2a edição
XXXXXX XXXXXXXXX
CONTRATOS
EMPRESARIAIS
2a edição
2023
4
Capítulo
INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
1 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS
A interpretação é a atividade de esclarecer o sentido de determinada proposição. Esta interpretação pode dizer respeito a uma norma, mas também a contratos. Assim, os contratos precisam ser interpretados, no sentido de que deve ser esclarecido o sentido da manifestação de vontade das partes contratantes. Por meio dessa atividade interpretativa, é que será possível definir a real extensão dos direitos e obrigações decorrentes do contrato, ou seja, é por meio dela que se individualiza “o sentido juridicamente rele- vante do contrato”1.“Muitas vezes, de facto, interpretar o contrato constitui uma verdadeira e própria necessidade, se se quiser dar ao mesmo actuação econômica concreta e assim realizar, efetivamente, a operação econômica que lhe corresponde”2.
Inicialmente, tal interpretação é feita pelas próprias partes3 e, se hou- ver a mesma interpretação entre elas, não há maiores problemas. Todavia, nem sempre há essa sintonia entre as partes. É natural e compreensível que cada uma das partes seja tentada a buscar o sentido que mais lhe beneficia,
1. XXXXXXX, Xxxxxxx. Interpretação do contrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 34.
2. XXXXX, Xxxx. O contrato. Tradução de Xxx Xxxxxxx e M. Januário C. Xxxxx. Coimbra: Almedina, 2009, p. 169.
3. XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de los contratos: parte general. 2. Ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010, p. 472.
tentando impor a interpretação que lhe é mais favorável. Em razão desse comportamento natural, é usual surgirem conflitos sobre a interpretação dos contratos.
É comum que as expressões usadas pelas partes sejam entendidas de formas diferentes pelos contratantes. Assim, se o contrato estabelecia a promessa de compra e venda de ações de determinada companhia, pode ocorrer que o vendedor entenda que as ações em questão são as preferen- ciais e o comprador entenda que são as ordinárias. Nesta situação, quando as partes não entram em acordo sobre a real extensão do conteúdo do contrato, é necessário o auxílio de um terceiro imparcial (juiz, árbitro...) para a interpretação do contrato4.
Na atividade desse terceiro, é que se encontram as grandes preocu- pações sobre a atividade interpretativa. Ora, esse terceiro não celebrou o contrato, mas terá que definir a real extensão dos direitos e obrigações das partes. Para tanto, surgiram alguns critérios que devem ser usados pelo intérprete dos contratos. Registre-se, porém, que não há hierarquia entre esses critérios5, havendo uma boa margem de liberdade para o intérprete. Esses critérios “atuam de forma coordenada com a base principiológica adotada pelo Código Civil”6.
2 REAL INTENÇÃO DAS PARTES
Um dos critérios que pode ser usado para interpretar um contrato é a busca da real intenção das partes contratantes, chamada de interpretação subjetiva por alguns autores7. Aspectos formais e mesmo o sentido literal das palavras devem ser deixados de lado na busca da real intenção das partes, em respeito à própria autonomia privada das partes8. Nessa busca da real intenção das partes, é óbvio que o intérprete não vai entrar na cabeça dos contratantes para saber sua real intenção, mas tentará buscar o produto efetivo das declarações de vontade, o que pode ser auferido pelo próprio confronto com as demais cláusulas do contrato. A vontade que interessa aqui é a vontade objetiva do contrato, “a intenção comum que se materializou
4. XXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Dottrina generale del contratto. 3. Ed. Milano: Giuffrè, 1948, p. 342.
5. XXXX, Xxxxx. Corso di diritto contrattuale. Pádova: CEDAM, 2006, p. 88.
6. XXXXXXX, Xxxxxxx. Interpretação do contrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 34-35.
7. XXXXX, Xxxx. O contrato. Tradução de Xxx Xxxxxxx e M. Januário C. Xxxxx. Coimbra: Almedina, 2009,
p. 172; XXXX, Xxxxx. Corso di diritto contrattuale. Pádova: CEDAM, 2006, p. 89.
8. XXXXX, Xxxx. O contrato. Tradução de Xxx Xxxxxxx e M. Januário C. Xxxxx. Coimbra: Almedina, 2009, p. 170.
na declaração”9. O comportamento das partes anterior e posterior à avença pode representar a melhor explicação para sua real intenção10.
A propósito dessa busca da real intenção, o artigo 112 do CC diz que “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstan- ciada do que ao sentido literal da linguagem”. A intenção realmente é muito mais importante do que a forma e do que o sentido literal das palavras e, por isso, ela deve ser privilegiada.
Assim, uma vez que não existe aval em contratos, se uma pessoa assina um contrato como avalista, deve-se buscar a real intenção dela, a intepretação desse aval como a assunção de uma responsabilidade por aquele contrato. Nesse sentido, o STJ já afirmou que “a despeito de figurar no contrato como “avalista-interveniente”, o sócio da sociedade devedora pode ser considerado coobrigado se assim evidenciar o teor da avença, conclusão que privilegia, a um só tempo, a boa-fé objetiva e a intenção externada pelas partes por ocasião da celebração”11.
3 AUTONOMIA PRIVADA E CRITÉRIOS DE INTERPRETAÇÃO
Dentro da autonomia privada, que lhes é assegurada, as partes de um contrato podem trazer no próprio contrato critérios objetivos de interpre- tação contratual. Ora, se as próprias partes conseguem, em acordo, definir esses critérios, nada mais lógico do que adotá-los para aplicar na busca do sentido das declarações. Nesse sentido, cláusulas que trazem definições de certos conceitos, não deixam de ser cláusulas que trazem critérios objetivos de interpretação.
Por exemplo, se as partes definem no contrato que o conceito de lu- cro líquido a ser usado é a receita bruta, deduzidos os tributos incidentes. Esse é o conceito que deve ser usado, ainda que legalmente existam outros descontos a serem feitos. Assim, havendo alguma cláusula que defina que um dos contratantes terá direito a receber 15% do lucro líquido, o conceito a ser usado é o conceito definido no próprio contrato.
A possibilidade de o próprio contrato definir os parâmetros objetivos de interpretação foi trazida pelo artigo 113, § 2º do CC, o qual estabele-
9. XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito dos contratos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 440.
10. XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de los contratos: parte general. 2. Ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010, p. 483.
11. STJ - REsp 1013976/SP, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XXXXXXX, QUARTA TURMA, julgado em 17/05/2012, DJe 29/05/2012.
ce que as “partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei”. Veja-se, então, que o CC permite inclusive a adoção de critérios diferentes daqueles estabelecidos em lei, ou seja, podem ser adotados conceitos próprios das partes, que considerem a sua realidade e não a realidade formal da lei. Trata-se de solução muito salutar, pois dá às partes a possibilidade de definir previamente sua exata compreensão daquilo que foi combinado.
A mesma possibilidade foi estabelecida no artigo 421-A, I do CC, que diz que “as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução”. Repete-se a ideia de que as partes têm liberdade para definir parâmetros objetivos de interpretação. Contudo, esse dispositivo, no seu caput, se refere aos contratos civis e empresariais, dizendo que esses contratos se presumem paritários e assimétricos. Essa referência é fundamental para entender a aplicabilidade dessa previsão apenas aos contratos simétricos12.
Em contratos de adesão, uma das partes impõe as cláusulas contratuais para a outra, que não tem margem para discuti-las. Dentro dessa situação, a interpretação poderia ser imposta fora da realidade efetivamente espe- rada pela parte aderente. A fim de evitar essas situações, nos parece bem razoável limitar a aplicabilidade da autonomia das partes, nos critérios de interpretação, aos contratos paritários e simétricos.
Outrossim, não há dúvida de que havendo regras cogentes de inter- pretação, essas regras não podem ser afastadas pela vontade das partes. A autonomia privada nunca foi absoluta e sempre encontrou limite nas regras cogentes que não podem ser derrogadas pelas partes. Nesse sentido, entende-se que não seria possível às partes afastar o artigo 112 do CC, que prevê a busca da real intenção das partes13.
4 INTERPRETAÇÃO CONTRA QUEM REDIGIU (CONTRA PROFE-
RENTEM)
Não havendo critério definido pelas partes, passa-se aos demais critérios estabelecidos pelo artigo 113, § 1º do Código Civil. Dentre os critérios legais
12. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 361; XXXXXXXX, Xxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXX- XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 385.
13. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxx. A interpretação dos negócios jurídicos na lei da liberdade econômica. In: XXXXX XXXXX, Xxxxxxxxx X. Carneiro da; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxx (coord). Lei da liberdade econômica anotada. São Paulo: Quartier Latin, 2020, v. 2, p. 226.
estabelecidos, há a previsão de que se deve buscar o sentido do contrato que “for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável” (CC - art. 113, § 1º, IV). Trata-se da incorporação da chamada regra da interpretação “contra proferentem” ou “contra stipulatorem”.
Ora, quem redigiu a cláusula deve ter o cuidado de redigi-la de forma que seja claramente definida. Quem não redigiu a cláusula de forma clara e completa deve arcar com as consequências disso14. Caso a cláusula seja redigida de modo não claro, de modo que deixe margem a dúvidas, quem a redigiu deve arcar com eventual interpretação que não lhe seja favorável. É um ônus que deve ser suportado por quem teve a chance de redigir a cláusula. O cerne desse critério é proteger as expectativas razoáveis de quem não redigiu15. Vale dizer, privilegia-se “um ambiente de confiança fundado num padrão de honestidade, seriedade e transparência nas tratativas”16.
Tal critério, que já existia nos contratos de adesão, passou a ser gene- ralizado para todos os contratos, com sua colocação no artigo 113, § 1º do CC. A ideia é incentivar em todos os contratos a redação clara e precisa17, que permita a compreensão nítida das partes e diminua os conflitos sobre sua interpretação.
Assim, imagine-se que um contrato de seguro redigido pela segura- dora estabeleça que “o seguro não cobre danos causados por cargas em excesso”. Como foi a seguradora que redigiu essa cláusula, ela não poderá negar a cobertura se o dano foi causado por pessoas em excesso. Adota-se uma interpretação restritiva, que é desfavorável à seguradora, porque foi ela quem redigiu a cláusula.
Outro exemplo, envolve um contrato de manutenção de veículos, no qual a oficina foi responsável pela redação do contrato e estabeleceu que “a prestadora de serviços não se responsabiliza por incêndios no carro”. Dentro da lógica da interpretação contra quem redigiu a cláusula, interpretou-se o contrato para admitir a responsabilidade da oficina se o incêndio se deu por negligência.
14. XXXXXXXX, Xxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 381.
15. XXXXXXXX, Xxxxxxxx X. Contra Profere tem: The Allure of Ambiguous Boilerplate, 104 MICH. L. REV. 1105 (2006). Available at: xxxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xxxxx.xxx/xxx/xxx000/xxx0/0.
16. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 350.
17. XXXXXXXX, Xxxxxxxx X. Contra Proferentem: The Allure of Ambiguous Boilerplate, 104 MICH. L. REV. 1105 (2006). Available at: xxxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xxxxx.xxx/xxx/xxx000/xxx0/0.
Além desses casos, imagine-se um contrato de franquia redigido pelo franqueador que estabelece uma penalidade pecuniária para o descumpri- mento da cláusula de exclusividade. Como foi o franqueador que redigiu essa cláusula, essa penalidade só será aplicável a esse descumprimento es- pecífico. Outros descumprimentos, ainda que graves, não serão suficientes para ensejar a aplicação dessa penalidade específica18.
Outro exemplo é uma cláusula de não concorrência de um contrato de franquia, a cláusula foi interpretada contra o franqueador que redigiu a cláusula, limitando a não concorrência às atividades expressamente in- dicadas19.
Numa cláusula que dizia respeito a utilização de vagas de garagem num condomínio, o contrato foi interpretado contra o condomínio que o redigiu, assegurando as vagas de garagem aos proprietários das salas e não apenas aos proprietários das vagas20.
O grande problema desse critério é identificar quem redigiu as cláu- sulas. Até, por isso, o dispositivo fala que esse critério só será aplicável, se quem redigiu a cláusula for identificável. Assim, sendo possível identificar quem redigiu a cláusula, pode-se aplicar esse critério de interpretação no sentido mais favorável a quem não redigiu.
5 CONFIRMAÇÃO POSTERIOR
Além dos critérios já mencionados, o artigo 113, § 1º, I do CC, também indica como critério interpretativo o “comportamento das partes posterior à celebração do negócio”. Tal critério já existia no Código Comercial de 1850 que dizia que “o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato” (art. 131). A retomada expressa desse critério mostra sua importância na busca do real sentido do que foi pactuado pelas partes no contrato.
18. TJSP; Apelação Cível 1094279-25.2018.8.26.0100; Relator (a): Xxxxxxx Xxxxxx; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRA- GEM; Data do Julgamento: 19/05/2020; Data de Registro: 19/05/2020.
19. TJSP; Apelação Cível 1066713-93.2017.8.26.0114; Relator (a): Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/08/2022; Data de Registro: 11/08/2022.
20. TJDFT - Acórdão 1397860, 07060990920198070001, Relator: XXXXXX XXXXX, 4ª Turma Cível, data de julgamento: 3/2/2022, publicado no DJE: 16/2/2022. Pág.: Sem Página Cadastrada
Como já mencionado, a interpretação busca alcançar, na medida do possível, a real intenção das partes na celebração de determinado negócio. Ora, nessa busca, é bem razoável considerar a forma como as partes se comportaram após a celebração do contrato. Esse comportamento posterior reflete o que as partes efetivamente entenderam que foi pactuado e, por isso, é um critério de suma importância na busca da interpretação de um contrato. É natural que as partes se comportem, após a celebração, de acordo com sua compreensão do que foi pactuado e, por isso, esse comportamento posterior é um critério muito útil de busca do sentido de um contrato.
Imagine-se um contrato de corretagem para negócios de vendas de elevadores. Tal contrato não possuía expressamente uma delimitação da atuação do corretor, mas vinha acompanhado com uma lista de clientes. Duas interpretações são possíveis: a primeira no sentido de que o corre- tor só pode agir junto aos clientes listados e a segunda no sentido de que não há essa restrição da atuação do corretor. No caso concreto, o com- portamento posterior das partes foi no sentido de não haver a restrição da atuação, pois foram firmados, sem oposição, contratos captados pelo corretor fora da lista de clientes. O comportamento de ambas as partes foi fundamental para definir que não haveria uma atuação limitada à lista de clientes do contrato21.
Registre-se, porém, que esse comportamento tem que ser aceito pela outra parte, como uma prática normal abrangida pelo negócio. Em ou- tras palavras, se a outra parte do negócio rejeita aquele comportamento, impugnando-o, é certo que ele não pode ser utilizado para a interpretação do negócio. Assim, o comportamento posterior precisa ser confirmado pela aceitação de ambas as partes22.
6 VONTADE PRESUMÍVEL
Outro critério estabelecido para a interpretação dos negócios jurídicos é aquele que leva em conta a vontade presumível das partes, que é aquela que “corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida”. A razoável negociação das partes tenta considerar
21. TJSP; Agravo de Instrumento 2151255-10.2019.8.26.0000; Relator (a): Xxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI - Pinheiros - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/03/2021; Data de Registro: 09/03/2021.
22. XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. A interpretação dos negócios jurídicos após a lei das liberdades econô- micas. In: In: XXXXX XXXX, Xxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx (organizadores). Declaração de Direitos de Liberdade Econômica - Comentários à Lei 13.874/2019. Xxxxxxxx: JusPodivm, 2020, p. 427.
critérios objetivos dentro de um padrão de comportamento esperado dos envolvidos na celebração do negócio, ou seja, deve-se interpretar o contrato para alcançar qual seria o padrão de compreensão das partes, em relação ao que foi pactuado, considerando a racionalidade econômica do contrato, o contexto da época e a coerência com as demais cláusulas.
Como todo contrato envolve uma operação econômica, é bem razoável entender que as partes compreenderam o que foi pactuado dentro de uma lógica econômica. Assim, na interpretação, deve prevalecer como sentido do contrato “aquilo que objetivamente se possa identificar no conjunto do negócio jurídico, especialmente, levando-se em conta a economia do contrato voltada ao fim concreto do negócio jurídico”23.
Repita-se, as partes, ao celebrar um contrato, possuem um objetivo econômico (ex.: adquirir um imóvel, receber uma remuneração...) e esse objetivo deve ser o norte da interpretação da vontade declarada pelas par- tes, isto é, a interpretação deve ser aquela mais adequada a alcançar o fim econômico desejado pelas partes. Deve-se entender o conteúdo do negócio como apto a alcançar a função econômica do contrato24. Assim, deve-se evitar interpretações que reduzam ou ampliem, em demasia, o ganho de qualquer das partes.
Dentro desse critério, o TJSP reconheceu que uma declaração de von- tade no sentido da redução do valor dos honorários advocatícios se dirigia a todas as partes do processo e não a apenas uma delas25. Entendeu-se que, dentro de uma negociação que envolveu todas as partes, as declarações de vontade, sem ressalvas, eram dirigidas a todas elas e, por isso, a redução se estendeu para ambas as partes. Como o trabalho foi um só, é razoável entender que os honorários devem se manter iguais, como haviam sido combinados originalmente. De modo similar, o TJDFT reconheceu que uma divisão igualitária dos lucros era a decorrente da racionalidade eco- nômica numa parceria imobiliária26, em que uma das partes transfere o imóvel e a outra trabalha na criação da infraestrutura e no parcelamento.
23. XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 356.
24. XXXXXXXX, Xxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 383.
25. TJSP; Apelação Cível 1031962-54.2019.8.26.0100; Relator (a): Xxxxxx Xxxxxxxxxx; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 17ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/03/2020; Data de Registro: 25/03/2020.
26. TJDFT - Acórdão 1221203, 00002745820158070004, Relator: XXXXXX XXXXX, 4ª Turma Cível, data de julgamento: 4/12/2019, publicado no DJE: 17/12/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.
Além da racionalidade econômica, é importante analisar o contrato como um todo, isto é, se a interpretação adotada tem coerência com as demais cláusulas. Apesar de envolver cláusulas distintas, o contrato deve ser interpretado como um todo27, evitando-se contradições que impeçam a manutenção da unidade da contratação. As várias cláusulas que fazem parte do mesmo contrato devem ser interpretadas de forma coerente, pois espera-se, dentro de um juízo de razoabilidade, que as partes mantenham a coerência, na sua compreensão do que foi pactuado.
Assim, num contrato de empreitada, se uma cláusula fala na execução de uma obra, parecendo tratar-se de empreitada por preço global, mas as demais cláusulas tratam de medição de horas trabalhadas, mostrando tratar-se de empreitada por preço unitário, deve prevalecer a interpretação que considere o contrato como um todo, isto é, de empreitada por preço unitário28. Não seria razoável, ter obrigações de medição de horas traba- lhadas, se essas horas não tivessem nenhuma influência sobre o pagamento do contrato.
Ademais, deve-se considerar, na interpretação dos negócios jurídicos, o contexto da época em que o negócio foi celebrado. Épocas distintas trazem compreensões distintas do que é razoável para os envolvidos em determinado contrato. Assim, contratações que foram celebradas no pe- ríodo da pandemia do coronavírus, devem ser interpretadas considerando a realidade do momento, com fechamento de estabelecimentos, restrições de atividades e distanciamento social. Se o contrato foi celebrado durante o período que impedia reuniões presenciais, é bem razoável interpretar uma cláusula que prevê reuniões, como reuniões a serem realizadas por videoconferência. Trata-se de uma decorrência da influência do período sobre as expectativas dos envolvidos.
7 BOA-FÉ
Outro instrumento fundamental para a interpretação dos contratos é a boa-fé, tanto que o artigo 113 do CC prevê que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé. Trata-se aqui de uma das
27. XXXXXXXX, Xxxxx. In: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXX XX, Xxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Comentários à lei da liberdade econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 381.
28. TJSP; Apelação Cível 1122766-73.2016.8.26.0100; Relator (a): Xxxxxx Xxxxxx; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 18ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/07/2021; Data de Registro: 30/07/2021.
aplicações da boa-fé objetiva, reconhecendo-se a ela o papel de definidora da real extensão dos direitos e obrigações das partes contratantes. Nesta aplicação, o intérprete deverá levar em conta a correção, a lealdade e a eticidade exigidas das condutas do ser humano médio, para definir como seria entendida a expressão usada pelas partes29.
A boa-fé objetiva atua como“recurso para a interpretação flexibilizadora da vontade das partes”30. Assim, ao se buscar o real sentido da vontade das partes, a boa-fé deve ser o vetor da interpretação, é ela que deverá pautar essa busca da real vontade das partes. Nessa interpretação, deve-se conside- rar o contrato como um todo, buscando o que melhor atinge os objetivos gerais da avença. Não se pode, na interpretação do contrato, alcançar uma finalidade oposta àquela que era esperada pelas partes, à luz do seu escopo jurídico-econômico. A segurança e a confiança tuteladas pela aplicação da boa-fé permitem que os agentes econômicos tenham a adequada previsi- bilidade dos riscos para a atuação no mercado31.
O uso da boa-fé objetiva como instrumento interpretativo visa a preservar a lealdade da conduta das partes, que agiram corretamente na celebração do contrato. Além disso, quer-se tutelar o padrão ético exigido para toda contratação. Por fim, protege-se a confiança criada na outra parte do contrato32.
Imagine-se um determinado contrato de honorários advocatícios que previa a remuneração apenas em caso de êxito. Ao longo do contrato, o advogado recebe antecipadamente R$ 9.000,00. Ora, se não houve o êxito, o valor recebido antecipadamente deve ser devolvido33, pois, dentro do padrão ético esperado, nada será devido ao advogado.
De modo similar, se, em determinado contrato, há uma cláusula pre- vendo a cessão de todos os direitos e obrigações decorrentes da prática da atividade empresarial. Tal cláusula deve ser interpretada no sentido de que o objeto transferido deve incluir todos os bens necessários para o exercí- cio da atividade empresarial. O padrão esperado nesse contrato é que o
29. XXXX, Xxxxx. Corso di diritto contrattuale. Pádova: CEDAM, 2006, p. 91.
30. XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 429.
31. XXXXXXXX, Xxxxx X. Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 240.
32. XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de los contratos: parte general. 2. Ed. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2010, p. 487.
33. TJSP; Apelação Cível 1044783-90.2019.8.26.0100; Relator (a): Xxx Xxxxxxx; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional V - São Miguel Paulista - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/11/2020; Data de Registro: 04/11/2020.
adquirente possa exercer a atividade empresarial, com o cumprimento do contrato. Por isso, deve-se entender que o contrato abrange a transferência do mobiliário necessário para o exercício dessa atividade34.
8 USOS E COSTUMES
Outro importante instrumento de interpretação dos contratos são os usos e costumes do lugar da celebração do contrato. O artigo 113 do CC prevê expressamente que os usos deverão ser empregados como instrumento de interpretação dos negócios. Ora, as partes naturalmente levam em conta o que é costumeiro para elas ao elaborar um contrato. Por isso, é natural que esses usos sirvam para interpretar a vontade declarada pelas partes.
Embora o referido dispositivo cite apenas os usos, é claro que os cos- tumes do local também exercerão essa função interpretava. Os costumes são os usos gerais constantes e notórios, observados na convicção de corres- ponderem a uma necessidade jurídica.35 Já os usos são as práticas reiteradas e estabilizadas36, mas não geram nenhuma convicção. Ambos servirão como instrumentos de interpretação do conteúdo do negócio.
Assim, por costume, entende-se que o vendedor de café se obriga por 30 dias pela conservação, armazenamento e seguro do café vendido.
O Código Civil remete determinadas hipóteses aos costumes, demons- trando a condição destes de instrumentos de interpretação dos contratos. O artigo 569, II, do CC, reconhece que o locatário possa pagar os alugueres, segundo o costume do lugar, se não houver ajuste. No artigo 615 do CC, prevê-se a obrigação do recebimento de obra contratada por empreitada executada segundo os costumes do lugar, ou segundo o ajuste. No artigo 596, permite-se a fixação da remuneração da prestação de serviços, segundo o costume do lugar. Em relação ao mesmo contrato, o artigo 597 menciona que o pagamento da prestação de serviços poderá ser adiantado ou em parcelas, conforme o costume. O artigo 599 também fala sobre a resolu- ção do contrato de prestação de serviços segundo o costume do lugar, não havendo estipulação de prazo.
34. TJSP; Apelação Cível 1002275-55.2018.8.26.0136; Relator (a): Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Xxxxxxxxx Xxxxx - 1ª Vara; Data do Julgamento: 25/09/2020; Data de Registro: 25/09/2020.
35. XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao direito civil. Atualização e notas de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 42.
36. XXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de direito comercial. Coimbra: Almedina, 1999, v. 1, p. 27.
Apesar da importância dos usos e costumes, é certo que a vontade declarada das partes deve prevalecer. Assim, se o costume na localidade é pagar os alugueres no dia 5 de cada mês, mas o contrato expressamente estabeleceu o dia 1º, deve-se obedecer ao que está no contrato. O costume não pode prevalecer contra a lei, nem contra a vontade expressa das partes.
No Brasil, o Decreto 1.800/96 prevê que as juntas comerciais devem fazer os assentamentos dos usos e práticas mercantis. Esses assentamentos podem ser promovidos de ofício, a requerimento da Procuradoria da Junta Comercial ou, ainda, a requerimento das entidades de classe interessadas. Feito o assentamento, a prova dos costumes é mais simples, facilitando sua aplicação pelos juízes aos casos concretos.
9 OUTRAS REGRAS DE INTERPRETAÇÃO
Além do já exposto, a atividade interpretativa pode e deve lançar mão de outras regras de interpretação.
Um instrumento muito importante para a atividade interpretativa é o princípio da conservação do contrato, pelo qual, havendo dúvidas, deve-
-se buscar o sentido que dê alguma validade e eficácia ao contrato37. Se o contrato foi regularmente formado, deve-se buscar, na medida do possível, conservá-lo, manter sua eficácia. Entre duas interpretações, uma que in- valida a avença e outra que a conserva, deve-se preferir a última, pois ela é muito mais interessante para o tráfico jurídico. Tal instituto é aplicável a qualquer contrato, mas especificamente nos contratos de consumo há uma previsão expressa, no artigo 51, § 2º do CDC que diz “A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.
Outra regra de interpretação diz respeito à interpretação restritiva dos contratos benéficos (CC – art. 114). Neste tipo de contrato, não se deve impor mais sacrifícios à parte do que ela realmente quis assumir. Se a parte pretendesse ter sacrifícios maiores, ela os colocaria expressamente no teor do contrato. Assim, “A cláusula que prevê prorrogação automática no
37. XXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Dottrina generale del contratto. 3. Ed. Milano: Giuffrè, 1948, p. 361; XXXX, Xxxxx. Corso di diritto contrattuale. Pádova: CEDAM, 2006, p. 90; XXXXX, Xxxx. O contrato. Tradução de Xxx Xxxxxxx e M. Januário C. Xxxxx. Coimbra: Almedina, 2009, p. 173.
15
Capítulo
LOCAÇÃO, BUILT TO SUIT E
SHOPPING CENTER
Para o exercício da atividade empresarial, o empresário precisa de uma série de bens que nem sempre poderão ser adquiridos. Assim sendo, a aquisição apenas do direito de uso e gozo desses bens surge como uma alternativa extremamente interessante para viabilizar a atividade empresarial.
1 DA LOCAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil disciplina o contrato de locação normalmente nos artigos 565 a 578. Trata-se de uma disciplina geral que abrange, usualmente, a locação de bens móveis e locação de certos bens imóveis, que não possu- am normas específicas, como vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos; de espaços destinados à publicidade; e em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar.
Apesar da amplitude da sua aplicação, nem todas as locações ficam sujeitas ao Código Civil. A locação de imóveis urbanos para fins residenciais ou não residenciais é disciplinada pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), cuja disciplina será estudada separadamente. Já a locação de imóveis rurais é disciplinada pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), aplicando-se subsi- diariamente apenas as regras do Código Civil. O arrendamento mercantil (leasing), também está sujeito à disciplina de leis especiais, em especial à
Lei nº 6.099/74 e à Lei nº 11.649/2008. Na locação de imóveis públicos da União federal, deve-se atentar também ao disposto Decreto-lei 9.760/1946 e para as demais pessoas jurídicas de direito público, as leis das respectivas esferas.
Neste primeiro momento, será estudada a locação nos termos do Código Civil, isto é, a locação de coisas em geral.
1.1 Conceito e classificação
O Código Civil conceitua a locação como o contrato no qual “uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição” (art. 565). De forma mais detalhada, Xxxxxx Xxxxxxxxxxxx afirma que “a locação de coisas é negócio jurídico (contrato) pelo qual uma parte, denominado locador, se obriga a ceder o uso e gozo de coisa não fungível a outra, denominada locatário, temporariamente, mediante retribuição ou contraprestação (preço denominado renda ou aluguel) ”1.Tal conceito é direto e representa a essência do contrato que é a permissão do uso e gozo de uma coisa por outra pessoa, mediante contraprestação.
Não há que se confundir a locação com o contrato de compra e venda, porque a locação não transfere a propriedade da coisa, mas apenas seu uso e gozo. O locatário, mesmo após a entrega da coisa, não possui um direito real sobre ela, mas um direito pessoal decorrente do contrato. Do mesmo modo, em relação ao usufruto, uma vez que o usufrutuário terá direitos reais sobre a coisa, decorrentes do desmembramento da propriedade e o locatário, como já ressaltado, tem apenas direitos pessoais2.
Também não há confusão com o comodato, pois na locação é essencial o pagamento de uma retribuição ao locador e o comodato é um contrato essencialmente gratuito. De modo similar, a locação não se confunde com o depósito, que pode ser gratuito e é um contrato real, que só se aperfeiçoa com entrega da coisa.
1. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
2. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Contrats civils et commerciaux. 8. Ed. Paris: Dalloz, 2007,
p. 314-315; XXXXXXXX, Xxxxxxx. Dos contratos nominados no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 307.
Trata-se de contrato consensual, porque é aperfeiçoado pelo simples encontro de vontades entre as partes3, sendo a entrega da coisa locada parte da execução do contrato e não do seu aperfeiçoamento. Cuida-se ainda de contrato não solene4, uma vez que sua celebração não depende de maiores formalidades, exigindo-se a forma escrita apenas para determinados bene- fícios, mas não para a sua essência.
É um contrato bilateral, uma vez que gera obrigações para os dois lados essencialmente, ficando o locador incumbido de entregar a coisa e o loca- tário encarregado de realizar o pagamento do preço. Será sempre oneroso, pois gera vantagens para os dois lados do negócio. Cuida-se normalmente de contrato comutativo “porque nenhuma das prestações de qualquer das partes está vinculada a fatores de incerteza”5, mas que eventualmente pode se tornar aleatória a depender do combinado entre as partes.
É legítimo classificá-lo ainda como um contrato impessoal, pois não são considerados, normalmente, fatores pessoais de qualquer uma das par- tes6. É um contrato de trato sucessivo, cuja execução se protrai no tempo.
1.2 Elementos
Pelos contornos apresentados, verifica-se que o contrato de locação tem como elementos essenciais o consentimento, a coisa e o preço.
1.2.1 Consentimento
Trata-se de manifestação livre e válida de vontade das partes no que tange aos elementos essenciais do contrato e suas condições. Em outras palavras, o consentimento é a manifestação de vontade do locador e do locatário. Como regra geral, este consentimento é suficiente para a formação do contrato que, como visto, é um contrato consensual.
Em relação ao locador, exige-se além da capacidade civil que ele tenha poder de administração sobre a coisa, não se exigindo necessariamente a propriedade. Assim, o locador pode ser proprietário, usufrutuário, titular
3. XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Trattato di diritto civile. 2. Ed. Pádova: CEDAM, 2010, v. 2, p. 629.
4. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 286.
5. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
6. XXXX XX, Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx. Instituições de direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, v. III, e-book.
de direito real ou direito pessoal que permita a prática de atos de admi- nistração em relação à coisa. Há, inclusive, a possibilidade de locar coisa alheia, desde que o sujeito possa praticar atos de administração em relação à coisa7. Proíbe-se, no entanto, que um condômino faça a locação da coisa sem o consentimento dos demais (CC – art. 1.314, p. único).
Em relação ao locatário, exige-se a capacidade plena e que se trate de pessoa estranha à coisa locada8, ou seja, a mesma pessoa não pode ser locadora e locatária. Lembre-se, porém, de que não há problemas em se firmar uma locação entre uma sociedade pessoa jurídica e seu sócio, mesmo se controlador, pois são pessoas com existência distinta. Do mesmo modo, não há problemas numa locação entre sociedades integrantes do mesmo grupo societário.
1.2.2 Coisa
O segundo elemento essencial é a coisa, o objeto do contrato, o bem a ser locado. A princípio, a locação pode abranger quaisquer bens móveis ou imóveis, desde que não fungíveis. Além disso, pode abranger bens corpóreos ou incorpóreos, como as marcas e patentes, sendo chamada, nesses casos, de licença de uso. De forma geral, “os bens incorpóreos e os direitos, desde que seja possível a cessão do exercício do uso e gozo, podem ser locados”9.
Os bens fungíveis, em regra, estão fora da locação, podendo ser objeto de mútuo, já que a devolução se dará em bens da mesma espécie, quantidade e qualidade. Admite-se, excepcionalmente, a locação de bens fungíveis para ornamentação, com uma cesta de frutas10. Também estão fora da locação os bens consumíveis, que são aqueles cujo uso importa destruição da sua essência, como a energia elétrica, uma vez que não podem ser restituídos. Mais uma vez, se tais bens forem locados para uma finalidade específica, como a exibição, eventualmente seria possível falar em locação.
7. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Contrats civils et commerciaux. 8. Ed. Paris: Dalloz, 2007, p. 374; XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 246.
8. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 290.
9. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
10. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 287; XXXXXXXX, Xxxxxxx. Dos contratos nominados no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 311; XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 244.
De outro lado, podem ser objeto de locação bens que, a princípio, não podem ser alienados, os bens fora do comércio11. Assim, podem ser locados “os bens públicos, que estejam na posse de pessoa privada ou os bens gravados com cláusula de inalienabilidade”12, uma vez que, embora tenham restrições na disponibilidade, seu uso e gozo estão mantidos, po- dendo ser locados.
Ressalte-se que a locação de imóveis urbanos para fins residenciais ou não residenciais é disciplinada pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) e a locação de imóveis rurais é disciplinada pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), aplicando-se subsidiariamente apenas as regras do Código Civil.
1.2.3 Preço
Por derradeiro, insere-se como elemento essencial da locação o preço, isto é, o pagamento pelo uso e gozo da coisa locada, a remuneração do lo- cador. “O preço é devido enquanto a coisa estiver à disposição do locatário, ainda que o uso e gozo não sejam efetivos”13.
A fixação do preço é livre para as partes, sendo importante que o preço seja certo e determinado, podendo ser atribuída a um terceiro a fixação desse valor, mas nunca deixada ao livre arbítrio de uma das partes exclusivamente. Seu pagamento pode ser feito em dinheiro, em frutos ou produtos da coisa locada. Para os contratos celebrados no Brasil, em regra, a estipulação deverá ser feita em moeda nacional, tendo em vista a proibição genérica de obrigações assumidas em moeda estrangeira no Brasil (Lei nº 10.192/2001 – art. 1º; CC – art. 318).
O preço deve ser sério e real14, sob pena de considerar um negócio gratuito, que não seria enquadrado como locação, mas como comodato.
1.3 Obrigações do locador
O artigo 566 do Código Civil estabelece três obrigações principais para o locador: entregar a coisa; manter a coisa em estado de uso; e garantir
11. XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 244.
12. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
13. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
14. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Contrats civils et commerciaux. 8. Ed. Paris: Dalloz, 2007, p. 380.
o uso pacífico da coisa. Além dessas, podemos destacar a obrigação de indenizar as benfeitorias necessárias e úteis realizadas sobre a coisa15, estas últimas, se realizadas com sua autorização (CC- art. 578), salvo disposição em sentido contrário. Ademais, existem as obrigações gerais para todos os contratos, como dever de informação. Pela autonomia privada, o contrato poderá estabelecer outras obrigações, livremente pactuadas entre as partes.
a) Entrega da coisa
A primeira obrigação do locador é a entrega da coisa locada para que
o locatário possa fazer o uso e gozo dela. Naturalmente, a coisa deve ser entregue em condições de uso, isto é, deve poder ser utilizada normalmente pelo locatário. Ao entregar a coisa, o locador deve entregar também suas pertenças, isto é, “ os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro” (CC – art. 93).
b) Manutenção da coisa
Além de entregar a coisa locada em estado de uso, o locador assume a obrigação de manter a coisa nesse estado, durante toda a vigência do con- trato, salvo cláusula em contrário. Em outras palavras, em regra, qualquer defeito da coisa deverá ser corrigido pelo próprio locador, como falhas de funcionamento de equipamentos locados, infiltrações de imóveis alugados e outros. “Portanto, se a coisa locada se deteriora, o locador estará obrigado a fazer os necessários reparos, para mantê-la em plenas condições de uso para o fim a que se destina”16. Tal disposição, porém, não é cogente, isto é, se as partes quiserem, elas podem combinar de modo diverso, impondo ao locatário o ônus de determinados consertos.
Neste particular, está a garantia contratual contra os vícios ou defeitos da coisa locada, mesmo os anteriores ao contrato (CC – art. 568). É aqui que o locador responde pelos eventuais vícios redibitórios da coisa. Se o locador conhecia os vícios da coisa, restituirá o que recebeu pela locação com perdas e danos. Se não os conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato (CC – art. 443).
15. XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 261.
16. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
Se houver deterioração da coisa, sem culpa do locatário, este poderá optar entre a redução do valor do aluguel, se a coisa ainda pode ser usada, ou a resolução do contrato, em razão do inadimplemento do locador (CC – art. 567). Mesmo que a deterioração decorra de caso fortuito ou força maior, o locatário terá essas opções. A escolha dele será pautada pela situação em que se encontra a coisa locada e pelo seu interesse pessoal. No entanto, se o locatário agiu com culpa, sendo responsável pela deterioração da coisa, ele deverá arcar com os ônus da correção dos defeitos ou, se o contrato já foi extinto, deverá indenizar o locador17.
c) Garantia do uso pacífico da coisa
Além da entrega e manutenção da coisa, o locador se obriga a garantir que o locatário use a coisa de modo pacífico, sem interferências. A locação assegura ao locatário o uso e gozo útil da coisa. Se essas faculdades são perturbadas ou impedidas, o contrato não realiza o seu fim. Por isso, o artigo 566, II do CC, impõe essa obrigação ao locador de garantir o uso pacífico da coisa. Nesta condição de garantidor do uso pacífico da coisa, o locador “responderá por todos os riscos da perda (evicção) e deverá de- fender a posse do locatário, embora este também tenha legitimidade para, em seu nome, fazê-lo”18.
Ao responder pela evicção, o locador será obrigado a indenizar o locatário dos prejuízos sofridos em razão de decisão judicial que implique a perda total ou parcial do bem. Mesmo não sendo proprietário, o loca- tário tem o direito assegurado ao uso e gozo da coisa e, se esse direito for tolhido em razão de uma decisão judicial, o locador deverá indenizar o locatário. Naturalmente a indenização não seguirá os mesmos valores de outros contratos, devendo considerar os prejuízos específicos da locação.
Além disso, o locador deve defender a posse do locatário em face de pretensões de terceiros, devendo tomar as medidas necessárias para essa defesa, isto é, ele pode ajuizar ações possessórias para defender a posse do locatário. Tal proteção abrange pretensões de terceiros fundada em alguma pretensão de direito sobre a coisa locada, não abrangendo pre- tensões relacionadas a relações de vizinhança ou outras que não digam
17. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
18. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
respeito a direito sobre a coisa locada19. Do mesmo modo, a proteção do locador não abrange qualquer procedimento arbitrário ou violento do terceiro, de modo que o locador não responde por roubos ou furtos praticados por terceiros20.
O próprio locatário pode, em nome próprio, defender sua posse contra pretensões de terceiros, sem prejuízo da atuação do locador. A legitimação do locatário em face de pretensões de terceiros, naturalmente também, lhe dá poder de reagir à turbação ou esbulho da posse ocorrida em razão de conduta do próprio locador, com mais razão, tendo em vista a obrigação do locador de garantia do uso da coisa. Assim, o locatário defenderá sua posse legítima contra terceiros ou contra o locador, podendo inclusive recorrer ao desforço imediato21.
d) Indenização das benfeitorias
Eventualmente, durante o período da locação, o locatário poderá realizar benfeitoras na coisa locada. As benfeitorias são obras ou despesas que se fazem num bem móvel ou imóvel, a outrem pertencente, a fim de conservá-lo, melhorá-lo ou embelezá-lo. Existem benfeitorias voluptuárias, que são as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual da coisa, ainda que a tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. Existem as úteis, as que aumentam ou facilitam o uso da coisa. Por fim, existem as necessárias que tem por fim conservar a coisa ou evitar que ela se deteriore.
Se o locatário realizar benfeitorias necessárias, essenciais à manutenção da coisa, terá direito de ser ressarcido por elas, podendo inclusive exercer o direito de retenção sobre a coisa locada. No caso das benfeitorias úteis, a indenização pelo locador só será devida se elas foram autorizadas por ele, quando também será cabível o direito de retenção. No caso das benfeitorias voluptuárias, não há qualquer direito à indenização ou retenção sobre a coisa locada.
Embora a obrigação exista nestes termos, as partes podem dispor em sentido diverso, de modo que nenhuma benfeitoria seja indenizada ou que até as voluptuárias sejam indenizadas. A autonomia das partes é
19. XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Trattato di diritto civile. 2. Ed. Pádova: CEDAM, 2010, v. 2, p. 631.
20. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Dos contratos nominados no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 313.
21. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
que definirá a existência ou não da obrigação prevista no artigo 578 do CC. A propósito, o STJ editou a Súmula 335, que diz que “nos contratos de locação, é válida a cláusula de renúncia à indenização das benfeitorias e ao direito de retenção”.
Parte da doutrina, restringe a possibilidade da renúncia antecipada aos contratos paritários, isto é, nos contratos de adesão, tal cláusula seria nula, pois implicaria renúncia antecipada a direito do aderente que seja inerente ao contrato (CC – art. 424)22.Todavia, nem todos concordam com tal orientação, pois o artigo 578 do CC faz referência à cláusula em sentido contrário, permitindo a renúncia de forma geral, para todos os contratos de locação, sejam paritários, sejam de adesão23. A nosso ver, a última opinião é a mais correta, por atentar ao dispositivo específico da locação, que dá margem expressa à disposição sobre o tema.
1.4 Obrigações do locatário
O artigo 569 do Código Civil estabelece cinco obrigações principais para o locatário: servir-se da coisa para os usos convencionados; tratar a coisa com cuidado; pagar o aluguel; levar a conhecimento do locador as pretensões de terceiros; e restituir a coisa. O descumprimento das obrigações do locatário, elencadas no art. 569 do CC, é causa de extinção da locação24. Pela autonomia privada, o contrato poderá estabelecer outras obrigações, livremente pactuadas entre as partes.
a) Servir-se da coisa para os usos convencionados
Como é da essência do contrato, o locatário tem o direito de usar a coisa locada, pois esse é o fim econômico do contrato. Esse uso, porém, pode ter uma destinação específica, como por exemplo, o imóvel para fins residenciais ou um veículo locado para uso pessoal. Nestes casos de destinação específica, o locatário, que tem o direito de usar a coisa, terá a
22. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5. No mesmo sentido: Enunciado 433, da V Jornada de Direito Civil. “A cláusula de renúncia antecipada ao direito de indenização e retenção por benfeitorias necessárias é nula em contrato de locação de imóvel urbano feito nos moldes do contrato de adesão”.
23. TJMG; AC 1.0145.06.295763-7/001; Juiz de Fora; Décima Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxxx; Julg. 09/08/2007; DJMG 06/09/2007.
24. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
obrigação de servir-se da coisa apenas para os usos que foram convencio- nados, ou seja, o imóvel locado para fins residenciais não pode ser usado para fins comerciais e o automóvel locado para fins pessoais não pode ser usado para explorar um serviço de transporte de passageiros.
A utilização da coisa para fins diversos representa um descumprimen- to da obrigação imposta ao locatário. Tal descumprimento é considerado importante e autoriza o locador a pedir a resolução do contrato. Se tal descumprimento ainda lhe causar danos, o locador terá o direito de exigir perdas e danos (CC – art. 570).
b) Tratar a coisa com cuidado
O direito que o locatário tem de usar a coisa locada não pode ser exer- cido abusivamente, isto é, o locatário tem o dever de cuidar bem da coisa locada, de “tratá-la com o mesmo cuidado como se sua fosse” (CC – art. 569, I). No direito italiano, fala-se em cuidar da coisa como bom pai de família25. A ideia é considerar o padrão do ser humano médio, do cuidado usual que se tem sobre as coisas. Mesmo que o locatário trate suas coisas pessoais com desleixo, não há autorização para o mesmo desleixo sobre a coisa locada, pois não se considera a conduta pessoal, mas o padrão de conduta do ser humano médio26.
Trata-se de um dever geral de cuidado que todos que usam bens alheios devem ter, mas na locação é estabelecido de forma expressa, com a imposição de uma obrigação ao locatário. Nesta obrigação, também está proibido o abandono da coisa locada27, pois este representa um desleixo em relação à coisa. Tal abandono, também é uma inadimplência contratual e pode justificar a resolução do contrato pelo locador.
É natural que não se possa permitir que o locatário destrua a coisa locada, ou trate-a com desleixo a ponto de gerar danos à coisa. Trata-se de um claro abuso de direito que não pode ser tolerado. Mais uma vez o artigo 570 do CC diz que a configuração do uso abusivo por parte do locatário autoriza a resolução do contrato, com perdas e danos, se for o caso.
25. XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Trattato di diritto civile. 2. Ed. Pádova: CEDAM, 2010, v. 2, p. 632.
26. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 294.
27. XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 267.
c) Pagar o aluguel;
A contrapartida natural do locatário pelo uso da coisa locada é o pagamento do aluguel convencionado, enquanto o bem estiver à sua dis- posição. Normalmente, o aluguel é fixado livremente pelas partes, podendo ser pago em dinheiro, ou em frutos ou rendimentos da coisa locada. Tal pagamento deverá ocorrer no prazo ajustado entre as partes livremente (mensal, quinzenal, semanal...). Não havendo prazo fixado, deverão ser considerados os costumes do local. Contratualmente, podem ser inseridas outras obrigações de pagamento para o locatário, como o pagamento de tributos, taxas condominiais e outras despesas.
Regularmente trata-se de obrigação quesível a ser paga no domicílio do locatário28. Nada impede, porém, que as partes combinem de modo diverso, atribuindo ao locatário a iniciativa para o pagamento, mediante depósitos, pagamento de boletos ou qualquer outro mecanismo. Em todo caso, o locatário deverá exigir o recibo de quitação, como prova do seu adimplemento.
d) Levar a conhecimento do locador as pretensões de terceiros
Por estar utilizando o bem locado, o locatário normalmente é o pri- meiro a saber da pretensão de terceiros sobre aquele bem e, por isso, tem o dever de informar ao locador tais pretensões, para que ele tome as pro- vidências necessárias. Tal dever envolvem todas as pretensões de terceiros que aleguem ter direitos sobre o bem locado. Mesmo que o locatário já tome medidas contra estas pretensões, ele deve informar ao locador, pois o locador tem o dever de proteger a posse do locatário contra as turbações e esbulhos de terceiros29.
e) Restituir a coisa
Como a locação não serve para transferir a propriedade da coisa, é da sua essência a restituição da própria coisa locada ao locador, pois, encerrado o contrato, encerra-se o direito do locatário de usar a coisa. Encerrado o
28. XXXXX, Xxxxxxx y otros. Manual de contratos civiles y comerciales: parte especial. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2011, p. 269; XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. III, p. 295.
29. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Dos contratos nominados no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002, p. 317.
direito de usar, surge a obrigação de devolver a mesma coisa recebida pelo locatário, pois trata-se de bem não fungível, na grande maioria das vezes.
Naturalmente, a coisa deve ser restituída no mesmo estado em que foi recebida. A eventual deterioração pelo uso regular da coisa não precisa ser considerada, mas ressalvada essa deterioração natural, o locatário deverá restabelecer as condições da coisa na sua devolução. Assim, por exemplo, o carro locado com o tanque cheio deverá ser devolvido também com o tanque cheio. O imóvel entregue sem divisórias, deverá ser devolvido sem divisórias. Naturalmente, a autonomia das partes, permite que existam ajustes distintos entre elas.
Não havendo a devolução voluntária da coisa, o locador deve notificar o locatário para devolvê-la. Se mesmo após a notificação, o locatário não proceder à devolução, ele deverá arcar com o aluguel fixado pelo locador enquanto a tiver em seu poder (CC – art. 575). Tal aluguel não é o mesmo do uso da coisa, mas será fixado como penalidade pelo atraso na devolu- ção do bem. Caso tal aluguel seja manifestamente excessivo, o juiz poderá reduzi-lo, mas sempre tendo em mente seu caráter de penalidade.
Durante essa mora para a devolução, o locatário passa a assumir também o risco da coisa. Assim, se coisa perecer nesse período, mesmo por caso fortuito, o locatário responderá pelos danos sofridos pela coisa. Em regra, os riscos da coisa correm por conta do locador, mas, diante da mora na devolução pelo locatário, ele passa a assumir também esses riscos, em razão do seu inadimplemento.
1.5 Extinção do contrato
O contrato de locação pode ser celebrado por prazo determinado e, neste caso, chegado o tempo estipulado, o contrato é extinto de pleno direito, independentemente de qualquer notificação (CC – art. 573). O contrato, porém, será prorrogado tacitamente por prazo indeterminado, se o locatário continuar na posse do bem, sem qualquer oposição do lo- cador (CC – art. 574). Xxxxxxx, nesta situação, uma anuência de ambas as partes, ainda que tacitamente, com o prosseguimento do contrato, sem a fixação de um novo prazo certo. Os pressupostos dessa prorrogação são a manutenção da posse do locatário e a ausência de oposição do locador, ou seja, havendo oposição do locador, o contrato não é prorrogado. Fixa-se, por analogia com a locação de imóveis urbanos (Lei nº 8.245/91 – art. 46,
§ 1º), o prazo para oposição do credor em 30 dias do encerramento do
contrato30. Com a manifestação da oposição, a posse do locatário torna-se injusta, sujeitando-o à tutela possessória.
Durante o prazo de vigência do contrato estabelecido por prazo de- terminado, as partes mantêm seus direitos e obrigações, de modo que o locador não pode reaver a coisa e o locatário não pode devolvê-la, antes de expirado o prazo. Excepcionalmente, porém, admite-se que uma das partes opte pela extinção do contrato unilateralmente, mesmo antes do fim do prazo, independentemente de motivação.
Assim, o locador que pretende reaver a coisa antes do fim do prazo do contrato deverá pagar ao locatário as perdas e danos resultantes desse rompimento antecipado do contrato. No entanto, deve-se proibir a retomada abusiva do bem locado, ou seja, deve haver uma justificativa válida para tal retomada, sob pena de violação aos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato31. Enquanto não for devidamente ressarcido, o locatário poderá reter a coisa, não sendo obrigado a pagar aluguel durante esse período de retenção.
Do mesmo modo, o locatário poderá devolver a coisa antes do fim do prazo, desde que pague a multa do contrato proporcionalmente (CC – art. 571). Tal multa, a princípio, é fixada livremente, mas, como cláusula penal que é pode ter seus valores revistos judicialmente, no caso de ser conside- rada excessiva (CC – art. 413). Especificamente para a locação, é comum a fixação, como multa, do pagamento de todos os aluguéis restantes, porém, o artigo 572 do CC diz que se “ a obrigação de pagar o aluguel pelo tempo que faltar constituir indenização excessiva”, o juiz poderá adequá-la.
Por se tratar de contrato impessoal, a morte das partes não gera a extinção do contrato estabelecido por prazo certo (CC – art. 577). Nesse caso, o contrato se transmite automaticamente aos herdeiros do locador ou do locatário, conforme o caso, pelo restante do prazo avençado. Embora o dispositivo se limite aos contratos por prazo determinado, é certo que nos contratos por prazo indeterminado também haverá a transmissão do contrato32, mas qualquer das partes pode denunciá-lo independentemente de motivação.
30. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
31. XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Curso de direito civil: contratos em espécie. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, e-book, capítulo 5.
32. Em sentido contrário. XXXXXXX, Xxxxxx de. Tratado de direito privado. Atualizado por Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx. Campinas: Bookseller, 2003, v. 40, § 4.428.
Nos contratos estabelecidos por prazo indeterminado, será possível a extinção da avença pela simples notificação de qualquer uma das partes (denúncia), independentemente de motivação. Mesmo sem previsão legal específica, nos contratos por prazo indeterminado, admite-se a resilição unilateral do contrato por vontade de uma das partes33. Nesse caso, a resilição unilateral se justifica na vontade presumida das partes de não se obrigar eternamente. Geralmente essa denúncia deve ser acompanhada de um aviso prévio, a fim de prevenir as consequências do fim do contrato.
Independentemente do prazo do contrato, é possível sua extinção pelo mútuo acordo entre as partes que resolvem distratar o contrato. Além disso, também independentemente do prazo avençado, é possível a extinção do contrato por resolução, nos casos de inadimplemento de uma das partes, podendo a parte prejudicada exigir perdas e danos.
A alienação da coisa, durante o período da locação, pode gerar a extinção do contrato, pois o adquirente não é obrigado a respeitar a locação, podendo extingui-la. No caso dos bens imóveis, o encerramento do contrato deverá obedecer a um prazo de pelo menos 90 dias após a notificação enviada pelo adquirente. Todavia, o adquirente será obrigado a respeitar a locação, se for consignada no contrato sua vigência, mesmo em caso de alienação da coisa e se o contrato estiver devidamente registrado. No caso dos bens móveis, o registro deverá ocorrer no cartório de títulos e documentos do domicílio do locador e no caso de bens imóveis, o registro ocorrerá no cartório de imóveis da respectiva circunscrição (CC – art. 576).
Em qualquer caso de extinção do contrato, sem a devolução volun- tária da coisa, o locador deverá notificar o locatário para que proceda à devolução. Ora, enquanto não houver a devolução, o locatário arcará com o aluguel fixado pelo credor, como penalidade pela não restituição da coisa locada (CC – art. 575), até a efetiva devolução. Tal aluguel pena poderá ser revisto judicialmente se considerado excessivo. Além de responder pelo aluguel pena, o locatário responderá pelos riscos da coisa nesse período de inadimplência e, mesmo que a coisa pereça por motivos de força maior, ele será obrigado a indenizar o locador.
2 LOCAÇÃO DE IMÓVEIS URBANOS PARA FINS EMPRESARIAIS
Como já mencionado, o empresário necessita de um complexo de bens para o exercício da sua atividade, dentre os quais se encontram bens
33. XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 18. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 185.