Responsabilidade de administradores de companhias e acordos de indenidade
Responsabilidade de administradores de companhias e acordos de indenidade
Reflexões sobre o Parecer de Orientação da CVM que delimitou o objeto de tais contratos
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Advogada. Professora de Direito Civil e Comercial da UnB. Ex-Conselheira do CADE.
Por meio do Parecer de Orientação 38, de 25.05.2018, a CVM tratou dos deveres fiduciários dos administradores de companhias abertas no âmbito dos contratos de indenidade. A importância desses contratos decorre do fato de que, por meio deles, as companhias comprometem-se a garantir o pagamento, reembolso ou adiantamento de verbas para fazer frente às despesas que resultarem da responsabilização pessoal dos seus administradores em processos arbitrais, judiciais ou administrativos.
Consequentemente, os acordos de indenidade são formas de mitigação do risco da atividade dos administradores e, consequentemente, fatores de estímulo à contratação e à retenção de executivos qualificados. Por outro lado, tais acordos podem trazer graves impactos financeiros para a companhia, em contraposição à alternativa dos contratos de seguro, em que a indenização é suportada pela seguradora.
Além dos desdobramentos financeiros, os acordos de indenidade impactam igualmente no próprio regime de responsabilização dos administradores, na medida em que a transferência do risco pessoal para a companhia pode inviabilizar o caráter preventivo da responsabilidade dos administradores – criando um desincentivo para a busca da melhor gestão - e ainda minar o regime dual previsto intencionalmente pela lei, por meio do qual a responsabilidade dos administradores deve ocorrer de forma
concomitante à responsabilidade das companhias. Ainda há o risco de conflito de interesses na negociação e na execução dos referidos acordos.
Por essa razão, a própria CVM reconhece que as orientações contidas em seu parecer buscam mitigar os riscos de conflitos de interesses, bem como assegurar o “necessário equilíbrio entre, de um lado, o interesse da companhia de proteger seus administradores contra riscos financeiros decorrentes do exercício de suas funções, no âmbito de processos administrativos, arbitrais ou judiciais e, de outro, o interesse da sociedade de proteger seu patrimônio e de garantir que seus administradores atuem de acordo com os padrões de conduta deles esperados e exigidos por lei.”
Um ponto importante do parecer da CVM é o cuidado com as garantias procedimentais e de transparência, para evitar o conflito de interesses tanto na celebração dos contratos, como no pagamento das quantias deles decorrentes. Assim, impõe-se que haja uma decisão independente, informada, e em conformidade com o interesse da companhia, nos termos de procedimentos idôneos e previamente estabelecidos para assegurar tais fins.
Não obstante, o foco da presente análise será a parte do parecer que delimita o objeto material desses contratos, deixando claro que não são passíveis de indenização, entre outras, as despesas decorrentes de atos dos administradores praticados (i) fora do exercício de suas atribuições, (ii) com má-fé, dolo, culpa grave ou mediante fraude; ou (iii) em interesse próprio ou de terceiros, em detrimento do interesse social da companhia. A CVM inclusive recomenda que as excludentes estejam previstas no contrato de indenidade.
Nesse sentido, a orientação da CVM foi muito pertinente ao prever tais excludentes, porque elas são totalmente adequadas e compatíveis com o intuito dos acordos de indenidade e também com o regime de responsabilidade dos administradores.
Como se sabe, esse regime é baseado na responsabilidade subjetiva, nos termos da doutrina e da jurisprudência praticamente uníssonas. Xxxxxx, não faria sentido transferir o risco da atividade – que é da companhia, que, inclusive, pode internalizar os custos respectivos – aos administradores. Acresce que a responsabilidade subjetiva é a mais idônea para os administradores, tanto do ponto de vista dos pressupostos, como do ponto de vista dos objetivos que se pretende alcançar, uma vez que tem
importante papel preventivo e disciplinador, pois, como o administrador responderá apenas por culpa, terá incentivos concretos para agir corretamente1.
Entretanto, é forçoso reconhecer, que, diante da complexidade cada vez maior da gestão, mesmo a operacionalização da responsabilidade por culpa apresenta grandes desafios, até porque a obrigação dos administradores é de meio e não de fim. Por essa razão, parte considerável das discussões a respeito da responsabilidade dos administradores tem por objetivo diferenciar as hipóteses em que efetivamente se pode cogitar de culpa da gestão e aquelas hipóteses em que se afasta a culpa, mesmo que os resultados da ação administrativa não tenham sido bons.
Nesse contexto, os deveres fiduciários de lealdade e de diligência ocupam posição de destaque no assunto, pois é da sua violação que se pode extrair um fundamento consistente para a responsabilização individual dos administradores. As discussões sobre a business judgment rule situam-se também dentro dessa problemática, ao ressaltarem que os administradores não tem a obrigação de adotar a decisão correta ou a melhor decisão em termos de resultado, mas sim decisão bem informada e que tenha sido orientada pelo melhor interesse da companhia, sem prejuízo dos seus deveres de estruturar uma organização compatível com o risco empresarial assumido2.
Dentro dessa perspectiva, observa-se que as excludentes dos acordos de indenidade previstas pela CVM referem-se precisamente às hipóteses de violação flagrante aos deveres de lealdade e de diligência, casos em que normalmente a reprovabilidade da conduta é alta e a constatação do ilícito não é tão tormentosa. Isso é especialmente verdadeiro nos casos de violação do dever de lealdade – agir fora das atribuições ou sem buscar o interesse da companhia para favorecer a si próprio ou terceiros – ou nos casos de violação ao dever de diligência traduzidos na fraude ou no dolo.
A questão da culpa grave é a mais delicada, pois envolve uma gradação da reprovabilidade da conduta, tema que desperta muitas controvérsias e certamente será
1 Ver FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S.A.s. Rio: Xxxxxxx, 0000.
2 Ver FRAZÃO, Ana. Dever de diligencia. Novas perspectivas em face de programas de compliance e de atingimento de metas. Jota. xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx?xxxxxxxx_xxx//xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x- analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dever-de-diligencia-15022017
um dos mais polêmicos para efeitos do correto cumprimento dos contratos de indenidade. Um dos eixos da análise deverá ser a perspectiva funcional e finalística de tais acordos pois, como esclarece a própria CVM, há que se “evitar que um instrumento legítimo de atração e retenção de executivos ganhe feições de blindagem para condutas não condizentes com o grau de zelo que se exige de cada integrante da administração.”
Portanto, a CVM deixou claro que o desafio para a celebração e execução dos acordos de indenidade deve ser sempre a busca do equilíbrio entre o fim legítimo de atrair e reter executivos – o que faz com que o contrato de indenidade apenas possa ter por objeto condutas culposas minimamente aceitáveis ou desprovidas de grande reprovabilidade, sob pena de serem capituladas como culpa grave – e a blindagem para condutas não condizentes com o grau de zelo que se espera dos administradores.
Se o objeto do contrato de indenidade for indevidamente alargado, não apenas se comprometerá a função preventiva do regime de responsabilidade dos administradores, como também se unificará, na prática, regime de responsabilidade que foi acertadamente arquitetado como dual. Ainda se estará onerando, de forma desarrazoada, a companhia, em situações nas quais muitas vezes nem contratos de seguro cobririam danos decorrentes de atos dolosos ou com alto grau de reprovabilidade.
Conclui-se, portanto, que, apesar da complexidade e da delicadeza do assunto, foi positiva a iniciativa da CVM, sendo um bom ponto de partida para orientar a celebração e a interpretação do alcance de tais contratos e evitar conflitos de interesses, bem como abusos e utilizações excessivas e não justificáveis.