INTERMITTENT CONTRACT AND SOCIAL DISPROTECTION OF LABOR
CONTRATO INTERMITENTE E A DESPROTEÇÃO SOCIAL DO TRABALHO
INTERMITTENT CONTRACT AND SOCIAL DISPROTECTION OF LABOR
Súllivan dos Santos Pereira1 Isabela Fadul de Oliveira2
RESUMO
O contrato de trabalho intermitente é uma nova forma jurídica de contratação do trabalho assalariado, institucionalizada pela Lei n.º 13.467/17, conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, sob os argumentos de combate ao desemprego e à informalidade no mercado de trabalho. Ele se caracteriza pela não fixação da continuidade na prestação do serviço laboral, apesar de ser um contrato por tempo indeterminado. Objetivando verificar os pontos de aproximação e distanciamento entre esse novo tipo de contratação e os pilares centrais do sistema de regulação pública do trabalho brasileiro, especialmente no tocante às garantias constitucionais, este trabalho analisa as características do contrato intermitente, levanta dimensões que apontam para sua inconstitucionalidade e identifica, na dinâmica de sua interpretação e aplicação pelo judiciário trabalhista, as inconsistências dos argumentos que justificam esse novo tipo contratual de trabalho precário.
Palavras-chave: legislação trabalhista, contrato, trabalho intermitente, proteção social, precarização.
ABSTRACT
The intermittent employment contract is a new legal form of hiring wage labor, institutionalized by Law n.º 13.467/17, the Labor Reform Law, under the arguments of combating unemployment and informality in the labor market. It is characterized by the failure to establish continuity in the provision of labor service, despite being an indefinite contract. Aiming to verify the points of approximation and distance between this new type of contracting and the central pillars of the public regulation system of Brazilian work, especially with regard to constitutional guarantees, this work analyzes the characteristics of the intermittent contract, raises dimensions that point to its unconstitutionality and identifies, in the dynamics of its interpretation and application by the labor judiciary, the inconsistencies of the arguments that justify this new contractual type of precarious work.
Keywords: labor legislation, contract, intermittent work, social protection, precariousness.
JEL Classification: K31 - Labor Law
1 Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFBA. Pesquisadora associada aos grupos de pesquisa Trabalho, Precarização e Resistências (TPR/CRH/UFBA) e Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (TTDPS/FDUFBA). E-mail: xxxxxxxxxxxxxxx0@xxxxxxx.xxx. https:// xxxxx.xxx/0000-0000-0000-0000.
2 Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo Instituto de Economia da UNICAMP. Professora de Legislação Social e Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFBA em regime de dedicação exclusiva, pesquisadora associada do Centro de Pesquisas e Estudos em Humanidades da UFBA (TPR/CRH/UFBA) e vice-coordenadora do grupo de Pesquisa Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (TTDPS/FDUFBA). xxxxx://xxxxx. org/0000-0002-4825-2819.
1. INTRODUÇÃO
O contrato de trabalho intermitente (zero hour contract) foi institucionalizado pela Lei n.º 13.467/17, a Lei da Reforma Trabalhista, com o argumento de que combateria a informalidade e geraria novos postos de emprego. Apesar de conter todos os elementos essenciais à típica relação empregatícia, em torno da qual direitos trabalhistas foram historicamente conferidos à classe trabalhadora, a nova forma de contratação rebaixa as garantias constitucionais mínimas asseguradas aos trabalhadores (PEREIRA, 2019).
Cumpre lembrar que, ao momento de promulgação da CF/88, o Brasil também enfrentava contradições políticas internas. Estas se materializaram na flexibilização da legislação trabalhista ao longo da década de 1990, reforçando a lógica da razão neoliberal reproduzida pelas instituições do país, que aqui importa na perda de direitos por parte dos trabalhadores.
A lógica neoliberal se intensificou e orientou as reformas legislativas de 2017, incorporando normas que afrontam o paradigma do sistema constitucional de proteção do trabalho. Os tribunais do trabalho, que deveriam representar a resistência institucional à perda de direitos, parecem corroborar sua ocorrência, em particular, pela validação das normas relativas à contratação intermitente do trabalho.
Trata-se de uma forma de contratação, prevista na CLT (artigos 443, caput e §3.º e 452-A), em que o período de inatividade não é considerado como tempo à disposição do empregador, a remuneração mínima mensal não é fixada, a jornada de trabalho é incerta e o trabalhador pode passar meses sem trabalhar nem perceber salário (por isso, a versão inglesa diz de um contrato com zero hora de trabalho contratada). Em face dessa nova modalidade contratual, o presente trabalho busca mostrar em que medida essa forma de contratação da mão de obra laboral se afasta do sistema de regulação pública do trabalho brasileiro e como sua aplicabilidade contribui para a dinâmica de perda de direitos e, consequentemente, perda da proteção social do trabalho.
Para tanto, o artigo está dividido em duas partes. Na primeira, será apresentado o referencial do sistema de garantias constitucionais incorporados ao texto da CF/88, em particular aquelas presentes nos artigos 5.º, incisos II e XXXVI, 7.º, incisos IV, VII, XIII, XVII e 201, §2.º. Além disso, ainda serão considerados alguns dos princípios que informam esse sistema, a saber: princípio da legalidade, princípio da proteção ao hipossuficiente, princípio da solidariedade social, princípio da norma mais favorável ao obreiro, princípio da segurança jurídica e princípio da continuidade do vínculo empregatício. Isso será feito mediante um diálogo relacional com os paradigmas da reforma trabalhista de 2017 e os termos normativos do contrato intermitente e de aspectos da relação que lhe dá materialidade.
Na segunda parte, serão apresentados entendimentos presentes no tratamento da matéria pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), quando serão apresentadas as percepções doutrinárias de seus ministros, as posturas do Congresso Nacional de Magistrados do Trabalho (Conamat) e, ainda, as construções de teses presentes em acórdãos do Tribunal.
2. CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
A Reforma Trabalhista de 2017 está sustentada nas “101 Propostas para Modernização Trabalhista”, publicadas em 2012 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), entidade patronal. Os argumentos sobre como a rigidez e a burocracia das leis trabalhistas elevam o custo
do trabalho, geram custos desnecessários, insegurança jurídica e comprometem a sobrevivência das empresas foram apropriados para justificar a reforma.
Com a promulgação da Lei n.º 13.467, em julho de 2017, teve início a reforma trabalhista, que vem reiteradamente rebaixando os padrões de contratação de trabalho no país e tornando hegemônico o projeto neoliberal. Essa legislação alterou substantivamente a Consolidação das Leis Trabalhistas, no sentido de flexibilizar direitos básicos do obreiro, como jornada de trabalho e garantia do salário mínimo mensal. Conforme esse processo de flexibilização da regulação do trabalho formal, o contrato de trabalho intermitente foi institucionalizado por essa lei, que modificou o caput do artigo 443 e acrescentou o parágrafo terceiro, assim como inseriu o artigo 452-A, ambos da CLT.
O contrato intermitente é uma forma contratual atípica3, na qual não há o estabelecimento fixo de uma jornada de trabalho, portanto, sua principal característica é a prestação do trabalho por períodos intercalados com a inatividade, que podem ser determinados unilateralmente pelo empregador em horas, dias e até em meses (art. 443, §3.º) (BRASIL, 2017).
Conforme legislação (artigo 452-A, §§1ºe 2º), é exigido que o empregador informe ao empregado, usando um meio de comunicação eficiente, no mínimo, com três dias corridos de antecedência, a prestação do serviço a ser efetuada e a jornada. O empregado, por sua vez, tem 24 horas para aceitar, sendo o silêncio, após esse período, considerado recusa (recusa tácita). Contudo, após as partes convencionarem determinada prestação de serviço, ambas ficam obrigadas ao cumprimento desta, sob pena da parte que descumprir, sem “justo motivo”4, ter de pagar a outra parte, no prazo legal de trinta dias, uma multa de 50% da remuneração que foi acordada, permitida a compensação em igual prazo (art. 452-A, § 4.º) (BRASIL, 2017).
Umas das características elementares da relação de emprego é a subordinação, então, enquanto o contrato de trabalho estiver vigente, o empregado intermitente continua subordinado ao empregador, mesmo que este não esteja utilizando sua mão de obra e não indique quando pretende utilizá-la. A subordinação também não é descaracterizada caso o empregado se recuse (expressa ou tacitamente) a prestar serviços para o empregador. Ainda assim, a dinâmica assumida pelo contrato intermitente parece impor ao trabalhador a perda da condição de beneficiário do sistema de garantias constitucionais.
Entende-se por garantias constitucionais uma série de princípios e normas que são positivadas na Constituição e/ou que decorrem da interpretação desta, objetivando assegurar o cumprimento de patamares civilizatórios mínimos em uma sociedade capitalista. Aqui, serão trabalhados os direitos constitucionalmente assegurados pela CF/88, artigo 7.º, incisos IV, VII, XIII, XVII da CF, e artigo 442, caput, da CLT. Portanto, esse é o patamar referenciado
3 A nomenclatura “típico” e “atípico” é referencial, ou seja, deve-se considerar algo padrão, normal, para chamar de típico e de atípico seu oposto. Feito isso, é usual na literatura jurídica, sobretudo no Direito Civil e no Direito Empresarial, atribuir os referenciais atípico, típico e até mistos aos contratos, considerado típico quando ele é institucionalizado e atípico quando não é (ver, por exemplo, XXXXX, 2008, p. 102). Porém, neste trabalho, quando for feita a referência a algo (ex: contrato, portaria etc.) que foi tipificado por alguma instituição, será adotada a nomenclatura “institucionalizado”, “regulamentado”, “legislado” ou congêneres, pois se optou por utilizar a nomenclatura “típico” para referenciar o contrato de trabalho padrão e “atípico” para as formas contratuais trabalhistas que não estabeleçam, no mínimo, o conjunto de direitos do contrato padrão, tais como: contrato intermitente, contrato por tempo determinado, contrato a tempo parcial etc. Inclusive, esse também é o entendimento da Organização Internacional do Trabalho ao se referir a contratos atípicos (OIT, 2016, p. 7).
4 A expressão “justo motivo” é deveras subjetiva e pode ensejar dúvidas, até porque o conceito do que é justo está
longe de ser pacífico. Conforme Xxxxxxxxx, essa expressão significa as interrupções contratuais previstas no artigo 473 da CLT, no qual consta um rol restrito e inconsistente com as necessidades cotidianas do trabalhador de hipóteses em que o empregado pode faltar ao trabalho e não ter o salário descontado (2017, p. 1).
constitucionalmente para contratação com o mínimo de garantias, e todas as modificações legislativas deveriam ser no sentido de aumentar esse rol de garantias, não o contrário.
Do ponto de vista dos princípios, parte-se da premissa de que esses fundamentos para ordenamento jurídico trabalhista são independentes, supralegais e devem servir de inspiração para o direito positivo. Assim sendo, não deve haver antinomias entre estes e os preceitos legais. Os princípios que fazem parte desse sistema de garantias constitucionais são muitos, dentre eles: os princípios gerais do Direito (com destaque aos princípios da legalidade e o da segurança jurídica, ambos positivados no artigo 5º do texto constitucional. O primeiro, no inciso II, preleciona que ninguém vai fazer ou deixar de fazer algo, se não em virtude da lei; e o segundo, no inciso XXXVI, defende que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada) e os princípios próprios do Direito material do Trabalho.
Conforme Xxxxx, devido à vulnerabilidade econômica do empregado, o princípio norteador do Direito material do Trabalho é o princípio da proteção do hipossuficiente econômico. Tal princípio objetiva estabelecer, em termos reais, a igualdade jurídica entre o empregado e o empregador e comporta três regras de aplicação: 1) in dubio pro operário5;
2) norma mais favorável6 e 3) condição mais benéfica7. Já os demais princípios trabalhistas são derivados deste e se subdividem em: 1) princípio da irrenunciabilidade de direitos; 2) princípio da continuidade8 da relação de emprego; 3) princípio da primazia da realidade; 4) princípio das garantias mínimas do trabalhador; 5) princípio da igualdade salarial e 6) princípio da força atrativa salarial (2003).
O princípio da solidariedade social não está incluso nesse rol porque está mais associado ao direito previdenciário. Conforme Vaz, sem ele a ideia de previdência social resta esvaziada, visto ser a firmação do pacto intergeracional que defende a transferência de renda de alguns em favor de outros (2009).
Ainda, conforme Xxxxxxx, a busca da condição mais benéfica e da norma mais favorável ao obreiro deve nortear todas as dimensões que envolvem o Direito do Trabalho, desde a fase pré-jurídica (legislativa) até o contexto de interpretação das normas jurídicas no plano fático (DELGADO, 2017). A seguir, é buscada a identificação ponto a ponto de como esse sistema de garantias é afrontado pelos termos da contratação do trabalho intermitente.
2.1 Trabalho intermitente e remuneração
As normas trabalhistas são imperativas, portanto, conforme a regra geral do art. 9.º da CLT, o salário mínimo é irrenunciável, jamais poderá ser afastado em negociação, seja ela individual, seja coletiva. Contudo, o trabalhador intermitente nem sequer sabe qual o mínimo de salário receberá mensalmente, pois depende de chamamento, o que afeta sua sobrevivência. A existência de cláusula no contrato individual de trabalho que autorize o empregado intermitente
5 Também denominada de in dubio pro misero, essa regra de aplicação defende que havendo dúvida no jogo da interpretação da norma, sempre se deve preferir a que mais favoreça o empregado (XXXXX, 2003, p. 89).
6 “Havendo mais de uma regra de sentido diverso aplicável a determinada situação jurídica, deve preferir-se a que favoreça o empregado” (XXXXX, 2003, p. 89).
7 “Existindo uma situação já concretamente estabelecida pela norma preexistente, deve prevalecer sobre a que vier a ser criada pela nova norma, desde que a situação anterior já tenha sido reconhecida e se mostre mais favorável ao empregado” (XXXXX, 2003, p. 89).
8 O princípio da continuidade cumpre no ordenamento jurídico brasileiro um importante papel, fazendo com que a ruptura contratual seja mais onerosa para o empregador, assim como propõe como regra geral o contrato por tempo indeterminado e exceptiva, na seara trabalhista, os contratos a termo, que dependem de previsão legal (DELGADO, 2017, p. 224).
a receber menos que um salário mínimo mensal é incompatível, portanto, até mesmo com o próprio texto da CLT.
Posicionamento convergente ao aqui defendido é o da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra). Em seu enunciado normativo da Segunda Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, ela preleciona que
a proteção jurídica do salário mínimo, consagrada no art. 7º, VII, da constituição da república, alcança os trabalhadores em regime de trabalho intermitente, [...], aos quais é também assegurado o direito à retribuição mínima mensal, independentemente da quantidade de dias em que for convocado para trabalhar, respeitado o salário mínimo profissional, o salário normativo, o salário convencional ou o piso regional (2018, p. 12).
Portanto, a não garantia do salário mínimo aos intermitentes é uma inconstitucionalidade (declaração de ilegalidade), visto que ele tem a ideia de universalização e de fixação de um padrão remuneratório mínimo que alcança empregados urbanos, rurais, domésticos (art. 7.º, parágrafo único, da CF) e servidores públicos (art. 39, § 3.º, da CF) de todas as idades (art. 7.º, XXX, da CF).
2.2 Trabalho intermitente e jornada de trabalho
A jornada de trabalho deve ter um limite de duração, e a ausência dessa fixação é contrária ao disposto no artigo 7.º, inciso XIII, da CF, que limita a duração do trabalho normal. A Constituição fixa a necessidade de uma jornada de trabalho diária que não pode ser superior a oito horas.
O não estabelecimento de uma jornada e a não garantia de um salário mínimo mensal são fatores que afetam substancialmente a subsistência do trabalhador e de sua família, bem como o acesso a direitos sociais do trabalho, moradia, alimentação, saúde e segurança. Além disso, o trabalho intermitente transfere para o trabalhador os riscos da atividade econômica, atentando assim contra a valorização social do trabalho (Anamatra, 2018).
Portanto, o contrato de trabalho intermitente implementa uma jornada móvel no Brasil, rebaixa a proteção mínima assegurada aos trabalhadores e não assegura qualquer garantia protecionista ao trabalhador. Ao revés, fere o trabalho digno, pois impede a inserção do trabalhador na jornada clássica constitucional, violando normas e direitos protegidos no âmbito internacional.
2.3 Trabalho intermitente e décimo terceiro salário
O valor percebido pelos trabalhadores ao final do ano a título de décimo terceiro salário, além de ter o propósito de aumentar o poder de compra destes, é social e economicamente favorável, visto que aquece a economia e dinamiza o mercado ao permitir que o trabalhador assalariado consiga quitar suas dívidas e fazer compras extraordinárias, ou seja, adquirir produtos e serviços não cotidianamente consumidos (DIEESE, 2018). Contudo, na contramão da efetividade desses direitos, o inciso III, do §6.º do artigo 452-A da CLT estabelece que ao final de cada período de prestação de serviço o empregado intermitente deverá receber imediatamente o pagamento do décimo terceiro salário proporcional.
A política de parcelar o valor do décimo terceiro salário durante o ano desaquece o comércio de bens e serviços no período natalino e descaracteriza o propósito de ser desse
direito social, pois transforma o gozo de direitos sociais em valor pecuniário, fazendo com que o significado dessa política pública perca sua razão de ser e, com o tempo, seja extinta por via indireta9.
2.4 Trabalho intermitente e férias remuneradas
O artigo 452-A, §6.º, inciso II, da CLT estabelece que ao final de cada período de prestação de serviço o empregado intermitente deverá receber imediatamente as férias proporcionais acrescidas de um terço. Esse trabalhador ficará um mês sem ser acionado e sem nada a receber, portanto, não vai conseguir manter seu sustento básico.
Nesse cenário, o trabalhador será economicamente obrigado a ter outras formas para obter renda, seja por meio do trabalho formal, seja de um vínculo informal. Dessa forma, isso não pode ser considerado gozo de férias, pois não respeita o descanso anual remunerado (Anamatra, 2018).
O pagamento parcelado das férias acrescidas de um terço, incorporado ao baixo salário, não confere maior proteção ao trabalhador; em verdade, faz com que ele não tenha algo a receber quando as férias lhe forem concedidas e extingue esse direito por via indireta. Isso porque o gozo das férias do trabalhador intermitente não corresponde ao próprio objetivo desse direito social, qual seja, o descanso remunerado.
2.5 Trabalho intermitente e financiamento da seguridade social
No sistema de previdência social público, é garantido um salário mínimo mensal para os benefícios previdenciários (artigo 201, §2.º da CF). Então, o piso indexador para o financiamento dos benefícios previdenciários é o salário mínimo, independentemente do valor e do tempo de contribuição. Com isso, o legislador aplicou o princípio da solidariedade e buscou garantir as necessidades básicas do segurado (VAZ, 2009).
As mudanças legislativas de 2017 que estimularam a prática da terceirização, da “pejotização”, dos contratos atípicos, com remunerações rotativas e variáveis, em especial no caso do contrato de trabalho intermitente, afetam diretamente as fontes de financiamento da seguridade social. Isso porque o financiamento da seguridade social está diretamente vinculado à folha de pagamento dos trabalhadores.
Também, a lógica do trabalho intermitente afeta diretamente o direito à aposentadoria, haja vista que os anos para esse fim são calculados em dias de contribuição e de trabalho. Então, para obter a aposentadoria, o trabalhador intermitente terá de laborar muito mais anos que o trabalhador contratado tipicamente, em virtude da descontinuidade dos dias de convocação para o trabalho (XXXXXXXXX, 2017).
O art. 6.º da Portaria n.º 349 do MTE, corresponde ao antigo artigo 911-A da CLT e dispõe que é dever do empregador fazer o recolhimento das contribuições previdenciárias próprias do empregado e o depósito do FGTS, com base nos valores pagos no período mensal. Contudo, a legislação que instituiu o trabalho intermitente não garante que o empregado será convocado para laborar todos os meses, podendo surgir a situação em que ele não consiga atingir o montante correspondente ao salário mínimo e tenha de arcar com o recolhimento
9 Mesmo não existindo um preceito legal que diretamente desregulamente esses direitos trabalhistas, o legislativo institucionalizou o trabalho intermitente, uma forma contratual que mitiga a essência dos direitos sociais.
complementar, já que por vezes não ganha nem mesmo o suficiente para o próprio sustento digno10.
Essa forma contratual não garante que o trabalhador tenha condições de pagamento da seguridade, portanto, mais uma vez, é ilegal, inconstitucional, visto que também viola o artigo 195 da Constituição, que dispõe que a Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, inclusive pelos empregadores. É o rompimento, por lei infraconstitucional, com o pacto de solidariedade intergeracional feito pelo constituinte, bem como a mitigação do direito à aposentadoria.
2.6 Trabalho intermitente e lei de cotas para pessoas com deficiência
O avanço na inclusão cidadã das pessoas asseguradas pela Lei de Cotas11 está ameaçado pelo contrato de trabalho intermitente. No texto da legislação que institui o trabalho intermitente não existe nenhum artigo que restringe a contratação de pessoas com deficiência pela modalidade intermitente, bem como não existe norma impondo com que habitualidade o trabalhador intermitente deve ser chamado para laborar.
Dessa forma, analisando apenas a Lei n.º 13.467/17, de fato, as pessoas com deficiência podem ser contratadas na forma intermitente, bem como podem ter mais de um vínculo empregatício. Contudo, isso pode gerar a figura do “trabalhador com deficiência profissional da reserva de cargos”. Ou seja, várias empresas podem ter o mesmo trabalhador com deficiência em seu banco de empregados, cumprindo a lei de cotas, mas nunca chamá-los para trabalhar ou acioná-los apenas uma vez ao ano (GURGEL, 2017).
Contudo, a aplicação de uma norma deve ser analisada conforme todo o ordenamento jurídico, então, por analogia ao fundamento legal (artigo 93 da Lei n.º 8.213), que proíbe a contratação de aprendiz com deficiência para cumprir a cota estabelecida pela Lei n.º 8.213, é possível perquirir que também é proibida a contratação de intermitentes com deficiência para preenchimento da cota legal estabelecida por essa lei.
O contrato intermitente, assim como o contrato de aprendiz, é atípico, e o legislador foi expresso ao dizer que só é possível a contratação de pessoas com deficiência pela via direta, comum. Assim, é legislativamente ilegal a contratação de aprendiz deficiente, assim como de intermitente deficiente, para ocupar as vagas reservadas para pessoas com deficiência nas empresas com cem ou mais empregados.
Uma pessoa com deficiência contratada sob a modalidade intermitente tem garantido seu direito à participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas mitigado, gerando assim desigualdades imensuráveis e a antinomia criada entre ser ou não empregado (GURGEL, 2017). Portanto, o trabalhador com deficiência jamais poderá ser contratado intermitentemente, forma contratual reconhecidamente precária e incompatível com a razão de ser da política de cotas e da inclusão da pessoa com deficiência na sociedade.
2.7 Trabalho intermitente e exercício de atividades de risco
10 A exemplo do trabalhador reclamante no processo de n.º 1000534-60.2019.5.02.0007 (7.ª Vara do Trabalho de São Paulo), contratado como pedreiro, na modalidade intermitente, mas que durante todo o período contratual (23/08/2018/10/01/2019) jamais foi convocado para qualquer prestação de serviços.
11 Em 24 de julho de 1991 foi promulgada a Lei n.º 8.213, popularmente conhecida como Lei de Cotas. Essa legislação, em seu artigo 93, institucionaliza a obrigatoriedade de empresas com cem ou mais funcionários a terem de dois a cinco por cento dos seus postos de trabalho ocupados por beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência.
A contratação na modalidade intermitente não pode ser utilizada indiscriminadamente para todos os setores e atividades. Inclusive, no §3.º do art. 443 da CLT, os aeronautas são excluídos de serem contratados nessa modalidade, sob a justificativa de que são regidos por lei particular e devido à alta capacidade técnica demandada para exercer essa atividade e do risco que a falta de prática pode representar tanto para o trabalhador como para a sociedade.
Essa exceção para os aeronautas só foi introduzida quando estes ameaçaram aderir a uma greve geral no dia 28 de abril de 2017. Diante disso, os congressistas os colocaram como exceção à contratação intermitente, sob o argumento de que a aplicação da precariedade dessa forma contratual para essa categoria colocaria esses trabalhadores, assim como os consumidores, ou seja, os próprios congressistas, em risco. Então, no relatório final do Projeto de Lei da Reforma Trabalhista, o dispositivo que cuida do trabalho intermitente foi alterado para explicar que os aeronautas estariam excluídos de serem contratados por essa forma contratual (MAIOR, 2017).
Dessa forma, por analogia, essa lógica aplicada aos aeronautas deve ser utilizada para todas as categorias profissionais que exijam o domínio de técnicas específicas e apresentam riscos para si e para terceiros. Em verdade, no próprio texto do Projeto de Lei foi reconhecido pelo legislador que a forma contratual intermitente é precária. Portanto, como a Constituição garante a isonomia para todos, o contrato intermitente não poderia ser aplicado a nenhum tipo de trabalhador, independentemente de exercer atividade de risco ou não, já que a todos é garantido o trabalho digno e o bem-estar social, sob pena de ameaça e incongruência à própria efetividade da Constituição Federal.
A não garantia de um salário mínimo mensal, o não estabelecimento de uma jornada de trabalho, a extinção por via indireta do direito ao décimo terceiro salário, bem como do direito às férias remuneradas, a mitigação do pacto previdenciário intergeracional, a não aplicabilidade direta para pessoas com deficiência e trabalhadores que exercem atividade de risco são dimensões que apontam para a inconstitucionalidade da forma de contratação intermitente.
3. CONTRATO INTERMITENTE E INTERPRETAÇÃO DO TST
Na busca pelo sentido da norma jurídica mais favorável, o Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT3) declarou a nulidade da contratação de uma reclamante pelo regime intermitente, ao aplicar no caso concreto a tese da Anamatra, por meio de sua Comissão 3, que redigiu a tese 28 do 19.º Congresso Nacional de Magistrados do Trabalho (Conamat) junto ao conceito de contrato intermitente cunhado no Enunciado n.º 90 da 2.ª Jornada12.
Conforme a decisão, no caso em comento, entendeu-se que a função exercida pela reclamante se enquadra na cláusula contratual relativa à modalidade de prestação de serviços intermitentes em atividade permanente e contínua da empresa. Portanto, incabível a utilização da contratação na modalidade intermitente, pois é ilegal substituir um posto de trabalho regular por um intermitente. Por fim, a Xxxxx reconheceu a nulidade, argumentando que o artigo 443,
12 “Contrato de trabalho intermitente e demandas permanentes. I – É ilícita a contratação sob a forma de trabalho intermitente para o atendimento de demanda permanente, contínua ou regular de trabalho, dentro do volume normal de atividade da empresa. II – É ilegal a substituição de posto de trabalho regular ou permanente pela contratação sob a forma de trabalho intermitente. III – O empregador não pode optar pelo contrato de trabalho intermitente para, sob esse regime jurídico, adotar a escala móvel e variável da jornada. IV – Presente a necessidade de trabalho intermitente, o empregado contratado na forma do art. 443, § 3.º, da CLT tem direito subjetivo à convocação, sendo ilícita sua preterição ou a omissão do empregador. (Enunciado n.º 8 da Comissão 6)” (Anamatra, 2018, p. 14)
§3.º, da CLT se refere à função exercida pelo trabalhador e não ao caráter da atividade em si (BRASIL, 2018).
Entretanto, o Tribunal Superior do Trabalho, sob a relatoria do Ministro Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, reformou a decisão do 3.º Regional (no acórdão em Recurso de Revista n.º 10454-06.2018.5.03.0097), sob o argumento de que este cria mais parâmetros e limitações do que aqueles impostos pelo legislador ao trabalho intermitente, ferindo o princípio da legalidade e segurança jurídica.
Apesar do contrato de trabalho intermitente ser aparentemente lícito quanto à forma, pois foi positivado por uma legislação ordinária devidamente aprovada pelo legislativo brasileiro13, quanto ao conteúdo, o contrato intermitente é ilícito, e sua aplicabilidade vai contra as normas constitucionais e infraconstitucionais do trabalho. E, mesmo que esse fosse um contrato aplicável, conforme decisão judicial do TRT3, apenas deve ser utilizado em caráter excepcional, para atender a demanda intermitente em pequenas empresas.
Ressalta-se que embora essa visão do TRT3 seja menos flexibilizadora que a do TST, ela também merece uma análise crítica. O contrato intermitente é manifestamente ilegal, incompatível com o próprio contrato-padrão defendido na Constituição, e em hipótese alguma essa forma contratual poderia ser utilizada para suprir demanda de atividade intermitente, permanente, contínua ou regular.
Contudo, existem três afirmações no acórdão do TST que merecem nossa detida atenção, quais sejam:
1) O objetivo da regulamentação do contrato de trabalho intermitente “deveu-se à necessidade de se conferir direitos básicos a uma infinidade de trabalhadores que se encontravam na informalidade (quase 50% da força de trabalho do país), vivendo de ‘bicos’, sem carteira assinada e sem garantia de direitos trabalhistas fundamentais”;
2) O contrato intermitente “flexibiliza a forma de contratação e remuneração para combater o desemprego”; 3) o contrato intermitente “não gera precarização, mas segurança jurídica a trabalhadores e empregadores, com regras claras, que estimulam a criação de novos postos de trabalho” (BRASIL, 2019, p. 1).
Ainda, importa salientar que todos esses argumentos defendidos no acórdão serão problematizados em seguida.
3.1 O contrato intermitente combate a informalidade?
O trabalho intermitente começou a ser comparado com o bico, com a “jornada móvel variada” e com o “contrato de zero hora” ou “zero-hour contract” britânico. Como preleciona Cassar, a institucionalização do contato intermitente, apesar de também regulamentar o trabalho variado (bico), devido à imprevisibilidade de prestação de serviço, tem o real escopo de autorizar a utilização da jornada móvel variada, beneficiando apenas o empresariado e “ferindo de morte” os princípios da segurança jurídica e da proteção ao trabalhador (2017).
Portanto, a remissão do contrato de trabalho intermitente à figura do “biscate”, do “bico”, do freelance, do trabalho em condições inferiores, do trabalho fragmentado com dificuldade de organização, mobilização e sindicalização, não se sustenta. Essa forma de contratação é
13 Aparentemente, pois a legalidade da Lei n.º 13.467/2017 ainda não é pacífica na doutrina nem na jurisprudência. Conforme pesquisa realizada por Dutra, existem mais de trinta ações de controle de constitucionalidade (entre ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade), com diversas matérias, questionando essa legislação (2019).
um aparato de “organização” do mercado de trabalho pensada para promover a diminuição de encargos trabalhistas por meio do rebaixamento salarial, sujeitando o trabalhador, que antes era regido pelo contrato-padrão, a um regime em que trabalha e recebe estritamente de acordo com as necessidades do empregador (XXXXXXXX et al., 2017).
Se o contrato intermitente veio para formalizar os trabalhadores informais, por qual motivo, após mais de dois anos de vigência da Reforma, essa promessa não aparece nos dados oficiais? Conforme dados do Caged, entre novembro de 2017 até dezembro de 2019, foram firmados 220.957 contratos intermitentes, sendo que 86.503 já foram rescindidos. Pode-se perguntar: por qual motivo as empresas não aproveitaram essa forma de contratação atípica, tão aclamada pelo patronato, para solucionar o problema do desemprego?
TABELA 1 – SALDO TOTAL DE EMPREGOS INTERMITENTES DURANTE O PERÍODO DE NOVEMBRO DE 2017 ATÉ DEZEMBRO DE 2019
Período | Admissões | Desligamentos | Saldo total |
Novembro de 2017 | 3.120 | –53 | 3.067 |
Dezembro de 2017 | 2.851 | –277 | 2.574 |
Ano de 2018 | 66.467 | –18.951 | 47.516 |
Ano de 2019 | 148.519 | –67.222 | 81.297 |
TOTAL | 220.957 | –86.503 | 134.454 |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Caged/SEPRT/ME.
As possíveis respostas não são otimistas para os defensores dos direitos sociais. Conforme Filgueiras, existem fortes indícios de que está havendo uma substituição de empregos formais por formas precárias e ilegais/informais de contratação, haja vista que
o emprego sem carteira cresce de forma mais consistente após a reforma, seguindo trajetória prévia. Desde novembro de 2017, todo trimestre móvel tem crescimento entre 370 a 650 mil no número de empregados sem CTPS em comparação ao mesmo trimestre do ano anterior (PNAD). O forte incremento dos empregados sem CTPS chama a atenção em funções que se enquadrariam em contratos intermitentes e parciais (apud KREIN; XXXXX XX XXXXXXXX; FILGUEIRAS, 2019, p. 41).
Portanto, na prática, está acontecendo crescimento do movimento histórico de negação do vínculo empregatício e não o combate à informalidade, como sugere o acórdão do TST.
3.2 O contrato de trabalho intermitente está combatendo o desemprego?
A legislação do trabalho sempre permitiu a flexibilização de suas regras para conferir mais direitos e melhores benefícios para a classe trabalhadora, a exemplo das Convenções Coletivas de Trabalho, que com o intermédio do sindicato da categoria muitas vezes conseguem acordar uma série de direitos, benefícios e garantias que não estavam positivadas no texto legal. Portanto, ao afirmar que a legislação trabalhista é rígida, deve-se ter a honestidade intelectual de explicar que ela é assim para flexibilizar direitos abaixo do legal, nunca para mais.
O argumento de que a flexibilização da forma de contratação e remuneração combate o desemprego tem uma cadência de comprovação científica. Conforme Filgueiras, existem outras
variáveis que devem ser consideradas, e elas não são relacionadas à Reforma Trabalhista (como preço de commodities, liquidez internacional, novas matérias primas e, especialmente, outras políticas públicas) (2019). Posteriormente, o autor enfatiza que
a reforma que “flexibiliza” (reduz) direitos é uma opção política sobre o que se quer das condições de vida e trabalho da população de um país. Isso porque também é possível generalizar uma das consequências de uma reforma que “flexibiliza” a legislação, caso seja efetiva: promoção da precarização do trabalho (2019, p. 24).
O acórdão do TST14 é de agosto de 2019, quase 22 meses após a institucionalização do contrato intermitente, após mais de um ano e meio de divulgação mensal dos dados do Caged mostrando que a flexibilização de direitos pela Reforma Trabalhista não gerou os prometidos15 novos postos de empregos. O saldo de postos de empregos formais no período de novembro de 2017 até dezembro de 2019, período de tempo até maior que o do acórdão, foi de apenas 748.299E, das 33.119.350 admissões realizadas nesse período (Tabela 2), 220.957, cerca de 0,7%, foi na modalidade intermitente, conforme Tabela 1.
TABELA 2 – SALDO TOTAL DE EMPREGOS FORMAIS DURANTE O PERÍODO DE NOVEMBRO DE 2017 ATÉ DEZEMBRO DE 2019
Período | Admissões | Desligamentos | Saldo total |
Novembro de 2017 | 1.111.798 | –1.124.090 | – 12.292 |
Dezembro de 2017 | 910.586 | –1.239.125 | – 328.539 |
Ano de 2018 | 15.384.233 | – 14.854.729 | 529.554 |
Ano de 2019 | 15.712.733 | –15.153.107 | 559.626 |
TOTAL | 33.119.350 | –32.371.051 | 748.299 |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Caged/SEPRT/ME.
Em verdade, a experiência empírica, em diversos países, mostra que a utilização de contratos atípicos e da terceirização contribui para a substituição dos empregos formais e juridicamente protegidos por contratos precários e atípicos, sob o falso argumento de geração de novos postos de empregos formais e renda. Essa política tende a causar o empobrecimento da população economicamente ativa, o aumento da criminalidade e da miséria e a redução dos índices de desenvolvimento humano (XXXXXXXX et al., 2017).
O argumento utilizado pelo Ministro Ives Gandra contraria a própria experiência brasileira. O emprego formal cresceu em períodos de forte dinamismo econômico. Conforme dados do sistema RAIS, entre 2003 e 2014 foram gerados 20.887.597 postos de trabalho no Brasil (XXXXXXXX et al., 2017). Portanto, a partir dos anos 2000, as desigualdades sociais diminuíram com a maior interferência do estado em políticas sociais, com a política de valorização do salário mínimo, as políticas de transferência de renda e o reajuste salarial acima da inflação, conquistas dos sindicatos (KREIN, 2018), não com a flexibilização da remuneração, como sugerido pelo acórdão.
14 Xxxxxxx em Recurso de Revista n.º 10454-06.2018.5.03.0097, de 7 de agosto de 2019.
15 O Ministro da Fazenda da época prometeu seis milhões de novos postos de emprego com a Reforma, conforme divulgado por vários jornais de grande circulação no país, como o G1 (MARTELLO, 2017).
3.3 O contrato intermitente gera precariedade?
Este trabalho já mostrou as inúmeras facetas da precarização que o contrato intermitente provoca, a exemplo: não garantia do direito fundamental a uma jornada de trabalho previamente estabelecida; não garantia constitucional de um salário mínimo mensal; risco social da aplicabilidade dessa forma contratual no exercício de atividades de risco; incompatibilidade da contratação intermitente com a lei de cotas para pessoas com deficiência; grave ameaça em longo prazo ao financiamento da seguridade social; extinção por via indireta do direito ao décimo terceiro salário e a férias remuneradas. Mas, como essa forma de contratação não é modesta, serão apresentados mais exemplos.
A alta rotatividade da mão de obra é uma característica marcante nas formas atípicas de contratação, considerada um indicador de precarização do trabalho que age contra a própria continuidade do vínculo empregatício. Essa característica resulta: 1) na descaracterização da identidade profissional do trabalhador; 2) na redução da capacitação e integração desse profissional ao ambiente de trabalho; 3) no afastamento da solidariedade de classe e dos sindicatos representativos da categoria; 4) no enfraquecimento das organizações sindicais (XXXXXXXX et al., 2017). Conforme dados do Caged (Tabela 1), o contrato intermitente tem grande rotatividade, pois entre os meses de novembro de 2017 a dezembro de 2019 aproximadamente 39,15% dos contratos intermitentes firmados já haviam sido rescindidos, considerando esse mesmo intervalo de tempo.
3.4 O contrato intermitente gera segurança jurídica?
Por fim, o argumento da segurança jurídica também não deve ser prosperado. Em verdade, o contrato intermitente, assim como toda Reforma, causou insegurança jurídica, não o contrário, ao positivar diversas normas que vão contra o defendido no próprio ordenamento jurídico.
Como aponta Dutra, são mais de trinta ações de controle de constitucionalidade, e a quantidade de questionamentos à Lei n.º 13.467/2017 informa não apenas sobre a longa e profunda alteração no sistema normativo juslaboralista, mas também sobre a insegurança jurídica que ela desenhou neste (2019). Só a respeito do contrato de trabalho intermitente existem quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade, quais sejam: as ADIs 5806, 5826, 5829 e 5950, que questionam a institucionalização dessa forma contratual sob o argumento de que é uma desproteção social, vai contra as garantias constitucionais e acentua a precarização das relações de trabalho.
O trabalho intermitente é uma condição trabalhista que vai totalmente contra a dignidade humana, pois a norma jurídica que o institucionaliza coloca o trabalhador na condição de mero objeto, de ferramenta à disposição da atividade econômica empresarial. É um rebaixamento civilizatório que contraria a vedação de tratamento desumano e a finalidade constitucional do direito do trabalho, qual seja, a melhoria da condição social do trabalhador (MAEDA, 2018).
Com base nos argumentos de fato e de direito expostos anteriormente, é possível perquirir que: 1) a regulação do contrato de trabalho intermitente não combate a informalidade, inclusive, está aumentando o movimento de negação do vínculo laboral; 2) a flexibilização da forma de contratação e remuneração combate a proteção social do trabalho, e não o desemprego, como sugerido pelo Relator; 3) o contrato intermitente gera precarização do trabalho, e não segurança jurídica a trabalhadores e empregadores, não apresenta regras claras (vide as tantas
ADIs) e não estimula a criação de novos postos de trabalho (haja vista os dados do mercado de trabalho).
4. CONCLUSÃO
A forma contratual intermitente é incongruente com o sistema de proteção social do trabalho que o Brasil se propôs a defender. A má remuneração salarial, a não garantia do mínimo constitucional, a incerteza de quando o trabalhador será chamado para trabalhar são dimensões dessa nova forma de contratação que vão contra o texto constitucional, os princípios e normas defendidos na própria CLT, bem como desrespeita a própria essência do Direito do Trabalho.
Essa forma de contratação tem uma nítida influência da racionalidade neoliberal que parece ganhar influência no Brasil, que, como visto, não cumpriu com seu objetivo de combater a informalidade e o desemprego. Em verdade, não existem evidências suficientes que permitam alcançar tais objetivos com a flexibilização de legislações trabalhistas e previdenciárias, assim, só se diminuem os direitos sociais. A criação de novos postos de emprego no mundo capitalista depende de mudanças econômicas e de políticas públicas sociais.
O impacto da contratação na modalidade estudada atinge várias dimensões do sistema de relações de trabalho brasileiro. Parece farta a gama de argumentos que podem ser manejados para reprimir sua adoção até a declaração de sua inconstitucionalidade. É o que se espera de todos aqueles que cotidianamente atuam na promoção da justiça social do trabalho, sobretudo, pelo sindicato de trabalhadores, pelo Ministério Público do Trabalho e pelo judiciário trabalhista, que tem o papel fundamental de não contribuir para a legitimação dessa forma contratual tão perversa ao hipossuficiente da relação empregatícia, o trabalhador.
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