Os contratos no novo Código Civil
Os contratos no novo Código Civil
Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx
Professor Titular de Direito Civil na Universidade Federal Fluminense. Desembargador do TJ/RJ.
I. Exposição de Motivos
1. Nesta, de janeiro de 1975, enuncia o Supervisor do Código, o Prof. XXXXXX XXXXX, as principais diretrizes no Livro do Direito das Obrigações1:
a) Conservar a sistemática atual, pela disciplina das obrigações, a partir da discriminação de suas modalidades, uma das mais elegantes con- tribuições do Direito pátrio, não obstante indispensáveis complementos e retificações, desprezando-se a referência inicial ao sempre controvertido problema das fontes, e também em razão do já disciplinado na Parte Geral.
b) Harmonizar a matéria relativa ao inadimplemento das obrigações (Título IV do Livro I) com os demais artigos do Projeto que firmam novas diretrizes ético-sociais em matéria de responsabilidade civil.
c) Xxxxxx explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em conso- nância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica.
d) Xxxxxxxxx e reordenar as disposições gerais concernentes à compra e venda, mantendo, sempre que possível, neste como em outros pontos do Pro- jeto, uma rigorosa distinção entre validade e eficácia dos negócios jurídicos. No tocante à questão do preço, foi dada, por exemplo, maior flexibilidade aos preceitos, prevendo-se, tal como ocorre no plano do Direito Administrativo, a sua fixação mediante parâmetros. Não é indispensável que o preço seja sempre predeterminado, bastando que seja garantidamente determinável, de
1 O Projeto do Novo Código Civil, Saraiva, 1999, p. 71 e segs..
conformidade com crescentes exigências da vida contemporânea. Tal modo de ver se impõe, aliás, pela unidade da disciplina das atividades privadas, assente como base da codificação.
e) Prever, além da venda à vista de amostras, a que se realiza em função de protótipos ou modelos.
f) Conferir ao juiz poder moderador, no que se refere às penalidades resultantes do inadimplemento dos contratos, como, por exemplo, nos de locação, sempre que julgar excessiva a exigência do locador.
g) Incluir normas sobre contratos de adesão, visando a garantir o aderente perante o ofertante, dotado de vantagens que sua posição superior lhe propicia.
h) Disciplinar a locação de serviços de maneira autônoma, em con- fronto com as regras pertinentes ao Direito do Trabalho, prevendo-se, entre outros, os casos em que se deverá considerar exigível a retribuição devida a quem prestar os serviços, embora sem título de habilitação, com benefício real para a outra parte.
i) No capítulo relativo à empreitada, estabelecer disposições mais adequadas às exigências tecnológicas hodiernas, de modo a atender às fi- nalidades sociais do contrato e às relações de equilíbrio que devem existir entre o dono da obra, o projetista e o construtor, tais como revelado pela experiência dos últimos anos.
Por outro lado, os contratos de construção põem problemas novos, como os concernentes aos direitos e deveres do projetista, distintos dos do construtor, superando-se, desse modo, sentida lacuna no Código atual. Também neste capítulo, como nos demais, foi dada especial atenção aos casos de excessiva onerosidade, prevendo-se regras capazes de restabelecer o equilíbrio dos interesses em conflito, segundo critérios práticos para a sua solução. Embora se pudesse considerar tal matéria implícita nos preceitos relativos à “Resolução dos contratos por onerosidade excessiva”, atendeu-se a algumas particularidades da matéria no âmbito do negócio de empreitada.
j) Dar novo tratamento ao contrato de seguros claramente distinto em “seguro de pessoa” e “seguro de dano”, tendo sido aproveitadas, nesse ponto, as sugestões oferecidas pelo Prof. Fábio Konder Comparato. Nesse, como nos demais casos, procura o Projeto preservar a situação do segurado, sem prejuízo da certeza e segurança indispensáveis a tal tipo de negócio.
l) Disciplinar o contrato de transporte que tem existido entre nós como simples contrato inominado, com base em normas esparsas. A solução
normativa oferecida resulta dessa experiência, à luz dos modelos vigentes em outros países, com precisa distinção entre transporte de pessoas e transporte de coisas.
m) Disciplinar, com a devida amplitude e precisão, a matéria relativa ao contrato de incorporação de edifícios em condomínio, que se preferiu denominar contrato de “incorporação edilícia”, discriminando as responsa- bilidades do incorporador, do construtor e de quantos participam do referido negócio (O projeto definitivo, entretanto, limitou-se a enunciar as regras essenciais da incorporação - arts. 1.331 a 1.333 -, remetendo à lei especial).
n) Adotar as disposições sobre contratos bancários, salvo modifica- ção de redação e alguns elementos complementares, constantes do Projeto de Código de Obrigações de 1965 (foram posteriormente excluídos para legislação especial).
o) Disciplinar a venda com reserva de domínio, cuja regulamentação no Código de Processo Civil mistura textos de direito substantivo com os de direito adjetivo.
p) Aceitar a revalorização da moeda nas dívidas de valor, mas proibir cláusulas de correção monetária nos demais casos, com expressa ressalva, porém, da validade da estipulação que prevê aumentos progressivos no caso de serem sucessivas as prestações (No Projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, o problema da correção monetária recebeu tratamento mais amplo, em consonância com as leis e decisões judiciais supervenientes).
q) Reformular o contrato com pessoa a nomear, para dar-lhe maior aplicação e amplitude, enquanto que, no Anteprojeto anterior, ficara preso, segundo o modelo do Código Civil italiano de 1942, ao fato de já existir a pessoa no ato da conclusão do contrato.
r) Limitar o poder de denúncia unilateral dos contratos por tempo indeterminado, quando exigidos da outra parte investimentos de vulto, pressupondo ela poder dispor de prazo razoável, compatível com as despe- sas feitas. Esta sugestão, por ele feita e acolhida pela Comissão, é um dos tantos exemplos da preocupação tida no sentido de coarctar os abusos do poder econômico.
s) Incluir, entre os casos de preempção ou preferência, de norma aplicável quando o Poder Público não der à coisa expropriada o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos.
t) Reformular o contrato de agência e distribuição para atender à lei especial que disciplina a matéria sob o título imperfeito de “representação
comercial”. As ponderações feitas pelos interessados foram levadas na devida conta, o que vem, mais uma vez, confirmar a diretriz seguida no sentido de se procurar sempre a solução normativa mais adequada aos distintos campos de atividade, conciliando-se os interesses das categorias profissionais com as exigências da coletividade.
u) A idênticos propósitos obedeceu a revisão do contrato de transpor- te, que também não pode dispensar a existência de lei especial, em virtude de problemas conexos de Direito Administrativo ou Tributário. Isto não obstante, a Comissão acolheu várias sugestões recebidas, visando a dar maior certeza a esse tipo de contrato, de modo a amparar os interesses dos transportadores e dos usuários.
v) E, finalmente, para dar mais um exemplo do cunho de “socialidade” ou “justiça social” que presidiu à elaboração do Projeto, em todas as suas fases, destaco a nova redação do preceito que fixa a metade das indenizações: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e do dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”.
O mandato e o depósito passaram a ser disciplinados sob o duplo aspecto de sua gratuidade ou onerosidade, segundo sejam exercidos, ou não, em virtude de atividade profissional e para fins de lucro. Nessa obra integradora se revelaram, por sinal, de plena atualidade as disposições do Código de Comércio de 1850.
Diga-se o mesmo quanto aos preceitos que vieram a disciplinar a questão do lugar da tradição da coisa vendida. Desse modo, em função dos ditames da experiência, completou-se a obra de integração das relações obrigacionais, sem perda de seu sentido unitário e de suas naturais distinções.
2. Na Exposição de Motivos do Livro das Obrigações, seu insigne e saudoso autor, o Prof. XXXXXXXXX XXXXX0, ao justificar a unificação do Direito das Obrigações, explana que a idéia do Governo, a ser posta em prática, não era a de substituir, por um novo, o Código Civil, senão, a de revê-lo, poupando, o mais possível, este monumento legislativo, repositório de sabedoria, sim, mas cuja reformulação era reclamada pela sua vetustez. O Direito das Obrigações, já de si muito extenso, com 709 dos 1.807 artigos
2 Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, nº 24, 1972.
do Código, veio a alongar-se ainda mais, para atender à nova orientação. E explana por que se orientou o Projeto por um único Código, contendo a parte das Obrigações, em lugar de um Anteprojeto separado para esta e outro para o Código Civil, como foram elaborados em 1964.
3. Salienta o Prof. XXXXXX REALE que os princípios basilares do novo Código foram o da socialidade, da eticidade e da operabilidade. Orienta-se pelo sentido da concretude, obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado, legislar para o homem enquanto marido; para a mulher, enquanto esposa; para o filho, enquanto um ser subordinado ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais, à vivência plena do Código, do direito subjetivo com uma situação individual; não um direito subjetivo abstrato, mas uma situação subjetiva concreta3.
II. Disposições sobre os contratos no novo Código
4. No Livro das Obrigações, ele tratou, no Título V, dos contratos em geral. Em seu Capítulo I, contemplou suas disposições gerais.
Segundo o saudoso Des. e Prof. da USP, XXXXXX XXXXXXX XXXXXX, in estudo sobre “Os Contratos no Projeto de Código Civil”,4 há nele uma teoria contratual, à semelhança do Código Civil italiano, no qual se inspirou, a partir dos Anteprojetos anteriores, do Prof. Xxxxxxx Xxxxx, diferentemente do Código de 1916, que seguiu o modelo napoleônico. Con- fere autonomia ao direito contratual, ultrapassando-se, assim, uma série de dificuldades para solução de questões, especialmente, por exemplo, aquelas referentes à extinção de obrigações, sem extinção de contrato, e à extinção de contrato sem exaustão de obrigações.
Na separação da teoria contratual, destacou igualmente a teoria dos atos unilaterais. Tem-se nítida noção de que contratos e atos unilaterais são institutos diferentes, sendo cada qual fonte de obrigações.
Segundo aquele autor, a grande inovação do novo Código está no haver adotado a concepção do negócio jurídico, inspirado ainda na doutri- na italiana. Separa-o do ato jurídico e permite a compreensão do contrato como negócio jurídico. Ponto importante é o relevo conferido ao aspecto moral nas obrigações. Toda base negocial repousa em princípios de moral.
3 In Visão Geral do Projeto de Código Civil.
4 Revista de Direito Mercantil, nº 104, p. 48 e segs.
O respeito à palavra dada continua sendo, na verdade, o fundamento ético do negócio jurídico. A partir daí o legislador incluiu vários institutos, que refletem aquela orientação: o instituto da lesão, do estado de perigo, o da imprevisão ou da cláusula rebus sic stantibus. Esta só se verifica, quando quer a parte cumprir o contrato, não se tratando de fator de impossibilidade de cumprimento. Esta, a razão, pela qual a atual doutrina a denomina de onerosidade excessiva. Realça o emprego da prestação de serviços como forma de compor o valor da indenização, à semelhança da prestação de serviços, como alternativa à pena no Direito Penal. Acentua que, na teoria geral do contrato, ocupa-se o Código das disposições sobre este e sua base; depois, de sua formação; e, por fim, a respeito de sua extinção. Esboça-se a teoria contratual, porquanto o Código cuida do contrato, como ele se forma e como se extingue.
Dentre as disposições gerais, trata das arras, dos vícios redibitórios, da evicção, da estipulação em favor de terceiro, da cláusula resolutiva e da onerosidade excessiva. Entende, todavia, que esta e as arras ficariam melhor nas regras sobre extinção do contrato, lugar mais apropriado para elas.
Omitiu-se, entretanto, a respeito da cessão do contrato, ou da posição contratual. Dentre os contratos em espécie, aponta a introdução da reserva de domínio, na compra de bens duráveis; da venda sobre documento, de relevância no comércio internacional, no qual as vendas se fazem sobre contratos fechados; a previsão do contrato estimatório, a conhecida venda por consignação, na qual alguém entrega coisa móvel a outrem, para venda mediante estipulação do preço (estimação vem daí), podendo o consignatário ficar com ela, pagando-lhe o valor, ou vendê-la a terceiro, ganhando comissão. Indica ainda os contratos de agência, que é o de representação, e o de distribuição, com largo uso para automóveis, bebidas, produtos de festas, perfumes e até direitos intelectuais, como as licenças. Assinala o contrato de comissão mercantil, que recebe regulamentação mais adequada do que no vetusto Código Comercial. Servem suas regras para a solução de questões de contratos afins, de importância prática: há comissão nos negócios de bolsa ou fora de bolsa, tanto de mercadorias e futuros. Mostra a evolução esboçada na disciplina do contrato de transporte, com a distinção entre o de pessoas e de coisas, havendo sido adotada a teoria da responsabilidade objetiva na responsabilidade civil contratual, em consonância com a jurisprudência, a qual provinha da responsabilidade atribuída aos tropeiros e trapicheiros no
Código Comercial.
Salienta a inclusão da transação e do compromisso dentre os contratos, porque pressupõem acordo de vontades.
Critica, todavia, a previsão da gestão de negócios como ato unila- teral, pois só produz efeitos a partir da ratificação do gestor, e a própria disciplina, em separado, do pagamento indevido, que resta compreendido no enriquecimento sem causa.
A cláusula penal deveria também estar ligada à extinção do contrato.
5. Em excelente ensaio sobre “As Obrigações e Contratos no Projeto do Código Civil”,5 o Min. XXX XXXXXX XX XXXXXX aponta seus sinais distintivos. Caracteriza-se o Código de 1916 por sua feição nitidamente individualista, expressando a concepção político-filosófica vigorante depois da Revolução Francesa, que consagrava o primado da vontade e submetia os contratantes à avença, do que decorria a quase absoluta ausência de cláusulas gerais e afastava a possibilidade da aplicação judicializada aos contratos (no sentido de realizar-se a justiça material). Foi ainda o Código de 1916 elaborado em época de economia estável, apresentando a moeda valor definitivo, estando as relações civis centradas na propriedade imobiliária. Esta diretriz se refletiu na despreocupação com as alterações da relação obrigacional. Manteve-se a separação entre a legislação civil e a comercial.
6. Abandonou, todavia, o novo Código a posição individualista, para afirmar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Alterou-se seu eixo interpretativo. Em lugar de nele serem consideradas a intenção das partes e a satisfação de seus interesses, deve o contrato ser visto como instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade. A partir dos estudos de XXXXXX XXXXX compreendeu-se que o negócio jurídico é apenas uma oportunidade para a manifestação da autonomia privada, que fornece o su- porte de fato, sobre o qual incidirão as normas jurídicas, atribuindo-lhe os efeitos próprios, não mais de acordo com a vontade, mas com os fins, a que se propõe a ordem estatal. Como esta há de estar voltada a realizar o bem comum, para alcançar o que é justo e útil socialmente, estes atributos é que se enquadram na função social. Deve o contrato, portanto, ser útil e justo. A liberdade contratual é concedida para que seja atingida aquela função. Seu resguardo se dá sobretudo por meio da intervenção do Juiz.
5 In R. CEJ, Brasília, nº 9, p. 31/9, set./dez. 1999.
Outra modificação básica reside nas chamadas cláusulas gerais do contrato, normas incorporadoras de um princípio ético orientador do Juiz na solução do caso concreto.
A este propósito, a culta Profª. JUDITH MARTINS COSTA, em ex- celente ensaio sobre o “Direito Privado como um ‘sistema em construção’: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro”, tece significativas considerações. O Código Civil, na contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais completa tradução na codificação oitocentista. Hoje sua inspiração vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos. Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos penais, não está cingida à rígida descrição de fattispeciei cerradas, à técnica casuística. “Um Código não-totalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os extrajurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais”. “As cláusulas gerais, mais do que um ‘caso’ da teoria do direito – pois revolucionam a tradicional teoria das fontes – constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, ar- quétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistema- tização e permanente ressistematização no ordenamento positivo”. São de tipo restritivo e regulativo e têm por função, em primeiro lugar, permitir, num sistema jurídico de direito escrito e fundado na separação das funções estatais, a criação de normas jurídicas com alcance geral pelo juiz. “A voz do juiz não é, todavia, arbitrária, mas vinculada”. Sua segunda grande função é de permitir a mobilidade externa do sistema. Da cláusula geral da boa-fé são gerados os institutos da supressio, da surrectio e a própria doutrina da responsabilidade pré-negocial.
Elas atuam ainda, segundo a autora, como elemento de conexão ou “lei de referência” para oportunizar, ao juiz, a fundamentação da sua decisão de forma relacionada com os casos precedentes. É o que se passa no inadim-
plemento contratual pela infringência de deveres de conduta, positivos ou negativos, não previstos na lei nem no contrato. Permitem ainda à doutrina operar a integração intrassistemática entre as disposições contidas nas várias partes do Código Civil, “a mobilidade interna”, que consiste, nas palavras do falecido e eminente jurista Prof. COUTO E SILVA, “na aplicação de outras disposições legais para a solução de certos casos, percorrendo às vezes a jurisprudência um caminho que vai da aplicação de um dispositivo legal para outro tendo em vista um mesmo fato”. Facilitam a migração de conceitos e valores entre o Código, a Constituição e as leis especiais.
Cita a autora o Min. MOREIRAALVES, que, há mais de uma década, alertava para o fato de a inserção das cláusulas gerais promover a mudança da concepção filosófica do novo Código por meio de alterações formalmente diminutas, exemplificando com a concepção de propriedade, de tal maneira que, “com dois artigos passou-se da propriedade individualista para a pro- priedade com função social”.
Reporta-se à cláusula geral da função social do contrato, “quase que um preâmbulo de todo o direito contratual”, multifuncional, em cuja con- creção o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas, inclusive o efeito de, progressivamente, catalogar os casos de abusividade.
O contrato, em alusão a XXXX XXXXX,6 é a “veste jurídica das operações econômicas”.
A cláusula geral da boa-fé objetiva, originária da regra “Treu un Glauben”, do BGB, como norma de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com o inte- resse da outra parte, atua na tríplice direção de norma de interpretação e integração do contrato que concorre, entre outras funções, para determinar o comportamento devido; de limite ao exercício de direitos subjetivos, sistematizando e especificando casos que, na ausência da cláusula geral, estariam dispersos entre vários institutos, e como fonte autônoma de direi- tos, deveres e pretensões às partes contratantes, os quais passam a integrar a relação obrigacional em seu dinâmico processar-se, compondo-a como uma “totalidade concreta”.
Remata que, se efetivamente encontrarem, na doutrina, mas princi- palmente na jurisprudência, a voz que as faz viver, as “fórmulas genéricas
6 O Contrato, p. 10.
e flexíveis”, aludidas por Xxxxxxxx Xxxxxxx, os “conceitos integradores da compreensão ética”, no dizer de Xxxxxx Xxxxx – em suma, as cláusulas ge- rais referidas por Xxxxx x Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxx – permitirão a permanente atualização do Código evitando um envelhecimento que, na sociedade globalizada e tecnológica, avizinha-se sempre e cada vez mais rápido. Ao mesmo tempo, viabilizarão o desenvolvimento de um direito privado plura- lista como a sociedade que lhe dá origem e justificação, porém harmônico e compreensível, já que não necessariamente pulverizado em centenas de pequenos mundos normativos tecnicamente díspares, valorativamente au- tônomos e em si mesmos fechados e conclusos.
7. Menciona ainda o Min. XXX XXXXXX (art. cit.) institutos de maior relevo para o Direito Obrigacional: a) o abuso da personalidade, na Parte Geral; b) o estado de perigo; c) a lesão, com a possibilidade de aproveitamento do negócio; d) a vedação do abuso de direito, talvez a re- gra mais rica para o Direito das Obrigações; e) e a previsão do parágrafo único do art. 2.036, de que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos (grifo nosso – cuida-se a ordem pública também de cláusula geral inserta no art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil). No tocante aos contratos em espécie, deixou o Código de prover sobre os contratos de consórcio, o factoring,
o franchising, os contratos bancários, por sua especificidade, mas que poderiam ensejar princípio limitativo do uso do poder econômico. Nada dispôs sobre o leasing, os contratos de saúde, havendo o contrato de adesão merecido escassa atenção. Não se reportou ao Código de Defesa do Consu- midor, ao menos para preservá-lo, como lei especial, que remanesce. Não cuidou, nas provas, da documentação transmitida por computador e por e-mail, ainda que houvesse permitido a emissão de título de crédito por computador ou meio equivalente.
Tem a experiência mostrado que o contrato de adesão se presta a abusos, motivo pelo qual seria conveniente que contivesse o Código regra- mento para excluir ou diminuir o impacto de estipulações sobre multas e outros acréscimos devidos pela mora, sobre eleição de foro, quando signi- fica negativa de acesso em juízo, perda das prestações pagas, dificuldades para a purgação da mora ou para as providências tendentes à conservação do negócio, direito de prévia interpelação, limitação de responsabilidade e imposição de mais deveres a uma das partes.
Aplaudiu a disciplina do contrato preliminar, para o qual não de- veria impender a exigência de ser levado a registro e, nas regras sobre a resolução do contrato por descumprimento pelo devedor, faltou previsão dos casos em que o credor pode exigir a extinção do contrato, que deve ser sempre afastada, quando haja seu cumprimento substancial. Relativamente à resolução por onerosidade excessiva, foi mais limitativa do que no CDC, quando reclama a imprevisibilidade do fato extraordinário superveniente e a extrema vantagem para a contraparte. Pode o fato futuro abater-se sobre o devedor, sem deflagrar vantagem para o credor. Afastou-se o Código da teoria objetiva, da alteração da base do negócio.
Na venda ad mensuram deixou de prever a possibilidade de ser concedida a indenização, em lugar do abatimento do preço ou da extinção do contrato, como pode suceder na venda de apartamento com área de es- tacionamento em dimensão insuficiente ao fim a que se destina.
Registrou a permanência da retrovenda e a introdução do contrato com pessoa a nominar. Aludiu também à inclusão dos contratos de comis- são, agência e distribuição, corretagem e transporte, que decorrem da unificação das obrigações. No último, assinalou como boa a norma de ser lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização. No seguro criticou a ausência de norma que determine a obrigação de ser paga a indenização, ainda que o prêmio seja pago além do prazo, quando o contrato foi substancialmente cumprido em sua maior duração. Elogiou a contemplação do enriquecimento sem causa. Finaliza o ilustre Ministro com encômios ao Código na visão geral do contrato como ato que deve atingir finalidade social, regulado pelos princí- pios da boa-fé, da moralidade, da lealdade, dos bons costumes e da ordem pública. Para o juiz forneceu os instrumentos necessários para a realização
da justiça material.
III. Outras anotações
8. Em “Observações sobre o Direito das Obrigações no Projeto do novo Código”, publicadas na Revista do Tribunal de Justiça, vol. 46, págs. 67 e segs., havíamos destacado a regra do art. 425, a consagrar a autonomia negocial, na celebração de contratos atípicos. Dispôs o art. 428, I, sobre a qualificação como presente do oblato, que contrata por telefone ou meio de comunicação semelhante. O art. 429 prescreve sobre a oferta ao público e seus efeitos, do que já se carecia.
Poderia, entretanto, o novo Código haver regulado o contrato a favor de terceiro, cujos contornos não se limitam às estipulações em favor de terceiro, com as quais não se confunde.
Nos vícios redibitórios poderia ter avançado, admitindo a possibili- dade, v.g., da substituição da “res”. Foi boa a síntese em matéria de evicção. Revela-se excelente a redação do art. 458 sobre os contratos aleatórios, não mais os aprisionando na alienação, passando a dizer respeito não só a coisas mas a fatos futuros. Preencheu lacuna com a disciplina do contrato preliminar e foi oportuna a do contrato com pessoa a declarar. Fez bem ao tratar da extinção do contrato, revelando-se bom o art. 474, ao estatuir que a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito, dependendo a tácita de interpelação judicial. Retira-se a matéria das condições, de que não se trata e afastam-se dúvidas quanto às conseqüências de cada espécie da cláusula. Adequou melhor à bilateralidade a exceção do contrato não cumprido, ao exprimir que pode a outra parte recusar-se à prestação, que lhe incumbe, até que a contraparte satisfaça a que lhe compete, e foi boa a previsão da resolução por onerosidade excessiva.
Quanto a esta, todavia, oportunas são as observações do Min. XXX XXXXXX de que prescindível se faria a exigência da imprevisibilidade do fato extraordinário, uma vez que o acento desloca-se para a onerosidade da prestação, em si, tal como disposta no CDC.
Por outro lado, faltou atenção a que, hoje, em economia em série, orienta-se o Direito, a despeito da precaução do eminente Prof. AGOSTI- NHO ALVIM contra riscos de intervenção judicial na economia do contrato (Exposição de Motivos, cit.), pela possibilidade de sua preservação, mediante a “Sopravenienza contratualle e problemi di Gestione del Contratto”7. De- ve-se evitar a ruptura da cadeia da produção ou da prestação dos serviços em série.
Registrem-se as novas espécies contratuais e modalidades, como o contrato estimatório e a venda sobre documentos, além da venda com reserva de domínio.
IV. Considerações Finais
9. A despeito do pessimismo de alguns, como XXXXXX XXXXX, que falou no declínio dos contratos e, mais recentemente XXXXX XXXXXXX,
0 XXXXX XXXXX, Xxxxxxx, 0000
em obra sobre La morte del Contratto, Giuffrè Editore, 1999, Milão, per- manece válida, todavia, a observação de JOSSERAND (“Aperçu Général des Tendences Actuelles de la Théorie des Contrats”) na Revue Trimestrielle de Droit Civil, vol. XXXVI (1937), invocado pelo eminente mestre xxxx, Prof. XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXX, em Aspectos Comuns aos Vários Con- tratos, p. 23, de que “se vive cada vez mais contratualmente”. Surgem novas categorias, ou as antigas e embrionárias ganham novo relevo, desenvolvem-se e se enriquecem extraordinariamente. São exemplos: os contratos de adesão, os contratos-promessa, os contratos-tipo, os normativos, os de eficácia, aqueles em benefício de terceiro, os contratos eletrônicos. Daí a judiciosa conclusão do Jurista lusitano: “a vontade perde mas o contrato ganha”. Nisto consiste sua permanente vitalidade, de constituir instrumento dúctil, que “ora se amplia, ora se restringe, ora se enfraquece, ora adquire novo vigor e sempre ao homem serve para satisfazer as necessidades da vida de relação”.8
Daí porque, em nosso livro, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, aludimos à concepção do contrato como instrumento de colaboração entre os homens, de modo que, mediante a assunção de obrigações, possa, por exemplo, o devedor obter aquilo de que carece e a que precisa atender. Esta noção já havia sido acentuada por XXXXXX XXXXX, em sua Teoria Xxxxxxxx xxxxx Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, v. I, p. 11 e 106.
Com idêntica orientação, citamos o excelente estudo da Profª. CA- THERINE THIBIERGE-GUELFUCCI, da Faculdade de Direito de Orléans, que fala na emergência de novos princípios, a ultrapassarem os esquemas tradicionais do contrato: o da igualdade, o do equilíbrio e o da fraternidade contratual.
Esta, a razão de ser prevista em sua função social, de alcance profundo na transformação do Direito das Obrigações, como explanada nos doutos ensinamentos referidos neste estudo. Resume-a o emérito Prof. XXXX XXXXX XX XXXXX XXXXXXX, cujo Anteprojeto de Código de Obrigações serviu de apoio também para o novo Código, em que, paralelamente à fun- ção econômica, vislumbre-se no contrato uma outra, civilizadora em si e educativa9: “Aproxima os homens e esbate as diferenças”.
Deseja-se que os intérpretes e aplicadores do novo Código operem imbuídos deste espírito altamente humanitário. ◆
8 Manual dos Contratos, p. 63.
9 Instituições de Direito Civil, v. III, p. 4/5.