Regime jurídico tributário do contrato de trespasse.
Regime jurídico tributário do contrato de trespasse.
Xxxxxx Xxxxxx* Xxxxxxxxx Xxxxxxx*
1. O contrato de trespasse.
“Estabelecimento empresarial é o conjunto de bens reunidos pelo empresário para a exploração de sua atividade econômica”1, definição esta consentânea com o art. 1.142 do Código Civil segundo o qual “considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Segundo a doutrina, trata-se de uma universalidade de fato, pois seus elementos estão destinados a um fim por vontade de seu titular2.
Quando esta universalidade, este complexo de bens organizado é objeto de um contrato de compra e venda, temos a figura do trespasse, contrato que encontra previsão no art. 1.144 do Código Civil:
Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial.
Embora a lei silencie a respeito, não é necessário para a configuração do trespasse que todos os bens e direitos integrantes do estabelecimento sejam objeto da compra e venda. Alguns deles podem ser excluídos do contrato, desde que mantida a organização, a universalidade.
A título de ilustração, recorremos ao Direito Comparado para expor o posicionamento da jurisprudência portuguesa, conforme julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça daquele país no Ac. de 24 de Março de 2003, Proc. n.º 1164/02:
* Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela UFMG. Professor de Direito Tributário e Coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário das Faculdades Xxxxxx Xxxxxx, em Belo Horizonte. Advogado.
* Mestre em Direito Tributário (UFMG). Professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito Xxxxxx Xxxxxx e em cursos de especialização. Advogado.
1 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de Direito Comercial. volume 1. 12°ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 96.
2 XXXXXX XXXXXX, Waldo. Manual de direito comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 64.
“Enfim e de uma forma sintética poderemos definir o trespasse como a transmissão inter-vivos definitiva, unitária e onerosa do estabelecimento comercial, entendido este como a realidade jurídica complexa, heterogénea e dinâmica, constituída pelos bens corpóreos e incorpóreos que o integram (…) No entanto, e por um lado, para se falar em trespasse não é necessário que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento. É, assim, admissível o trespasse parcial, desde que os elementos transmitidos tenham autonomia funcional, ou seja, desde que a transmissão abranja aquele mínimo de elementos essencial à existência e ao funcionamento do estabelecimento - cfr. Ac. do STJ, de 28/3/2002, BMJ 495º-301.”
Portanto, ainda que alguns bens integrantes do estabelecimento possam ser excluídos do contrato de trespasse, este continuará sendo um contrato típico, desde que os bens que nele permaneçam sejam suficientes para identificá-lo como um complexo organizado para o desempenho da atividade de empresa.
Xxxxxxxxxx as características do contrato de trespasse, passamos a analisar seu regime jurídico tributário.
2. Não incidência de ICMS e IPI no contrato de trespasse.
A regra matriz de incidência do ICMS tem como conceito inicial o de operações, que “são atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação e mercadoria são, nesse sentido, adjetivos que restringem o conceito substantivo de operações”.3
A circulação é conceituada pela doutrina4 e jurisprudência5 como “circulação jurídica”, ou seja, a mudança de domínio da mercadoria. E mercadoria6 é categoria especial de bens econômicos: bens móveis7 postos à
3 XXXXXXX, Xxxxxxx e GIARDINO, Xxxxxx. Núcleo da definição constitucional do ICMS. RDT vol. 25/26, pag. 105
4 Seguindo o mesmo caminho doutrinário, entre outros, Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, (cf. O Fato Gerador do ICM e os Estabelecimentos Autônomos, in Revista de Direito Administrativo, São Paulo, vol. 103, pp. 33-48; Xxxxxxx Xxxxxxx (cf. ICM sobre a Importação de Bens de Capital para uso do Importador, Revista Forense, vol. 250, pp. 114-120); Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx (Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980 nº 11-12p. 256. São Paulo: XX, 0000, p.257-262); Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxx (cf. ICMS. Teoria e Prática. São Paulo. Dialética. 1995); Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx (cf. ICMS. São Paulo. Malheiros Ed. 1994); Xxxxxxx Xxxxxx (cf. Direito Tributário e Empresarial - Pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 294.
5Ver Súmula 166 do STJ e 573 do STF.
6 Sobre o conceito de mercadoria, assim se expressou Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx: “A natureza mercantil do produto não está absolutamente, entre os requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda entre outras adquiridas para
venda, ou seja, colocados no comércio. Conclui-se então que, como visto, a circulação da mercadoria deve ter por base uma operação apta a promovê-la8.
No que toca ao aspecto temporal, ou seja, o momento em que se considerada ocorrido o fato gerador do imposto, a LC 87/96, seguindo a tradição anterior, não se dirigiu à realização do negócio jurídico em si (operação), mas sim à sua execução9, tomando como momento da incidência do imposto a saída da mercadoria do estabelecimento (LC 87/96; art. 12, I). O legislador parte de uma operação, um negócio jurídico dotado de eficácia, que consiste justamente na aptidão para promover a transferência de titularidade da mercadoria, para tomar os atos de execução desse negócio como o momento ensejador do gravame. O negócio jurídico não é dispensável, mas sim necessário para a configuração do fato gerador do ICMS. Porém, não é suficiente em si, e o legislador toma sua execução como a “situação de fato” que enseja a imposição.
Disso decorre que, no caso do contrato de trespasse, não há incidência do ICMS. O objeto do negócio jurídico não é a mercadoria enquanto bem móvel colocado à venda, mas sim o estabelecimento em sua inteireza. Além disso, não ocorre a saída da mercadoria do estabelecimento, pois este é adquirido de forma global, ou seja, as mercadorias que estão em seu interior lá permanecem, e dele não saem como conseqüência do contrato de trespasse.
esse fim. Não o será aquela que mantenho em meu bolso e se destina a meu uso pessoal. Não se operou a menor modificação na índole do objeto referido. Apenas sua destinação veio a conferir- lhe atributos de mercadorias”. (Hipótese de incidência do ICM, in Revista de Direito Tributário, jan/jun de 1980nº 11-12. São Paulo: XX, 0000, p. 256.
7 Xxxxxxxx Xxxxx, com esforço em tese sobre a repartição constitucional de competência tributária, chega à mesma conclusão: “A reserva constitucional material é estabelecida indiretamente nos casos em que a Constituição, implementando a sua divisão de competências no Estado Federal, ao atribuir poder para uma entidade política tributar um fato, implicitamente atribui poder para outra entidade política tributar fato diverso. Como o poder para tributar as operações com imóveis foi atribuído aos Municípios pela competência para instituir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, a palavra ‘mercadoria’, na regra de competência para tributar a circulação de mercadorias, só pode ser conceituada como bem móvel” (Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 202).
8 XXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx. Nota de atualização à BALEEIRO, Xxxxxxx. Direito tributário brasileiro. 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 375.
9 É o caso do tributo em análise, pois, “na operação jurídica que configura a hipótese de incidência do ICMS, do IPI e do ISS, não basta a formalização contratual para se realizar a transferência da propriedade ou a prestação do serviço. Interessam antes os atos de execução das referidas obrigações, situações de fato que foram eleitas pelo legislador tributário como marco temporal ou aspecto temporal da hipótese” (DERZI, Ob. e loc. cit., p. 711). A regra é inspirada na praticidade, pois seria extremamente difícil, tanto para a Fazenda Pública quanto para os contribuintes, mensurar o exato momento em que o negócio jurídico se concluiu, cabendo, nesse caso, até mesmo indagar do momento de manifestação da vontade das partes, prova extremamente difícil no caso em que o contrato não fosse formalizado em instrumento escrito. Por isso, adotou-se um marco objetivo, qual seja, a saída da mercadoria.
Com eficácia meramente declaratória de não-incidência, a LC 87/96 dispôs em seu art. 3º, VI que o ICMS não incide sobre “operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de propriedade de estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie”.
A materialidade do IPI é em tudo semelhante à do ICMS10, tendo como nota diferencial a necessidade de que o bem objeto da operação seja previamente industrializado.
Logo, na mesma esteira é de se concluir pela não incidência do IPI, pelas mesmas razões atinentes ao ICMS: o objeto do contrato não é um produto industrializado, e não há a saída necessária à concretização do fato gerador (CTN; art. 46, I).
Os débitos desses impostos decorrentes das saídas do estabelecimento ocorridos em virtude de operações realizadas terão o adquirente como contribuinte a partir do momento em que a titularidade do estabelecimento for adquirida pela conclusão do negócio jurídico. Débitos anteriores à aquisição terão o adquirente como responsável tributário, nos termos do art. 133 do CTN.
3. A manutenção de saldo credor de ICMS e IPI no estabelecimento e possibilidades de utilização.
Nos termos do art. 11, §3º da LC 87/96 cada estabelecimento é considerado um sujeito passivo distinto, ou seja, cada um deles é considerado autonomamente para fins de apuração do tributo devido, considerando os créditos de suas aquisições e as saídas tributadas.
Para a lei tributária (CTN; art. 109), é irrelevante a titularidade do estabelecimento, pois esta ignora a personalidade jurídica tal como construída no direito civil (uma vez que quem detém essa personalidade é a sociedade empresária) e se dirige diretamente ao estabelecimento como unidade econômica (CTN; art. 126, III) titular de direitos e deveres no âmbito do imposto.
Seguindo essa lógica, a LC 87/96 atribui a titularidade do direito de crédito do imposto pelas entradas tributadas a título de insumos e ativo imobilizado ao estabelecimento e não à sociedade à qual pertence:
Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de
10 Embora o art. 153, IV da Constituição não se refira a uma operação, a necessidade desta nos parece decorrer do art. 153, §3º, II da Constituição, que submete o IPI, sem exceções, à não- cumulatividade, o que requer a existência de sucessivas operações tributadas.
mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.
O art. 25 da LC 87/96 é expresso em limitar ao estabelecimento o direito de crédito, demandando, fora a hipótese de exportações (§1º), a existência de lei estadual prevendo a transferência de créditos para outro estabelecimento da própria empresa ou de terceiros (§2º):
Art. 25. Para efeito de aplicação do disposto no art. 24, os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabelecimento, compensando-se os saldos credores e devedores entre os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo localizados no Estado.
§ 1º Saldos credores acumulados a partir da data de publicação desta Lei Complementar por estabelecimentos que realizem operações e prestações de que tratam o inciso II do art. 3º e seu parágrafo único podem ser, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento:
I - imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado;
II - havendo saldo remanescente, transferidos pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, mediante a emissão pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito.
§ 2º Lei estadual poderá, nos demais casos de saldos credores acumulados a partir da vigência desta Lei Complementar, permitir que:
I - sejam imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado;
II - sejam transferidos, nas condições que definir, a outros contribuintes do mesmo Estado.
No mesmo sentido são as disposições do CTN sobre o IPI, que estabelecem a autonomia dos estabelecimentos, limitando a essa figura os créditos do imposto:
Art. 49. O imposto é não-cumulativo, dispondo a lei de forma que o montante devido resulte da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele entrados.
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
(...)
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.
Com isso concluímos que o direito de crédito, outorgado diretamente ao estabelecimento, não desaparece nem se restringe caso seja alterada a titularidade desse estabelecimento por meio de trespasse.
O trespasse não altera a natureza do estabelecimento. Pelo contrário, pressupõe o estabelecimento em sua inteireza, na medida em que é sua universalidade característica que serve de objeto ao contrato de trespasse.
Os créditos continuarão a ele (estabelecimento) pertencendo, e poderão ser aproveitados no âmbito da não-cumulatividade para compensação dos débitos próprios, ou utilizados nos termos da legislação em transferência para outros estabelecimentos, do mesmo contribuinte ou de terceiros.
Até mesmo porque, como o estabelecimento continuará em operação no mesmo local com os mesmos empregados, gerando débitos do imposto, não admitir a manutenção do saldo credor implica quebra da não- cumulatividade, elencando o trespasse como causa de anulação de créditos que não encontra guarida no art. 155, §2º, II, ‘b’ nem muito menos na LC 87/96.
Como visto acima, a alteração da titularidade do estabelecimento por meio do trespasse não afeta o saldo credor de ICMS nele acumulado, que poderá continuar sendo utilizado nos âmbito da não-cumulatividade ou em transferência a outros estabelecimentos nas hipóteses admitidas pela legislação.
Assim como no ICMS, o saldo credor de IPI é mantido no estabelecimento, para que seja aproveitado na compensação inerente a não- cumulatividade, ou seja, para abatimento dos débitos de imposto do próprio estabelecimento (CTN; art. 49).
A transferência desses créditos para outro estabelecimento só é cabível nas hipóteses taxativamente previstas na IN 900/2008:
Art. 21. Os créditos do IPI, escriturados na forma da legislação específica, serão utilizados pelo estabelecimento que os escriturou na dedução, em sua escrita fiscal, dos débitos de IPI decorrentes das saídas de produtos tributados.
§ 1º Os créditos do IPI que, ao final de um período de apuração, remanescerem da dedução de que trata o caput poderão ser mantidos na escrita fiscal do estabelecimento, para posterior dedução de débitos do IPI relativos a períodos subseqüentes de apuração, ou serem transferidos a outro estabelecimento da pessoa jurídica, somente para dedução de débitos do IPI, caso se refiram a:
I - créditos presumidos do IPI, como ressarcimento da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, previstos na Lei nº 9.363, de 13 de dezembro de 1996, e na Lei nº 10.276, de 10 de setembro de 2001;
II - créditos decorrentes de estímulos fiscais na área do IPI a que se refere o art. 1º da Portaria MF nº 134, de 18 de fevereiro de 1992; e III - créditos do IPI passíveis de transferência a filial atacadista nos termos do item “6" da Instrução Normativa SRF nº 87, de 21 de agosto de 1989.
Art. 24. A transferência dos créditos do IPI de que trata o § 1º do art. 21 deverá ser efetuada mediante nota fiscal, emitida pelo estabelecimento que os apurou, exclusivamente para essa finalidade, em que deverá constar:
I - o valor dos créditos transferidos;
II - o período de apuração a que se referem os créditos; e III - a fundamentação legal da transferência dos créditos.
§ 1º O estabelecimento que estiver transferindo os créditos deverá escriturá-los no livro Registro de Apuração do IPI, a título de Estornos de Créditos, com a observação: "créditos transferidos para o estabelecimento inscrito no CNPJ sob o nº ... (indicar o número completo do CNPJ)" .
§ 2º O estabelecimento que estiver recebendo os créditos por transferência deverá escriturá-los no livro Registro de Apuração do IPI, a título de Outros Créditos, com a observação: " créditos transferidos do estabelecimento inscrito no CNPJ sob o nº ... (indicar o número completo do CNPJ)" , indicando o número da nota fiscal que documenta a transferência.
§ 3º A transferência de créditos presumidos do IPI de que trata o inciso I do § 1º do art. 21 por estabelecimento matriz não contribuinte do imposto dar-se-á mediante emissão de nota fiscal de entrada pelo estabelecimento industrial que estiver recebendo o crédito, devendo, o estabelecimento matriz, efetuar em seu livro Diário a escrituração a que se refere o § 1º.
Outra possibilidade é a de utilizar o saldo credor em PERDCOMP para compensação de débitos de outros estabelecimentos.
Essa possibilidade encontra previsão no art. 11 da Lei 9.779/99:
Art. 11. O saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI, acumulado em cada trimestre-calendário, decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos arts. 73 e 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda.
A princípio, poderia parecer não ser viável tentar enquadrar a transferência como se fosse autorizada pelo art. 74 da Lei 9.430/96 e art. 11 da Lei 9.779/99. Isso porque os dispositivos aludem, respectivamente, a “sujeito
passivo” e “contribuinte” que, no caso do IPI, em razão da já citada autonomia dos estabelecimentos, não é a pessoa jurídica, mas sim o próprio estabelecimento que ocupa o pólo passivo da obrigação tributária.
No entanto, a interpretação oficial do dispositivo parece ter seguido um entendimento mais amplo. O art. 21, §2º da IN RFB 900/2008 estabelece a possibilidade de que o saldo credor não utilizado na compensação de débitos próprios e nem passível de ser transferido a outro estabelecimento na forma do art. 21, §1º, pode ser utilizado na compensação de débitos próprios do estabelecimento matriz da pessoa jurídica, por meio de PERDCOMP (art. 21,
§6º), desde que precedido de pedido de restituição (art. 21, §8º):
Art. 21 (...) § 2º Remanescendo, ao final de cada trimestre-calendário, créditos do IPI passíveis de ressarcimento após efetuadas as deduções de que tratam o caput e o § 1º, o estabelecimento matriz da pessoa jurídica poderá requerer à RFB o ressarcimento de referidos créditos em nome do estabelecimento que os apurou, bem como utilizá-los na compensação de débitos próprios relativos aos tributos administrados pela RFB.
(...)
§ 5º O disposto no § 2º não se aplica aos créditos do IPI existentes na escrituração fiscal do estabelecimento em 31 de dezembro de 1998, para os quais não houvesse previsão de manutenção e utilização na legislação vigente àquela data.
§ 6º O pedido de ressarcimento e a compensação previstos no § 2º serão efetuados pelo estabelecimento matriz da pessoa jurídica mediante a utilização do programa PER/DCOMP ou, na impossibilidade de sua utilização, mediante petição/declaração em meio papel acompanhada de documentação comprobatória do direito creditório.
(...)
§ 8º A compensação de que trata o § 2º deverá ser precedida de pedido de ressarcimento.
Sendo assim, cumpridos os limites da compensação e as formalidades previstas na IN 900/2008, é possível o uso do saldo credor do estabelecimento para extinção de débitos de tributos administrados pela RFB próprios do estabelecimento matriz, ressaltando que não há possibilidade de uso desse saldo credor por PERDCOMP para extinção de débitos de outro estabelecimento que não a matriz da pessoa jurídica.
4. Incidência de PIS e COFINS no contrato de trespasse.
As contribuições ao PIS e a COFINS encontram sua base de cálculo no artigo 1º da Lei nº 10.637/02, e no artigo 1º da Lei 10.833/03, legitimados pela nova redação da Constituição dada pela Emenda Constitucional 20/1998.
É dizer que a base de cálculo sobre qual incidirá o PIS e a COFINS é a totalidade das receitas da pessoa jurídica, restando irrelevante o tipo de atividade por ela exercida ou mesmo a classificação adotada para as receitas irrelevante, sendo permitidas apenas as exclusões expressamente previstas na legislação pertinente.
Neste compasso, salvo exceções taxativas (e aquilo que não se enquadrar no conceito de receitas), a tributação pelo PIS/COFINS encontra guarida indiscriminadamente em quaisquer operações que resultem em receita auferida pela contribuinte, não importando a origem dos frutos pecuniários percebidos pela empresa.
Pois bem, como já dito, o conceito de estabelecimento envolve o complexo de bens organizado para exercício das atividades empresariais, ou seja, para a execução do objeto social da contribuinte.
Desta forma, tem-se que contrato de trespasse envolve, grosso modo, tanto a mercadoria em estoque no estabelecimento, como os bens que compõem seu ativo imobilizado, haja vista que o estabelecimento é adquirido em sua integralidade.
E, como se depreende da letra dos incisos VI e II do parágrafo 3º do art. 1º respectivamente das Leis 10.637/02 e 10.833/03, a receita não operacional proveniente da venda de bens do ativo fixo deve ser excluída da base de calculo das contribuições em tela.
Quanto ao saldo credor de ICMS e IPI a serem mantidos no estabelecimento, entendemos que não há subsunção da norma ao fato, ou seja, não há que se falar em receitas auferidas, na medida em que a empresa apenas trocou o valor do ICMS e do IPI ali constante (um crédito) por dinheiro, não afetando seu patrimônio de maneira positiva e definitiva, requisitos – ao nosso sentir – imprescindíveis para qualificar os valores como receitas. Reforça a questão a disposição da Lei 10.833/2003:
Art. 1º, § 3º Não integram a base de cálculo a que se refere este artigo as receitas:
VI - decorrentes de transferência onerosa a outros contribuintes do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS de créditos de ICMS originados de operações de exportação, conforme o disposto no inciso II do § 1o do art. 25 da Lei Complementar no 87, de 13 de setembro de 1996. (Incluído pela Lei nº 11.945, de 2009).
No que tange às mercadorias atualmente em estoque, bem como quaisquer outros bens que não se enquadrem no conceito de ativo imobilizado, a receita então originada, ao nosso sentir, deverá ser tributada em caráter ordinário, sendo incluída na base de calculo das contribuições ao PIS e da COFINS, haja vista a ausência de qualquer previsão legal pela exclusão das mesmas e o caráter abrangente e genérico do fato gerador destes tributos, os quais se desvinculam da origem das receitas oneradas.
Poderia se cogitar que não estão sendo vendidas as mercadorias, mas o estabelecimento como um todo. Entendemos que este argumento vale para o ICMS, cuja base de incidência é a venda de mercadorias, mas não vale para o PIS e COFINS, uma vez que a lógica destas contribuições é auferir receitas. Ou seja, para o ICMS, as operações que não tenham por objeto uma mercadoria são irrelevantes para a incidência do imposto. Já para o PIS e COFINS, todas as operações são relevantes apenas na medida em que gerem receitas para a pessoa jurídica.
E as Leis 10.637 e 10.833 partem da totalidade da receitas como tributáveis, mas, ao excluir a tributação de parcela dessas receitas, opta por se referir à operação da qual origina essa receita, operando, dessa forma, a segregação das receitas em razão de sua origem pra fins de exclusão da tributação.
Ante o exposto, entendemos que a melhor interpretação das normas que conformam a tributação em análise é:
a) o caput do art. 1º das Leis 10.637 e 10.833, ao qualificarem a base de cálculo das contribuições, referiu-se ao fato econômico consistente no ingresso de valores na pessoa jurídica, atribuindo para tanto irrelevância à sua origem (se venda de ativo, de mercadoria, de operação financeira, etc.);
b) por sua vez, o art. 1º, §3º, II e VI do art. 1º das Leis 10.637 e 10.833 ao qualificarem receitas a serem excluídas da base de cálculo definida no caput, se reportaram, pelo contrário, à origem dessa receita, excluindo da tributação as receitas decorrentes de venda do ativo imobilizado e, ao nosso sentir, os saldos credores de ICMS e IPI (caso tenham mais algum item que gere dúvida, pedimos nos consultar);
c) logo, a receita decorrente da venda de estoque se enquadra no caput do art. 1º das Leis, mas não se enquadra no enunciado de exclusão; ao passo que a receita decorrente da venda de ativo se enquadra no caput do art. 1º das Leis, mas também se enquadra no enunciado de exclusão;
d) portanto, os valores referentes ao ativo imobilizado devem ser considerados como receita não-operacional para submissão ao devido tratamento tributário (no caso do PIS e COFINS elas serão excluídas da base de cálculo); ao passo que as demais receitas serão normalmente tributadas pelas contribuições.
5. IRPJ e CSLL: (des)influência do trespasse no prejuízo fiscal da alienante.
No âmbito do IRPJ e da CSLL, as receitas não-operacionais são normalmente tributadas, fora as expressas exceções legais. Sendo assim, em regra, todo o valor recebido pela alienante do estabelecimento constituirá receita tributável, integrando a composição da base de cálculo desses tributos.
Questão interessante, contudo, se dá no prejuízo fiscal em razão da redação do art. 514 do RIR/99:
Art. 514. A pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar prejuízos fiscais da sucedida (Decreto-Lei nº 2.341, de 1987, art. 33).
Parágrafo único. No caso de cisão parcial, a pessoa jurídica cindida poderá compensar os seus próprios prejuízos, proporcionalmente à parcela remanescente do patrimônio líquido (Decreto-Lei nº 2.341, de 1987, art. 33, parágrafo único).
Com efeito, a cisão parcial é operação societária na qual se alcançam os mesmos resultados do contrato de trespasse, desde que o patrimônio cindido esteja circunscrito a um estabelecimento. Este estabelecimento será destacado da sociedade cindida, e será adquirido por outra sociedade (LSA; art. 229).
Existindo identidade de resultados, estaria a sociedade alienante detentora de prejuízo fiscal obrigada a reduzir este na proporção do patrimônio líquido apurado após a alienação do estabelecimento, nos termos do art. 514, parágrafo único do art. 514 do RIR/99?
A resposta é negativa.
Com efeito, o direito privado prevê dois atos típicos para se alcançar o mesmo objetivo de transferir a titularidade de um estabelecimento: a cisão (LSA; art. 229) e o trespasse (Código Civil; art. 1.144).
Não estamos, aqui, portanto, diante de um negócio jurídico indireto, ou da mescla de sucessivos negócios jurídicos para escapar da situação mais
onerosa do ponto de vista tributário (no caso, a cisão), alcançando, contudo, o mesmo resultado final.
Não se cogita também de simulação, pois esta consiste em um negócio jurídico bilateral realizado para falsear uma realidade inexistente (absoluta) ou encobrir a realização de outro ato (relativa), com o intuito de prejudicar terceiros. Isso se dá pela discrepância entre a vontade declarada (intentio juris) e a vontade real (intentio facti), ou seja, as partes externam determinado ato para enganar terceiros quanto à realidade a ele subjacente.
No caso, a vontade das partes envolvidas é a transferência da titularidade do estabelecimento. E o ordenamento jurídico estabelece tipicamente dois atos mediante o qual essa vontade pode ser declarada: a cisão e o trespasse. Ambos atos são consentâneos com a vontade real das partes. A questão, portanto é de escolha entre eles, cabendo ao particular optar pela forma que, do ponto de vista do direito privado e comercial, atenda melhor aos seus interesses.
Caso contrário, estaríamos concluindo que, diante da existência de duas possibilidades típicas (não estamos aqui falando de sucessão de negócios jurídicos nem de negócio jurídico indireto), sem qualquer vedação de opção pela lei, haveria uma obrigação implícita de se optar por aquela que apresenta maior carga tributária.
Seria também de todo inviável, equiparar o trespasse à cisão para fins de se compreender que o art. 514 do RIR alcançaria a primeira figura.
Isso só seria possível se lançarmos mão da interpretação econômica, cunhada na Alemanha pós-guerra necessitada de recursos públicos e desejosa de maior arrecadação tributária para sua reconstrução. Segundo esta, o aplicador da lei tributária não deveria se ater aos conceitos de direito privado nela utilizados, mas sim verificar a manifestação econômica de riqueza por detrás dele, ignorando as formas de direito privado utilizadas pelo particular na estruturação de suas atividades.
Isso porque o art. 514 refere-se a três conceitos do direito privado, quais sejam, a incorporação, a fusão e a cisão, atos de natureza societária, sem sequer sugerir figuras contratuais, como a do trespasse, embora tenham efeitos similares, como visto.
A interpretação econômica termina por viabilizar uma separação profunda entre a hipótese legal de incidência e o fato sujeito à tributação, pois demandaria primeiramente uma análise econômica dos fatos, equiparando
aqueles que demonstrem igual substância econômica, para apenas depois vinculá-lo à norma tributária, ainda que ela se refira a outras formas jurídicas, mas com igual repercussão econômica.
A nosso ver, a primeira questão é falaciosa, na medida em que a compreensão atual é a de que o direito é uno, e não há um legislador tributário distinto do legislador civil. O que existe é a separação didático-científica dos ramos do direito em razão de características próprias que possibilitem seu estudo em bases específicas.
A segunda questão relativa à interpretação econômica, quando colocada de forma apriorística, é também falsa. Não se pode, antes mesmo do início de um processo interpretativo (ou de concretização do direito), fixar premissa segundo a qual norma legal de tributação sempre ignora as formas de direito privado, ainda que textualmente a elas se refira. Isso contraria a noção de interpretação e aplicação do direito, que parte do texto normativo e que deve ter sua conclusão a ele referida, servindo de início11 e limite12 da concretização do direito.
Ademais, abala qualquer noção de segurança jurídica, não só pelo abandono prematuro e inviável do texto normativo como parâmetro da atividade jurídica, como também pelo fato de ser a realidade econômica bem mais fluida do que a realidade jurídica13. O aplicador da norma tributária teria assim uma gama quase infinita de possibilidades de interpretação e compreensão do fato em razão do uso de critérios econômicos, o que excluiria qualquer previsibilidade e certeza por parte dos particulares quanto à obrigação tributária decorrente dos fatos por ele realizados. E isso traz um impacto sobremaneira relevante na análise de planejamentos tributários lícitos, ou seja, a estruturação prévia das atividades pelo contribuinte para se enquadrar de forma mais eficiente e econômica nas obrigações tributárias previstas em lei a partir da enumeração dos negócios jurídicos objeto de imposição.
11 XXXXXX, Xxxxxxxxx. Métodos de trabalho de direito constitucional. 3ª ed. Tradução de Xxxxx Xxxxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, passim; XXXXXX, Xxxx. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª. ed. Tradução de Xxxx Xxxxxx. Lisboa: Fund. Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx, 1997, p. 485
12 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Das fontes às normas. Tradução de Xxxxx Xxxx. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 219; XXXXX, Xxxxxxxx. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 183; XXXXX, Xxxxxxx. Concretização constitucional e controle dos atos municipais. In: GRAU, Xxxx Xxxxxxx Xxxx; CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx da (Coord.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 572-3.
13 O que se comprova a partir da teoria de que o direito é um sistema autopoiético, ou seja, um sistema de segundo grau em face do sistema econômico. O direito seleciona, pela sua própria linguagem, aspectos da realidade econômica, não se confundindo integralmente com ela sob pena de se diluir no ambiente econômico e impossibilitar seu conhecimento e funcionamento.
Também é metodologicamente impossível fazer uma análise puramente econômica de fatos que pretenda ser juridicamente relevante, pois no âmbito jurídico, a compreensão dos fatos é feita a partir da seleção operada pelo programa normativo. Logo, sem o filtro legal da porção de realidade fática, é impossível realizar qualquer compreensão da mesma. O intérprete estaria se substituindo ao legislador ao introjetar originariamente no sistema jurídico dados do ambiente, já que os fatos estariam sendo analisados por critérios econômicos sem que a lei os tivesse selecionado, em evidente corrupção do sistema.
A questão, portanto, nos parece melhor colocada se a indagação partir da constatação, pelo intérprete, de que a lei tributária empregou, para o surgimento e configuração da obrigação tributária, conceitos de direito privado. E como visto, esse é exatamente o caso, no qual o art. 514 do RIR/99 refere-se especificamente a três conceitos daquele ramo do direito.
Daí passa a ser pertinente perquirir se o direito tributário acolheu aquele conceito tal como formulado no direito privado, se alterou parcial ou totalmente suas características, e ainda, nesse último caso, se era possível fazê- lo.
A nosso ver, admitir que quando a lei tributária apenas remete a um conceito de privado, sem alterar-lhe inequivocamente as características, estaria ela pressupondo um conceito autônomo e distinto no direito tributário, significa negar que o legislador é órgão inserido na comunidade jurídica. Consideraríamos que o legislador faz as leis tributárias desconhecendo todas as construções conceituais acerca dos institutos de direito privado que ele mesmo positivou.
Isso significaria pressupor, de forma absoluta, que o legislador seria figura despreocupada com a uniformidade e coerência do ordenamento jurídico, e conseqüentemente com a segurança jurídica. Mesmo quando fizesse uma remissão, na lei tributária, a conceitos já construídos no direito privado, queria na verdade significar outra coisa, significado este a ser extraído do sistema econômico, como que propositalmente abalando aqueles princípios de ordem constitucional.
Somos então da opinião de que a lei tributária tem relativa liberdade para alterar, total ou parcialmente os conceitos de direito privado, mas para tanto, deve ser expressa nesse sentido. A mera remissão a conceitos de direito privado faz com que aquele seja adotado pela lei tributária com as mesmas características do ramo de origem. A nosso ver, esta é a previsão do art. 109 do CTN:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos,
conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
O dispositivo determina expressamente que, quando um instituto, conceito ou forma de direito privado seja referido pela lei tributária, sua definição, conteúdo e alcance serão aqueles apreendidos de acordo com a formulação do direito privado, uma vez que para tanto deverá o intérprete lançar mão dos princípios daquele ramo do direito.
E a parte final do dispositivo determina que caberá à lei tributária estabelecer os efeitos tributários desses conceitos. Isso para possibilitar que conceitos distintos do direito privado possam ter os mesmos efeitos tributários, ou seja, não está a lei tributária obrigada a dar efeitos tributários distintos a conceitos distintos no âmbito do direito privado. E por efeito tributário deve-se compreender a atribuição e mensuração de obrigações tributárias com base nesses conceitos de direito privado. Não se diz aqui sobre efeitos econômicos daqueles conceitos, mas sim efeitos tributários. Efeitos econômicos servem para a ciência econômica e podem subsidiar a atividade do legislador, sendo, contudo, irrelevantes para a interpretação e aplicação do direito.
Logo, se a lei tributária se refere a um conceito de direito privado, não pode o intérprete e aplicador tentar inserir no âmbito daquela lei outros conceitos, ainda que tenham efeitos econômicos semelhantes ou idênticos.
Essa solução, tomada a partir das considerações supra, foi expressamente acolhida no art. 108, §1º do CTN, ao dispor que “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei".
A analogia consiste em atribuir as conseqüências jurídicas previstas em uma norma a situação por ela não abrangida, em razão da semelhança desta para com os casos contemplados naquela hipótese normativa. A necessidade de semelhança entre os casos para o uso da analogia revela seu fundamento no princípio da igualdade14, pois parte do raciocínio de que casos semelhantes devem ter soluções semelhantes, e só não o tiveram porque a dinâmica dos fatos não é acompanhada pelo legislador, impossibilitado de contemplar todos eles na norma editada.
No entanto, no Direito Tributário Brasileiro, o legislador recebe da Constituição, por meio das regras de competência tributária, os fatos aos quais pode ser ligada a conseqüência consistente no dever de pagar tributos. Há então uma faculdade do legislador em instituir o tributo. Decidindo pela tributação, é seu
14 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 638.
dever especificar15 quais fatos serão geradores de obrigação tributária, em razão do princípio da legalidade tributária compreendido em sua vertente material, que não se compatibiliza com uma cláusula legal genérica de tributação16.
Do exposto, pelo nosso sistema constitucional e pelo preceito expresso do CTN, é opção inequívoca do nosso direito positivo rechaçar qualquer ponderação de tributação com base no princípio da igualdade ou da capacidade econômica à míngua de previsão legal que respeite o limite da competência tributária17. Tais princípios terão grande utilidade na própria interpretação dessas normas. Serão ainda de maior utilidade para proteger o contribuinte de tratamentos desiguais ou de tributação que desrespeite sua capacidade econômica, uma vez que são expressamente colocados pela Constituição como normas de proteção do contribuinte, vedando ao legislador tributário que delas se desvie. Contudo, não terão nenhuma utilidade para ensejar tributação que não se enquadre nos limites do sentido do texto da lei.
Portanto, concluir que o art. 514 do RIR/99 alcança o instituto de trespasse, que nele sequer é sugerido, implicaria adotar a interpretação econômica, cuja inviabilidade jurídica é manifesta, bem como contrariar a letra expressa do art. 108, §1º do CTN, pois o caso seria de analogia, na medida em que estenderia ao trespasse a consequência jurídica prevista para a cisão, qual seja, a manutenção apenas proporcional do prejuízo fiscal.
A questão encontra-se no plano legislativo, pois em homenagem à legalidade tributária, a aplicação da conseqüência jurídica do art. 514, parágrafo único do RIR/99 ao trespasse depende de edição de nova lei dispondo nesse sentido, respeitando ainda os princípios da irretroatividade e da não-surpresa.
Concluímos, portanto, que optando as partes pelo contrato de trespasse, é inválido exigir da alienante a aplicação do art. 514, parágrafo único do RIR/99.
6. CONCLUSÃO.
Assim podem ser sumariadas as conclusões:
a) não incide ICMS ou IPI na celebração do contrato de trespasse;
15 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Direito Tributário, direito penal e tipo. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, passim.
16 XXXXXX, Xxxxxxx. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 92 e seguintes.
17 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 643.