na Resolução CNSP nº 407/2021 vem na contramão da experiência de décadas no Brasil, como também da conjuntura especial de demandas por infraestrutura que hoje o país vive. Trata-se da liberdade de abuso de quem efetivamente detém o poder econômico em detrimento das garantias dos segurados.
Se antes, nos anos 1930, o Brasil tentou evitar a evasão de divisas, e com isso justificou o mais estrito controle da atividade seguradora e resseguradora, hoje o problema é fundamentalmente evitar o que a inconstitucional Resolução CNSP nº 407/2021 promove: o esvaziamento dos conteúdos dos contratos de seguro conquistados ao longo de décadas, especialmente dos seguros de grandes riscos relacionados com as obras de infraestrutura necessárias para o desenvolvimento do país.
Uma última questão merece ainda ser destacada. O texto da Resolução CNSP nº 407/2021 foi justificado tendo como base o disposto na Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, denominada de “Lei da Liberdade Econômica”. Ora, dentre as várias bizarrices, redundâncias e
40 Cf. Xxxxxxx XXXXX, Novos Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 183.
inconstitucionalidades da “Lei da Liberdade Econômica”41, o artigo 4° da Lei nº 13.874/2019 cria a figura do “abuso do poder regulatório” e configura uma série de situações nas quais poderia ocorrer um “excesso” de regulação pela via regulamentar. O próprio texto do artigo 4º demonstra sua cabal inutilidade ao determinar que não seria possível o “abuso do poder regulatório” no estrito cumprimento da previsão explícita em lei, o que nada mais é do que a repetição do artigo 84, IV da Constituição: o Poder Executivo só pode expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. Obviamente, quando o detentor do poder regulamentar cumpre sua competência constitucional de expedir decreto ou regulamento para a fiel execução da lei, não existe a possibilidade do chamado “abuso de poder regulatório”. De resto, o decreto ou regulamento que ultrapassar o âmbito ou o conteúdo da lei, era e é ilegal. Em suma, segundo a Lei da Liberdade Econômica, suposta norma que legitimaria a edição da Resolução CNSP nº 407/2021, o conteúdo da Resolução consiste em “abuso do poder regulatório” e, portanto, viola a garantia constitucional da reserva de lei.
São Paulo, 08 de junho de 2022.
Xxxxxxxx Xxxxxxxxx
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OAB/SP 146.723
41 Para uma análise das inúmeras inconstitucionalidades e decisões equivocadas da “Lei da Liberdade Econômica” vide Xxxxxxxx XXXXXXXXX, “As Inconstitucionalidades da ‘Lei da Liberdade Econômica’ (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019)” in Xxxx Xxxxxx XXXXXXX; Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx XXXXX & Xxx XXXXXX (coords.), Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro, São Paulo, RT, 2020, pp. 123-152.
SEGURO. RESOLUÇÃO CNSP Nº 407/2021. Constitucionalidade. Poderes normativos da Administração Pública. Delegação legislativa. Capacidade normativa de conjuntura. Decreto-lei 73/1966. COMPETÊNCIA. Competências do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP). RESERVA DE LEI E LIVRE INICIATIVA. Constituição Federal, art. 22, art. 1º, inc. IV; art. 170, caput. O art. 32, IV, do Decreto-Lei 73/1966 não permite ao CNSP produzir normas estruturais sobre o contrato de seguro. Inconstitucionalidade formal da Resolução CNSP nº 407/2021. CONTRATO DE SEGURO. Distinção entre contratos paritários e assimétricos. A Resolução CNSP nº 407/2021 tornou paritário um contrato estruturalmente assimétrico. Presunção simples de assimetria em razão da operação econômica ínsita a esse tipo contratual. LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA. Art. 3º, VIII. O art. 3º da Lei nº 13.784/19 não justifica a alteração das regras gerais sobre o contrato de seguro no caso dos chamados “seguros de grandes riscos”. CÓDIGO CIVIL. A presunção de paridade prevista no art. 421-A do Código Civil, nesta parte modificado pela Lei da Liberdade Econômica, não pode tornar-se “ficção” de paridade, especialmente quando elementos concretos a descaracterizam em qualquer tipo de seguro. EFEITOS DA RESOLUÇÃO CNSP Nº 407/2021. Afastamento de regras protetivas do segurado.
Parecer
Oferecido ao Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), representado por seu Presidente, Dr. Xxxxxxx Xxxxxxxxx,
pela Professora Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx.
De São Paulo para Brasília, em 24 de agosto de 2022.
Índice
Parte I. Das competências do Conselho Nacional de Seguros Privados e da inconstitucionalidade da Resolução nº 407/2021 3
(i) os limites e os critérios da delegação legislativa 4
(ii) os limites do poder normativo estabelecidos pelo art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966 12
Parte II. Dos seguros de grandes riscos 19
Consulta
O ilustre colega Dr. Xxxxxxx Xxxxxxxxx, na qualidade de Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS, associação admitida como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.074, em tramite perante o Supremo Tribunal Federal, dá-me a honra de encaminhar Consulta solicitando meu Parecer sobre a constitucionalidade da Resolução nº 407 de 2021, editada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados.
A Consulta vem acompanhada dos autos integrais da Ação Direta de Inconstitucionalidade sob análise.
Passo a emitir, em separado, o meu Parecer.
De São Paulo para Brasília, em 24 de agosto de 2022.
Judith Martins-Costa
Parecer
1. A Resolução nº 407/211 editada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados
– CNSP, uma das autarquias fiscalizadoras da atividade seguradora no Brasil, estabeleceu para determinados seguros categoria própria (“seguros de grandes riscos”) atribuindo-lhe regime jurídico especial, ao presumi-lo “contrato paritário”, pactuado com ampla liberdade negocial. A medida viola o princípio da reserva de lei, extrapolando o restrito campo da delegação legislativa, admitida, com limites, por jurisprudência e doutrina.
2. A inconstitucionalidade consiste, fundamentalmente, na criação de uma categoria inexistente na lei, qual seja, a do “seguro de grandes riscos”, e na sua submissão a regime jurídico diverso daquele que rege a generalidade dos seguros no Brasil, isentando-o, por meio de uma presunção absoluta, da esfera de proteção legalmente atribuída ao contratante aderente em geral e ao consumidor em especial. É o que se lê nos artigos 2º e 4º, segundo os quais, in verbis:
“Art. 2º Entendem-se como contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos aqueles que apresentem as seguintes características:
(...)
Art. 4º Os contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados e tomadores, ou seus representantes legais, e a sociedade seguradora, devendo observar, no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos:
I - liberdade negocial ampla; (...)
1 A Resolução “dispõe sobre os princípios e as características gerais para a elaboração e a comercialização de contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos”.
IV - tratamento paritário entre as partes contratantes; (...)
VI - intervenção estatal subsidiária e excepcional na formatação dos produtos.
§ 1° O princípio da liberdade contratual de que trata o inciso I prevalece sobre as demais exigências regulamentares específicas que tratam de planos de seguros, desde que não contrariem as disposições desta Resolução, refletindo a plena capacidade de negociação das condições contratuais pelas partes.
§ 2° As condições contratuais do seguro deverão ser negociadas e acordadas, de forma que haja manifestação de vontade expressa dos segurados e tomadores, ou de seus representantes legais, e da sociedade seguradora”.
3. A inédita qualificação viola frontalmente a reserva de lei à matéria prevista no art. 22 da Constituição Federal, porque adentra em espaço reservado ao Poder Legislativo, violando o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
4. A Advocacia-Geral da União, em defesa da constitucionalidade da Resolução, sustenta estarem as modificações amparadas no art. 421-A do Código Civil, não se verificando qualquer ofensa a essa ou a qualquer outra norma de hierarquia superior. Manifestações muito semelhantes de amici curiae de entidades setoriais (Federação Nacional das Empresas de Resseguros – FENABER e Federação Nacional de Seguros Gerais – FENSEG) aderiram à argumentação da Advocacia-Geral.
5. No meu modo de ver, essa argumentação não é sustentável. A Resolução nº 407/2021 inseriu uma distinção inexistente no regime comum, criando categoria inédita
– o “seguro de grande risco” –, e atribuindo-lhe regime diverso daquele traçado no Código Civil, com o que excedeu os poderes legitimamente atribuídos ao CNSP. A Resolução representa o exercício desbordante das competências normativas atribuídas às entidades fiscalizadoras do mercado de seguro pelo Decreto-Lei nº 73/1966, competências estas que
devem ser exercidas nos limites constitucionais da função normativa da Administração Pública.
6. Para deixar mais claras as razões que fundamentam essa conclusão, este Parecer cuidará, em primeiro lugar, dos limites ao poder normativo da Administração Pública e das competências do CNSP previstas no art. 32 do Decreto-Lei nº 73/1966 (Parte I). Em seguida, abordará as regras específicas da Resolução nº 407/2021, comparando-a com o regime jurídico positivo do contrato de seguro, a fim de evidenciar textualmente que a questão é de inconstitucionalidade, e não de mera ilegalidade (Parte II).
Parte I. Das competências do Conselho Nacional de Seguros Privados e da inconstitucionalidade da Resolução nº 407/2021.
7. Ao longo do tempo, as Constituições brasileiras consagraram o princípio da reserva da lei, conotado à competência, e não à hierarquia das fontes normativas.2 Conforme esse princípio, derivado da legalidade,3 é assegurada exclusividade às normas editadas pelo Parlamento,4 com sanção do Chefe da Nação, para disciplinar determinadas matérias, constituindo o “império da lei” uma das garantias do Estado de Direito. Essas garantias se completam com o reconhecimento de uma hierarquia de normas em prol da segurança jurídica, com a fixação de competências e funções próprias de cada Poder, estando a Administração Pública sujeita ao princípio da legalidade em sua ação executiva, assegurado o controle da constitucionalidade das leis e normas regulamentares por parte do Poder Judiciário.5
8. A extensão e o conteúdo específico da reserva da lei, no entanto, são de difícil delimitação. Embora alguns dispositivos sejam taxativos ao exigir a edição de lei em
2 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 86; XXXXXXXXX, X.X. Xxxxx. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 798.
3 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxx X. Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 856.
4 Ressalva-se a possibilidade de o Presidente da República editar medidas provisórias, quando se estiver diante de “caso de relevância e urgência”, e desde que não abarquem as matérias arroladas no art. 62, § 1º da Constituição Federal e de o Parlamento delegar ao Executivo a elaboração de lei por meio da lei delegada, seguindo o previsto no art. 68 da Constituição Federal.
5 Assim, XXXXX XX., Xxxxxx. Reserva de Lei e Poder Regulamentar das Agências Reguladoras. In: XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx X. X. (Org.) Filosofia e teoria geral do direito - Homenagem a Xxxxxx Xxxxxxx Ferraz Junior. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, pp. 885-896. Também, XXXXXX XXXXXXX. Xxxx Xxxxxxxx et al. Lecciones de Derecho Constitucional. Madri: Tecnos, 1995, p. 38.
sentido formal para determinados assuntos, especialmente no que tange ao Direito Penal e Tributário,6 a Constituição Federal, em outras matérias, referiu, no contexto da repartição de competências entre os entes da federação, certos temas como reservados à União (art. 22, Constituição Federal). Esses temas exclusivos à União são regrados pelo Congresso Nacional (art. 48, Constituição Federal). Ante a conveniência política, econômica e gerencial, todavia, o Congresso decidiu atribuir a órgãos e entidades da Administração Pública variado grau de poder normativo, operando a chamada delegação legislativa. Nesse caso, a atribuição de poderes será legítima desde que não esvazie o órgão competente do exercício da própria competência de legislar.
(i) os limites e os critérios da delegação legislativa
9. O tema da delegação legislativa e de seus limites é velho e debatido muito antes de existirem agências reguladoras na ordem jurídica do país.7A experiência constitucional brasileira é avessa à delegação, tendo a proibido expressamente o art. 36, §2º, da Constituição de 1946; o art. 6º da Constituição de 1967 e sua emenda (1969); e o art. 25 do ADCT da Constituição de 1988.8 Contudo, a despeito da vedação formal, fruto do temor da hipertrofia do Poder Executivo,9 sustenta-se que a necessidade de intervenção regulatória do Estado na atividade econômica não permite que toda e qualquer atividade normativa seja desenvolvida exclusivamente pelo Legislativo. Uma leitura adequada da separação dos Poderes não veda esse entendimento, mas o amolda a limites.10
6 CF, Art. 5º, XXXIX – “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal(...)”; “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça(...)”. 7 O trabalho clássico sobre delegação legislativa no Brasil já registrava ser esse um dos temas mais velhos e debatidos do Direito Constitucional brasileiro. Vide: LEAL, Xxxxx Xxxxx. Delegações legislativas. Revista de direito administrativo, vol. 5, 1946, pp. 378-390, p. 378.
8 “Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I - ação normativa; II - alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie. É fato, todavia, que a lei do plano real (lei 9.069/1995), em seu art. 73, estendeu ilimitadamente prazo de 180 dias.”
9 Sobre a falsa equivalência entre a delegação legislativa e o agigantamento do Poder Executivo, cf. XXXX, Xxxxx Xxxxx. Delegações legislativas. Revista de direito administrativo, vol. 5, pp. 378-390, 1946, p. 380. É justamente por esse temor que se adota a visão da Administração Pública como um “braço mecânico do legislador” (cf. XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 138).
10 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. Crítica da “separação dos poderes”: as funções estatais, os regulamentos e a legalidade no direito brasileiro, as “leis-medida”. In: O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 225-256. Em outro contexto, mas acerca desse mesmo ponto, referiu a mesma
10. A forma de acomodar o poder normativo da Administração Pública aos limites da reserva de lei foi estabelecer o distinguo entre a reserva da lei absoluta e relativa. Embora coubesse ao Legislativo desenvolver a atividade normativa “primária” – termo carente de qualquer definição precisa –, o Parlamento poderia atribuir a órgãos e entidades do Poder Executivo a capacidade de editar atos normativos, desde que estabelecidos standards mínimos na lei atributiva da competência. Nesses casos, diz Gustavo Binenbojm, os “critérios de decisão estarão do lado do administrador, que agirá nos limites do âmbito de liberdade que lhe é atribuído.” Na reserva relativa de lei, deste modo, admite-se “a atuação subjetiva integradora do aplicador da norma ao dar-lhe concreção”, seja por meio de atos normativos (gerais), seja pela prática de atos individuais (concretos).11
11. No meu modo de ver, o cerne do problema reside em definir quais parâmetros a lei deve estabelecer para a delegação sem renúncia da competência.12 Estes são encontrados no exame da vasta casuística, construída pelo Supremo Tribunal Federal mediante a comparação entre o núcleo duro e a penumbra do conceito vago13 de “standards mínimos na delegação”. Um dos julgados mais antigos do Supremo Tribunal Federal sobre a delegação legislativa – o HC nº 30.35514 – definiu a posição pragmática da Corte quanto à admissão da delegação legislativa, estabelecendo critérios.
questão o Ministro Xxxxxx Xxxxxx (XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. Liberdade econômica e alienação de empresas estatais: reflexões a partir do julgamento da ADI nº 5.624. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx; XXXXXX, Xxx (Org.). Lei da liberdade econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: XX, 0000, pp. 33-47.
11 XXXXXXXXX, Xxxxxxx. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 157.
12 Para Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão, “a grande questão da matéria do poder regulamentar da Administração Pública não é propriamente a de se determinar a sua extensão [...], mas sim definir qual é a densidade normativa mínima que a sua base legal deve ter para que seja consentânea com o Estado Democrático de Direito e com natureza subordinada do poder regulamentar” (XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de direito administrativo, vol. 236, pp.51-64, p. 57, abr./jun., 2004).
13 Sobre a vagueza semântica no Direito, cf. XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Interpretare e argomentare. Milão: Xxxxxxx, 2011, pp. 52ss. e, muito recentemente, XXXXX, Xxxxxxxx. Teoria da Indeterminação no Direito. Salvador: Juspodivm, 2022. Ainda, o meu XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp.148-160.
14 Tribunal Pleno, Relator Min. Xxxxxx Xxxxx, x. em 21.07.1948 No caso, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, comerciante, foi condenado por cometer um crime contra a economia popular. Ele teria vendido carne acima do valor previsto na tabela editada pela Comissão Central de Preços, a quem competia, por força do Decreto-Lei nº 9.125/1946, definir o preço máximo de serviços, gêneros ou utilidades essenciais (art. 4º), a fim de evitar a elevação do custo de vida no país. O impetrante alegou que uma comissão não poderia controlar o preço máximo de determinados produtos, já que a Constituição de 1946, recém-promulgada, vedava qualquer delegação legislativa em seu art. 36, §2º. Os ministros, unanimemente, negaram a ordem.
12. Xxx fixou o Supremo Tribunal Federal que a proibição constitucional ao Poder Legislativo de delegar suas atribuições deve ser observada em linha de princípio, “sem excluir, todavia, certas medidas a serem adotadas pelo órgão executor no tocante a fatos ou apurações de natureza técnica dos quais dependerá a incidência ou aplicação mesma da lei.” O Min. Xxxxxxxx Xxxxxx, vindo ao encontro do relator, consignou ser “difícil” a aplicação rigorosa da vedação de delegações, devendo o seu campo ater-se “em sua estrutura, ao princípio capital da lei constitucional”, sendo lícito ao Executivo, nesses termos, preencher norma penal em branco, a fim de ser alcançada a finalidade visada pela lei.15
13. Reconhecida como legítima, nesses termos, a delegação legislativa, coube também ao Supremo Tribunal Federal definir seus limites. Em julgados mais recentes, provocados em parte pela inserção das agências reguladoras no Ordenamento brasileiro, mas certamente não apenas,16 o Supremo Tribunal Federal fixou balizas relevantes para a apreciação dos limites à delegação. Havendo fundamento legítimo para a delegação legislativa, calcada na inconveniência de se aguardar a intervenção legislativa ordinária para atingir um certo fim – tal como sempre definiu a jurisprudência, desde ao menos o XX xx 00.000 – , (x) há sempre primazia da lei,17 não sendo admissível a deslegalização, ou seja, não é lícito à Administração Pública, por qualquer forma, derrogar leis;18 (ii) o
15 Destacou-se.
16 No RE nº 343.446, Tribunal Pleno, rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx, x. em 20.03.2003, avaliando norma que atribuída ao regulamento executivo a definição de certos conceitos relevantes para a base de cálculo da contribuição relacionada ao seguro acidente do trabalho, definiram-se os seguintes parâmetros para avaliar a admissibilidade da delegação legislativa “a) a delegação pode ser retirada daquele que a recebeu, a qualquer momento, por decisão do Congresso; b) o Congresso fixa standards ou padrões que limitam a ação do delegado; c) razoabilidade da delegação.” Além de demonstrar a adesão do padrão norte-americano na avaliação da legitimidade da delegação (intelligible principle doctrine), o estabelecimento do critério da razoabilidade e a necessidade de padrões limitadores que evitem o arbítrio, embora conceitos abertos, resultaram no controle de certas delegações – é inadmissível, por exemplo, meramente autorizar o parcelamento de obrigações tributárias pelo Executivo (ADI nº 2.304, Plenário, rel. Min. Xxxx Xxxxxxx, x. em 12.04.2018), mas se admite que o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA) defina, dentro de certas balizas legais (valor máximo de 5 MVR – por volta de R$ 20,00), a taxa para a emissão da Anotação de Responsabilidade Técnica, porque o Conselho consegue definir com melhor precisão que tipo de despesa será custeada com a taxa (RE nº 838.284, Plenário, rel. Min. Xxxx Xxxxxxx, x. em 19.10.2016). Deve-se registrar amplo desenvolvimento jurisprudencial sobre o tema em função da legalidade no Direito Tributário (art. 150, I), prévio inclusive à Constituição Federal de 1988 (cf. XXXXX, Xxxxxxxx. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 377ss).
17 A primazia da lei representa a outra dimensão do princípio da legalidade, complementando a reserva legal, como xxxxxx XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx; BRANCO, Xxxxx X. Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 856.
18 ADIn nº 1.668-MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx. O julgamento da ADIn ocorreu apenas em 2021 (ADIn nº 1.668, Plenário, rel. Min. Xxxxx Xxxxxx, x. em 01.03.2021), em que se confirmaram as limitações ao poder normativo atribuído à ANATEL: não lhe compete afastar a incidência de leis, tampouco elaborar normas próprias sobre a licitação e contratação no setor regulado.
poder normativo da Administração Pública tem como limite material as diretrizes fixadas pelo legislador, que devem ser precisas o suficiente para evitar o arbítrio no exercício das competências, definindo minimamente o quadro normativo a ser preenchido, cabendo à lei definir, v.g., parcialmente a hipótese de incidência e a consequência jurídica da norma, tal como se verifica no tipo penal em branco;19 e (iii) o Legislativo pode apenas delegar a escolha de meios para atingir finalidades claras (v.g., a política pública a ser implementada), justificando-se a delegação pelo viés técnico que a determinação dos caminhos para atingimento dos fins necessita.20
14. Especificamente na regulação da atividade econômica relacionada ao setor financeiro, o critério da conveniência da delegação já fora objeto de consideração do Supremo Tribunal Federal. A necessidade da delegação liga-se, basicamente, à regulação econômica de conjuntura, sendo esse o fundamento a permitir a atuação de autarquias como o Conselho Monetário Nacional – CMN e o Banco Central.
15. No contexto de intenso debate sobre o poder normativo das autarquias do Sistema Financeiro Nacional,21 – modelo para o Sistema Nacional de Seguros Privados (SNSP), objeto desta dessa ação direta de inconstitucionalidade – foi particularmente relevante a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIn nº 2.59122 para definir critérios e limites ao poder normativo da Administração Pública. Naquela ação direta,23 em que se discutiam os limites do poder normativo do CMN, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o órgão detém apenas capacidade normativa de conjuntura, relacionada
19 ADIn nº 4.874, Plenário, rel. Min. Xxxx Xxxxx, x. em 01.02.2018.
20 ADIn nº 4.568, Plenário, rel. Min. Xxxxxx Xxxxx, x. em 03.11.2011.
21 Cf., em especial, CA 35, Tribunal Pleno, rel. Min. Sydney Sanches, j. em 02.12.1987: “Esse poder de criar o direito material é, em princípio, do Legislativo, segundo as competências constitucionalmente distribuídas, cabendo, em outros casos, delegação de poderes normativos complementares a órgãos administrativos, que os exercem como atribuições. É o que acontece com o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil, no campo ora focalizado.” (p. 29). É claro o conflito entre essa posição e a doutrina (v.g., XXXXXXX, Xxxxxxx. Delegação Normativa (limites às competências do C.M.N. e BACEN). Revista de Informação Legislativa, vol. 29, n. 113, pp. 275-306, jan.-mar. 1992). Sempre existiram vozes isoladas que seguiam a mesma argumentação desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal (por todos, TÁCITO, Caio. As delegações legislativas e o poder regulamentar. Revista de direito administrativo, vol. 34, pp. 471-473, 1953).
22 ADIn nº 2.591, Tribunal pleno, rel. p/acórdão Min. Xxxx Xxxx, x. em 07.06.2006.
23 A Confederação Nacional do Sistema Financeiro questionara a incidência do CDC nas relações bancárias, financeiras, de crédito e securitárias, como prevê o art. 3º, §2º, do CDC. Dos argumentos apresentados, o relevante diz respeito à inadequação do CDC para regular as relações do sistema financeiro nacional, uma vez que o CMN teria competência para editar normas mais adequadas ao mercado para cuidar da defesa dos usuários de serviços das instituições financeiras, tal como a Resolução nº 2.878/2001.
ao funcionamento das instituições financeiras, sendo-lhe vedado regular a relação entre banco e cliente, suplantando o CDC.
16. A capacidade normativa de conjuntura é atribuída à Administração Pública justamente para fazer frente ao dinamismo do mercado regulado. A delegação legislativa, nesse setor, justifica-se pela necessidade prática de intervir rapidamente na economia, permitindo a implementação de certas políticas públicas, como o controle da inflação. Porém, não há espaço constitucional para a intervenção na estrutura jurídica mais ampla, competência reservada ao Legislativo. O poder normativo da Administração Pública existe, assim, à medida da necessidade de intervenção célere e conjuntural no mercado para cumprir certos objetivos, sem atingir, todavia, matéria de fundo, integrante da área reservada à competência legislativa.24
17. Como assinala Clèmerson Merlin Clève, “a atividade normativa (discricionária) do Administrador nesta área, deve sempre estar preestabelecida. A lei não pode conceder ao Executivo campo de atuação exasperado e sem linhas paramétricas claras, definidas e incontornáveis.25 O princípio de reserva de lei impõe, portanto, limites aos atos normativos da Administração, que não podem de forma autônoma,26 inovadora, criar no ordenamento jurídico obrigações ou direitos, ou seja, ordenando o que a lei não obriga, facultando o que a lei proíbe ou não concede.27
18. Examinado o princípio da reserva de lei, segundo o qual, no Direito Constitucional brasileiro, a criação ex novo de obrigações ou restrições de direitos é matéria exclusiva de lei, e recordados os parâmetros que balizam a admissão da atribuição de poderes normativos à Administração Pública, é possível avaliar as competências das
24 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. Crítica da “separação dos poderes”: as funções estatais, os regulamentos e a legalidade no direito brasileiro, as “leis-medida”. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 225-256, p. 231. Essa preocupação também transpareceu em decisão relacionada à regulação da previdência privada, como se lê na ADIn nº 2387, cuja ementa consigna: “No caso, o decreto em exame não possui natureza autônoma, circunscrevendo-se em área que, por força da Lei nº 6.435/77, é passível de regulamentação, relativa à determinação de padrões mínimos adequados de segurança econômico-financeira para os planos ou para a preservação da liquidez e da solvência dos planos de benefícios isoladamente e da entidade de previdência privada no seu conjunto” – ADIn nº 2387, Tribunal Pleno, rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxx Xxxxxx, x. em 21.02.2001”.
25 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: XX, 0000, p. 307.
26 XXXXX, Xxxx Xxxxxx, Curso de Direito Constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 406, afirma categoricamente que o regulamento autônomo não encontra guarida em nossa Constituição.
27 XXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A Constituição reinventada, pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Xxx Xxx, 2002, p.460.
entidades do Sistema de Seguros. Se poderá, então, alcançar conclusão acerca da legitimidade da Resolução nº 407/2021 do CNSP, se desbordante, ou não, dos limites apostos ao órgão que a editou.
19. Recorde-se que as competências desse Conselho estão fixadas no Decreto-Lei nº 73/1966, criador do Sistema Nacional de Seguros Privados. Dentre estas, para o que ora importa, está o art. 32 e seu inciso IV, segundo o qual, ao Conselho compete privativamente “[f]ixar as características gerais dos contratos de seguros”. Por meio de competências amplas como essa, espraiadas em diversos outros dispositivos do mesmo Decreto-Lei, permitiu-se que, por meio das instituições do SNSP, a política nacional do seguro, a fiscalização do mercado segurador, e o direito do contrato de seguro se desenvolvessem, até certo ponto, à margem do Congresso Nacional, porque se adotou a técnica de legislar por meio de cláusulas gerais, ponto a ser bem compreendido, dada a sua relevância para o tema em exame.
20. Após a malfadada experiência brasileira com o Departamento Nacional de Seguros Privados (DNSP)28 e com o Decreto-Lei nº 2.063/1940,29 decidiu-se modificar a técnica legislativa de intervenção do Estado no e sobre o mercado de seguro. Em vez de seguir a técnica da casuística,30 estabelecendo um conjunto de regras minuciosamente desenvolvidas, com a previsão, no enunciado, o mais possível exauriente da hipótese legal e das respectivas consequências – como ocorria na anterior lei de fiscalização desse mercado –, passou-se à técnica das cláusulas gerais. Essa espécie normativa se caracteriza por uma estrutura semanticamente “vaga”, “aberta” ou “incompleta”, marcada por uma
28 “No início dos anos 60, o mercado segurador vivia uma série crise. A inflação crescente corroía os valores dos contratos e prejudicava a credibilidade da atividade seguradora. Muitas companhias de seguro estavam desorganizadas, usando suas reservas para gastos administrativos. Não havia fiscalização por parte do órgão encarregado – o Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização (DNSPC) –, totalmente desprovido de pessoal e de recursos”. XXXXXXX, Xxxxxx (Org.). Entre a solidariedade e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 205.
29 Cf. XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 21ss., para a história interna do direito de supervisão da atividade seguradora.
30 Na conhecida proposição de Xxxxxx, o método da casuística há de ser compreendido como aquele que emprega “a configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na sua especificidade própria” (XXXXXX, Xxxx. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1966, p. 188. Desse modo, a casuística “não significa outra coisa senão a determinação por meio de uma concreção especificativa, isto é, a regulação de uma matéria mediante a delimitação e determinação jurídica em seu caráter específico de um número amplo de casos bem descritos, evitando generalizações amplas como as que significam as cláusulas gerais”. (XXXXXX, Xxxx. La idea de concreción a em el Derecho y em la Ciencia Juridica Actuales. Tradução espanhola de Xxxx Xxxx Xxx Xxxxxxxx. Pamplona: Ed. Universidad de Navarra, 1988,
p. 180, em tradução livre).
dupla indeterminação: há indeterminação no enunciado, que utiliza termos semanticamente vagos, e há indeterminação na consequência vinculada ao enunciado, a fim de permitir àquele que é o destinatário da cláusula geral especificá-la ou minudenciá- la no caso concreto.31
21. Consequentemente, ao adotar a técnica da cláusula geral, o Decreto-Lei nº 73/1966 privilegiou enunciados normativos nos quais se encontram conceitos semanticamente abertos, uma vez se destinarem a ser progressivamente preenchidos, com base em determinados critérios, pelas entidades pertencentes ao SNSP à luz das condições concretas da conjuntura econômica. Concedeu-se, assim, à burocracia administrativa, relativamente ampla capacidade de desenhar per se a intervenção do Estado no e sobre o seguro, especialmente por meio do monopólio do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), formalmente supervisionado pelo CNSP.
22. A propósito, o testemunho de Xxxxx Xxxxx, autor da obra mais conhecida no Brasil sobre o contrato de seguro, é esclarecedor: 32
1 – O Departamento Nacional de Seguros Privados, extinto pela nova legislação, tinha duas atribuições fundamentais: a) Fiscalizar as operações de seguros privados em geral [...] b) Zelar os interesses da Fazenda Nacional relacionados com as operações, já citadas [...]. Sua estrutura seguia a orientação dos regulamentos anteriores que, por sua vez, se louvavam no sistema normativo, esclarecido em capítulos anteriores. Através de numerosos dispositivos, estabelecia o regulamento, a priori, o comportamento das empresas de seguros, prescrevendo o que deviam praticar. Desde o nascimento até o encerramento de suas operações, a atividade das seguradoras estava, minuciosamente, prevista num emaranhado de normas regulamentares. Tolhiam a liberdade de adaptação das empresas às mutações do mercado, constantemente trabalhado por forças estranhas à própria atividade seguradora, como, por exemplo, a inflação que desfigurava sua fisionomia. Sistema estático de um processo essencialmente
31 Acerca dessas técnicas legislativas, seja consentido reenviar a: XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 142-146; pp. 174-195.
32 XXXXX, Xxxxx. Política brasileira de seguros. São Paulo: EMTS, 1980, pp. 174-175.
dinâmico, como era o mercado de seguros, não podia surtir os efeitos desejados [...].
2 – A concepção estrutural da nova legislação tem o mérito de permitir a tomada, pronta e eficaz, das medidas reclamadas pela ocasião. Compete ao Conselho fixar as diretrizes e as normas da política de seguros privados. [...]. Com tão amplas atribuições, o Conselho, detém praticamente em suas mãos o poder normativo sobre toda a atividade das empresas de seguros, regulamentando sua constituição e sua organização, estipulando as condições técnicas de suas operações, chegando mesmo a fixar as características gerais dos próprios contratos de seguro.
23. Pelo Decreto-Lei no 73/1966, estabeleceu-se um sistema de seguros nos moldes do Sistema Financeiro Nacional (Lei no 4.595/1964), com três entes responsáveis pela intervenção do Estado.33 De um lado, CNSP e SUSEP, autarquias com atribuições multifacetadas, reflexos do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central (BACEN) no SNSP, deveriam, v.g., estabelecer as diretrizes e concretizar a política nacional do seguro, fixar as condições das apólices utilizadas pelas seguradoras e fiscalizar todos os aspectos da atividade das seguradoras (constituição, exercício, liquidação etc.) e dos corretores de seguro.34 De outro, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), sociedade de economia mista que, além de deter o monopólio do resseguro, regulava o cosseguro e a retrocessão, técnicas de pulverização de riscos.35
24. Todo esse aparato burocrático, destinado a acompanhar a dinamicidade ínsita a esse setor da atividade econômica, permaneceu, entretanto, em grande parte dormente. Pela relevância do resseguro para o mercado, o IRB, praticamente sozinho, definia e conduzia a política de seguros do país. E continuou a assim fazer até os anos 90, quando a desregulamentação e liberalização da economia brasileira redundaram na flexibilização
33 Para as linhas gerais do sistema, cf. XXXXX X XXXXX, Clóvis. O seguro no Brasil e a situação das seguradoras. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxx de (Org.). O direito privado na visão de Clóvis do Couto e Xxxxx.
2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 95-111, pp. 105ss., e XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx.
Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 138ss.
34 Decreto-Lei no 73/1966, art. 32 e 36.
35 Decreto-Lei no 73/1966, art. 44.
da regulamentação, agora definida de forma relativamente autônoma pelas autarquias,36 e no longo processo de quebra do monopólio do resseguro.37
25. Com a redução da influência do IRB nos anos 90, CNSP e SUSEP passaram a exercer efetivamente suas competências normativas. Desde então, e nos últimos 30 anos, o modelo brasileiro de regulação do mercado de seguro produziu um sistema normativo do seguro abrangente, mas volátil, espraiado em um sem-número de circulares e resoluções editadas conforme os ventos políticos à frente da SUSEP.
26. Não há óbice legal a essa atividade, desde que desenvolvida de modo vinculado à lei, destinando-se a completá-la ou a explicitá-la, e conforme às finalidades da regulação do mercado. O problema ocorre quando se afronta, por antinomia clara, o texto legal, o que se verifica com o art. 4º da Resolução no 407/2021, em manifesto excesso aos limites constitucionais ao poder normativo da Administração Pública
(ii) os limites do poder normativo estabelecidos pelo art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966
27. Como xxxxxxx00 melhor será explicitado, a Resolução no 407/2021 modifica regras básicas do contrato de seguro fixadas pelo Código Civil; cria uma categoria inexistente no Direito legislado (seguros de grandes riscos), estabelecendo para esses a ficção de paridade entre as partes, já que o contrato passa a ser considerado paritário; e adota inédito formalismo na conclusão dos negócios jurídicos securitários, ao exigir forma expressa aos contratos cuja formação por manifestação de vontade tácita é admitida. Um sistema avesso como o brasileiro a amplas delegações legislativas concederia ao CNSP o poder de assim amplamente normatizar?
36 Fundamentalmente a SUSEP, já que o CNSP jamais foi órgão deliberativo autônomo: “Segundo o depoimento de alguns entrevistados que foram conselheiros do CNSP no período militar, o organismo era um órgão enfraquecido, sem grande poder deliberativo, uma vez que a área econômica tomava as principais decisões sem trazê-las para a discussão do conselho”. Cf. XXXXXXX, Xxxxxx (Org.). Entre a solidariedade e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 216. Cf. p. 245 para o arranjo das autarquias após os anos 90. Atualmente, a SUSEP define as deliberações do CNSP, sendo responsável, v.g., por todo o trabalho de secretaria (art. 34, XI, decreto no 60.459/1967).
37 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 43 ss.; XXXXXXX, Xxxxxx (Org.). Entre a solidariedade e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de janeiro: FGV, 1998, pp. 244ss.
38 Vide Parte II deste Parecer.
28. Parece-me incontroversa a resposta negativa. Embora o texto do art. 32, IV seja aparentemente singelo, atribuindo ao Conselho Nacional de Seguros Privados o poder de regrar as “características gerais” do contrato de seguro, a norma que se retira desse artigo deve ser amoldada aos parâmetros constitucionais para a delegação legislativa, que vedam a edição de atos normativos como a Resolução nº 407/2021. Para assim concluir, basta voltar aos parâmetros construídos pela jurisprudência e acima sinteticamente elencados.
29. Em primeiro lugar, a regulação conjuntural, justificativa racional para se atribuir ao CNSP – e não ao Congresso Nacional – parte do poder normativo sobre o contrato de seguro, não sustenta a Resolução impugnada. Esta vai para muito além de uma medida conjuntural, como seria, e.g., definir a viabilidade técnica do oferecimento de uma determinada cobertura ou da cobrança de certo prêmio, atividade já referendada pelo Supremo Tribunal Federal em mercado semelhante (previdência privada).39 A Resolução nº 407/2021, ao tornar certos contratos de seguro negócios jurídicos paritários e formais, modifica elemento estrutural, definido pelo Código Civil. Como bem assinalou Xxxxxx Xxxxx ao examinar análogo caso concreto, é indubitavelmente de natureza legislativa o diploma normativo que (i) altere preceitos da legislação em vigor; (ii) aduza novas disposições versando sobre matéria antes não disciplinada pelo legislador; ou (iii) estabeleça novas proibições, conformando o comportamento dos indivíduos e das sociedades por eles constituídas.40
30. Em segundo lugar, também impediria a legitimidade da Resolução o topos da primazia da lei. A normatização promovida pelo CNSP afronta, diretamente, diversos dispositivos do Código Civil (artigos 107, 421, 423, 424, 758). A regulamentação desenvolvida pelo Conselho desconsidera, em absoluto, o conteúdo específico de leis, criando indistintamente exceções às regras gerais, como se suas normas excluíssem a prevalência legal do Código Civil e, no caso da Resolução nº 407, também o Código de Defesa do Consumidor. Tal como discutido no caso ANATEL,41 mostra-se necessário complementar a competência prevista pelo art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966, em
39 ADIn nº 2387, Tribunal Pleno, rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxx Xxxxxx, x. em 21.02.2001.
40 XXXXX, Xxxxxx. Questões de Direito Público. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 174.
41 ADIn 1.668-MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, x. em 20.08.1998.
uma intepretação conforme à Constituição, referindo-se expressamente à submissão do poder normativo do CNSP às normais gerais sobre o contrato de seguro.
31. Em terceiro lugar, não há, no art. 32, inciso IV, do Decreto-Lei nº 73/1966, diretrizes claras, de modo que também o topos da definição parcial da norma não se verifica, assim carecendo também de limites à discricionaridade do administrador. Não trazendo o texto qualquer predefinição da hipótese legal, deve-se extrair os limites à arbitrariedade da Administração Pública das finalidades da regulação declaradas pelo legislador, com o que o topos da definição parcial deve ser complementado pela análise do fim atribuído às entidades do SNSP pelo Decreto-Lei no 73/1966.
32. Os fins a serem perseguidos pelas autarquias securitárias foram estabelecidos no art. 5º do Decreto-Lei no 73/1966: (i) assegurar a solvência das seguradoras, garantindo as condições operacionais necessárias para que as companhias de seguro possam se desenvolver no país (art. 5º, I, segunda parte, II, IV, V); (ii) fomentar a expansão do mercado segurador, integrando-o no processo econômico e social (art. 5º, I, primeira parte, VI).42 Aí estão a pauta e o limite da legitimidade da ação do administrador: esta será legítima apenas para definir meios técnicos voltados a atingir os fins prefixados em lei, guiando-se pela proteção ao segurado e ao beneficiário do seguro, como comanda o art. 2º do Decreto-Lei nº 73/1966, segundo o qual: “O contrôle do Estado se exercerá pelos órgãos instituídos neste Decreto-lei, no interêsse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro.”43
33. Ora, a Resolução nº 407/2021 não persegue nenhuma dessas finalidades. Além de o ato administrativo não guardar qualquer vínculo com a tutela da solvência das seguradoras, a Resolução afasta normas que, ou não se relacionam com a expansão do mercado segurador, como comanda o art. 107 do Código Civil, ou são estabelecidas para
42 “Art 5º. A política de seguros privados objetivará: I - Promover a expansão do mercado de seguros e propiciar condições operacionais necessárias para sua integração no processo econômico e social do País; II - Evitar evasão de divisas, pelo equilíbrio do balanço dos resultados do intercâmbio, de negócios com o exterior; III - (Revogado pela Lei nº 13.874, de 2019) IV - Promover o aperfeiçoamento das Sociedades Seguradoras; V - Preservar a liquidez e a solvência das Sociedades Seguradoras; VI - Coordenar a política de seguros com a política de investimentos do Govêrno Federal, observados os critérios estabelecidos para as políticas monetária, creditícia e fiscal.”
43 Destaquei.
reequilibrar contratos assimétricos, a exemplo do art. 424 do mesmo Código Civil,44 contrariando o escopo tutelar dos segurados no fomento à expansão do mercado.
34. Em suma: uma intepretação constitucionalmente adequada do art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966 limita o poder normativo do CNSP em quatro dimensões: (i) a regulação deve ser conjuntural, pautada pela necessidade de intervenção rápida, a qual não poderia, razoavelmente, ser procedida pelo Congresso Nacional; (ii) a regulação não pode, em nenhuma hipótese, contrariar o conteúdo de lei, dada sua primazia como fonte;
(iii) a regulação deve se ater a balizas, que, no caso, são dadas pela finalidade legalmente cominada ao CNSP e (iv) os dois fins buscados pelas autarquias do SNSP, definidos pelo art. 5º do Decreto-Lei no 73/1966, dirigem a ação do administrador a buscar o interesse dos segurados, garantir da liquidez e solvência das companhias de seguro e fomentar a expansão do seguro. Todavia, a Resolução nº 407/2021 ultrapassa todos esses limites ao poder normativo da Administração Pública. Modifica elemento estrutural do contrato de seguro, afronta a primazia do Código Civil e decorre do exercício arbitrário das competências normativas do CNSP, uma vez que desconformes às finalidades da regulação estabelecidas pelo Decreto-Lei no 73/1966. Sendo assim, o art. 32, IV do Decreto-Lei no 73/1966 não lhe pode servir de fundamento.
35. Acrescem a esses argumentos considerações acerca da própria razão de ser da regulação da atividade seguradora. Seu escopo é dúplice:45 de um lado, assegurar a higidez econômico-financeira das seguradoras, para que as garantias prestadas sejam efetivamente concretizadas, já que o segurado não é capaz de avaliar, quando contrata o seguro, a capacidade de gerir a massa de prêmios da companhia de seguro.
36. Para garantir a liquidez e a solvência das seguradoras, controlou-se historicamente o prêmio mínimo cobrado e a gestão das provisões e reservas constituídas
44 Vide Parte II deste Parecer.
45 Sintetizam Xxxxxxx e Xxxxxxx: “Originally, the goals of insurance regulation were understood and generally agreed on by all concerned. The function of insurance regulation was to promote the welfare of the public by ensuring fair contracts at fair prices from financially strong companies. The market failures that insurance regulation was intended to correct were insolvencies (no matter what their source) and unfair treatment of insureds by insurers. In short, the dual goals of regulation were solvency and equity.” (XXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Therese. Fundamentals of risk and insurance. 11. ed. Nova Jersey: Wiley, 2014, p. 99).
a partir da arrecadação.46 De outro, regula-se o seguro para proteger o segurado, pois esse, incontroversamente, dispõe de menor poder de xxxxxxxx do que as seguradoras (assimetria negocial) e de menos informações sobre o contrato a ser celebrado (assimetria informativa).47 Combatem-se essas assimetrias por meio de um dever de transparência agravado da seguradora, que deve esclarecer adequadamente ao segurado o conteúdo do seguro contratado e elaborar apólices simples e compreensíveis, bem como por meio do controle de cláusulas abusivas.48
37. Os limites à atuação do Estado provêm, ademais, da circunstância de, não sendo a atividade seguradora serviço público, a atividade reguladora no setor dever ser limitada pela livre iniciativa,49 amoldando-se igualmente ao previsto nos arts. 173 e 174 da Constituição Federal. Dessa forma, a direção da atividade econômica das seguradoras pelo Estado é legítima à medida que subsistam razões adequadas para tanto, quer para combater uma falha de mercado, quer para implementar uma política pública.50
38. Assim sendo, os poderes amplos de editar regras gerais do contrato de seguro atribuídos ao CNSP (art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966) e de fixar as condições de apólices concedidas à SUSEP (art. 00, “x”, “x”, “e”, do Decreto-Lei no 73/1966) devem, em respeito à liberdade de iniciativa, seguir os limites impostos pela finalidade da regulação do seguro, isto é, garantir a solvência das seguradoras e proteger o segurado. Para cumprir essas funções, não é necessário – nem constitucionalmente adequado – que autarquias editem regras gerais sobre o contrato de seguro, ou definam integralmente o
46 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 94-97. A doutrina aponta, no entanto, que a garantia da xxxxxxx é tutela do segurado. “A ideia é tão banal quanto indiscutível: o controle do Poder Público sobre o setor de seguros nasce e se desenvolve para que os interesses dos segurados, afiliados e aderentes das companhias de seguros e das sociedades de socorro mútuo sejam garantidos, e de forma cada vez melhor.” Cf. XXXXX, Xxxx (Org.). Traité de droit des assurances. 2. ed., v
I. Paris: LGDJ, 1996, p. 417 – trad. livre). No mesmo sentido, XXXXXXXX, Xxxxx. Derecho de seguros. 5. ed., vol. 1. Buenos Aires: Xx Xxx, 0000, pp. 46 e ss.
47 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 98.
48 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 121.
49 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Atividades privadas regulamentadas. In: XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de (Org.). O poder normativo das agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 167-203 aponta a livre iniciativa como principal limitador da regulação em atividades econômicas em sentido estrito. 50 Cf. XXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Regulação da atividade econômica. 3. ed. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, pp. 23ss.; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx (Coord.) Direito econômico regulatório. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 81-113; pp. 425-469. Dado que a política nacional dos seguros é definida pela própria administração pública (art. 32, I, decreto-lei no 73/1966), dentro de parâmetros genéricos (art. 5º), não é uma política pública específica que legitima a intervenção Estado no mercado. Especificamente sobre os outros fins da regulação do mercado, cf. XXXXX, Xxxxxx. Insurance market regulation: catastrophe risk, competition, and systemic risk. In: XXXXXX, Xxxxxxx. (Org.). Handbook of insurance. 2. ed. Nova York: Springer, 2013, pp. 909-940.
teor do contrato. Especificamente sobre o conteúdo das apólices, basta a intervenção pontual,51 com intensidade variável, como é o paradigma no Direito Comparado, associada a um regime adequado para tutelar contratos não paritários.52
39. Também por essa perspectiva, portanto, não encontra fundamento a Resolução nº 407/2021, à medida que, além de não tutelar o segurado, contradizendo a finalidade da regulação, ela decorre do exercício excessivo do poder normativo da autarquia. Não há, pois, justificativa adequada para a imposição de amplos modelos negociais (tais como ficção de paridade, prescrição de forma ao negócio) pelo CNSP.
40. Entendo, por essas razões, que a análise da Resolução não configura questão de mera ilegalidade, mas sim de inconstitucionalidade. Trata-se da sanção adequada ao regulamento que pretende suprir a lei, nas matérias em que esta é exigida pela Constituição Federal,53 o que é reforçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.54
41. Feitas essas considerações, posso alcançar a primeira conclusão: o art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966, bem como outros dispositivos da mesma lei que atribuem ao CNSP e à SUSEP o poder de intervir nos contratos de seguro,55 devem ser interpretados de forma restritiva à luz da reserva de lei, quer para o Direito Civil, quer para a política
51A virada para um modelo repressivo em vez de prescritivo é sensível nos atos normativos da autarquia. Todavia, não basta, por exemplo, o previsto na recém-editada Circular SUSEP nº 667/2022, de 04.07.2022: “Art. 3º As sociedades seguradoras são responsáveis pelas cláusulas constantes em seus produtos, que devem estar em conformidade com a legislação vigente. [...] Art. 5º Não poderão constar das condições contratuais cláusulas coercitivas, desleais, abusivas, incompatíveis com a boa-fé ou que estabeleçam obrigações iníquas, que coloquem o segurado, beneficiário ou assistido em desvantagem, ou que contrariem a regulação em vigor.” Ao assim editar a norma, a Superintendência reproduziu em grande parte as vedações já constantes na legislação em vigor (art. 104, CC; art. 51, CDC), sem dar qualquer concretude. Isso somente ocorre, v.g., no art. 6º: “Art. 6º A denominação do plano de seguro, incluindo o nome fantasia dos planos de seguros comercializados, se utilizado, não deverá induzir os segurados a erro quanto à abrangência das coberturas oferecidas”.
52 Em grande parte dos sistemas europeus, não há controle geral de conteúdo das apólices desde os anos 90. Na maioria dos casos, o conteúdo das apólices é controlado pelas regras gerais de contratos não paritários (vide, e.g., XXXXXXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxxx. Direito administrativo dos seguros. In: XXXXX, Xxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx. Tratado de direito administrativo especial. Vol. II. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, pp. 376-505, pp. 403ss.; XXXXXXXX, Xxxxx. Il diritto delle assicurazioni. Vol. 1. Pádua: CEDAM, 2011, pp. 468ss; XXXXX, Xxxx (org.). Traité de droit des assurances. 2. ed., vol. I. Paris: LGDJ, 1996, pp. 469ss., que relata uma experiência relevante. Embora a autarquia fiscalizadora francesa possa impor o uso de algumas cláusulas no interesse dos segurados, ela não pode violar a reserva da lei do direito das obrigações. Assim, considerou-se ilegal a imposição de cláusulas que definiam termos como “obras civis” e “obras”, modificando os direitos do segurado, por exceder-se a competência da fiscalização.
53 XXXX, Xxxxxx Xxxxx. Lei e Regulamento. In: XXXX, Xxxxxx Xxxxx. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 74.
54 O tema foi longamente discutido em ADIn 4.874, Plenário, rel. Min. Xxxx Xxxxx, x. em 01.02.2018.
55 Nomeadamente, art. 00, “x”, “x”, “e”, do Decreto-Lei no 73/1966
de seguros (art. 22, I e VII, Constituição Federal), justificando-se apenas quando se tratar de regulamentação conjuntural e for exercido conforme as finalidades da intervenção do Estado sobre a atividade seguradora, a saber: garantia da higidez financeira das companhias de seguro e combate às assimetrias negocial e de informação entre partes. Como consequência dessa interpretação adequada à Constituição do poder normativo do CNSP, o art. 32, IV, do Decreto-Lei nº 73/1966 não permite a edição de atos com o conteúdo que tem a Resolução nº 407/2021.
42. Ainda chegaria a idêntica conclusão se avaliado o caso à luz do poder regulamentar o qual, supostamente, estaria sendo exercido pelo CNSP. Incontroversamente, a Resolução nº 407/2021 não tem origem no poder regulamentar da Administração Pública, como mencionam as manifestações da Advocacia-Geral da União e das entidades de classe (FENABER e FENSEG).56 O Conselho não tem poderes para regulamentar lei, seja ela o Código Civil, seja ela a Lei da Liberdade Econômica. Essa atribuição é privativa do Presidente da República, nos termos do art. 84, IV, c/ par. único, da Constituição.57 Na realidade, o poder normativo do CNSP decorre de delegação do Congresso Nacional: sua fonte é imediatamente a lei, não qualquer ato do Executivo, porquanto os atos da autarquia preenchem o conteúdo normativo do disposto no art. 32 do Decreto-Lei no 73/1966.58
43. Foi o CNSP, portanto, guiado por uma leitura incorreta do art. 32, IV, do Decreto-Lei no 73/1966, ao editar a Resolução nº 407/2021, incorrendo em inconstitucionalidade formal. Ademais, o conteúdo da Resolução está em dissonância
56 A distinção é feita pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (v.g., RE 570.680, tribunal pleno, rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, x. em 28.10.2009). Em julgado recente, o tribunal colocou-a claramente: “2. A função normativa das agências reguladoras não se confunde com a função regulamentadora da Administração (art. 84, IV, da Lei Maior), tampouco com a figura do regulamento autônomo (arts. 84, VI, 103-B, § 4º, I, e 237 da CF).” (ADIn 4.874, tribunal pleno, rel. Min. Xxxx Xxxxx, x. em 01.02.2018). Como registra Vítor Xxxxx Xxxx, a vedação histórica à delegação legislativa foi contornada pela hipertrofia do poder regulamentar (LEAL, Xxxxx Xxxxx. Delegações legislativas. Revista de direito administrativo, vol. 5, pp. 378-390, p. 386, 1946), razão pela qual a doutrina e jurisprudência igualavam as funções a fim de permitir a atuação normativa da administração pública dentro dos limites constitucionais.
57 “O princípio é o de que, no sistema brasileiro, o poder regulamentar é de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo. Autoridade alguma o pode substituir no exercício dessa competência, que, por natureza, é indelegável. Então, trata-se de verificar o significado da ação reguladora das agências do Poder Executivo. [...] Se essas agências não podem criar normas legais nem têm poder regulamentar, que natureza tem sua ação reguladora? Temos, então, três tipos de normatividade: norma de lei, norma regulamentar e norma reguladora? Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx o reconhece: [...]. Essa é uma doutrina aceitável [...].”, XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx. Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 485-486.
58 ADIn 4.874, tribunal pleno, rel. Min. Xxxx Xxxxx, x. em 01.02.2018
com o próprio fundamento sobre o qual se arvora a lícita regulação do Estado. Esse é o tema que agora será mais bem examinado.
Parte II. Dos seguros de grandes riscos.
44. Como já acima anunciado, a inconstitucionalidade da Resolução nº 407/2021 está em seus artigos 2º e 4º, ao criar categoria normativa inexistente na Lei Civil (“seguro de grandes riscos”); ao determinar que esses contratos são de per se paritários, retirando proteção legalmente assegurada ao segurado; e ao exigir manifestação de vontade expressa à formação do contrato. Todavia, a crer-se nas manifestações tanto da SUSEP59 como da Advocacia-Geral da União, a diferenciação entre seguros massificados e de grandes riscos não decorreria do juízo de conveniência e oportunidade do administrador, mas sim da Lei no 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica (LLE). Mais especificamente, decorreria imediatamente das regras sobre intervenção mínima nos contratos empresariais paritários (art. 3º, VIII, LLE) e da presunção de paridade nos contratos empresariais (art. 421-A, Código Civil, conforme modificado pela LLE).
45. Ora, mesmo desconsiderando o vício formal do ato supostamente regulamentar de lei (seja da Lei da Liberdade Econômica, seja do Código Civil), ato privativo do Presidente da República (vide item 42, supra), o conteúdo da Resolução nº 407/2021 não pode ser extraído de qualquer um dos dois textos normativos citados como seu suporte. Merece nova transcrição o próprio texto da Resolução:
“Art. 4º Os contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados e tomadores, ou seus representantes
59 Segundo o parecer eletrônico 6/202/CGRES/DIR1/SUSEP (Disponível no processo SUSEP nº 15414.611072/2020-44, que pode ser consultado no site da autarquia), que introduz e defende a adoção da minuta de resolução, três razões justificariam a introdução da categoria: (i) ao contrário do que ocorre em seguros massificados, segurados têm plena capacidade de negociar com as seguradoras em seguros vultosos, o que justificaria uma menor intervenção do Estado para tutelar os direitos do segurado; (ii) a Lei no 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), em seu art. 3º, VIII, e na modificação que operou no art. 421 do Código Civil, recomenda a intervenção com “viés principiológico” nesse tipo de seguro, legitimando regulamentação distinta da que ocorre nos seguros massificados e (iii) a distinção entre seguros de grandes riscos e massificados está alinhada às melhores práticas internacionais.
legais, e a sociedade seguradora, devendo observar, no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos:
I - liberdade negocial ampla; II - boa fé;
III - transparência e objetividade nas informações;
IV -tratamento paritário entre as partes contratantes; V - estímulo às soluções alternativas de controvérsias; e
VI - intervenção estatal subsidiária e excepcional na formatação dos produtos.
§1º O princípio da liberdade contratual de que trata o inciso I prevalece sobre as demais exigências regulamentares específicas que tratam de planos de seguros, desde que não contrariem as disposições desta Resolução, refletindo a plena capacidade de negociação das condições contratuais pelas partes.
§2º As condições contratuais do seguro deverão ser negociadas e acordadas, de forma que haja manifestação de vontade expressa dos segurados e tomadores, ou de seus representantes legais, e da sociedade seguradora.
§3º É facultada às partes contratantes a adoção das regras constantes de regulamentações específicas de seguros de danos, inclusive em relação aos conceitos e às definições técnicas.
Art. 5º Qualquer alteração no contrato de seguro em vigor somente poderá ser realizada com a concordância expressa das partes contratantes”.60
60 Todos os destaques são meus.
46. Da sua leitura, extrai-se a verdadeira ficção de paridade entre seguradora e segurado em seguros de grandes riscos (“serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados [...] e a sociedade seguradora” – o art. 4º, caput); (a plena capacidade de negociação das condições contratuais pelas partes). A regra ainda determina que as declarações negociais nestes seguros sejam expressas (“as condições deverão ser negociadas e acordadas, de forma que haja manifestação de vontade expressa dos segurados [...] e da sociedade seguradora” – art. 4º, §2º), muito embora tradicionalmente se admita para a formação do contrato a forma tácita.
47. Essas regras estabelecem um regime jurídico específico para os contratos de seguro ditos “de grandes riscos”, destacando-os do tipo contratual geral estabelecido no Código Civil, bem como afastando regras de sua Parte Geral. Em primeiro lugar, excepciona o art. 107 do Código Civil,61 que prevê a liberdade de forma; em seguida, transforma-se uma presunção de paridade, mencionada no art. 421-A do Código Civil, em ficção de paridade – a simetria negocial, que deveria ser ponderada na situação concreta, seria invariavelmente admitida como verdade nesse tipo de contrato.
48. A questão que se coloca, em face dos argumentos sustentados pelo CNSP e Federações a ela aderentes, é se o art. 3º, VIII, da Lei da Liberdade Econômica ou o próprio art. 421-A do Código Civil produziriam as exceções ao regime comum previstas na Resolução nº 407/2021 para os contratos de seguros celebrados com as características ali elencadas (ramos específicos, limites de garantia altos, faturamentos substanciais etc.), como argumentam a SUSEP e a Advocacia-Geral da União. E a resposta parece-nos claramente negativa.
49. O art. 3º, VIII, da Lei da Liberdade Econômica enuncia:
“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
61 Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.
50. Como tem sido acentuado por doutrina não limitada apenas ao parafraseio da Lei, as “novas regras” alardeadas pela Lei de Liberdade Econômica nada substancialmente inovaram, pois os contratos civis que não envolvem relações de consumo e os contratos empresariais sempre foram, prima facie, tidos como “paritários”, sendo os negócios jurídicos a expressão por excelência da autonomia privada. Em rigor, aí se repete cânone hermenêutico milenar do direito (in dubio pro libertate),62 especialmente no Direito das Obrigações, província do Direito Privado na qual a autonomia privada encontra sua máxima expressão. Em rigor, o enunciado legislativo, para além de proclamar o óbvio,63 tem função meramente retórica, a sublinhar o caráter marcadamente ideológico e pleonástico da Lei64 reforçando o já disposto no art. 3º, V, do mesmo texto legal, esse igualmente pleonástico: existindo dúvida se uma determinada norma é cogente ou dispositiva, deve-se adotar a intepretação mais favorável à liberdade de estipulação.
51. Aliás, mesmo que aí tivesse sido introduzida novidade no Direito Contratual, essa regra seria aplicável apenas em casos nos quais o contrato é efetivamente paritário, não podendo ser assim qualificada a maioria absoluta dos contratos de seguro. Mas, ainda que o fosse, a regra não constituiria fundamento suficiente para afastar certas regras do Código Civil, como, e.g, a liberdade de formas (art. 107, Código Civil), que os arts. 4º,
62 Registrado, no mínimo, desde o direito romano – C.7.6.1.11. Não se trata de regra perdida e recentemente retomada. Pontes de Xxxxxxx observa “[N]a dúvida sobre se a regra jurídica é cogente, dispositiva, ou interpretativa, tem-se por dispositiva (cf. O. Xxx Xxxxxx, Deutsches Privatrecht, III, 116).” PONTES DE XXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx. Tratado de direito privado. Tomo XXIII. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 7.
63 “Na realidade, o art. 3º, VIII, da Lei nº 13.874/2019 não precisaria ter sido introduzido em nosso ordenamento, pois encerra talvez a mais básica lição de Direito, sem a qual toda a ordem social e jurídica ruiria: as pessoas e as empresas podem fazer e pactuar o que bem entenderem, desde que não aviltem Lei cogente/de ordem pública.” (FORGIONI, Xxxxx. A interpretação dos negócios jurídicos. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX., Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. (Coord.) Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: XX, 0000, p. 286 (e-book).
64 Assim apontou-se em XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Origem e eficácia da Lei de Liberdade Econômica. In: XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxxx (Coord.) Direito privado na lei da liberdade econômica: comentários. São Paulo: Xxxxxxxx, 0000, p. 36.
§2º, e 5º da Resolução nº 407/2021 pretenderam inconstitucionalmente exceptuar ao exigir manifestação de vontade expressa, afastando, assim, a forma tácita. Por todas essas razões, o art. 3º, VIII, da Lei de Liberdade Econômica não fundamenta a Resolução nº 407/2021.
52. Já o art. 421-A,65 ao contrário do que sustentam os defensores da Resolução nº 407/2021, depõe contra – e não sustenta – o ato do CSNP. Também exorbitando de sua competência, a indigitada Resolução transformou uma presunção legal relativa, vencível a partir de elementos concretos, em presunção legal absoluta (o seguro de grandes riscos é paritário, a despeito de qualquer prova em contrário),66 sem qualquer respaldo na legislação, no Direito Comparado e – de forma mais relevante – na experiência concreta do seguro.67
53. Em primeiro lugar, o CNSP incorre em confusões conceituais de monta, opondo “paritários” a “por adesão”, como se todos os contratos ditos paritários fossem formados por livre negociação e todos os contratos formados por adesão fossem não paritários. Os pares de opostos conceituais aí traçados são enganosos.
54. Como é sabido e ressabido, a operação de seguro milita contra a possibilidade de uma ampla liberdade negocial no contrato de seguro. A técnica securitária sustenta-se na lei dos grandes números,68 segundo a qual, em termos gerais, a precisão de uma previsão estatística da ocorrência de um evento torna-se cada vez melhor quanto maior for a amostragem.69 No seguro, quanto maior for o número de segurados, melhor será a
65 “Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais [...].”
66 Sobre presunções, permite-se referir XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. De princípios, regras, ficções e presunções (e de algumas desastrosas confusões). In: XXXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXX, Xxxxx (Xxxxx.). Direito, Razão e Argumento: a reconstrução dos fundamentos democráticos do Direito Público com base na Teoria do Direito. Liber Amicorum Professor Xxxxxxxx Xxxxx. Salvador: Jus Podivm, 2021, pp. 353- 366.
67 “Em evidência a questão se, diante da disciplina regulatória dos seguros de grandes riscos, com relação a estes se afasta a característica como contratos de adesão que é própria do seguro. A rigor, a definição legal, isoladamente, não é suficiente para a dispensa da qualificação. A par do regime especial instituído para o seguro de grandes riscos, são o contexto fático e as circunstâncias da contratação que deverão dar causa a sua classificação como de adesão ou não”. XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 201.
68 Para o que segue, XXXXX, Xxxx (Org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014, pp. 8 e ss.
69 Basta pensar em um dado: quanto mais jogadas ocorrem, mais fácil é retirar dos resultados concretos a frequência estatística de um resultado específico (quando mais se jogar o dado, mais fácil é inferir dos resultados que a chance de qualquer lado ficar à mostra é de 1/6, o número de lados do cubo).
previsão sobre a frequência e a intensidade dos sinistros (riscos que se realizam e lesam o interesse segurado) contra os quais os consumidores do produto “seguro” pretendem se proteger. Daí dizer-se que o seguro moderno se baseia em atuária e estatística, afastando- se da aposta e da atividade baseada no savoir-faire específico do comerciante.70
55. Mas para que essa lei matemática funcione, uma premissa é fundamental: os riscos devem ser homogêneos. A estatística deve referir-se a um mesmo tipo de risco, cujo cálculo determina o valor cobrado de cada segurado para assim sustentar a comunidade de risco.71 “Não se deve misturar as cenouras com as ervilhas”, resume um famoso tratado francês.72 A garantia de homogeneidade dos riscos, dado que o seguro é um produto jurídico, está na padronização do contrato distribuído pela seguradora, pois, mesmo sendo cada segurado único, a companhia de seguro idealmente obriga-se a garantir o mesmo risco de todos os segurados de um ramo específico.73 Diante desses fatores, é de considerar como regra que, não havendo prova do amplo exercício da liberdade negocial pelo segurado, deve-se presumir que as cláusulas da apólice foram impostas pela seguradora, em prol da uniformização dos riscos garantidos.
56. É bem verdade que essa gestão estatística do seguro, por vezes é relativizada, quer por limitações jurídicas e comerciais, quer por questões mesmo técnicas,74 impedindo seja a companhia de seguro considerada apenas administradora de uma comunidade de risco. Mais do que administradora, a seguradora é uma empresária do risco, que usa de métodos estatísticos e outras técnicas complementares para garantir de forma sólida e adequada uma massa de segurados pelo menor prêmio possível. Como regra, a estatística é a melhor e principal técnica empregada pelas seguradoras para
70 Sobre a história do contrato de seguro, cf. XXXXXXXX, Xxxxx. Il diritto delle assicurazioni. Vol. 1. Pádua: CEDAM, 2011, pp. 50 ss.
71 Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxx, a propósito da atividade das seguradoras modernas, observa: “Assistimos, pois, a uma inversão do ciclo de produção: o preço do serviço é estabelecido antes de o segurador conhecer o correspondente custo, que só conhecerá efectivamente depois de regularizar todos os sinistros ocorridos durante o exercício”. XXXXXXXX XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Da incerteza ao risco: as técnicas seguradoras e o seu referente, num diálogo com Xxxxxx. Boletim de Ciências Económicas, ano 57, vol. 2, pp. 2143-2210, p. 2144, 2014.
72 XXXXX, Xxxx (org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014, p. 9.
73 “Ocorre que o contrato de seguro, talvez mais do que qualquer outro, exige a padronização. Está é um dos alicerces da técnica securitária [...].”, XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 121.
74 XXXXX, Xxxx (Org.). Traité de droit des assurances. Vol. III. 2. ed. Paris: LGDJ, 2014, p. 13.
elaborar seus produtos, especialmente porque torna autossuficiente uma comunidade de risco.75
57. Presentes esses dados de realidade, é fácil constatar, em segundo lugar, que os “elementos concretos”, mencionados no artigo 421-A, já estão presentes na própria operação de seguro. Há presunção simples, derivada da experiência, de que o contrato de seguro – mesmo o de grandes riscos – é formado por adesão a contrato predisposto, sendo concluído entre partes assimétricas do ponto de vista negocial e informacional. O ônus de prova, assim, é da seguradora, a quem compete demonstrar que, ao contrário do que normalmente acontece, aquele contrato específico foi substancialmente negociado entre partes com poder econômico e conhecimento sobre o conteúdo da apólice de seguro semelhantes.
58. Esses fatores constituem, em síntese, os “elementos concretos” referidos no texto legal para justificar o afastamento da presunção de paridade. Resta, por fim, demonstrar as consequências perniciosas de classificar equivocadamente um contrato desequilibrado como paritário, e lembrar que as consequências daquele ato se espraiam para além da inconstitucionalidade formal, atingindo a própria proteção ao consumidor, de ordem constitucional (art. 5º, XXXII, Constituição Federal) e ao aderente, cuja proteção é de cunho legal (Código Civil, art. 423 e 424).
59. Contratos paritários ou simétricos opõem-se a contratos assimétricos ou desequilibrados. Nestes existe uma diferença substancial de uma das partes entre o conhecimento sobre aspectos relevantes do negócio, entre o poder de barganha ou entre a capacidade de imposição de cláusulas das partes do contrato. Por isso, é justificada uma tutela específica da parte contratual negocialmente deficiente,76 quer seja a tutela
75 “O segurador que abrir mão da padronização contratual em benefício de um segurado prejudicará a si e aos demais segurados.” (Assim, XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito de seguros. São Paulo: Atlas, 2006, p. 121). Nesse caso, seria necessário, v.g., utilizar resultados de um dos grupos que compõem a carteira da seguradora para compensar as deficiências de outro.
76 “A tripartição classificatória dos contratos entre contratantes formalmente iguais, contratos entre empresas e contratos consumeristas se enriquece com uma nova categoria: o contrato assimétrico, no qual a assimetria (informativa, de poder negocial, de poder de imposição) não diz respeito apena ao consumidor, mas igualmente à pequena empresa, e, de forma mais geral, a parte exposta ao abuso de poder econômico da contraparte” ALPA, Xxxxx. Le stagioni del contratto. Bolonha: Mulino, 2012, p. 143. (trad. livre). O contrato assimétrico, é importante frisar, não se relaciona com o contrato desequilibrado na perspectiva da comutatividade (a ensejar a aplicação de institutos como a lesão e a resolução por onerosidade excessiva). Embora o combate do equilíbrio do contrato arvore-se na justiça comutativa, no caso do contrato assimétrico, trata-se de um desequilíbrio de poder, enquanto o controle da comutatividade, seja genética,
assegurada por meio de legislação específica, como o Código de Defesa do Consumidor, quer por meio de regras gerais dirigidas aos contratos formados por adesão, ainda que a parte contratualmente fraca não se qualifique como “consumidor” para os efeitos do art. 2º da Lei no 8.078/1990, assim sendo as regras dos artigos 13, § 1º, inc. IV e 423 e 424 do Código Civil.
60. A Resolução nº 407/2021 afasta a proteção devida tanto aos consumidores (tenham ou não negociado as condições contratuais) quanto aos contratantes aderentes em geral, ambas personagens de relações contratuais assimétricas. Ao etiquetar como ficcionalmente paritário tout court o contrato de seguro de grandes riscos, acaba por alijá- lo da proteção assegurada pelo Ordenamento aos contratos celebrados com consumidores, destinatários finais de um serviço ou produto (art. 2º, CDC), e aqueles formados por adesão de um dos contraentes a cláusulas unilateralmente predispostas pelo outro (Código Civil, arts. 423 e 424).
61. Em si mesmo considerada, a operação de seguro restringe substancialmente a liberdade negocial no contrato de seguro, dado que a padronização dos riscos e as técnicas estatísticas são a forma mais recomendada de desenvolver a empresa seguradora (vide itens 54-57, supra). E, mesmo que haja alguma variação no conteúdo da apólice para se adequar às necessidades de segurados, como é o caso nos seguros chamados “tailor- made”, as alterações ou já são pré-estabelecidas por cláusulas elaboradas pela própria seguradora (condições especiais e particulares), ou são muito pontuais, limitadas pela linguagem e pelo costume do próprio mercado segurador. Logo, apenas em circunstâncias marcadamente extraordinárias o seguro não será um contrato concluído por adesão.
62. Por outro lado, o fato de um seguro ser celebrado por uma pessoa jurídica e envolver valores vultosos não o retira automaticamente da proteção do CDC. Nesse ponto, além de a redação do enunciado constante da Resolução no 407/2021 confundir parte formal (quem emite declaração negocial) e parte substancial (quem ocupa o conjunto de posições jurídicas constituídas pelo negócio jurídico),77 pode inclusive afastar a proteção legal ao consumidor segurado. Porém, em seguros coletivos ou no
seja funcional, ata-se a um desequilíbrio de valor (LASBORDES, Victoire. Les contrats déséquilibrés. Vol.
1. Aix-en-provence: PUAM, 2000, p. 45.) Versei o tema em: XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, pp.320-321.
77 XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx. A parte contratual. In: XXXXXX, Xxxxxxx X. von (Coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 755-764.
seguro à conta de outrem, existem segurados que satisfazem as características estabelecidas no art. 2º daquela Resolução – portanto, encontrando-se sujeitos à sua incidência – e permanecem sujeitos ao regime do CDC. Assim, por exemplo, uma fundação artística que celebra um seguro de danos para proteger seu acervo milionário.
63. Não por outra razão, o par conceitual oposto utilizado na prática internacional é outro. Nos termos empregados pelo Relatório da Comissão Especializada em Direito Europeu os Contratos (o qual baliza boa parte da prática internacional), a definição se dá pela negativa: o seguro de grandes riscos é aquele que não se qualifica como “seguro de massa”. “Large risks” se opõe, assim, a “mass risks”, para significar a possibilidade (e não a obrigatoriedade) de haver uma maior margem para se atender às necessidades particulares das partes. Mas mesmo esses podem ser formados por adesão, total ou parcial, a regras unilateralmente estabelecidas, e não escapam à incidência de regras legais cogentes.78
64. Ora, classificar os contratos de seguro como contratos paritários, tout court, significa afastá-los do regime protetivo específico no direito brasileiro. Classificá-los assim, por meio de uma presunção absoluta, mais próxima a uma ficção, como faz a Resolução nº 407/2021, é tolher os mecanismos compensatórios da assimetria negocial entre partes. Os efeitos práticos da reclassificação do contrato de seguro de grande risco como paritário, pelo mínimo, afastam as regras protetivas à parte mais fraca no contrato de adesão previstas no Código Civil (art. 423 e 424); e apartam o seguro de grande risco do regime geral protetivo do CDC.
65. Por todas as razões até aqui assinaladas, posso alcançar a segunda conclusão: a Resolução nº 407/2021, introduzindo modificações relevantes no regime jurídico dos contratos de seguro de grandes riscos, extrapola a competência conferida ao CNSP, não sendo possível derivar de qualquer outra norma prévia o conteúdo específico de ficção de paridade e de forma prescrita. Além disso, ao regular o contrato de seguro de grandes riscos, o CNSP afastou normas legais protetivas relevantes, aplicáveis mesmo quando o segurado satisfizer os requisitos estabelecidos no art. 2º da Resolução nº 407/2021.
78 O tema foi examinado em: XXXXXXX XXXXX, Xxxxxx e XXXXXX, Xxxxxx. A cláusula de ensuing loss nos seguros all risks. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxx e TOLEDO PIZA, Paulo. Direito do Seguro Contemporâneo. Edição Comemorativa aos 20 anos do IBDS. Vol. II. São Paulo: Roncarati, 2021, pp. 13- 44.
66. Examinado o tema sob todos os ângulos de análise que enseja, posso conclusivamente, afirmar: (i) Há inconstitucionalidade formal por violação da reserva da lei (art. 22 da Constituição Federal). A Resolução nº 407/2021 excede uma regulação conjuntural, estando desalinhada com os fundamentos da regulação da atividade seguradora e invadindo espaço reservado à lei em sentido formal (vide itens 8-43, supra);
(ii) a mesma Resolução inova no ordenamento jurídico, pois nenhum dos seus dispositivos pode ser derivado da Lei da Liberdade Econômica, como alegado, para além de produzir consequências nocivas que eliminam proteção assegurada legal e constitucionalmente aos consumidores e aos contratantes por adesão em geral (vide itens 44-65, supra).
É o meu Parecer.
De São Paulo para Brasília, em 24 de agosto de 2022.
Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx