THE DUTY OF EFFECTIVE OCCUPATION IN INTERMITTENT WORK CONTRACTS
O DEVER DE OCUPAÇÃO EFETIVA NO CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE
THE DUTY OF EFFECTIVE OCCUPATION IN INTERMITTENT WORK CONTRACTS
Breno Medeiros1 Renan Martins Lopes Belutto2
RESUMO: Modernamente, compreende-se que a vontade não é a fonte exclusiva de obrigações assumidas pelas partes, decorrendo também do princípio da boa-fé direitos e deveres que devem ser observados na execução do negócio jurídico. Entre os deveres secundários presentes no contrato de emprego, tem-se o dever de ocupa- ção efetiva, o qual deve ser assegurado também no contrato de trabalho intermitente. Em consequência, caso o empregado seja mantido em inatividade, de forma abusiva e desarrazoada, por períodos prolongados de tempo, ocorre a violação positiva do contrato, dando direito ao empregado à reparação dos danos sofridos.
PALAVRAS-CHAVE: Contrato de Emprego. Trabalho Intermitente. Boa-Fé. Inadim- plemento.
ABSTRACT: The modern understanding is that will is not the exclusive source of obligations assumed by contracting parties, which also arise from the principle of good faith, and the rights and duties that must be fulfilled in the execution of a legally-binding contract. Among the secondary duties that emerge from an employment contract, there is the duty of effective occupation, which must also be upheld in the intermittent employment contract. Consequently, if the employee is kept in inactivity, whether in an abusive and unreasonable way, for prolonged periods of time, a positive breach of contract occurs, giving the employee the right to damage compensation.
KEYWORDS: Employment Contract. Intermittent Work. Good Faith. Contractual Breach.
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – As bases do direito das obrigações moderno; 3 – Da autonomia da vontade à autonomia privada; 4 – A boa-fé na relação obrigacional; 5 – Deveres laterais, anexos, acessórios ou secundários; 6 – Conteúdo obrigacional do contrato de emprego; 7 – Dever de ocupação efetiva; 7.1 – A ocupação efetiva no contrato de trabalho intermitente; 8 – A violação positiva do contrato; 9 – Conclusão; 10 – Referências bibliográficas.
1 Ministro do Tribunal Superior do Trabalho; doutor em Direito pela Universidade 9 de Julho – Uninove; pós-graduação em Engenharia da Qualidade – MBA – Master Business Administration – pela Universidade de São Paulo – USP; graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná; membro fundador da Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo; professor e palestrante. Lattes: xxxx://xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000. E-mail: xxxx@xxx.xxx.xx.
2 Juiz do trabalho substituto no TRT da 15ª Região; especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie; mestrando em Direito pela Universidade Nove de Julho. Lattes: http:// xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000.
C
1 – Introdução
om a nova redação dada pela Lei nº 13.467/2017, o caput do art. 443 da CLT atualmente prescreve o seguinte: “o contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente
ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente”.
Com o acréscimo feito ao final do dispositivo, o Direito do Trabalho pátrio passou a prever o contrato de trabalho intermitente, que pode ser conceituado como o contrato flexível de emprego, firmado por escrito, pelo qual empre- gado e empregador ajustam a prestação de serviços em caráter descontínuo, desenvolvida mediante convocação prévia do trabalhador para atendimento de demandas não habituais da empresa.
A disciplina dessa nova figura contratual é dada pelo art. 452-A da CLT,
que possui nove parágrafos.
Ocorre que o modelo legal confere pouca proteção jurídica ao empregado, pois não assegura quantidade mínima de convocações, nem qualquer pagamento pelo período de inatividade, conforme o § 5º do art. 452-A da CLT: “o período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes”.
A partir da leitura desse dispositivo, observa a doutrina que:
“A maior característica do contrato intermitente não é apenas a alternância dos períodos de atividade com de inatividade, mas a imprevi- sibilidade do trabalho, dos períodos de serviço efetivo e de inação. Esse tipo de contrato também é chamado de ‘contrato-zero’. Desta forma, seu contrato será para ‘zero’ trabalho imediato.” (Bomfim, 2021, p. 513)
Contudo, considerando as normas constitucionais e os atuais princípios que regem os contratos, entendemos que o trabalhador não pode ser mantido por longos períodos sem trabalho e renda, ainda que contratado para a prestação de serviços de forma intermitente, como buscaremos demonstrar nos capítulos seguintes.
2 – As bases do direito das obrigações moderno
O direito moderno herdou grande parte de suas expressões técnicas, de seus institutos e de seus preceitos do direito romano (Xxxxx e Xxxxx, 2006, p. 24). Essa conexão é tão marcante que, se analisarmos o conceito de obriga- ções apresentado na maioria dos cursos e manuais sobre o tema, veremos que a definição não difere significativamente daquela que constava nas Institutas de Xxxxxxxxxx, segundo a qual: “obligatio est iuris vinculum, quo necessitate
adstringimur alicuius solvendae rei, secundum nostrae civitatis iure (Inst. 3.13
pr.)”3 (Xxxxx, 1995, p. 107).
Coube à escola alemã da Pandectística o estudo e a sistematização do direito romano justinianeu, bem como a sua modernização, dando origem a conceitos básicos como relação jurídica, negócio jurídico, contrato e direito subjetivo, os quais estão consolidados na dogmática jurídica atual.
Com a criação dessas categorias jurídicas, buscavam os autores germâ- nicos desenvolver um sistema normativo orgânico e funcional, regido pelos grandes conceitos que regulariam todas as relações jurídicas, estando, assim, fortemente ligados ao positivismo jurídico.
De acordo com Xxxxxxx (2014, p. 40):
“Para a Pandectística, o Direito era extraído ‘exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios geralmente reconheci- dos da sua ciência’, podendo-se destacar, como o faz Xxxxx Xxxxxxxx, as consequências de que, sob tal função, a ordem jurídica é vislumbrada enquanto um sistema fechado de instituições e normas, independente da realidade social e, ainda, dotado de plenitude, sendo o papel do juiz simplesmente o da aplicação da norma em um ato de subsunção.”
O grande esforço empreendido por essa escola para a criação de um corpo normativo organizado a partir de preceitos fundamentais tem inegáveis méritos, pois permite a compreensão lógica do sistema jurídico e a sua explicação de forma técnica e coerente. Contudo, a generalização e a abstração dos fenômenos jurídicos trazem consigo consequências negativas que não podem ser ignoradas.
Se observarmos os fenômenos reais que são regulados pelos contratos, veremos que essa forma jurídica se destina à regulação de operações econô- micas (Roppo, 2009, p. 8). Assim, um produtor rural que pretende vender a sua colheita, uma família que busca alugar um imóvel residencial, um jovem empresário que decide tomar dinheiro emprestado de um banco para iniciar o seu empreendimento, todas essas operações econômicas são expressas pela forma jurídica do contrato.
Ocorre que a sistematização dessas diferentes realidades obriga o analista a sacrificar as suas peculiaridades, para identificar apenas os elementos comuns a todos os vínculos contratuais, o que é ainda mais intenso na Pandectística, pois os seus autores inseriram o contrato em outra categoria, que é a do negócio jurídico:
“A Pandectística alemã dedicou-se com afinco à tarefa de elucida- ção do conceito de negócio jurídico, que alberga também o do contrato.
3 Conforme tradução de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx (2021, p. 43): “obrigação é um vínculo jurídico, pelo qual
somos compelidos pela necessidade de pagar a alguém qualquer coisa, segundo a lei de nossa cidade”.
Enquanto categoria, o negócio jurídico é tratado por Xxxxxxxxx Xxxxxxx como supercategoria lógico-jurídica, separada da tipologia histórico-
-social. É, precisamente, um conceito abstrato, estabilizado na lei, ‘como se a resposta sempre estivesse formulada antes da elaboração da própria pergunta’.” (Xxxxxxx, 2014, p. 43)
Fica claro que a criação de um conceito capaz de explicar tantas realida- des socioeconômicas acaba por ignorar muito do seu conteúdo concreto, como aponta Roppo (2009, p. 48-49):
“Com a elaboração da categoria do negócio jurídico, realizada no decurso do século passado pela escola da ‘Pandectística’ na base de uma nova utilização modernizada dos textos do direito romano xxxxxxxxxxx, este processo de generalização e de abstração é levado ao extremo. (...) Para abarcar conceitualmente esta fenomenologia real, é necessária uma operação lógica: isto é, é preciso individualizar os caracteres comuns às diversas realidades, abstraí-los destas e elevá-los, organizando-os a elementos constitutivos da figura que se pretende construir; mas é claro que quanto mais vasta, variada e heterogênea é esta fenomenologia real, menor é o número dos caracteres comuns identificáveis no interior desta, menor portanto a riqueza da definição geral que sobre estes se funda, menos intensa a sua capacidade representativa, mais reduzida, em suma, a sua aderência ao conceito, maior a sua rarefação e a sua distância da realidade (...). Tudo isso resulta de modo mais claro se considerarmos a definição de negócio jurídico que haveria de tornar-se prevalecente: ‘uma declaração de vontade dirigida a produzir efeitos jurídicos’.”
Com efeito, abstraídos todos os elementos concretos que particulari- zam os contratos e as demais figuras jurídicas inseridas no amplo conceito de negócio jurídico (que abrange o testamento, a remissão de dívida, a promessa de recompensa, entre outros atos jurídicos), restava apenas um elemento ideal que poderia estar na base de todos esses fenômenos: a autonomia da vontade.
Assim, “pela teoria do direito, a vontade passou, então, a ser considerada elemento natural para a explicação das figuras jurídicas, extensiva até àquelas que não a pressupunham” (Xxxxx e Xxxxx, 2006, p. 25).
Essa conclusão da escola pandectística, no entanto, não surge por acaso,
sendo evidente reflexo dos valores que orientavam os seus autores, representando
“(...) um formidável instrumento ideológico, todo ele funcionali- zado aos interesses da burguesia e às exigências colocadas pelo seu grau de desenvolvimento (daí que os pandectistas alemães nos pareçam, além de juristas admiráveis, como intelectuais perfeitamente ‘harmônicos’ com a classe a que pertenciam).” (Xxxxx, 2009, p. 50)
De fato, a abstração de todas as relações negociais a expressões da auto- nomia da vontade correspondia aos ideais do liberalismo econômico e atendia perfeitamente aos interesses da classe burguesa emergente no pós-Revolução Francesa (Xxxxxxx, 2014, p. 43).
Esse conjunto de ideias influencia fortemente a edição do Código Civil brasileiro de 1916 e, consequentemente, a cultura jurídica construída durante o século XX, que assenta na autonomia da vontade o caráter vinculativo das obrigações, segundo a antiga máxima pacta sunt servanda (“os acordos devem ser cumpridos”).
3 – Da autonomia da vontade à autonomia privada
A expressão “autonomia da vontade” era utilizada pela doutrina civi- lista dos séculos XIX e XX, em linha com as ideias voluntaristas herdadas do liberalismo. Nesse sentido:
“(...) a teoria da vontade se apoia na fé da palavra dada, que está ligada ao princípio da autonomia da vontade e que constitui regra de moral social. Xxxxxxx Xxxxxx, expondo o princípio da autonomia da vontade, dá sua fase filosófica e histórica nos seguintes termos: ‘(...) Para se chegar a essa concepção da vontade soberana, criando, por sua exclusiva força, direitos e obrigações, foi preciso que, na obra lenta dos séculos, a filo- sofia espiritualizasse o direito, para libertar a vontade pura, das formas materiais pelas quais ela se manifesta, que a religião cristã impusesse aos homens a fé na palavra escrupulosamente guardada, que a doutrina do direito natural ensinasse a superioridade do contrato, fundamentando nele a própria sociedade, que a teoria do individualismo liberal afirmasse a concordância dos interesses privados livremente debatidos, com o bem público. Então, pôde reinar a doutrina da autonomia da vontade que é simultaneamente o reconhecimento e o exagero da onipotência do con- trato’.” (Xxxxxxx, 2002, p. 81)
Ocorre que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, a comunidade jurídica brasileira passou a incorporar na disciplina dos contratos e das obrigações outros valores, como os princípios da eticidade e da socialidade, compreendendo que os negócios jurídicos não devem ser regulados exclusivamente pelas disposições supostamente negociadas em condições de igualdade pelas partes.
Com a afirmação da dignidade humana e o reconhecimento da centra- lidade da pessoa como valor fundamental do Direito, ocorre o processo de constitucionalização do direito privado, o que rompe com antigos postulados, surgindo, no lugar do indivíduo, a pessoa. Nas palavras de Xxxxxxx (2014, p. 84):
“(...) não são patrimônios que se entrecruzam na relação obriga- cional, mas, antes, pessoas situadas concretamente nas suas relações de consumo, aluguel, prestação de serviços, compra e venda e empréstimo, dentre outras. Os diversos elementos que compõem a complexidade obrigacional estão atraídos ao adimplemento, que só pode ser entendido como a satisfação global dos interesses, patrimoniais e existenciais, que avultam do vínculo obrigacional.”
Em decorrência, a noção de “autonomia da vontade” vem sendo substi- tuída por “autonomia privada”, o que não representa apenas uma mudança de aparência, mas a ressignificação desse princípio, que reduz a ênfase na vontade particular, para expressar a liberdade que as pessoas possuem para autorregular suas relações jurídicas, orientadas por normas de ordem pública, no sentido do atendimento do bem comum.
No mesmo sentido, a doutrina mais moderna:
“se, no passado, a autonomia da vontade era vista como valor em si mesmo, assegurando eficácia ao negócio jurídico pelo simples fato de ser fruto da liberdade individual, hoje a situação afigura-se inteiramente diversa. O negócio jurídico não pode mais ser considerado um terreno absoluto da vontade, imune à incidência das normas constitucionais, mas deve ser visto como instrumento cujo merecimento de tutela deve ser permanentemente afeito à luz da tábua axiológica consagrada pela Constituição. Os efeitos de um negócio jurídico concreto não derivam da vontade dos celebrantes, mas decorrem e se justificam apenas na medida em que se reconhece a legitimidade dos fins perseguidos, e do modo como são perseguidos, naquele particular exercício da autonomia privada.” (Schreiber et al., 2023, p. 84)
De se dizer que a autonomia privada não nega o direito que cada pes- soa possui de decidir se firmará algum contrato (liberdade de contratar) e de definir o seu conteúdo, de acordo com os interesses que o levaram a contratar (liberdade contratual).
Mas o novo conteúdo desse princípio conforma o exercício da liberdade individual aos valores da socialidade e da eticidade, que estão na base do direito privado contemporâneo, estabelecendo que a vontade não é mais a única fonte de direitos e deveres na ordem jurídica.
Oportuno destacar que esse fenômeno de ressignificação do princípio da autonomia – antes centrado apenas na vontade e, agora, também no alinhamento dessa com valores sociais e éticos – coincide com uma tendência global, obser- vável a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial, de reposicionar o ser humano frente às transformações disruptivas decorrentes do desenvolvimento
até então alcançado. Em outras palavras, desde o reconhecimento da dignidade da pessoa humana com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, até a organização da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvi- mento – cujos trabalhos levaram à conclusão, expressa no Relatório Brundtland4 (1987), pela inadiável necessidade de se colocar o ser humano no centro da agenda do desenvolvimento sustentável5 – chegou-se, de fato, à concepção de que nenhum desenvolvimento ou progresso é assim considerado à margem da dignidade da pessoa humana, cuja ideia veio a refletir na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, conforme já referimos.
4 – A boa-fé na relação obrigacional
De acordo com Xxxxx x Xxxxx (2006, p. 32):
“A influência da boa-fé na formação dos institutos jurídicos é algo que não se pode desconhecer ou desprezar. Basta contemplar o direito romano para avaliar sua importância. A atividade criadora dos magistrados romanos, restringida num primeiro momento ao ius gen- tium, e posteriormente estendida às relações entre os cives, através do ius honorarium, valorizava grandemente o comportamento ético das partes, o que se expressava, sobretudo, nas actiones ex fide bona, nas quais o arbítrio do iudex se ampliava, para que pudesse considerar, na sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, quando da celebração do negócio jurídico.”
A compreensão moderna dessa cláusula geral se deu, principalmente, a partir dos estudos empreendidos pela doutrina e jurisprudência germânicas acerca do § 242 do Código Civil alemão de 1896 (o Burgeliches Gesetzbuch, conhecido pela sigla BGB), que enuncia: “der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrs- sitte es erfordern”6.
Nesse sentido, leciona Xxxxxxx-Xxxxx (2018, p. 135):
“Hoje em dia, afirma-se que o § 242 veio a constituir o elemento fundamental para uma compreensão ‘absolutamente nova’ da relação obrigacional, assentada na segunda metade do século XX em cujo centro está o princípio da boa-fé como ‘princípio reitor’ do Direito Obrigacional,
4 No Brasil, com o título de “Nosso Futuro Comum”.
5 A esse respeito, conferir: XXXXXXXX, Breno. A sociedade 5.0 e o novo balizamento normativo das relações de trabalho no plano das empresas. Brasília: Venturoli, 2023. p. 25-38.
6 “O devedor esta adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé [objetiva], com consideração pelos costumes do tráfego”, conforme tradução de Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx (apud Steiner, 2014, p. 62).
paralelamente ao princípio da autonomia privada. Ambos se tangenciam em alguns pontos, mas não se confundem, pois reveste a boa-fé ‘um valor autônomo, não relacionado com a vontade’, razão pela qual ‘a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede com base somente nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até ao controle das partes’.”
É essencial apontar que a boa-fé, no campo obrigacional, tem maior relação com as condutas empregadas pelas partes no desenvolvimento desse vínculo jurídico, as quais devem ser compatíveis com o que habitualmente se espera para aquela situação.
Distingue-se, assim, a boa-fé subjetiva, que expressa a ciência da parte acerca de um vício que macula a sua conduta (estando conectada à sua intenção), da boa-fé objetiva, que dá ênfase às ações e abstenções concretamente verificadas (estando ligada à noção de lealdade). Novamente recorrendo ao Direito alemão, essa distinção é feita a partir de duas expressões: “o termo Guten Glauben – que quer dizer, literalmente, bom pensamento ou boa crença – denota a boa-fé subjetiva; enquanto Treu und Glauben – fidelidade e crença –, a boa-fé objetiva” (Tartuce, 2021b, p. 113).
Apesar de norma semelhante ao § 242 do BGB não constar do Código Civil de 1916, a doutrina já apontava que a omissão não impedia que o princípio tivesse vigência em nosso direito das obrigações, por se tratar de “proposição jurídica, com significado de regra de conduta” (Xxxxx e Xxxxx, 2006, p. 33).
Contudo, acompanhando a tendência de Códigos Civis editados no século XX, como o italiano de 1942 e o português de 1966, a nova legislação privada brasileira veio a corrigir essa omissão, sendo essa “uma das mais festejadas mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2002” (Tartuce, 2021b, p. 112).
No novo Código, a boa-fé possui múltiplas funções, atuando como dire- triz de interpretação dos negócios jurídicos (art. 113), como limite do exercício legítimo de direitos (art. 187) e como princípio contratual explícito (art. 422).
Centrando a nossa análise na aplicação da boa-fé objetiva ao direito obrigacional, temos que ela comparece ao lado da autonomia privada para produzir deveres jurídicos às partes, o que ocorre, porque
“o ato de autonomia, nascido do poder de autorregulamentação dos próprios interesses e da garantia (constitucionalmente assentada) da liberdade de iniciativa é também um ato gerador de expectativas legítimas, o que importa correspectivamente, em autorresponsabilidade,
a necessária e inafastável contrapartida da autonomia.” (Martins-Costa,
2018, p. 251)
Supera-se, assim, o dogma da vontade, que radicava nesta a fonte única das obrigações nos negócios jurídicos, como se somente pela vontade a parte se obrigaria a uma prestação e apenas a esta obrigação estaria vinculada perante a contraparte. Com a nova concepção da autonomia privada e dos impactos da boa-fé no direito das obrigações, reconhece-se que as expectativas justas construídas pelas partes também produzem deveres a serem cumpridos no desenvolvimento da relação obrigacional, ainda que estes não decorram da vontade dos contratantes:
“a dogmática do século passado tinha por centro a vontade, de forma que, para os juristas daquela época, todos os deveres dela resul- tavam. Em movimento dialético e polêmico poder-se-ia chegar à con- clusão oposta, isto é, a de que todos os deveres resultassem do princípio da boa-fé. Mas a verdade está no centro: há deveres que promanam da vontade e outros que decorrem da incidência do princípio da boa-fé e da proteção jurídica de interesses.” (Xxxxx e Xxxxx, 2006, p. 38)
Sinteticamente, podemos concluir que “nem todos os deveres contratuais decorrem da vontade das partes e, na construção da obrigação como comple- xidade e processo, devem, todos eles, ser igualmente observados sob pena de descumprimento obrigacional” (Xxxxxxx, 2014, p. 71).
5 – Deveres laterais, anexos, acessórios ou secundários
Como afirmamos no capítulo um, o conceito tradicional de obrigação vem das fontes romanas, sendo elaborado a partir da reunião dos seus elementos subjetivos (credor e devedor), objetivo (prestação de dar, fazer ou não fazer) e jurídico ou espiritual (formado pelo débito e pela responsabilidade7).
Nesse sentido, após citar os conceitos formulados por outros autores,
Tartuce (2021a, p. 5) os sintetiza, definindo a obrigação nos seguintes termos:
“a relação jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor, e cujo objeto consiste em uma prestação situada no âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor.”
7 Adota-se aqui a teoria dualista desenvolvida pelo jurista alemão Xxxxx xxx Xxxxx no final do século XIX, que desdobrou o vínculo obrigacional em débito e responsabilidade (Schuld und Haftung), por se tratar de proposição amplamente acolhida pela doutrina civilista na atualidade.
Ocorre que essa compreensão, embora correta do ponto de vista analítico, se limita à prestação principal ou nuclear assumida pelas partes, desconsiderando os deveres de conduta decorrentes da boa-fé. Assim, essa definição vem sendo complementada pela noção de obrigação enquanto processo ou totalidade:
“Xxxx Xxxxxx inicia sua exposição acerca da estrutura da relação obrigacional destacando os elementos que a compõe: deveres de pres- tação e de comportamento, pretensão enquanto direito a prestação e sua possibilidade de execução judicial, e proteção ao credor pelo patrimônio do devedor, para então trabalhá-la como um todo (‘tratamento da obri- gação como um todo’, ‘Schuldverhältnis als Ganzen’). A noção não se esgota na simples soma dos diversos elementos que a compõe: ‘(...) estes elementos – diga-se os diversos direitos, deveres e responsabilidades que interessam a uma relação obrigacional – não estão desconectados uns dos outros, mas sim têm sentido enquanto um conjunto’.” (Xxxxxxx, 2014, p. 76)
Esse conceito foi pioneiramente desenvolvido no Brasil na tese de livre-
-docência apresentada por Clóvis do Couto e Xxxxx perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964, a qual foi posteriormente publicada na forma de livro, com o título “A obrigação como processo”.
Como explica o autor, essa visão do vínculo obrigacional, permite compreendê-lo como uma ordem de cooperação, constituindo uma unidade que não se esgota na soma dos seus elementos. Dentro dessa ordem de cooperação,
“credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas, dia- léticas e polêmicas. Transformando o status em que se encontravam, tradicionalmente, devedor e credor, abriu-se espaço ao tratamento da relação obrigacional como um todo.” (Xxxxx e Xxxxx, 2006, p. 19)
Amplia-se, assim, a compreensão acerca da essência do vínculo obriga- cional, que passa a ser entendida como um sistema de processos.
Seguindo a classificação e terminologia empregadas por Xxxxxxx-Xxxxx (2018, p. 239), esse sistema é composto de deveres de prestação e deveres de proteção8.
Os deveres de prestação abrangem os deveres primários ou principais, que formam o elemento estruturante de qualquer relação obrigacional (por exemplo, a entrega do bem e o pagamento do preço, na compra e venda), os deveres secundários ou acidentais e os deveres anexos.
8 Também adotaremos neste trabalho a expressão deveres secundários, derivada do alemão Nebenpflichten, que é utilizada por Xxxxx e Xxxxx (2006, p. 93), aduzindo que estes “consistem em indicações, atos de proteção, como o dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda, de cooperação, de assistência”.
Os deveres de prestação secundários ou acidentais se subdividem em de- veres meramente acessórios, os quais “se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a sua perfeita realização” (Xxxxxxx-Xxxxx, 2018, p. 241), como ocorre com a embalagem e o transporte do produto adquirido, e deveres de prestação autônoma, que consistem na reparação de danos decorrentes do cumprimento defeituoso ou inadimplemento absoluto da obrigação (Steiner, 2014, p. 89-90).
Os deveres anexos, por sua vez, não estão ligados à obrigação principal por uma relação de acessoriedade, mas se mostram necessárias para o adim- plemento satisfatório:
“Verificam-se, exemplificativamente, quando se exige a implemen- tação de deveres de informação sobre as qualidades da coisa prometida à venda; de esclarecimentos sobre o alcance de determinada prestação; de prestação de contas ‘transparentes’ incumbente a todos que gerenciem dinheiros e interesses alheios; de lealdade na conduta contratual, evitan- do-se o comportamento incoerente, etc.” (Xxxxxxx-Xxxxx, 2018, p. 243)
De outro lado, os deveres de proteção correspondem às condutas que devem ser empregadas por qualquer um dos contratantes durante o desenvol- vimento do vínculo obrigacional (incluindo a fase pré-contratual), no sentido de evitar a ocorrência de danos aos direitos e interesses da outra parte.
6 – Conteúdo obrigacional do contrato de emprego
Sem adentrarmos no extenso debate sobre a natureza jurídica do Direito do Trabalho, porque isso fugiria aos objetivos e ao objeto deste artigo, podemos afirmar que a doutrina considera, majoritariamente, que a relação de emprego corresponde a um contrato de direito privado9.
Como consequência lógica, as premissas estabelecidas nos capítulos antecedentes são igualmente aplicáveis ao contrato individual de trabalho.
Xxxxx e Xxxxxxxxxx (2012, p. 209) descrevem o conteúdo do contrato
de emprego da seguinte forma:
“O contrato de trabalho, como contrato sinalagmático à base de tro- ca, dá origem, como vimos, à disciplina de duas obrigações fundamentais: a obrigação da prestação de trabalho a cargo do empregado e a obrigação da contraprestação de remuneração, a cargo do empregador. Constituem as duas obrigações principais que nascem do contrato. Ao lado delas, obrigações instrumentais ou acessórias e correspectivas pretensões; poder de direção e correspondente estado de subordinação constituem
9 Filiam-se a essa corrente, entre outros: (Xxxxxx, 2016, p. 158; Xxxxxxxx, 2019, p. 408; Xxxxxxx, 2020,
p. 629; Xxxxxxxxxx, 2012, p. 867; Xxxxxxxx, 2022, p. 281).
os denominados poderes e deveres, os quais, permanecendo distintos do débito e do crédito de trabalho e de remuneração, constituem, todavia, necessariamente, a respectiva posição do empregador e do empregado.”
Temos, assim, que, em razão do contrato de emprego, o empregado se obriga a exercer a sua função em favor do empregador, o que enfeixa uma ampla gama de tarefas logicamente conectadas dentro da divisão do trabalho na empresa (Delgado, 2020, p. 1243). O empregado não se obriga a executar uma atividade certa e determinada, como comumente ocorre nos contratos civis, mas a desempenhar tudo aquilo que seja pertinente e correlato ao objeto do contrato de trabalho.
Cumprindo o empregado com a sua obrigação, seja pela efetiva prestação do trabalho ou pela disponibilização da sua energia laboral (na forma do art. 4º da CLT), o empregador assume a obrigação de pagar a remuneração corres- pondente. A obrigação de pagar é, portanto, consectária da obrigação de fazer, havendo uma sequência lógica no encadeamento das obrigações trabalhistas. Por essa razão, o salário é denominado de contraprestação.
A prestação do trabalho e o pagamento do salário formam, assim, as obrigações nucleares do contrato de emprego.
Ao lado dessas prestações principais, também no contrato de emprego manifestam-se outros deveres acessórios ou decorrentes que devem ser cum- pridos pelas partes:
“Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que, além do dever principal de prestar o trabalho ajustado, o empregado deve executá-lo com atenção ao cumprimento dos deveres acessórios de ‘colaboração’, ‘diligência’, ‘respeito’, ‘lealdade’ e ‘fidelidade’. Por outro lado, tal como se existisse um espelho para dar contrariedade à análise, não basta que o empregador cumpra o dever principal de pagar o salário combinado. Cabe-lhe, também, o atendimento dos mesmíssimos deveres de ‘cola- boração’, ‘diligência’, ‘respeito’, ‘lealdade’ e ‘fidelidade’.” (Xxxxxxxx, 2021, p. 747)
Diferentemente do Código do Trabalho português, que apresenta nos arts. 127º e 128º os principais deveres do empregador e do empregado, respectiva- mente, a CLT não apresenta um rol dos deveres secundários impostos às partes.
Não obstante, os arts. 482 e 483, ao disciplinarem as hipóteses de justa causa para a resolução contratual, indicam casos de inadimplemento contratual, que permitem a conclusão acerca dos deveres que incumbem às partes. Como afirma Xxxxxxxx (2019, p. 90):
“os artigos 482 e 483 da CLT, ao indicarem a casuística da justa causa, em verdade estão a elencar hipóteses em que a conduta do empre- gado ou do empregador acarreta a quebra da confiança que um no outro depositava. Não há melhor expressão no direito do trabalho em vigor no Brasil, da função informadora do princípio da boa-fé.”
Podemos extrair dessas normas, ilustrativamente, o dever de diligência do empregado, a quem incumbe, entre outras condutas, a atenção às normas relativas à forma de execução do trabalho, o zelo na realização das tarefas e a responsabilidade pelas atribuições recebidas, sob pena de configuração da sua desídia (art. 483, “e”, da CLT).
Temos, também, o dever de lealdade, do qual decorre a vedação ao esta- belecimento de concorrência desleal pelo empregado em face do empregador, com aproveitamento das informações obtidas na execução do trabalho (art. 482, “c”, da CLT).
E, ainda, o dever de respeito ou de urbanidade, o qual se aplica a ambas as partes, eis que é vedado ao empregado e ao empregador praticar atos lesivos à honra e à boa fama da outra parte (arts. 482, “k”, e 483, “e”, da CLT).
É certo, no entanto, que os deveres laterais decorrentes da boa-fé não se esgotam nas hipóteses caracterizadoras da justa causa, havendo muitos outros que podem ser extraídos da ordem jurídica e das condutas esperadas das partes, como o dever de custódia dos bens recebidos pelo empregado para a execução do trabalho, o dever de informação e o dever de proteção10.
7 – Dever de ocupação efetiva
O dever de ocupação efetiva consiste em um dos deveres de prestação anexos ao contrato de emprego, o qual destacamos do capítulo anterior, em razão da sua relevância para o objeto deste trabalho.
Esse dever consiste na obrigação de a empresa oferecer o trabalho ao empregado, atribuindo-lhe concretamente a oportunidade de exercer a sua função, representando, reflexamente, a manifestação do direito fundamental do empregado ao trabalho (art. 5º, XIII, da Constituição da República).
Nessa perspectiva, uma vez que o contrato de emprego é celebrado para que haja a prestação de um trabalho, o exercício da função não é apenas uma obrigação do empregado, mas também um direito que lhe assiste.
10 Sobre o tema, Xxxxx e Xxxxxxxxxx (2012, p. 150) observam que o dever de proteção constava no BGB pioneiramente para o contrato de emprego: “O Código Civil alemão esposou alguns desses princípios quando instituiu o dever de proteção do patrão para com o seu subordinado (Fürsorgepflicht), desconhecido dos outros contratos”.
Referida obrigação consta expressamente da legislação portuguesa, como
uma garantia do trabalhador. De acordo com Xxxxxxxx (2022, p. 508):
“A ocupação efetiva traduz-se num direito do trabalhador a tra- balhar, isto é, que lhe seja dada a oportunidade de executar, realmente, a atividade para a qual foi contratado.
A existência de um dever de ocupação efetiva do trabalhador, de- pois de uma longa polêmica, e de encontrar uma aceitação generalizada no ordenamento jurídico português, foi consagrada no Código do Tra- balho em 2003, constando hoje da alínea b) do art. 129º, nº 1, CT2009.”
Apesar da ausência de previsão expressa na CLT, a doutrina clássica já afirmava que “o empregador deve, em regra, proporcionar o trabalho prometido” (Xxxxx; Xxxxxxxxxx, 2012, p. 230).
Isso se verifica porque o trabalho produtivo, além de assegurar renda ao obreiro, é uma forma de realização pessoal, noção que não escapa ao senso comum: “É no trabalho que emerge o modo de expressão direta da pessoa” (Xxxxx, 2021, p. 297). Por essa razão, o empregador não pode manter o empregado injustificadamente sem trabalho, pois isso produz sentimentos de frustração e inutilidade, sendo várias as repercussões negativas que essa prática produz na sua autoestima.
Tanto é assim que a ociosidade forçada é uma modalidade comum de pressão psicológica exercida contra os trabalhadores, que têm esvaziadas as suas funções e são compelidos a permanecer na inatividade durante toda a jornada de trabalho. Conforme afirma Xxxxxx (2016, p. 604), essa prática está inserida nas chamadas “técnicas de isolamento”, que consistem na atribuição de funções à vítima “(...) que a isolam ou deixam-na sem qualquer atividade, exatamente para evitar que mantenha contato com colegas de trabalho e obtenha deles a solidariedade ou manifestação de apoio”. Não por outra razão, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem se firmado no sentido de reconhecer o dano moral em hipóteses tais.
7.1 – A ocupação efetiva no contrato de trabalho intermitente
Embora o contrato de trabalho intermitente constitua uma novidade no ordenamento juslaboral brasileiro, essa modalidade contratual já existia em outros países, sendo oportuno, assim, realizar um breve exame do Direito Com- parado, para compreensão da forma como outros países regulam esse contrato.
Na Espanha, o Estatuto dos Trabalhadores (Estatuto de los Trabajadores) conceitua o contrato fixo descontínuo (“contrato fijo-discontinuo”) no nº 1 do artigo 16, nos seguintes termos:
“El contrato por tiempo indefinido fijo-discontinuo se concertará para la realización de trabajos de naturaleza estacional o vinculados a actividades productivas de temporada, o para el desarrollo de aquellos que no tengan dicha naturaleza pero que, siendo de prestación intermitente, tengan periodos de ejecución ciertos, determinados o indeterminados.”11
O nº 2 do mesmo artigo dispõe expressamente que o contrato deve ter forma escrita e indicar a duração do período de atividade, a jornada e os horá- rios de trabalho, podendo, quanto a estes, ser feita a indicação por estimativa.
O Código de Trabalho português, no artigo 157, admite a prestação do trabalho intermitente nas empresas que exerçam atividade com descontinuidade ou intensidade variável. Em sentido semelhante à lei espanhola, o artigo 158, nos nº 1 e 2, estabelece a forma e o conteúdo do contrato:
“1 – O contrato de trabalho intermitente está sujeito a forma escrita e deve conter:
a) Identificação, assinaturas e domicílio ou sede das partes;
b) Indicação do número anual de horas de trabalho, ou do número
anual de dias de trabalho a tempo completo.
2 – Quando não tenha sido observada a forma escrita, ou na falta da indicação referida na alínea b) do número anterior, considera-se o contrato celebrado sem período de inactividade.”
Vê-se que, nas legislações ibéricas, a regulação estatal tem por objetivo conferir previsibilidade ao trabalhador, exigindo que o contrato indique a quan- tidade de dias de atividade, o que constitui decorrência do dever de ocupação efetiva.
De outra forma, no Reino Unido, embora exista na legislação a figura do “zero hour worker”, conforme artigo 27A do Employment Rights Act de 1996, é assegurado a esse trabalhador o direito ao salário mínimo nacional, pelo fato de ele ser enquadrado na categoria geral de “worker”, conforme letra “a”, do nº 2 do artigo 1 do National Minimum Wage Act de 1998.
Portanto, ainda que não haja garantia de trabalho no Direito britânico, assegura-se, ao menos, o pagamento de salário, de modo a impedir que o em- pregado fique desamparado. Ademais, como existe o dever de contraprestação, há uma expectativa maior de que o empregador aproveitará a mão de obra do trabalhador, já que esse posto de trabalho representa um custo para a empresa.
11 “O contrato por tempo indefinido fixo descontínuo será celebrado para a realização de trabalhos de natureza estacional, ou vinculados a atividades produtivas de temporada, ou para o desenvolvimento daquelas que não tenham essa natureza, mas que, sendo de prestação intermitente, tenham períodos de execução certos, determinados ou indeterminados” (tradução nossa).
Na contramão das legislações citadas, a Lei nº 13.467/2017 estabeleceu um regime que “(...) gera insegurança econômica ao trabalhador, pois não há garantia de quantidade mínima de trabalho por mês, nem previsibilidade de novo trabalho” (Bomfim, 2021, p. 608).
Xxxxxxxx, assim, ao ponto central deste trabalho.
Adotada a visão liberal e positivista do século XIX (que guiou o legis- lador na edição da Reforma Trabalhista), o empregador não está obrigado a fornecer trabalho ao empregado, já que isso não consta do contrato e, portanto, não decorre da vontade dos contratantes.
Todavia, considerando as normas constitucionais e os princípios que regem os contratos em geral e, em especial, a relação de emprego, o dever de ocupação não se manifesta também no contrato de trabalho intermitente?
Para nós, a resposta a essa pergunta é afirmativa.
Adotando a concepção objetivista, a causa dos negócios jurídicos cor- responde à “função que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato jurídico, (...) traçando-lhe e precisando-lhe a eficácia” (Xxxxxxx, 2001, p. 107). Em outras palavras, a causa de um negócio jurídico é o “fim econômico ou social reconhecido e garantido pelo direito” (Pereira, 2022, p. 432).
Nessa linha, as causas do contrato de emprego são a prestação do traba- lho de que necessita o empregador e o recebimento do salário almejado pelo empregado12.
Logo, a prestação de um trabalho, enquanto causa, é a própria razão por que existe o contrato de emprego, de modo que constitui um paradoxo admitir a existência jurídica desse contrato, sem que exista a manifestação concreta de trabalho.
O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado quando o empre- gador detecta uma necessidade real de trabalho, cuja ocorrência não pode ser prevista, sendo um empregado contratado para trabalhar efetivamente, sempre que essa demanda se manifesta.
Destarte, a empresa não pode firmar um contrato intermitente para manter um trabalhador em reserva, aguardando uma convocação que será feita segundo o alvedrio do empregador, porque isso configura abuso de direito, por contrariar os fins econômicos e sociais do próprio contrato (art. 187 do Código Civil) e, por conseguinte, ao arrepio dos fundamentos da ordem econômica, a
12 No mesmo sentido: “(...) a causa da relação de emprego é, para o empregado, o salário e outras garantias trabalhistas, e, para o empregador, o trabalho e os resultados da atividade do empregado” (Xxxxxxxxxx, 2012, p. 873) e “no contrato de trabalho, espécie de contrato nominado, a causa é lícita e esta na troca entre trabalho e remuneração” (Xxxxxx, 2016, p. 168).
saber: valorização do trabalho humano e livre concorrência (art. 170, caput, da Constituição da República), sendo oportuno acrescentar que “(...) os princípios presentes nos incisos subsequentes desse dispositivo possuem uma conformação geral ao critério principiológico estabelecido no caput” (Medeiros, 2023, p. 144).
Por outro lado, como a prestação do trabalho é uma das causas para o contrato ser firmado, o empregado nutre uma esperança natural de que será convocado com alguma regularidade. Todo trabalhador, ainda que contratado para laborar de forma intermitente, espera poder exercer o seu ofício, sendo que a ordem jurídica preserva essa expectativa, exigindo conduta ativa do empregador na disponibilização do posto de trabalho.
Decorre, assim, da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) a preser- vação da expectativa justa do empregado, a qual é frustrada, caso o trabalho se dê de forma excessivamente esporádica, impondo-lhe períodos prolongados de inatividade no curso da relação jurídica.
Por fim, cabe sempre recordar que o valor social do trabalho consiste em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, da Constituição da República), de modo que o ordenamento jurídico não admite a celebração de um contrato de emprego esvaziado, que não assegure efetivo trabalho ao empregado.
Portanto, ainda que o labor ocorra com intensidade variável, deve haver o aproveitamento da mão de obra do empregado contratado, pois somente assim ele pode colaborar de forma útil para a sociedade.
Conclui-se que o dever de ocupação efetiva incide sobre todas as formas contratuais previstas no art. 443 da CLT, porque esse dever é inerente à figura sociojurídica da relação de emprego, sendo um dever do empregador assegurar previsibilidade ao empregado, independentemente de ser da natureza do contrato de trabalho intermitente a ocorrência de períodos de inatividade.
8 – A violação positiva do contrato
Quando da entrada em vigor do Código Civil alemão, em 1900, esse diploma cuidava expressamente apenas da inexecução da prestação principal ajustada entre as partes, o que se denomina violação negativa do contrato, por se tratar de uma não prestação, ou seja, do descumprimento da obrigação estabelecida no negócio jurídico.
Dois anos após o início da vigência do BGB, o advogado alemão Her- mann Xxxxx publicou artigo paradigmático, que deu início ao desenvolvimento da teoria da violação positiva do contrato. De acordo com Xxxxxxx (2014, p. 206), a doutrina germânica trata esse trabalho como uma “descoberta”, pois
foi esse autor que identificou a lacuna na legislação, propondo que, também no caso do descumprimento dos deveres secundários, caberia à parte prejudicada a reparação de danos e a resolução do contrato:
“Tomando o BGB de 1900 como paradigma, afirmou o autor, em excerto que, sem reparos, pode ser aplicado ao panorama jurídico brasileiro, que ‘em que pese não possa [o fundamento jurídico] ser extraído diretamente da lei, pode ser ele fundamentado indiretamente com ajuda de lei’. As violações positivas que podem embasar o efetivo descumprimento obrigacional foram definidas pelo autor como aquelas ‘violações de deveres pelas quais as obrigações contratuais essenciais são violadas’.” (Xxxxxxx, 2014, p. 206)
A relevância desta obra e de outras que a seguiram é tão grande que ani- maram o legislador alemão a reformar o direito obrigacional no ano de 2001, incluindo no § 280 do BGB a previsão da “violação de deveres” (Pflichtver- letzung), que alberga a violação positiva do contrato (Steiner, 2014, p. 176).
Apesar de o Código Civil de 2002 ter sido inspirado pela doutrina ger- mânica desenvolvida ao longo do primeiro século de vigência do BGB, a lei privada brasileira não possui dispositivo expresso que cuide da violação posi- tiva, pois, ao prever as hipóteses de inadimplemento, no art. 389, e de mora, no art. 394, o diploma regula apenas o descumprimento do devedor acerca da prestação principal objeto do contrato.
É necessário, assim, interpretar tais dispositivos em conjunto com o art. 422 do Código Civil, que dispõe que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de pro- bidade e boa-fé”, para se concluir que também o descumprimento dos deveres de prestação e de proteção derivados da boa-fé produz o inadimplemento contratual.
No campo do Direito do Trabalho, a alínea “d” do art. 483 da CLT es- tabelece que o empregado pode resolver o contrato por culpa patronal quando “não cumprir o empregador as obrigações do contrato”.
Seguindo as premissas estabelecidas acima, o vocábulo “obrigações” deve ser interpretado extensivamente, para ser compreendido não apenas como as prestações salariais devidas pelo empregador, mas todos os deveres que decorrem do contrato de emprego.
Com base nesse dispositivo, e no que foi examinado no capítulo anterior, podemos afirmar que a conduta do empregador de manter o empregado em inatividade por períodos de tempo excessivos constitui hipótese de inadimple- mento, mesmo no contrato de trabalho intermitente.
Como consequência da responsabilidade contratual, o empregado pode buscar a reparação de todos os danos sofridos, como a indenização de despesas efetuadas para a execução frustrada do trabalho e a indenização pela perda de uma chance, caso o trabalhador tenha recusado outras oportunidades de labor, para ficar à disposição de convocação do empregador.
Além disso, pode o trabalhador pleitear indenização pelo prejuízo ex- trapatrimonial sofrido, em virtude da frustração da sua expectativa de traba- lhar e das consequências negativas provocadas pela ociosidade forçada pelo empregador.
9 – Conclusão
O princípio da boa-fé objetiva, ao impor normas de conduta às partes durante todas as fases do desenvolvimento do vínculo obrigacional, exige a consideração aos sujeitos do contrato, o que retira a análise do campo de abs- tração jurídica proposto pela Pandectística.
É necessário, portanto, assegurar que os negócios jurídicos atendam às intenções, aspirações e expectativas justas, razoáveis e adequadas das pessoas envolvidas nos contratos, uma vez que as operações econômicas reguladas pelo Direito atendem também demandas existenciais dos sujeitos.
Nessa linha, o contrato de emprego, em qualquer das suas formas, deve ser fonte de trabalho e renda para o empregado, de modo a atender à sua função social e à justa expectativa do trabalhador contratado, incumbindo ao emprega- dor promover o aproveitamento da mão de obra disponibilizada pelo contrato.
Ainda que seja da natureza do contrato de trabalho intermitente a exis- tência de períodos de inatividade, o empregador só pode se valer dessa figura jurídica quando identificar uma demanda real da empresa que poderá ser suprida concretamente por um empregado, pois a prestação do trabalho constitui causa do contrato de emprego.
Em decorrência, configura inadimplemento contratual a manutenção do empregado em ociosidade excessiva e injustificada por longos períodos de tempo, porque essa conduta esvazia a finalidade econômica e social do contrato de emprego, deflagrando os efeitos da responsabilidade civil, na forma do art. 389 do Código Civil.
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Recebido em: 6/10/2023 Aprovado em: 10/10/2023
Como citar este texto:
XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. O dever de ocupação efetiva no contrato de trabalho intermitente. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Porto Alegre, vol. 89, n. 3, p. 25-44, jul./set. 2023.