Cláusulas Gerais no Código Civil de 2002:
Cláusulas Gerais no Código Civil de 2002:
Boa-Fé Objetiva, Equilíbrio Econômico-Financeiro e Função Social do Contrato
Veleda Suzete Saldanha Carvalho1
INTRODUÇÃO
Além dos princípios contratuais tradicionais, como autonomia da vontade, liberdade contratual, relativismo contratual e boa-fé subjetiva, hodiernamente, no modelo contratual, hão de ser observados outros prin- cípios, como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico-financeiro e a fun- ção social do contrato.
Qual é o influxo da moral sobre o direito? As decisões judicias são tomadas com base apenas na lei ou também na moral?
Deve haver diferença entre a sucessão de cônjuges e a de compa- nheiros?
Quais são os limites da propriedade privada? Pode a posse prevalecer sobre a propriedade?
O direito à moradia pode prevalecer sobre o interesse público numa desapropriação? O possuidor tem direito de receber indenização? Ou só o proprietário?
Até que ponto a propriedade pode ser restringida pelo interesse pú-
1 Juíza de Direito em exercício na 34a Vara Cível - Capital.
blico? A municipalidade pode restringir a destinação a ser dada a uma construção, mesmo que haja várias opções naquela região? Por exemplo, numa região em que há muitas residências em prédios de construção an- tiga, sem garagem, e muitos estabelecimentos comerciais, pode a muni- cipalidade restringir a licença a determinados locais apenas para que se construa edifício garagem?
São muitas as indagações, e obviamente não há consenso nem na doutrina nem na jurisprudência.
DESENVOLVIMENTO
O princípio da boa-fé objetiva, por sua vez, não mais é uma simples exortação moral, a boa-fé subjetiva, vale dizer, se tinha ou não conheci- mento sobre determinada situação. A boa-fé objetiva trouxe deveres ane- xos, como os de informação, de cooperação, de cuidado. Ela exerce três funções: integrativa (fonte de direitos e de deveres jurídicos), interpretativa (como regra de interpretação) e limitadora (impõe limite ao exercício de direitos subjetivos). Prevista no artigo 422 do Código Civil, a boa-fé já tinha assento positivo nos artigos 4º, III, e 51, IV, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Releva destacar que, não obstante o artigo 422 do Código Civil faça referência à boa-fé na conclusão e na execução do contrato, não há óbice a que o julgador faça incidir tal princípio nas fases pré e pós-contratual. Ao revés, isso é o esperado pelo ordenamento jurídico, na medida em que não se admite o abuso do direito e diante das demais cláusulas gerais con- tratuais.
Interessante o julgado de relatoria da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, em que, aplicando o princípio da boa-fé objetiva, decidiu que, num contrato de locação de automóveis no qual, findo o prazo, alguns dos veículos foram restituídos e outros não, prosseguindo-se na emissão de cobrança pelos que permaneceram, segundo os valores contratuais, não seria possível, poste- riormente, a cobrança da diferença entre o valor contratual e o valor “de balcão”, sob a alegação de que o contrato estava extinto. Há que se observar
a legítima expectativa criada no locatário. Colaciono o acórdão:
“Direito civil. Contrato de locação de veículos por prazo determinado. Notificação, pela locatária, de que não terá interesse na renovação do contrato, meses antes do tér- mino do prazo contratual. Devolução apenas parcial dos veículos após o final do prazo, sem oposição expressa da locadora. Continuidade da emissão de faturas, pela credo- ra, no preço contratualmente estabelecido. Pretensão da locadora de receber as diferenças entre a tarifa contratada e a tarifa de balcão para a locação dos automóveis que per- maneceram na posse da locatária. Impossibilidade. Apli- cação do princípio da boa-fé objetiva. Honorários advoca- tícios. Julgamento de improcedência do pedido. Aplicação da regra do art. 20, § 4º, do CPC. Inaplicabilidade do § 3º desse mesmo dispositivo legal. Precedentes.
- A notificação a que se refere o art. 1.196 do CC/02 (art. 575 do CC/02) não tem a função de constituir o locatário em mora, tendo em vista o que dispõe o art. 1.194 do CC/16 (art. 573 do CC/02). Ela objetiva, em vez disso, a: (i) que não há a intenção do locador de permitir a prorrogação tácita do contrato por prazo indeterminado (art. 1.195 do CC/16 - art. 574 do CC/02; (ii) fixar a sanção patrimonial decorrente da retenção do bem locado. Na hipótese em que o próprio loca- tário notifica o locador de que não será renovado o contrato, a primeira função já se encontra preenchida: não é necessário ao locador repetir sua intenção de não prorrogar o contrato se o próprio locatário já o fez. A segunda função, por sua vez, pode se considerar também preenchida pelo fato de que é pre- sumível a ciência, por parte do locatário, do valor das diárias dos automóveis pela tarifa de balcão. Xxxxxxx, portanto, em princípio, direito em favor da locadora à cobrança de tarifa adicional.
- Se o acórdão recorrido estabelece, contudo, que não houve qualquer manifestação do credor no sentido da sua intenção de exercer tal direito e, mais que isso, o credor comporta-se de maneira contraditória, emitindo faturas no valor original, cria-se, para o devedor, a expectativa da manutenção do preço contratualmente estabelecido.
- O princípio da boa-fé objetiva exerce três funções: (i) a de regra de interpretação; (ii) a de fonte de direitos e de deveres jurídicos; e (iii) a de limite ao exercício de direitos subjetivos. Pertencem a este terceiro grupo a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios (‘tu quoque’; vedação ao comportamento contraditório; “surrec- tio’; ‘suppressio’).
- O instituto da ‘supressio’ indica a possibilidade de se con- siderar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não-exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo.
- Nas hipóteses de improcedência do pedido, os honorários advocatícios devem ser fixados com fundamento no art. 20, § 4º do CPC, sendo inaplicável o respectivo §3º. Aplicando-se essa norma à hipótese dos autos, constata-se a necessidade de redução dos honorários estabelecidos pelo Tribunal.
Recurso especial parcialmente provido.” (grifo não contido do original)
REsp 953389 / SP Recurso Especial 2007/0115703-9 - Mi- nistra NANCY ANDRIGHI - TERCEIRA TURMA - Data
do Julgamento 23/02/2010 - Data da Publicação/Fonte - DJe 15/03/2010.
Também nos contratos é buscado o equilíbrio econômico-financei- ro, não mais verdade absoluta o antigo brocardo de que “contratado é jus- to”. Neste ambiente, o julgador, exercendo o dirigismo contratual, poderá
efetuar a revisão do contrato ou mesmo resolvê-lo, consoante as normas dos artigos 317 e 478 do Código Civil.
Da mesma forma, percebeu-se que os contratos não devem atender apenas e tão somente aos interesses dos estipulantes, até porque os contra- tos, por sua própria finalidade, exercem uma função social. A função social diz respeito aos efeitos externos do contrato, sua interferência na esfera jurídica da coletividade. Assim, os contratos devem ser interpretados e cumpridos segundo os interesses dos contratantes, mas sem entrar em con- flito com o interesse público. Inteligência do artigo 421 do Código Civil, que possui inspiração de índole Constitucional, especificamente no artigo 5º, XXII e XXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece que a propriedade atenderá à sua função social.
Ainda em razão dos princípios contratuais modernos, construiu-se a teoria do adimplemento substancial, segundo a qual, se paga parcela consi- derável do contrato, não haveria justa causa para sua rescisão, cabendo ape- nas a cobrança da diferença do saldo devedor. Por exemplo, num contrato de alienação fiduciária em garantia, se pagas 31 (trinta e uma) de 36 (trinta e seis) parcelas, não cabe busca e apreensão do bem alienado.
Nesse sentido, válido trazer à colação o seguinte julgado:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRE- QUESTIONAMENTO. TEMA CENTRAL. CONSIG- NAÇÃO EM PAGAMENTO. DEPÓSITO PARCIAL. PROCEDȋNCIA NA MESMA EXTENSÃO. ALIENA- ÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÃO. ADIMPLE- MENTO SUBSTANCIAL. IMPROCEDȋNCIA. POSSI- BILIDADE. DESPROVIMENTO.
I. “É inequívoco o prequestionamento quando a questão ob- jeto do especial é o tema central do acórdão estadual.” (AgRg no Ag 1012324/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quar- ta Turma, Unânime, DJe: 24/11/2008)
II. “Esta Corte de Uniformização Infraconstitucional firmou entendimento no sentido de que o depósito efetuado a menor
em ação de consignação em pagamento não acarreta a total improcedência do pedido, na medida em que a obrigação é parcialmente adimplida pelo montante consignado, acarre- tando a liberação parcial do devedor. O restante do débito, reconhecido pelo julgador, pode ser objeto de execução nos próprios autos da ação consignatória (cf. REsp nº 99.489/SC, Rel. Xxxxxxxx XXXXXX XXXXXXXX, DJ de 28.10.2002;
REsp nº 599.520/TO, Rel. Ministra XXXXX XXXXXXXX, DJ de 1.2.2005; REsp nº 448.602/SC, Rel. Ministro XXX XXXXXX XX XXXXXX, DJ de 17.2.2003; AgRg no REsp nº 41.953/SP, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXXXX XX-
XXXX, DJ de 6.10.2003; REsp nº 126.326/RJ, Xxx. Xxxxxxxx XXXXXX XXXXXXXX, DJ de 22.9.2003).” (REsp 613552/
RS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Quarta Turma, Unânime, DJ: 14/11/2005, p. 329).
III. Se as instâncias ordinárias reconhecem, após a apre- ciação de ações consignatória e de busca e apreensão, com fundamento na prova dos autos, que é extremamente dimi- nuto o saldo remanescente em favor do credor de contrato de alienação fiduciária, não se justifica o prosseguimento da ação de busca e apreensão, sendo lícita a cobrança do pequeno valor ainda devido nos autos do processo.
IV. Recurso especial a que se nega provimento.” (grifo não contido no original)
PROCESSO REsp 912697 / RO – Recurso Especial 2006/0282695-7- Relator Ministro XXXXX XXXXXXXXXX XXXXXX - QUARTA TURMA – Data do julgamento: 07/10/2010 - Data da publicação e fonte: DJe 25/10/2010.
Também segundo os atuais parâmetros e cláusulas gerais dos contra- tos, observando-se a função social dos contratos, num contrato de conces- são de crédito educativo, entendeu-se que, mesmo não incidindo o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, por aplicação da cláusula geral em
comento, apresenta-se excessiva a multa de 10% prevista contratualmente. É o acórdão:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO PROFERIDA SINGULARMENTE PELO RELATOR. POSSIBILIDADE. ART. 557 DO CPC. ENSINO SUPE- RIOR. CONTRATO DE CRÉDITO EDUCATIVO. FI- NALIDADE SOCIAL. EXEGESE PECULIAR DAS SUAS DISPOSIÇÕES. MULTA CONTRATUAL DE 10% NOS CASOS DE INADIMPLEMENTO. PERCENTUAL DE- MASIADAMENTE ONEROSO. EXCESSO. POSIÇÃO DOMINANTE. INFRINGȋNCIA DE REGRAS PADRO- NIZADAS DO SISTEMA DE PROTEÇÃO DO EQUILÍ- BRIO NAS RELAÇÕES DE CRÉDITO. AGRAVO REGI- MENTAL DESPROVIDO.
1. Nos termos do art. 557, é facultado ao Relator negar segui- mento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudên- cia dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. Assim, atendida uma das condições previstas, pode o julgador negar seguimento ao re- curso, em apreço à celeridade dos julgamentos e ao princípio da efetividade do processo.
2. Ademais, eventual impropriedade processual da decisão monocrática fica superada, uma vez instado o órgão colegiado a se pronunciar em sede de Agravo Regimental.
3. O Contrato de Crédito Educativo, dada a elevada finalida- de nitidamente social da sua instituição, não deve ser inter- pretado sem levar-se em conta a sua especificidade, como se fosse uma relação financeira comum, por isso que a sua com- preensão assimila as regras que servem de padrão ao sistema de proteção ao equilíbrio das relações de crédito, em proveito
da preservação de sua teleologia.
4. Embora a jurisprudência desta Corte Superior seja no sentido da não-aplicação do CDC aos Contratos de Crédito Educativo, não se deve olvidar a ideologia do Código Consu- merista consubstanciada no equilíbrio da relação contratual, partindo-se da premissa da maior vulnerabilidade de uma das partes. O CDC, mesmo não regendo diretamente a espécie sob exame, projeta luz na sua compreensão. Neste caso, o CDC foi referido apenas como ilustração da orientação ju- rídica moderna, que valoriza o equilíbrio entre as partes da relação contratual, porquanto essa diretriz está posta hoje em dia, no próprio Código Civil.
5. Vale dar destaque as normas insertas nos arts. 421 e 422 do CC, as quais tratam, respectivamente, da função social do contrato e da boa-fé objetiva. A função social apresen- ta-se hodiernamente como um dos pilares da teoria con- tratual. É um princípio determinante e fundamental que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 1º da CF), deve determinar a ordem econômica e jurídica, permitindo uma visão mais humanista dos contratos que deixou de ser apenas um meio para obtenção de lucro.
6. Da mesma forma, a conduta das partes contratantes deve ser fundada na boa-fé objetiva, que, independente- mente do subjetivismo do agente, as partes contratuais de- vem agir conforme o modelo de conduta social, geralmen- te aceito (consenso social), sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante.
7. Tratando-se no caso dos autos de Contrato de Crédito Educativo e levando-se em conta a elevada finalidade so- cial da sua instituição, mostra-se desarrazoada uma multa contratual no valor de 10%.
8. Agravo Regimental desprovido.” (grifo não contido no ori-
ginal)
AgRg no REsp 1272995 / RS - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2011/0197420-7 - Ministro XXXXXXXX XXXXX XXXX XXXXX - PRIMEIRA TUR-
MA - Data do Julgamento: 07/02/2012 - Data da Publica- ção/Fonte: DJe 15/02/2012
CONCLUSÃO
Para fins de conclusão, deve-se ressaltar que os novos princípios e cláusulas gerais não vieram a lume para afastar o princípio de que o pac- tuado deve ser cumprido. Em verdade, os novos princípios surgiram, em alguma medida, para limitar a liberdade contratual, impedindo abusos e para direcionar a interpretação, forma de conclusão e execução dos contra- tos, de modo a não trazer ou agravar danos para a outra parte, ou, ainda, para a coletividade. Sempre que não observadas tais cláusulas gerais, po- derá o Estado-juiz, desde que provocado, intervir para rever ou resolver o
contrato. ♦