Contrato estimatório (venda em consignação)
Contrato estimatório (venda em consignação) 567
Contrato estimatório (venda em consignação)
Carlos Alberto Garbi1
Professor e desembargador aposentado
Resumo: o contrato estimatório foi disciplinado no Brasil pelo Código Civil de 2002, embora conhecido e praticado há muito tempo. O estudo que segue procurou examinar as mais variadas relações decor- rentes desse complexo negócio jurídico e deu maior atenção ao poder de disposição recebido pelo consignatário, que produz efeitos impor- tantes na solução das lides decorrentes deste negócio. O estudo esteve atento à lei italiana, inspiradora do legislador brasileiro, e apontou os cuidados necessários na realização do contrato.
Palavras-chave: Contrato Estimatório. Venda por consignação. Po- der de disposição. Consignante. Consignatário.
Abstract: the consignment contract was disciplined in Brazil by the Civil Code of 2002, although known and used for a long time. The study that follows sought to examine the most diverse relationships arising from this complex legal contract and gave more attention to the power of disposition received by the consignee, which produces important effects on the solution of the law processes from this contract. The Italian law analyzed, inspiring the Brazilian legislature, and pointed to the care needed in the implementation of the contract.
Keywords: Consignment Contract. Sale by consignment. Power of provision. Consignor. Consignee.
1 Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU. Professor de Direito Civil dos cursos de graduação e pós-graduação. Autor de livros e artigos jurídicos.
1. Introdução
A recodificação do direito privado brasileiro de 2002, resultado do trabalho da Comissão Reale, não constituiu uma nova codificação do direito civil. Na verdade, como bem observa Xxxxx Xxxx Xxxxxxx, a nova codificação assegurou a sobrevivência do velho Código Civil de 1916, promovida pela concreção constitucional e revitalização dos seus institutos, decorrente da combinação da modernidade com as tradições do passado da nossa cultura jurídica.
O Código Civil de 2002 é fruto do monumental esforço empreen- dido, sob a coordenação de Xxxxxx Xxxxx, para dar uma nova e unitária fisionomia ao direito privado, vencendo-se a tendência de descodifica- ção evidenciada na doutrina e na edição de microestatutos. A despeito do sucesso ou não da proposta de atualizar o direito privado brasileiro, e da crítica que se oferece ao aproveitamento de um velho código para a modernização do direito civil, é preciso enaltecer o revigoramento natural que ganha o direito privado com um novo código. Se de um direito novo não se pode falar propriamente com o código de 2002, certo é que nasceu com ele uma nova interpretação capaz de renovar as mais antigas instituições do direito privado, como a propriedade e o contrato.
Para comemorar cem anos de codificação do direito civil brasi- leiro, renovado, e homenagear os juristas que tanto contribuíram ao longo do tempo para aperfeiçoar a nossa constituição do homem co- mum (Xxxxxx Xxxxx), entendi que o tema proposto para este ensaio – contrato estimatório – bem se ajusta a essa fisionomia recodificadora, porque cuida de um contrato antigo, de origem romana e natureza mercantil, que entrou para o direito privado codificado pela porta que se abriu em 2002.
O estudo do contrato estimatório, de outra parte, apresenta-se como um verdadeiro desafio ao civilista moderno, pela interface com o direito empresarial e a complexidade que apresenta. É contrato que estabelece múltiplas e amplas relações com as bases do direito contra- tual e obrigacional, de forma que o seu estudo é um convite à revisita- ção e aggiornamento do direito civil.
2. Origem do contrato estimatório
O contrato estimatório, de natureza mercantil, tem origem ro- mana (Xxx Xxxxx) e não era disciplinado pela lei brasileira, embora
conhecido e praticado há muito tempo. No direito brasileiro, assina- la Waldirio Bulgarelli, não havia registro do negócio estimatório como contrato autônomo. Encontrava-se apenas referência à consignação nos arts. 170 a 173 do Código Comercial, como mera modalidade da comis- são, com natureza diversa do típico contrato estimatório. Na comissão de venda, diz Pontes de Miranda, há a atividade do comissário como conteúdo, o que de modo nenhum se observa no contrato estimatório.
Mais tarde, outra referência ao negócio estimatório no direito bra- sileiro é encontrada nos arts. 4º e 5º da Lei nº 5.474/68, que dispõe sobre as duplicatas, regulando a emissão de faturas em caso de concre- tização da venda por consignação.
Não obstante omissa a lei brasileira a respeito, o negócio estima- tório sempre foi comum no comércio de arte e livros, assim como nas relações entre produtores e varejistas, e ganhou espaço atualmente com o comércio de veículos usados, joias, móveis e equipamentos de tecnologia. Com o Código Civil de 2002 passou a ser tratado como con- trato de direito privado típico e nominado, encontrando-se em quatro artigos sua regulamentação (534-537).
Não se tem memória de quando o homem conheceu esse modelo de contratação, mas há registro expresso desse contrato no Direito Ro- mano, como se vê dos textos de Xxxxxxx, que se referia a uma “actio de aestimato” (Digesto, Livro XIX, tít. III, fr. 1, e tít. V, fr. 13).
Embora conhecido em outros países da Europa, valendo lembrar o Código Civil austríaco de 1811, que tratou do negócio jurídico estima- tório como cláusula de compra e venda (arts. 1086 e 1087), o legislador brasileiro buscou especialmente no Código Civil italiano de 1942, que regula em três artigos o contrato estimatório (arts. 1556-1558), a inspi- ração e paradigma para sua disciplina legal no digo de 2002.
No Brasil, Teixeira de Freitas já havia proposto a disciplina, do que chamou de “venda com cláusula estimatória”, no Esboço (arts. 2.105- 2.108). E o Projeto de Código de Obrigações, presidido por Xxxxxxxx Xxxxxx, do qual participaram Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxx, apresentado em 1965, dedicava dois artigos ao contrato estimatório, também projetados com base na lei italiana.
Cumpre anotar que os quatro artigos do Código Civil brasileiro, de- dicados ao contrato estimatório, têm a redação que receberam do seu anteprojeto, que não foi alterada quando convertido em projeto e de- pois aprovado pela Câmara dos Deputados (nº 634-B/1975 - publicado no Diário do Congresso Nacional em 17.05.1984) e pelo Senado Federal.
3. Definição
Pelo contrato estimatório, ou de venda em consignação, como é mais conhecido, uma pessoa, denominada CONSIGNANTE ou “TRADENS”, entrega bens móveis a uma outra, denominada CONSIG- NATÁRIA ou “ACCIPIENS”, que fica autorizada a vendê-los no prazo estabelecido, quando pagará ao consignante o preço ajustado, se não preferir restituir a coisa.
Esta definição, encontrada no art. 534 do Código Civil brasileiro, corresponde quase exatamente àquela escrita no art. 1.556, do Código Civil italiano. Na lei italiana, contudo, não consta expressamente a autorização que é conferida ao consignatário para vender a coisa.
Essa autorização prevista na lei brasileira, na verdade, é indife- rente ao consignante, visto que ele deverá receber o preço do con- signatário quando vencido o prazo, seja qual for o destino dado ao bem. Poderá o consignatário vender ou até mesmo ficar com a coisa, visto que sua obrigação pelo pagamento do preço não decorre pro- priamente da venda do bem, mas de sua não restituição no prazo estabelecido, ainda que sem culpa do consignatário, pois a lei atribui a ele a responsabilidade absoluta pelos riscos da coisa, mesmo em caso fortuito ou de força maior (art. 535 do CC brasileiro e art. 1557 do CC italiano).
O Código Civil brasileiro deixou-se influenciar pela doutrina italia- na, no sentido de que a outorga de poder de disposição da coisa cons- titui uma autorização (Xxxxxxx e Xxxxx), interpretação a que se chegou para afastar a ideia de uma cessão ou de uma concessão.
Preferimos identificar o poder de disposição da coisa, outorga- do ao consignatário, como um direito real, superando a tentativa do seu enquadramento em modelos de direito pessoal, todos sujeitos aos efeitos da vontade do consignante e que encontra por isso forte incom- patibilidade com o negócio estimatório, não sujeito à revogação pelo consignante.
Assim, o consignatário poderá ficar com a coisa ou vendê-la, bem como poderá fazer doação, permuta, dação em pagamento ou lhe dar qualquer outro destino. Nada modificará o direito do consignante a receber o preço, razão pela qual não era necessário que a lei brasileira fizesse a restrição encontrada no art. 534 do Código Civil, que limita de certa forma o poder do consignatário a vender a coisa, pois a própria natureza do contrato permite a ele dar outro destino ao bem. Ademais,
a autorização referida na lei é implícita ao poder de disposição da coisa que o consignante outorga ao consignatário.
Nada impede, contudo, que o consignante estabeleça certas re- gras para o destino que deve ser dado ao bem, proibindo que sua alie- nação se faça a certa pessoa, como o concorrente do consignante, ou em certas condições, que podem desvalorizar o produto.
O consignante poderá até mesmo, sem descaracterizar o contrato, estabelecer que o consignatário não poderá ficar com a coisa, limitan- do-se a negociá-la com terceiro. Poderá, também, impor ao consigna- tário a obrigação de promover a divulgação do bem de certa forma ou em determinado lugar. Mas se a determinação do consignante anular totalmente a liberdade do consignatário e retirar dele o poder de dis- posição da coisa podemos ter outra figura contratual na espécie, como o mandato, a comissão, a agência ou a corretagem.
O contrato é estimatório porque o consignatário se obriga a pagar o preço previamente estimado pelo consignante, podendo ganhar com
o sobrepreço que obtiver.
Interessante notar que não há autorização expressa na lei brasi- leira que assegure ao consignatário vender o bem por um preço maior do que aquele estimado, mas ela deve ser entendida, não só pela na- tureza do negócio, mas a partir da determinação do art. 534 do Código Civil para que o consignatário pague ao consignante o preço ajustado, de modo que ele estará livre para vender o bem por outro preço. Não importa, igualmente, que o consignatário venda a coisa por um preço menor, o que é indiferente ao consignante, visto que a obrigação do consignatário é pagar o preço estimado.
A estimativa do preço, portanto, vincula as partes como um ele- mento do contrato de compra e venda que poderá ou não ser realizado com o consignatário, caso ele queira a coisa para si. O preço estimado obriga também o consignante, que não poderá exigir do consignatário outro valor quando negociada ou não restituída a coisa.
Ao consignatário cabe a escolha entre restituir a coisa ou pagar
o preço, escolha que se qualifica, segundo Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, como uma obrigação facultativa ou como uma faculdade de substitui- ção da prestação.
Logo, não está o consignatário obrigado a prestar contas do valor da venda ou do destino que deu ao bem, desde que pague o preço estimado, salvo quando for limitada sua liberdade pelas condições es- tabelecidas no contrato, situação que poderá ser resolvida em perdas e danos se ocorrer eventual descumprimento do negócio.
Melhor era a redação do Projeto de Código de Obrigações de 1965, presidido por Xxxxxxxx Xxxxxx, que definia o contrato estimatório, em seu art. 400, destacando aquela que é sua característica mais impor- tante, qual seja o poder de disposição da coisa, sem fazer qualquer re- ferência à autorização para venda, verbis: “Quem recebe coisa móvel, com a obrigação de restituí-la ou pagar ao consignante o preço dentro de certo prazo, tem a faculdade de disposição da mesma”.
É um contrato de uso muito frequente a respeito da venda de joias, antiguidades, objetos de arte, livros, eletrodomésticos e auto- móveis. Também é utilizado no comércio em geral quando o fabricante entrega seus produtos na rede varejista ao contato direto com o consu- midor, liberando o comerciante e intermediário da imobilização do ca- pital. É um recurso eficiente na circulação de riquezas e no fomento da atividade econômica. É negócio que, como assinalam Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx, facilita o tráfego jurídico através de van- tagens recíprocas. Para o consignante amplia-se o potencial de vendas de seus produtos e para o consignatário há uma sensível diminuição de riscos do negócio, na medida em que poderá devolver a coisa que não conseguir vender.
4. Natureza jurídica
Há muita incerteza a respeito da natureza jurídica do contrato estimatório. Alguns entendem que se trata de uma venda com condi- ção suspensiva ou resolutiva. Mas não se pode aceitar a ideia porque o consignatário tem o direito de restituir a coisa e não pagar o preço, o que impede a concretização da venda.
Outros pensam em uma promessa de venda ou em um contrato de depósito preparatório da compra e venda. Promessa de compra e venda não é, porque, como visto, o consignatário pode restituir o bem. Igual- mente não pode ser admitido o depósito, porque a restituição da coisa não é obrigação do consignatário, já que a ele é assegurado o poder de disposição e o direito de ficar com ela.
Entendem outros que se trata de um mandato para vender, com opção de restituição. Esbarra essa interpretação na possibilidade que tem o consignatário de reter o sobrepreço, o que seria impossível no mandato, pois o mandatário não pode se apropriar de bens do mandan- te ou exercer o mandato em proveito próprio, não se olvidando ainda que ele deve sempre prestar contas dos atos praticados, o que o con- signatário não está obrigado a fazer.
Há também boa doutrina no sentido de que o chamado contrato estimatório nada mais é do que o contrato de comissão (Cunha Gonçal- ves). Esse entendimento se assenta na ideia de que o sobrepreço re- presenta a comissão e reembolso de despesas em favor do comissário. Afirma-se, nesse sentido, que o accipiens atua sobre a esfera jurídica do tradens, o que revela a identidade causal entre a comissão e o con- trato estimatório.
Não obstante a qualidade dos argumentos da doutrina em senti- do diverso, há diferenças importantes entre a comissão e o contrato estimatório que impedem assemelhar esses negócios Xxxx X. Xxxxxx), especialmente o poder de disposição que se confere ao accipiens.
Temos que o consignatário pratica os atos de disposição em nome próprio, sem interferência do consignante, que não mantém com o ad- quirente qualquer relação jurídica. Como bem destacado por Xxxxxxxxx e Xxxxxx, “a relação jurídica estimatória é travada, exclusivamente, entre o consignante e o consignatário, sendo o terceiro adquirente ab- solutamente estranho a essa vinculação”. Não precisa o consignatário, destarte, exibir a autorização para a venda ao adquirente, que nem mesmo toma conhecimento que a coisa que lhe está sendo vendida pertence ao consignante (Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx).
Não há consenso na doutrina a respeito da natureza jurídica deste contrato, que não se identifica, embora se aproxime, com outros tipos contratuais, como a compra e venda, o depósito, a comissão, a corre- tagem e o mandato.
A técnica de recorrer a outros tipos de contratos para a interpre- tação do negócio estimatório, se de alguma forma poderia ser admitida antes de sua regulamentação legal pelo Código Civil de 2002, não mais se justifica. O erro dos juristas, escreveu Xxxxx Xxxxx, está na tentativa de enquadrar nas estruturas clássicas espécies novas de contratos.
É oportuno lembrar a advertência que há muito fez Xxxxxxxx Xxxxx, no sentido de que a origem romana do velho aestimatum influenciou parte da doutrina a buscar equivocadamente uma interpretação do mo- derno contrato estimatório naquela vetusta figura contratual, o que causou o profundo estado de incerteza na ciência jurídica sobre a na- tureza do negócio estimatório.
Hoje, deve ser reconhecido no contrato estimatório um tipo novo e autônomo no direito positivo brasileiro, que tem características pró- prias, superando-se a discussão doutrinária que recorria a outras figuras para definir sua natureza (Xxxxx Xxxxx e Xxxxx X. X. xx Xxxxxx Xxxx).
E a respeito das suas características próprias, pode-se dizer que é um contrato real, que exige a entrega da coisa para se aperfeiçoar, a exemplo dos contratos de mútuo, comodato e depósito. Sem a entrega não pode o consignatário vender o bem. Adverte Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx que a simples autorização para a venda não tipifica o contrato estimatório, que pressupõe que as coisas já estejam à disposição do consignatário para que possam ser vendidas.
Mas a entrega não transfere a propriedade, porque ela não equiva- le à tradição translatícia. A entrega, entretanto, não é uma obrigação do consignante, que pode desistir do contrato antes que ela se faça, visto que é a tradição que aperfeiçoa o negócio. Responsabiliza-se o consignante, nesse caso, por qualquer prejuízo causado em razão da quebra injustificada da expectativa do negócio.
Xxxxxx xx Xxxxxxx entendeu que o contrato é consensual e, por consequência, perfeito quando o outorgado tiver aceitado a oferta do consignante, obrigando-o a entregar a coisa.
Preferimos, contudo, a doutrina que reconhece na entrega do bem o elemento necessário ao contrato estimatório, aceitando a afirmação de que ela é imprescindível para que o contrato possa se realizar com a venda do bem. Sem a entrega da coisa, não tem o consignatário o po- der de disposição sobre ela para a execução do contrato, de forma que a simples autorização para a venda poderá identificar outro contrato, como a corretagem ou o mandato.
É contrato oneroso ou gratuito. É certo que o contrato estimatório visa o lucro do consignatário, mas nada impede que ele aceite as condi- ções do consignante interessado apenas em fazer a venda do bem sem proveito próprio. Não se deve confundir o negócio estimatório com a compra e venda ou com o negócio que será realizado pelo consignatário e o terceiro. Este outro poderá ser oneroso, o que pode não ocorrer com o estimatório.
É contrato bilateral e comutativo, porque cria obrigações para ambas as partes e se assenta em razoável equilíbrio.
Contudo, o aspecto jurídico mais interessante desse contrato é o destaque que o outorgante faz do poder de disposição da coisa, que entrega com exclusividade ao consignatário e do qual fica privado (art. 537). A atribuição de disponibilidade da coisa marca de tal modo o con- trato estimatório que ele não se define, caso seja autorizado o outor- gado a fazer somente a demonstração da coisa ou tê-la como amostra (Sílvio Venosa).
Nesse ponto (poder de disposição conferido ao accipiens) reside a inovação que trouxe o direito italiano para esse negócio, seguida pelo código brasileiro. A doutrina aponta, a nosso ver com razão, que o Codice Civile mais que regulou o contrato estimatório, porque criou substancialmente um novo contrato ao modificar sua função econômi- ca, porquanto no contrato estimatório a finalidade do tradens é pre- ordenada a vincular a atividade do accipiens exclusivamente para a venda da coisa. Sucede que no modelo de contrato estimatório italiano esse fim típico e característico da entrega da coisa (para venda) é situ- ado fora da estrutura do negócio, mudando radicalmente sua natureza (J. Mª. Xxxxxx X. Planas). Consequentemente, ao deixar em dúvida a finalidade do contrato, porque o consignatário pode vender, comprar ou dar qualquer outra disposição à coisa, aponta a doutrina referida que esse aspecto da nova fisionomia do contrato estimatório é causa de graves confusões doutrinárias.
Adotando o direito brasileiro o modelo de contrato estimatório ita- liano, com especial destaque ao poder de disposição, atrai igualmente alguma incerteza na sua interpretação pela doutrina e jurisprudência.
Este poder de disposição corresponde exatamente ao ius abutendi ou ius disponendi que tem o proprietário? Pode ser destacado da pro- priedade? É um direito real?
Alguns têm entendido que esse poder de disposição é destacado do direito de propriedade e constitui direito real em favor do consigna- tário. É a opinião de Xxxxxx de Xxxxxxx e J. A. Xxxxxxx Xxxxxx. Também admite essa interpretação, de certa forma, Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, quando afirma que o consignante tem a propriedade limitada enquanto a coisa está com o consignatário.
Mostra-se correta essa interpretação, porque o objeto do contrato estimatório é coisa móvel infungível cuja propriedade se transmite com a tradição. Encontrando-se o bem nas mãos do consignatário, que está autorizado a vendê-lo e a fazer a sua tradição, não se pode admitir retratação do consignante, de sorte que a venda não está sujeita a nenhuma manifestação sua, que só poderá reclamar do consignatário a falta de pagamento do preço.
É forçoso reconhecer que o consignatário tem um poder sobre a coisa que não é de natureza pessoal e que muito se identifica com as características dos direitos reais. Como consequência, ao consignatário devem ser reconhecidas certas prerrogativas dos direitos reais nos limi- tes do poder de disposição outorgado.
Destacado o poder de disposição, não poderá o consignante dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou comunicada a restituição, exata- mente como prevê o art. 537 do Código Civil.
Entende Xxxxx Xxxxxx Xxxxx que a alienação feita pelo consignante nesta situação é nula, conforme previsto no art. 166, inc. VI, do Código Civil, porque realizada com o objetivo de fraudar lei imperativa. Na verda- de, qualquer ato de disposição do consignante, antes de restituído o bem, não poderá ser realizado porque, tratando-se de coisa móvel, a transfe- rência da propriedade só pode ser feita pela tradição, impossível para o consignante enquanto o bem se encontrar nas mãos do consignatário.
Outro aspecto muito estudado e discutido na doutrina a respeito desse contrato se refere à natureza da obrigação do consignatário, vis- to que alguns sustentam que ela é alternativa, e outros, que é faculta- tiva. Na obrigação alternativa, o devedor se libera executando uma das prestações. Assim, no contrato estimatório o consignatário cumpre o contrato pagando o preço ou restituindo a coisa. Nas obrigações facul- tativas existe apenas uma prestação, permitido ao devedor liberar-se com a substituição dela por outra prestação preestabelecida. Nesse sentido, o consignatário tem a obrigação de pagar o preço, mas poderá se liberar dela restituindo a coisa.
A doutrina italiana prefere ver no contrato estimatório uma obri- gação facultativa (Xxxxx Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxx Xxxx), interpretação também seguida no Brasil por Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. Há entendimento diverso sustentado por Xxxxxxxx, Xxxxxxx e Xxxxxx, no sentido de que ao consignatário não se dá uma pluralidade objeti- va, que é própria da obrigação alternativa, mas somente uma única prestação (simples), que é de pagar o preço estimado. Nesse sentido, é opinião de Xxxxxxx Xxxxxxx, anotada por Xxxxxxx Xxxxxxxxxx.
É o que se vê do art. 535 do CC, que não exonera o consignatário de pagar o preço se a restituição da coisa se tornar impossível. A restituição da coisa é, portanto, verdadeira exceção na sistemática do Código, que representa, a rigor, frustração dos principais efeitos do contrato estima- tório e não propriamente uma alternativa ou faculdade do consignatário.
5. Elementos do contrato
O contrato estimatório tem como objeto coisa móvel infungível. Entenda-se coisa móvel como corpórea, concreta e tangível. Bens ima- teriais não podem ser objeto desse contrato, que tem natureza real e
exige sua entrega material ao consignatário. Há quem admita a posse como objeto desse contrato, porque ela tem valor econômico e pode ser transferida independentemente da propriedade (Xxxxx Xxxx Xxxxx Xxxx).
As coisas imóveis, porque não podem ser objeto de tradição real, estão excluídas. Xxxxxx de Xxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxxx não encontram proibição no contrato estimatório de coisas imóveis. No âmbito do direito privado, predominam as normas dispositivas e não havendo regra proibitiva expressa deve ser aceita a celebração do con- trato estimatório de coisa imóvel. Esse é o argumento utilizado. Nesse sentido, também a opinião de Xxxxxxxxx e Xxxxxx, que invocam o direi- to austríaco em abono da tese de que não havendo proibição é possível celebrar o contrato estimatório sobre imóveis. Com o devido respeito, não aceitamos essa opinião, porque o poder de disposição do consig- natário impõe o recebimento da coisa. Sucede que a coisa imóvel só pode ser transmitida pelo registro, espécie de tradição ficta, que não tem tipificação real para o contrato estimatório, impedindo a vontade das partes de fazer celebração dessa natureza sem ofensa ao princípio da legalidade e da continuidade aplicados no registro de imóveis. O consignatário não poderia vender o imóvel e outorgar a escritura, pois o bem está registrado em nome do consignante. Assim, poderia ser ou- torgado um mandato ou firmado contrato de corretagem, figuras que se aproximam do negócio estimatório, embora inconfundíveis.
As coisas fungíveis e as consumíveis podem também ser objeto do contrato estimatório. Todavia, nesse caso, a entrega dessas coisas ao consignatário opera a transmissão da propriedade, restando ao con- signante, que deixa a qualidade de proprietário, apenas um crédito, pois outras coisas poderão ser restituídas ao final do prazo previsto no contrato. Cuida-se de uma espécie imprópria de contrato estimatório.
O valor da coisa (preço) pode ser estimado desde logo ou poderá ser determinado no momento da opção do consignatário, podendo ser fixado pela cotação em bolsa, tabelas ou periódicos. Nada impede, também, que seja estabelecido por um terceiro designado no contrato.
Lembra Penalva Santos que o valor pode ser estimado abaixo do preço de mercado para motivar o consignatário a aceitar o negócio. O que prejudica a validade do negócio é a indeterminação do preço, por falta de elementos previamente definidos no contrato, porquanto o valor da coisa constitui elemento essencial do negócio.
Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx afirma que é nulo o contrato quando o preço ficar ao arbítrio de qualquer uma das partes, o que caracteriza a condição meramente potestativa (art. 122, CC).
Pode ser realizado entre pessoas naturais ou jurídicas. É necessário que o consignante seja proprietário do bem e dele tenha disponibilidade, pois o contrato entrega ao consignatário sua disponibilidade absoluta.
Embora o art. 534 do CC faça referência a um contrato com prazo determinado, nada impede que ele seja firmado com prazo indetermi- nado, entendendo-se que, neste caso, o prazo será aquele necessário à venda do bem de acordo com os usos e os costumes (art. 134, CC). Caberá ao consignante, neste caso, interpelar o consignatário a resti- tuir o bem ou pagar o preço, dependendo dessa notificação para que ele seja constituído em mora (ex persona), de acordo com o art. 397, par. único, do Código Civil. É a opinião de Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx.
Entende-se que o prazo é estabelecido em favor do consignatário (art. 133, do Código Civil), de forma que a ele deve ser assegurado o direito de fazer a restituição do bem antes de vencido o prazo, salvo se o contrato estabelecer de forma diversa (Sílvio Venosa). Ao consignan- te, por esta razão, não será dado exigir a restituição do bem antes de vencido o prazo contratado, que deverá respeitar para que o consigna- tário possa tirar o proveito esperado do negócio com a venda do bem e o lucro do sobrepreço.
Embora ao consignatário não se possa exigir a exibição da coisa, as partes podem convencionar obrigação desta natureza para impor ao consignatário a obrigação de expor a coisa à venda em certo lugar ou não expor em outro. Também pode ser convencionado que a coisa não será vendida em certas circunstâncias ou abaixo de certo valor. Tudo com o propósito de proteger a marca ou outros interesses do consignante.
Não impõe o Código Civil uma forma solene para o contrato esti- matório. Logo, é livre sua celebração que poderá ser verbal ou escrita, seguindo o negócio a forma que melhor interessar às partes. Mas é sem- pre conveniente que se faça o contrato por escrito, com testemunhas, para prevenir litígio futuro.
Para a validade do negócio são exigidos os requisitos necessários a qualquer contrato, como a capacidade, legitimidade e consentimento das partes.
6. Efeitos
Não há nenhuma consequência para a devolução do bem ao con- signante quando não realizada a venda, como não há responsabilidade
prevista para o consignatário se ele não encontrar comprador ou não se empenhar em fazê-lo. Ele se compromete a vender o bem, mas não assume a obrigação de resultado (Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx). Não se olvide, contudo, que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probi- dade e boa-fé (art. 422, CC), o que significa que não poderá embaraçar a venda ou criar impedimentos para que ela se realize.
Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx enumera as principais características do contrato estimatório: a) exige a entrega da coisa; b) esta deve ser bem móvel; c) acarreta obrigação para o accipiens de restituí-la ou pa- gar o preço; d) o preço é elemento essencial, devendo ser previamente estimado; e) é contrato a termo, devendo ser cumprido no prazo esti- pulado; f) transfere ao consignatário a disponibilidade da coisa.
O contrato estimatório transfere os riscos de perda e deterioração da coisa ao consignatário, que não se exime de pagar o preço ainda que a impossibilidade de restituição da coisa seja decorrente de fortuito ou força maior (art. 535). Há, nesse caso, uma inversão da teoria dos riscos (res perit domino), que atribui ao dono da coisa o prejuízo. Al- guma dúvida poderia ser levantada a respeito, pois há quem sustente que essa obrigação sem culpa só poderá ser exigida quando a perda ou deterioração ocorreu após o prazo do contrato, mas é forte a redação do dispositivo legal citado a atribuir ao consignatário toda a respon- sabilidade pela coisa em razão da singularidade da situação em que a coisa se encontra em seu poder. Cuida-se, nas palavras de Xxxxxxxxx e Xxxxxx de responsabilidade objetiva com risco integral.
Como consequência, poderá o consignante recusar a restituição da coisa, caso pretenda o consignatário devolvê-la deteriorada, porquanto se refere o art. 535 do Código Civil à restituição em sua integridade. Daí se infere, nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, que é da maior importância a perfeita descrição do estado da coisa no momento da consignação, sem a qual responderá o consignatário pela sua resti- tuição em perfeito estado, presumido, assim, embora relativamente, se o recebimento ocorreu sem ressalva alguma a respeito.
Caso a perda ou deterioração possa ser imputada ao consignante, como xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx a respeito de coisa entregue com vício, o consignatário não responderá pela perda ou deterioração.
O consignatário tem a posse direta do bem, que não anula a posse indireta do consignante. Mas não é proprietário. Por isso, enquanto não pagar integralmente o preço, o bem não poderá ser penhorado ou
sequestrado pelos credores do consignatário (art. 536 do CC brasileiro e 1558 do CC italiano).
Mas com razão admite Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx que o terceiro, credor do consignatário, poderá validar o ato de constrição pagando ao consignante, dentro do prazo estabelecido no contrato, o preço estima- do, que não poderá enjeitá-lo porque não ocorrerá nenhum prejuízo.
A posse do consignatário não poderá ser perturbada enquanto está em curso o prazo para a consignação, facultando-se a ele o uso dos interditos possessórios, inclusive contra o consignante.
O contrato estimatório poderá ser feito por prazo indeterminado. Nesse caso, caberá ao consignante interpelar o consignatário para a restituição do bem ou o pagamento do preço. Essa interpelação poderá ser feita de forma judicial ou extrajudicial, como prevista no art. 397, par. único, do CC, para a constituição em mora do consignatário.
Vencido o prazo ou notificado o consignatário, sua constituição em mora (ex re ou ex persona) modifica a posse, que passa a ser precária e, consequentemente, ilícita, autorizando o manejo dos in- terditos possessórios pelo consignante, como a ação de reintegração de posse.
É certo que o consignatário que não restitui a coisa está obrigado a pagar o preço, mas não se pode negar ao consignante o direito de obter a restituição da coisa enquanto ela está na posse livre do consig- natário, depois de vencido. A alternativa de exigir o preço ou a coisa, caso o consignatário não a tenha vendido, ou caso ele também não tenha manifestado interesse em ficar com ela, é do consignante.
Manifestando o consignatário, de forma inequívoca, que aceitou a aquisição do bem, mas sem lhe pagar o preço, só poderá o consignante promover a resolução do negócio ou sua execução, mas não lhe será assegurada a simples restituição da coisa.
Convém destacar que o consignatário deve manifestar o seu inte- resse na coisa dentro do prazo assinado no contrato, pois não lhe será permitido, vencido o prazo, fazer a opção com a qual o consignante já não esperava e talvez já não tivesse interesse.
Importa assinalar, igualmente, que o art. 537 do CC permite que o consignatário faça a comunicação da restituição ao consignante. É espécie de resilição ou denúncia unilateral do contrato. Se a comuni- cação foi feita dentro do prazo do contrato, ainda que a restituição material se faça depois, não está o consignatário obrigado a pagar o preço. Nesse ponto, o legislador brasileiro avançou, pois o CC italiano
não prevê a possibilidade de simples comunicação com o efeito que
deve ser reconhecido a essa manifestação da vontade.
Questão interessante se refere ao momento em que deve ser feito o pagamento do preço estimado quando vendida a coisa antes de ven- cido o prazo da consignação. Não havendo disposição a este respeito no contrato, o preço deverá ser pago imediatamente, pois não há nenhu- ma autorização legal para a retenção do preço pelo consignatário. De outra maneira o contrato estimatório seria convertido em mútuo, que não foi objeto da vontade das partes.
O consignante não pode dispor da coisa enquanto ela não lhe for restituída ou comunicada sua restituição (art. 537). Como o objeto do contrato estimatório é coisa móvel, cuja propriedade só pode ser trans- ferida pela tradição, o consignante sem a posse direta da coisa não terá meios para dispor da coisa e nem poderes para fazê-lo, porque outorgou o poder de disposição ao consignatário. Ainda que o faça, a alienação contratada não prejudicará o consignatário ou o terceiro ao qual o consignatário alienou, porque autorizado a dispor da coisa e entregá-la ao adquirente.
A lei brasileira deixou de repetir, contudo, importante disposição encontrada na lei italiana. Declara o art. 1558, do Código Civil italiano, que são válidos os atos de disposição realizados por aquele que recebeu a coisa. Com isso o descumprimento do contrato estimatório, firmado pelo consignante e consignatário, não poderá prejudicar a validade do negócio realizado com terceiro, pois o consignante terá apenas um cré- dito a exigir do consignatário, sem qualquer direito sobre o bem, agora nas mãos de terceiro.
A omissão da lei brasileira, a esse respeito, pode criar incerteza e insegurança quanto ao poder de disposição do consignatário, que xxx- xxxx o negócio em seu nome e não em nome do consignante. Ele não é representante do consignante no negócio, o que reforça a interpreta- ção no sentido da validade do negócio de alienação. Em nome da segu- rança e da estabilidade das relações jurídicas, a interpretação deverá ser feita no sentido de dar valor aos atos de disposição praticados pelo consignatário, salvo quando comprovada a má-fé do terceiro.
Consequentemente, o consignatário, que contrata em nome próprio com terceiro, responde perante o adquirente pelos vícios redibitórios e pela evicção, ressalvado o direito de regresso contra o consignante. Não se afasta, contudo, a responsabilidade direta do consignante, perante o terceiro adquirente, em razão da evicção. Xxxx lembrar que a doutri- na sustenta a possibilidade do adquirente se voltar diretamente contra
o alienante anterior pela evicção. Essa possibilidade foi expressamente admitida pelo originário art. 456 do CC, hoje revogado pelo NCPC.
Pode ocorrer a alienação, perda ou deterioração do bem enquan- to estava sob a posse do consignatário. Nesse caso, ao consignante se constitui um crédito contra o consignatário, caso não prefira, e a esco- lha é sua, receber a coisa como está e reclamar indenização. Tudo se resolve com as regras da obrigação de restituir (arts. 238-240).
Outra questão diz respeito à falência do consignatário. A coisa deverá ser restituída ao consignante se ainda não vendida a terceiro ou se o consignatário ainda não havia manifestado sua aceitação. Todavia, se já vendida a coisa ou se aperfeiçoada a compra com a aceitação do consignatário, o consignante deve ser reconhecido como simples cre- dor da massa, não lhe assistindo direito de obter a entrega do dinheiro (Xxxxxxxx Xxxxx). Outra solução importa em reconhecer ao consignante privilégio que ele não tem na falência, em detrimento da igualdade de tratamento dos credores no concurso. Não obstante, o Superior Tribu- nal de Justiça decidiu de forma diversa:
Assim, se a recorrente vendeu as mercadorias en- tregues em consignação pela recorrida antes da decretação da sua falência e recebeu o dinheiro da venda também antes da quebra, inclusive conta- bilizando-o indevidamente, conforme reconhecido na sentença, deve agora devolver o valor devida- mente corrigido, pois já deveria tê-lo feito antes da quebra, já que não tinha disponibilidade nem propriedade do dinheiro da venda, que era por contrato da recorrida. A situação do consignante é de credor reivindicante e não a de simples cre- dor quirografário. (REsp. n. 710.658/RJ, rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, DJ 26/09/2005).
6.1 Benfeitorias e frutos
Para determinar os efeitos jurídicos do contrato estimatório é ne- cessário lembrar que ao consignatário se transmite a posse direta da coisa. Há um desmembramento da posse promovido pela relação jurí- dica estabelecida com o contrato estimatório, identificando a situação prevista no art. 1.197 do CC. O consignatário não tem detenção da coisa (art. 1.198, CC), porque, como visto, recebeu uma parcela de poder
sobre a coisa (disposição) que lhe confere o exercício de algum dos po- deres inerentes à propriedade (art. 1.196, CC). Esse poder que se reco- nhece em favor do consignatário é o que define a posse sobre a coisa.
O consignatário poderá fazer uso da coisa? A resposta deve ser negativa quando não autorizado expressamente pelo consignante. Se o fizer motivará a rescisão do contrato estimatório com o efeito imedia- to da restituição da coisa, e se tiver causado danos deverá indenizar o consignante. A proibição decorre da possibilidade de restituição da coisa ao final do prazo, que deve ser feita nas condições em que ela foi recebida. No entanto, o uso da coisa pode ser identificado com a von- tade do consignatário de ficar com ela, o que o obriga a pagar o preço.
A coisa poderá receber melhoramentos e acréscimos. Se a coisa recebeu melhoramentos ou acréscimos, sem despesa ou trabalho do consignatário, ela será restituída com os acréscimos sem que seja de- vida qualquer indenização (art. 241).
Se para o melhoramento ou aumento o consignatário empregou trabalho ou dispêndio, terá direito à indenização, desde que se reco- nheça sua boa-fé, lembrando que a respeito das benfeitorias voluptu- árias não haverá indenização. Se o consignatário agiu de má-fé, terá direito à indenização apenas pelas benfeitorias necessárias, perdendo as úteis e voluptuárias realizadas.
Ao consignatário poderá ser reconhecido o direito de retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizou de boa-fé. Aquele que agiu de má-fé não terá direito de retenção.
A respeito dos frutos deve ser aplicada a regra do art. 242, pa- rágrafo único, do CC. Aquele que percebeu frutos de boa-fé não será obrigado a indenizá-los. Mas pertencem ao consignante os frutos pen- dentes e os colhidos com antecipação.
6.2 Boa-fé
A boa-fé do consignatário decorre do conhecimento que ele tem a respeito do exercício da posse do bem. Se ele sabe que a sua posse é injusta, age de má-fé. É o que se pode dizer do consignatário que, depois de vencido o prazo ou não cumprida a obrigação de restituir, in- siste em reter a coisa, que não vendeu, sem pagar o preço. Nesse caso, o consignatário está em mora e tem posse precária, que é injusta, e não pode alegar ignorância. Logo, só terá indenização pelas benfeito- rias necessárias que fez de má-fé, sem direito de retenção. Contudo,
lhe é assegurado o direito à indenização das benfeitorias que promoveu enquanto tinha posse de boa-fé.
6.3 Despesas com a custódia e venda do bem
O consignatário não poderá exigir do consignante qualquer despe- sa que tenha realizado para a venda do bem, ainda que frustrada no prazo previsto. Também não poderá, à evidência, pretender compen- sação dessas despesas com o preço. É que as despesas são realizadas em proveito do consignatário, que pode ganhar com o sobrepreço, daí não lhe ser lícito qualquer pretensão a respeito contra o consignante.
7. Conclusão
A regulamentação do contrato estimatório veio preencher um va- zio no direito brasileiro e dar maior segurança a esse negócio que sem- pre foi praticado.
Em razão das lacunas deixadas pela lei brasileira e a multiplici- dade de relações jurídicas envolvendo esse contrato devem as partes procurar disciplinar bem os seus interesses, definindo prazos, valores, encargos da mora e cláusulas sobre a indenização e retenção por ben- feitorias. É importante, igualmente, que o contrato se preocupe em descrever o estado em que se encontra a coisa entregue ao consignatá- rio, prevenindo litígios.
Transferindo o titular a coisa ao consignatário, naturalmente o faz para que a venda. Essa a finalidade do contrato. Por isso adverte Arnal- do Rizzardo que não cabe pensar, antes da venda ou comercialização, deva o consignatário pagar o preço. Muito menos se cogita de se auto- rizar ao proprietário uma medida de recuperação, após a venda pelo consignatário, caso não receba o pagamento. Isto a menos que esteja o comprador de má-fé, ou combinado com aquele que fez a entrega, numa venda aparente e não real. Daí inserir um alto risco esta moda- lidade de negócio, pois se presta aos desonestos receberem os bens, vendê-los e não efetuar o pagamento a quem os entregou. Pressuposto primeiro, para a viabilidade dessa modalidade de venda, é a segurança (confiabilidade) que desperta aquele que recebe a mercadoria.
Tem razão o experiente civilista gaúcho. Ao consignante não cabe nenhuma medida para a recuperação do bem alienado pelo
consignatário, porque lhe outorgou o poder de disposição. O risco re- clama cautela na escolha do consignatário e cuidado na realização do contrato, mas não deve inibir a prática desse importante negócio para as relações sociais e a circulação da riqueza.
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