ISSNe n.º 2763-5910 / Ano XIV Nº 19 2º semestre de 2021
ISSNe n.º 2763-5910 / Ano XIV Nº 19 2º semestre de 2021
Contratação de artistas por inexigibilidade de licitação: cautelas e pressupostos legais
Hiring Artists due to Bidding not Enforceable: Precautions and Legal Assumptions
Contratación de Artistas por Licitación no Ejecutiva: Precauciones y Supuestos Legales
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx0 RESUMO
O artigo enfatiza a importância de se conhecer, em profundidade, os requisitos e pressupostos legais e constitucionais que permitem a contratação direta de artistas, mediante processo de inexigibilidade de licitação, em conformidade com o entendimento doutrinário e jurisprudencial, tendo por objetivo primordial prevenir a ocorrência de danos ao erário, e, secundariamente, buscar a responsabilização dos gestores que descumprirem as regras postas para a contratação direta.
Palavras-chave: Licitação; Inexigibilidade; Setor Artístico.
ABSTRACT
The article emphasizes the importance of knowing, in depth, the legal and constitutional requirements and the assumptions that allow the direct hiring of artists, through a non-mandatory bidding process, in accordance with
1 Promotor de Justiça no Estado do Tocantins e especialista em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Tocantins (Esmat).
the doctrinal and jurisprudential understanding, with the main objective to prevent damage to the treasury and, secondly, to seek the responsibility of managers who do not comply with the standards established for direct hiring.
Keywords: Bidding; Unenforceability; Artistic Sector.
RESUMEN
El artículo enfatiza la importancia de conocer, en profundidad, los requisitos legales y constitucionales y los supuestos que permiten la contratación directa de artistas, a través de un proceso de licitación no obligatoria, de acuerdo con el entendimiento doctrinal y jurisprudencial, con el objetivo principal de prevenir el daños a la tesorería y, en segundo lugar, buscar la responsabilidad de los gerentes que no cumplan con las normas establecidas para la contratación directa.
Palabras clave: Licitación; Ineforzabilidad; Sector Artístico.
Introdução
O país do carnaval é o nome do primeiro romance de Xxxxx Xxxxx, referindo-se ao Brasil, e talvez o seja mesmo, pois os nativos deste país são mundialmente conhecidos por serem acolhedores, felizes e festivos, costumam marcar presença, aos milhares, além daquela festa pagã, também em outras datas e eventos comemorativos, como Réveillon, festas juninas, festas de rodeios e shows em praças, comumente patrocinados com dinheiro público, notadamente oriundo das Prefeituras Municipais.
Na hora da festa, “tudo são flores”, muitos foliões não estão interessados em saber a origem dos recursos que viabilizaram a realização do evento, nem tampouco como serão aplicados, alguns sequer se importarão com eventual ocorrência de superfaturamento de preços ou fraude, consoante já advertiu Xxxxxxx (2015, p. 97):
Ninguém quer saber a origem dos recursos ou como eles foram aplicados. Ninguém vai denunciar no programa policial de rádio ou televisão a má aplicação dos recursos públicos em uma festa na cidade. Pouco importa se houve superfaturamento dos serviços contratados, causando prejuízo ao erário, ou mesmo enriquecimento ilícito dos empresários artísticos, ou ainda violações aos princípios da administração pública. As pessoas querem mais é assistir show de graça!
Mas por se tratar de dinheiro público, a prestação de contas é dever indeclinável do gestor, mormente perante os Tribunais de Xxxxxx, que cumprindo seu mister constitucional, não têm olvidado de responsabilizar os malversadores do erário, consoante se verifica do Acórdão exarado nos autos da Representação nº 951934, da Primeira Câmara do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, in verbis:
RE PRE SE NT AÇÃO. PRE FE IT URA MUNICIPAL . CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARA REALIZAÇÃO DE SHOWS POR INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE EXCLUSIVIDADE DE EMPRESÁRIO CONTRATADO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA DE PREÇOS NOS PROCESSOS DE INEXIGIBILIDADE. PAGAMENTO ANTECIPADO DAS DESPESAS DECORRENTES DOS PROCEDIMENTOS DE INEXIGIBILIDADE EM ANÁLISE. IRREGULARIDADES. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA REPRESENTAÇÃO. APLICAÇÃO DE MULTA AO PREFEITO
MUNICIPAL À ÉPOCA.1) Conforme decisão proferida na Denúncia n. 838396, apreciada na Sessão da 2ª Câmara do dia 31/10/2013, o Tribunal diferenciou o empresário exclusivo do mero intermediário, que é aquele que agencia eventos em datas específicas. Para configurar a hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso III do art. 25 da Lei de Licitações, a contratação deve se dar diretamente com o artista ou com seu empresário exclusivo, que é aquele que gerencia o artista de forma permanente. 2)Nas contratações por inexigibilidade de licitação, o art. 26, parágrafo único, da Lei n. 8666/93 determina que os processos sejam instruídos com a justificativa do preço contratado. 3)A liquidação de despesa em data anterior à prestação do serviço, bem como o pagamento antecipado caracteriza violação aos arts. 62 e 63 da Lei n. 4.320/64; assim sendo, os contratos firmados deveriam conter cláusulas que fizessem referência a essas despesas, bem como, a forma em que ocorreria o pagamento, de acordo com as necessidades da Administração Pública.
Objetivando prevenir responsabilidades administrativas e judiciais, facilmente evitáveis, e poupar os escassos recursos públicos desta nação, propõe este estudo focar os requisitos legais que permitem a contratação direta de artistas, por meio de processo de inexigibilidade de licitação e sua interpretação à luz da doutrina e jurisprudência.
1. Da obrigatoriedade de licitação
O ordenamento jurídico pátrio determina que os contratos administrativos sejam precedidos de licitação, competindo ao gestor escolher a proposta mais vantajosa ao interesse público, segundo a regra preconizada no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal e art. 2º da Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações).
Discorrendo sobre o assunto, Xxxxx (2012, p. 60 e 62) xxxxxx que:
A maior vantagem apresenta-se quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. Portanto, a maior vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração Pública (…) O Estado dispõe de recursos limitados para custeio de suas atividades e realização de investimentos. Portanto a vantagem para o Estado se configura com a solução que assegure os maiores benefícios para a aplicação de seus recursos econômicos financeiros. O Estado tem o dever de realizar a melhor contratação sob o ponto de vista da economicidade. A economicidade é o resultado da comparação entre os encargos assumidos pelo Estado e direitos a ele atribuídos, em virtude da contratação administrativa. Quanto mais desproporcional em favor do Estado o resultado dessa relação, tanto melhor atendido estará o princípio da economicidade. A economia exige que o Estado desembolse o mínimo e obtenha o máximo e o melhor. Em princípio, a economicidade se retrata no menor preço pago pelo Estado ou no maior lance por ele recebido, conforme a natureza da contratação.
No mesmo sentido é o magistério de Xxxxx (1992, p. 573):
O princípio da licitação significa que essas contratações ficam sujeitas, como regras, ao procedimento de seleção de propostas mais vantajosas para a administração pública. Constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público
2. Da inexigibilidade de licitação com fincas no
art. 25, inciso III, da Lei nº 8.666/1993
Ocorre que nem sempre a competição se afigurará possível, prevendo
a Lei nº 8.666/1993 hipóteses de inexigibilidade de licitação, sendo uma
delas a contratação de artistas profissionais, de qualquer segmento (música, artes cênicas, plástica, etc.), desde que consagrados pela crítica especializada ou pela opinião pública. Neste particular, confira-se o seguinte dispositivo legal:
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
[…]
III – para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
Na hipótese em referência, a inviabilidade de competição decorre da singularidade e subjetividade que caracteriza o trabalho dos artistas, características estas que os tornam únicos no segmento profissional em que atuam, pois “(…) no tocante aos serviços artísticos, a singularidade reside na própria natureza do serviço, que é prestado, de modo independente da figura do artista, com percepção pessoal, subjetiva, em resumo, singular.” (XXXXXXX, 2008, p. 131).
É prática antiga o poder público oferecer espetáculos aos cidadãos, estando imortalizada na conhecida expressão “pão e circo” (panem et circenses), que remonta à praxe romana de agradar a população, um estratagema subliminar para mantê-la fiel à ordem estabelecida e alheia aos desmandos dos imperadores.
Malgrado alguns governantes tenham feito (e ainda fazem) mau uso do dinheiro público com o entretenimento do povo, forçoso reconhecer que o direito à cultura, no Brasil, goza de status constitucional, sendo obrigação do Estado garantir a todos o seu pleno exercício, consoante entendimento expresso no art. 215 da Constituição Federal. Nessa senda, mostra-se relevante a importância de se conhecer, em profundidade, as regras infraconstitucionais que regulamentam a contratação de shows e espetáculos artísticos pela administração pública, em especial a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993).
Doravante, passemos a dissecar a inexigibilidade de licitação de que trata o art. 25, inciso III, da Lei nº 8.666/1993.
Impende destacar, inicialmente, que o gestor público não poderá contratar artistas como bem lhe aprouver, sua atuação é balizada sob o império da lei, que exige que a contratação seja documentada através de procedimento formal de inexigibilidade.
Assim, a contratação de profissional de qualquer setor artístico demandará contrato firmado pelo próprio contratado ou por meio de empresário exclusivo, ademais, o artista deverá ser consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. Impõe-se, também, a observância do art. 26 da mesma lei, que preleciona:
Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2º e 4º do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8º desta Lei deverão ser comunicados, dentre de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que
justifique a dispensa, quando for o caso;
II - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço;
IV - documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Inobstante ser inexigível o processo de licitação, a lei impõe ao administrador formalidades mínimas para a escolha do contratado, que serão documentadas nos autos de um processo de inexigibilidade.
Sobreleva anotar que, em acréscimo aos requisitos do art. 25 da Lei de Licitações, o art. 26 deste diploma exige a publicação, na imprensa oficial, da inexigibilidade, da razão da escolha do fornecedor ou executante e da justificativa do preço, formalidade esta voltada ao controle social e fiscalização pelos órgãos de controle, com o propósito de obstar dano ao erário em decorrência de eventual superfaturamento de preços.
Mas o erário não restará devidamente protegido se os órgãos de controle, dentre os quais o Ministério Público e o Tribunal de Contas, se apegarem apenas ao exame da legalidade estrita. Estes devem ir além, voltando sua atenção para os aspectos de legitimidade e economicidade, nos termos preconizados pelo art. 70 da Constituição Federal e arts. 25 e 26 da Lei de Licitações.
A legitimidade das despesas será adequadamente aferida se devidamente ponderados os direitos fundamentais catalogados na Carta Magna.
Nesse particular, é notório perceber que a discricionariedade do administrador se viu deveras diminuída, uma vez que a Constituição Federal, inobstante imponha ao Estado o dever de promover a cultura, elegeu as políticas públicas prioritárias, sendo estas as despesas com saúde e educação, e essa constatação avulta dos artigos 212 e 216, § 6º, tendo em vista que, na dicção do art. 212, observa-se imposição aos entes federados no aspecto da vinculação de parcela da arrecadação tributária, ao passo que o art. 216,
§ 6º, faculta a vinculação da reportada receita.
E a Constituição Federal dá mais um passo importante ao prever, no art. 167, inciso IV, uma exceção à regra da impossibilidade de vinculação da receita proveniente de impostos, nos casos de repasses destinados à saúde e à educação.
Em comentário à referida exceção, Xxxxxxxx (2010, p. 287/288) acentua que:
Na sequência, o constituinte originário efetuou a primeira decisão sobre o valor que deveria pairar sobre os demais: estabeleceu no art. 212 da CF o dever da União aplicar nunca menos de dezoito por cento (18%) e os Estados, Municípios e o Distrito Federal, vinte e cinco por cento (25%), no mínimo, ‘da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Logo, o valor maior encampado pelo constituinte originário foi o do ensino. Privilegiou-o inequivocamente com a maior dotação orçamentária e estabeleceu exceção ao princípio da não vinculação orçamentária (…).
Em arremate, o mesmo autor assevera:
Na sequência, o constituinte derivado, por força da EC n. 29/2000, assegurou recursos específicos às ações e serviços públicos de saúde (art. 198). O § 2º do art. 198 estabelece a forma de vinculação de recursos a tais ações e serviços. Abriu-se nova exceção ao princípio da não vinculação de impostos (inciso IV do art. 167 da CF). A segunda opção do constituinte foi destinada às ações e serviços de saúde. Elencou, pois, dois direitos que entende serem essenciais, quais sejam: educação e saúde. Dois valores a que deu relevância constitucional.
Nota-se, a toda evidência, que a Constituição Federal, em juízo de ponderação, fez clarividente opção pelos direitos fundamentais à saúde e a educação, em face do também constitucional direito à cultura, e em abordagem específica a este tema, discorreremos sobre certos parâmetros de conformidade na contratação de artistas para a realização de shows e eventos, à luz da Lei de Licitações.
Inicialmente, competirá ao ente público entabular avença com o próprio contratado, a fim de se evitar oneração demasiada do erário com eventual intermediário, que somente será aceito na qualidade de empresário exclusivo, é dizer, o que representa o artista de modo estável e duradouro, não permitindo a lei que o vínculo se circunscreva a uma singela autorização para se apresentar numa dada ocasião ou por curtos períodos. Nesse sentido caminha a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), nos termos do Acórdão nº 1.435/2017 (Plenário), in verbis:
9.2.1. a apresentação apenas de autorização/atesto/carta de exclusividade que confere exclusividade ao empresário do artista somente para o (s) dia (s) correspondente (s) à apresentação deste, sendo ainda restrita à localidade do evento, não atende aos pressupostos do art. 25, inciso III, da Lei 8.666/1993, representando impropriedade na execução do convênio;
9.2.2. do mesmo modo, contrariam o sobredito dispositivo legal as situações de contrato de exclusividade — entre o artista/banda e o empresário — apresentado sem registro em cartório, bem como de não apresentação, pelo convenente, do próprio contrato de exclusividade;
9.2.3. tais situações, no entanto, podem não ensejar, por si sós, o julgamento pela irregularidade das contas tampouco a condenação em débito do (s) responsável (is), a partir das circunstâncias inerentes a cada caso concreto, uma vez que a existência de dano aos cofres
públicos, a ser comprovada mediante instauração da devida tomada de contas especial, tende a se evidenciar em cada caso, entre outras questões, quando:
9.2.3.1. houver indícios de inexecução do evento objeto do convênio; ou
9.2.3.2. não for possível comprovar o nexo de causalidade, ou seja, que os pagamentos tenham sido recebidos pelo artista ou por seu representante devidamente habilitado, seja detentor de contrato de exclusividade, portador de instrumento de procuração ou carta de exclusividade, devidamente registrados em cartório.
No mesmo norte decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais, confira-se:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA- IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA- RECURSO INTERPOSTO PELOS HERDEIROS DO RÉU – PROCEDIMENTO DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO – CONTRATAÇÃO DE ARTISTAS POR INTERMÉDIO DE PESSOA JURÍDICA – EXCLUSIVIDADE NÃO DEMONSTRADA 0 ILEGALIDADE – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DO AGENTE POLÍTICO NÃO DEMONSTRADO – PREJUÍZO AO ERÁRIO – AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO
– SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS – MULTA CIVIL E RESSARCIMENTO AO ERÁRIO – TRANSMISSÃO AOS HERDEIROS – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE CONDUTA TIPIFICADA NOS ART. 9º E 10 – ENTENDIMENTO CONSOLIDADO DO COL. STJ – EXTENSÃO DOS EFEITOS AO LITISCONSORTE – POSSIBILIDADE – ART. 1005 DO CPC/2015
– MANUTENÇÃO DA PROIBIÇÃO DE CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO – LIMITAÇÃO DO PRAZO A 03 (TRÊS) ANOS – ART. 12, INCISO III DA LEI FEDERAL Nº 8429/92 –
RECURSO PROVIDO. 1. A Lei Federal nº 8.666/93, em seu art. 25, inciso III, reconhece a inexigibilidade do procedimento licitatório para contratação de artistas, autorizando a intermediação por empresário, desde que possua exclusividade para representar os músicos contratados. 2 – Exsurge ilegal, no entanto, a instauração de procedimento de inexigibilidade de licitação para contratação de artistas, por intermédio de pessoa jurídica, notadamente quando não demonstrado nos autos a exclusividade para representar os músicos contratados. 3 – Em que pese a
irregularidade do procedimento de inexigibilidade de licitação instaurado pelo ex-Prefeito Municipal, contrariando o disposto no art. 11 da Lei Federal nº 8.429/92, não restou comprovado nos autos que o agente político auferido enriquecimento ilícito, tampouco que sua conduta tenha resultado em prejuízo ao erário, tendo em vista que incontroverso que os serviços foram efetivamente prestados. 4
– Conforme entendimento consolidado do col. Superior Tribunal de Justiça “ a multa civil é transmissível aos herdeiros, “ até o limite do valor da herança”, somente quando houver violação aos arts. 9º e 10 da referida lei (dano ao patrimônio público ou enriquecimento ilícito), sendo inadmissível a transmissão quando a condenação se restringir ao art. 11” (REsp 951.389/SC, Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxxxx, Primeira Seção, DJe 4/5/2011). 5- Não comprovado o enriquecimento ilícito do agente político ou que sua conduta tenha resultado em prejuízo ao erário, não se encontram presentes, em relação ao ex- Prefeito Municipal, nenhuma das condutas tipificadas no art. 9º e 10 da Lei Federal nº 8.429/92, inviabilizando, assim, a transmissão da multa civil aos herdeiros na esteira do entendimento consolidado do col. STJ. 6 – O recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, na forma do art. 1005 do CPC/2015, razão pela qual não comprovado o prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito decorrente da contratação, deve ser afastada a aplicação das penalidades de multa civil e ressarcimento ao erário, também em relação ao particular contratado. 7 – Havendo, no entanto, vulneração aos princípios da administração em razão da irregularidade no procedimento de contratação, justifica-se a manutenção da proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 03 (três) anos, na forma do art. 12, inciso III da Lei Federal n° 8.429/92. 8 – Recurso provido (TJ-MG – AC: 10133120039275001 MG, Relator: Xxxxxx Xxxxxxx, Data de Julgamento: 01/09/0019, Data de Publicação: 13/09/2019) (Grifo nosso).
No que diz respeito à consagração do artista pela crítica especializada ou pela opinião pública, é lícito concluir que se trata de requisitos alternativos, sendo possível, na prática, a contratação de profissional que, não obstante idolatrado pelo público, tenha sido reprovado por respeitáveis personalidades da crítica especializada, ou vice-versa. Advirta-se, contudo, que será irregular a contratação de um profissional do setor artístico que, desafortunadamente, não tiver “caído nas graças do povo” e tampouco sido aprovado pelos críticos especializados.
Trata-se de requisito legal cujo controle é deveras complicado, tendo em vista que tais expressões, por sua imprecisão semântica, são classificadas como termos jurídicos indeterminados, que carregam em si certa dose de subjetivismo.
Antes, porém, de analisarmos a consagração do artista, necessário se fará demonstrar, nos autos do processo de inexigibilidade, que se trata de um profissional, em razão disso, não poderá ser contratada qualquer pessoa ou alguém que esporadicamente exerce atividade no campo das artes.
Assim, não se afigura lícito ao Poder Público a contratação de um amador, ainda que, subjetivamente, na opinião de muitos, ostente notável talento. É que no mundo jurídico o talento, isoladamente considerado, não se mostra suficiente para justificar uma contratação realizada com recursos públicos. A legislação exige que a contratação direta seja realizada com um profissional, que deverá comprovar o seu registro junto à Xxxxxxxxx Regional do Trabalho ou mediante a apresentação de documento idôneo que comprove sua inscrição no órgão de classe dos artistas.
Neste particular, coube à Lei nº 6.533/1978 e ao Decreto nº 82.385/1978, em seus artigos 7º, 8º e 9º, definir como podem os artistas e técnicos atuar no mercado de espetáculos de diversão e obter o registro profissional. Temos aqui, portanto, um requisito objetivo, facilmente sindicável, e que não poderá ser desconsiderado pelo ente público.
Xxxxx (2007, p. 236) assim se posicionou acerca da consagração do artista:
Entendemos que consagração é fator de extrema relatividade e varia no tempo e no espaço. Pode um artista ser reconhecido, por exemplo, apenas em certos locais, ou por determinado público ou críticos especializados. Nem por isso deverá ele ser alijado de eventual contratação. A nosso sentir, quis o legislador prestigiar a figura do artista e de seu talento pessoal, e, sendo assim, a arte a que se dedica acaba por ter prevalência sobre a consagração.
Na mesma trilha é a lição de Xxxxxxxxx (p. 726):
Artista, nos termos da lei, é o profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação pública, por meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão pública.
O profissional artista deve estar inscrito na Delegacia Regional do Trabalho, o mesmo ocorrendo com os agenciadores dessa mão-de- obra, constituindo esse registro elemento indispensável à regularidade da contratação
A despeito da fluidez da expressão “consagração pela crítica especializada ou pela opinião pública”, revela-se factível identificar, diante de situações concretas, as denominadas zonas de certeza positiva e de certeza negativa, objetivando aferir o real alcance daquelas expressões. De fato, não há dúvidas de que, por exemplo, o cantor Xxxxxxx Xxxxxx é consagrado no Brasil e, também, em diversos outros países. Aqui estamos diante da zona de certeza positiva e sua contratação direta estaria autorizada.
Diversamente ocorreria em relação a um cantor principiante, que realizou meia dúzia de apresentações em eventos modestos, aqui se afigurando a zona de certeza negativa que impossibilitaria a sua contratação por inexigibilidade de licitação.
Questão um tanto controversa, pela falta de previsão legal, diz respeito à dimensão geográfica (se local, regional ou nacional) da expressão “crítica especializada” ou à opinião pública”. Sobre o assunto, assim leciona Xxxxxxxxx (1995, p. 323):
Por força do estabelecido no inciso III do art. 25 do Estatuto Federal Licitatório, é inexigível a licitação para a contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresários, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública. O dispositivo em apreço não traz grandes dificuldades de interpretação, salvo no que concerne à consagração pela crítica especializada. Qual é essa crítica especializada? A local? A regional? A nacional? Cremos que se pode dizer que é a crítica local, regional (estadual) ou nacional em razão do valor do contrato. Assim, se o contrato estiver dentro do limite de convite, será local; se estiver dentro do limite da tomada de preços, será regional; se estiver dentro do limite de concorrência, será nacional. O mesmo deve-se afirmar em relação à opinião pública.
Importante anotar, ainda, que tendo em vista estarmos a tratar de hipótese especial de inexigibilidade de licitação, dada a inviabilidade de competição entre profissionais do setor artístico (considerado o fato de que tal atividade reflete emanação direta da personalidade e da criatividade humana), forçoso é convir que a avença efetivada entre o profissional e
o ente público, objetivando apresentação em um evento popular, terá a natureza jurídica de obrigação de fazer intuitu personae, implicando isso na obrigatoriedade do próprio artista em executar o espetáculo. Posto isso, não se admitirá a subcontratação do contrato administrativo, à exceção de aspecto acessório deste, a exemplo de um membro da banda (baterista, guitarrista, pianista, etc) que, por haver adoecido na véspera do espetáculo, se viu substituído por outro instrumentista.
A consagração do artista não notório carece ser sobejamente comprovada nos autos do processo de inexigibilidade, a exemplo da juntada de recortes de jornais e revistas, mídias eletrônicas extraídas da internet e de cópias de contratos pretéritos para apresentação em eventos importantes. De igual modo, poderá a consagração do profissional ser aferível levando-se em conta o número de vendas de discos, CD’S, DVD’s, baixa de downloads e outros expedientes comprobatórios de consumo de suas obras artísticas. É viável, também, a análise do número de shows e ingressos vendidos, a quantidade de seguidores e fãs identificados em redes sociais, a existência de fã-clubes, dentre outras evidências de aclamação do artista pelo grande público.
Mesmo que adotadas tais cautelas, não estaremos a salvo da ocorrência de situações peculiares, situadas em uma zona de penumbra ou incerteza, onde a consagração do artista restará reconhecida por algumas pessoas e por outras, não. Em casos desse jaez, quando o subjetivismo preponderar, o melhor a se fazer será não judicializar a questão sob este aspecto.
Outro requisito legal que deve ser tratado com especial atenção, previsto nos artigos 7º, § 2º, inciso II, e 40, § 2º, inciso II, ambos da Lei de Licitações, diz respeito à necessidade de justificativa do preço. Neste ponto, o gestor público terá como parâmetro os valores cobrados em shows anteriores pelo próprio profissional que se pretende contratar e não os valores praticados no mercado por outros artistas do segmento (tendo em vista não haver critérios objetivos para aferir a melhor proposta para a Administração Pública em razão da incomparabilidade qualitativa dos profissionais do setor artístico).
“O preço está ligado ao artista, à prestação de serviços que este desempenha, sua consagração, seja pela crítica especializada, ou ainda
pela opinião pública, e qual o grau de sua consagração, sendo esta local, regional, nacional ou internacionalmente reconhecida” (XXXXXX XXXX, 2009, p. 77).
Destarte, deverá o gestor efetuar as pesquisas necessárias, buscando amealhar cópias de notas fiscais e contratos de shows anteriores do profissional, propositando saber se o valor oferecido se encontra dentro da média aritmética dos preços praticados nos últimos eventos.
Nesse sentido, confira-se o Acórdão nº 822/05 (Plenário) do TCU,
in verbis:
Quando contratar a realização de cursos, palestras, apresentações, shows, espetáculos ou eventos similares, demonstre, a título de justificativa de preços, que o fornecedor cobra igual ou similar preço de outros com quem contratava para evento de mesmo porte, ou apresente as devidas justificativas, de forma a atender ao inc. III do parágrafo único do art. 26 da Lei nº. 8.666/1993.
Nem sempre, contudo, poderá o gestor se basear apenas na matemática (visando obter a média aritmética dos preços cobrados pelo artista em eventos pretéritos), outras variáveis deverão ser consideradas, a exemplo da época em que o profissional fará a sua apresentação e os custos logísticos do evento.
Nesse contexto, a título de ilustração, é aceitável que uma dada banda, quando contratada para tocar no Carnaval (data festiva em que os artistas são mais disputados), cobre um cachê superior ao que costuma praticar em períodos normais, em razão da “lei da oferta e da procura”, que ordinariamente regula o mercado.
Ademais, não há dúvidas de que a logística do espetáculo exercerá forte influência no preço final. Nesse aspecto, as atenções se voltarão para a distância entre o domicílio do artista e a localidade em que se dará a apresentação, facilidade de acesso a esta, custo do transporte, da hospedagem do artista ou banda e até mesmo a proximidade em relação à cidade seguinte onde os artistas irão se apresentar. Sobre esta última circunstância, é costumeiro notar que prefeitos de municípios próximos entre si se reúnam para negociar uma agenda de shows com um determinado artista, programada para uma mesma semana, com o desiderato de reduzir as despesas logísticas do evento.
Considerações finais
Ao término deste estudo, constata-se que, a despeito de a contratação direta de artistas, por inexigibilidade de licitação, amparada no art. 25, inciso III, da Lei nº 8.666/1993, tratar-se de tema melindroso, é perfeitamente possível, desde que devidamente documentada em processo específico, no bojo do qual competirá ao gestor comprovar preliminarmente que o ente público, ao tempo da realização do espetáculo, se desincumbiu de executar minimamente sua receita na seara da saúde e da educação conforme determinado na Constituição Federal.
Além disso, caberá ao administrador público carrear aos autos cópias de contratos firmados pelo artista ou por meio de seu empresário exclusivo e de documentos que comprovem a consagração do artista pela crítica especializada ou pela opinião pública (salvo se notória); a razão da escolha do fornecedor (artista); a justificativa do preço, baseado na média de valores dos contratos pretéritos e, por fim, dando-se a devida publicidade oficial do processo de inexigibilidade de licitação.
Ressalta-se que o desatendimento de tais requisitos e pressupostos, a depender da envergadura das inconformidades legais detectadas, poderá ensejar a nulidade do contrato, sem embargo da imposição de eventuais sanções cabíveis à espécie (a exemplo de multa e imputação de débitos pelo Tribunal de Contas e sanções pela prática de ato de improbidade administrativa, com esteio na Lei nº 8.429/92, pelo Poder Judiciário).
Referências
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