FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
XXXXX XXXXX XXXXXX0
RESUMO
Com o advento do Código Civil de 2002 houve a necessidade de se reestudar os princípios contratuais, especialmente no que tange ao princípio da autonomia da vontade, o princípio da obrigatoriedade dos contratos e o princípio da relatividade dos contratos, uma vez que tais princípios foram de certa forma relativizada pela atual codificação civil. Isso porque se deixou de lado aquela posição individualista adotada pela codificação civil revogada passando-se a adoção de uma posição coletiva na qual se busca incessantemente um equilíbrio material entre as partes contratantes. Proibiu-se aquela obrigatoriedade contratual que afronta a boa-fé objetiva, assim como aquela que previa cláusula abusiva ou que não produziam qualquer efeito. O contrato atualmente deve ter uma função social, vale dizer, deve produzir efeitos e, mais, deve ser formalizada com cláusulas equilibradas afastando as prestações exageradas, ou seja, aquelas que produzem enriquecimento ilícito. Oportuno mencionar ainda que a função social tem o escopo preservacionista na medida em que se possibilita a manutenção dos efeitos de contratos passíveis de anulação, como é o caso daqueles afetados pelo instituto da lesão, no qual se afasta a anulação se for reequilibrada a situação entre as partes, oferecendo-se suplemento suficiente ou a redução do proveito obtido.
Palavras-chave: contratos; princípios contratuais; evolução; boa-fé objetiva; função social dos contratos.
1 Procurador do Município de Diadema, Advogado militante nas áreas de Direito Civil, Penal e Tributário, Articulista, Parecerista, Pós-graduado com especialização em Direito Público pela Escola Paulista de Direito, Pós-graduado com especialização em Direito Tributário pelo Centro Universitário de Bauru.
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO. 03
2 – PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS 04
3 – DESDOBRAMENTOS DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS 09
4 – EFICÁCIA INTERNA OU INTRÍNSECA DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS 10
5 – EFICÁCIA EXTERNA OU EXTRÍNSECA DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS 17
6 – CONCLUSÃO. 19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 20
1 - INTRODUÇÃO
Os Contratos como fontes de obrigação que são sofreram algumas alterações na sua forma de interpretação, principalmente no que toca à aplicação dos princípios contratuais e especialmente quanto ao princípio da função social dos contratos.
O Código Civil de 1916 revogado adotava um cunho muito individualista na medida em que se elevava o “pacta sunt servanda” a uma verdade quase absoluta, pois aquele que firmava um contrato deveria cumprir fielmente a obrigação acordada.
O Código Civil vigente, diferentemente do anterior, foi norteado por princípios com cunho sociais (eticidade, socialidade e operabilidade), vale dizer, afastou-se a individualidade exacerbada para adotar princípios coletivos.
Importante frisar que não houve o banimento do princípio da obrigatoriedade dos contratos, lembrando que ocorreu apenas uma mitigação na sua aplicação na medida em que se buscou extrair de todos os contratos a aplicação de uma função social.
Assim como toda propriedade deve ter uma função social (art. 5º, XXIII, da CF) os contratos também devem ter uma função social, pois devem produzir efeitos e ainda de forma equilibrada a afastar prestações desproporcionais (arts. 421 e 2.035, p.ú, do CC).
Desse modo, oportuno o estudo da função social dos contratos que podem trazer implicações internas e até externas, uma vez que podem influir em direito de terceiros englobando o direito da coletividade como é o caso do meio ambiente.
Xxxxxxx é a preocupação quanto à aplicação da função social dos contratos que foi erigida a norma de ordem pública, possibilitando ao poder judiciário conhecer de ofício eventuais desequilíbrios contratuais de modo a adequá-los à situação fática contemporânea.
Oportuno salientar que o Conselho da Justiça Federal editou inúmeros enunciados sobre o tema para melhor elucidar a aplicação do referido princípio, os quais serão oportunamente abordados no decorrer deste trabalho.
2 – PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
O princípio da função social dos contratos parece-me que, ao lado do princípio da boa-fé objetiva, é um dos mais importantes da atual codificação, pois acaba por interferir e de certa forma por relativizar quase todos os outros princípios contratuais na medida em que eles são mitigados por estes.
Isso porque é um princípio contratual de ordem pública pelo qual o contrato deve ser necessariamente interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade, afastando o caráter individualista da ordem civilista anterior.
Desse modo, de forma resumida, é possível limitar a força obrigatória dos contratos nos casos em que uma cláusula contratual viola norma de ordem pública; possibilita-se a mitigar o princípio da relatividade dos contratos na medida em que se permite a produção de efeitos de um contrato ao não contratante (ajuizamento de ação de terceiro diretamente contra seguradora), além de outros efeitos.
Atualmente pode-se dizer que a função social do contrato tem dupla eficácia: a eficácia interna entre as partes contratantes e a eficácia externa para além das partes contratantes, consoante dispõe os Enunciados 360 e 21 do Conselho da Justiça Federal, respectivamente:
Enunciado 360 – Art. 421: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes.
Enunciado 21 – Art. 421: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.
O artigo 421, do Código Civil, traz previsão expressa deste princípio ao preceituar que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos”.
Dessa forma, conforme leciona Xxxxxx Xxxxxxx0 “os contratos devem ser interpretados de acordo com a concepção do meio social onde estão inseridos, não trazendo onerosidade excessiva às partes contratantes, garantindo que a igualdade entre elas seja respeitada, mantendo a justiça contratual e equilibrando a relação onde houver a preponderância da situação de um dos contratantes sobre a do outro. Valoriza-se a equidade, a razoabilidade, o bom-senso, afastando-se o enriquecimento sem causa, ato unilateral vedado expressamente pela própria codificação, nos seus arts. 884 a 886. Por esse caminho, a função social dos contratos visa à proteção da parte vulnerável da relação contratual”.
E continua “Na realidade, à luz da personalização e constitucionalização do Direito Civil, pode-se afirmar que a real função do contrato não é a segurança jurídica, mas sim atender os interesses da pessoa humana”.
O saudoso deputado Xxxxxxx Xxxxx, acatando as proposições de Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx, que detectaram duas impropriedades técnicas na redação do artigo 421, do Código Civil, propôs projeto de lei, antigo PL nº 6.960/2002, atual PL nº 699/2011 para alteração a redação para “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
Isso porque o dispositivo fala em liberdade de contratar que é a liberdade para celebrar o contrato que, em regra, é ilimitada, sendo certo que o correto seria mencionar “liberdade contratual” relacionada ao conteúdo, essa sim limitada pela função social.
A segunda impropriedade está relacionado a expressão “em razão e”, já que a função social não é razão para o contrato, mas sim a autonomia privada. A razão do contrato é a autonomia privada que engloba a liberdade de contratar e a liberdade contratual.
Para melhor entender, vejamos o que fala o próprio deputado Xxxxxxx Xxxxx0:
a alteração, atendendo a sugestão dos Professores Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, objetiva inicialmente substituir a expressão
„liberdade de contratar‟ por „liberdade contratual‟. Liberdade de contratar a
2 TARTUCE, Xxxxxx. Direito Civil. vol. 3. São Paulo: Método, 9ª edição, 2014, pág. 60
3 XXXXXXX, Xxxxx. O novo Código Civil e as propostas de aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 76
xxxxxx tem, desde que capaz de realizar o contrato, já a liberdade contratual é a de poder livremente discutir as cláusulas do contrato. Também procedeu-se à supressão da expressão „em razão‟. A liberdade contratual está limitada pela função social do contrato, mas não é a sua razão de ser.
Oportuno ressaltar que além do dispositivo codificado supracitado, há outro do mesmo Código que o complementa:
Art. 2035 (...)
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Portanto, dessume-se que o legislador privilegiou os preceitos de ordem pública relacionados com a proteção da função social dos contratos.
Ressalte-se que a princípio é impossível aplicar este preceito aos contratos celebrados anteriormente, salvo se os negócios jurídicos ainda estejam produzindo efeitos após a vigência do novo Código, consoante dispõe o “caput” do artigo 2.035: “A validade dos negócios jurídicos e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”.
Xxxxx Xxxxxx Xxxxx0 em defesa da constitucionalidade do artigo 2.035, parágrafo único, do Código Civil, afirma que “como bem assevera Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx: „violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica em ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, ao
4 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 184
xxxxxx-xx, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas reforçada‟. Se assim é, incabível seria a existência de direito adquirido ou ato jurídico perfeito contra norma de ordem pública, aplicável retroativamente a atos anteriores a ela. O direito precedente cede a ela o lugar, submetendo-se aos princípios da função social do contrato e da propriedade, com o quais não pode conflitar, visto que têm supremacia por força da Constituição Federal”.
Na esteira desse raciocínio, nota-se que há possibilidade de se aplicar a proteção da função social dos contratos até aos contratos firmados sobre a égide da Codificação anterior desde que ainda estejam produzindo efeitos.
Doutrinadores modernos entre eles Xxxxx Xxxx Xxxxxxx0, também defende a retroatividade da norma prevista no parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil lecionando que “se, por um lado, exige a vida social que a fé na segurança jurídica e estabilidade das relações não seja ameaçada pelo receio de que lei posterior venha a perturbar aquelas que validamente já se formaram, de outro também é de se exigir a submissão do ordenamento jurídico aos interesses maiores da coletividade, de modo a se atingir o ideal de justiça e de utilidade, representação do bem comum”.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adotando a proteção da função social do contrato já teve a oportunidade de declarar nulo a escritura e o registro firmado sob a égide da Codificação Civil anterior:
Ação de anulação de negócio jurídico. Simulação. Escritura pública de venda e compra de imóvel que contém declaração falsa. Réus que admitem que o negócio jurídico consiste em dação em pagamento realizada há 26 anos em razão de dívida trabalhista. Ausência de prova da dívida. Testemunhas que afirmam que o proprietário do imóvel era o falecido pai do réu credor. IPTU e cadastro na Prefeitura em nome do de cujus, na condição de compromissário. Escritura e registo nulos. Correta a r. sentença, cujos fundamentos são ora ratificados nos termos do art. 252 do RITJSP. Recurso improvido. (TJ-SP - APL: 887920108260069 XX 0000000-
79.2010.8.26.0069, Relator: Xxxx xx Xxxxx, Data de Julgamento: 08/11/2012, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/11/2012)
5 XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Problemas de direito intertemporal no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, pág. 94
Acrescente-se ainda a aprovação do Enunciado 300 do Conselho da Justiça Federal, na IV Jornada de Direito Civil, o qual dispõe “Art. 2.035: A lei aplicável aos efeitos atuais dos contratos celebrados antes do novo Código Civil será a vigente na época da celebração; todavia, havendo alteração legislativa que evidencie anacronismo da lei revogada, o juiz equilibrará as obrigações das partes contratantes, ponderando os interesses traduzidos pelas regras revogada e revogadora, bem como a natureza e a finalidade do negócio”.
Nas palavras de Xxxxxx Tartuce6 “Na verdade, preferimos dizer que, no caso em questão, há uma retroatividade justificada ou motivada em prol da proteção dos preceitos de ordem pública. Isso porque a justificativa para a retroatividade da norma de ordem pública, no caso em questão, também encontra respaldo constitucional na proteção da função social da propriedade lato sensu, que consta do art. 5º da CF/88, especificamente dos incisos XXII e XXIII”.
E continua “Fica claro que a função social do contrato é matéria de ordem pública, espécie do gênero função social da propriedade lato sensu, também com proteção constitucional, particularmente mais forte que a proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Assim, não se pode afastar a aplicação da regra contida no art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil”.
6 TARTUCE, Xxxxxx. Direito Civil. vol. 3. São Paulo: Método, 9ª edição, 2014, pág. 64
3 – DESDOBRAMENTOS DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
Mencionados “en passant” os aspectos da eficácia interna ou intrínseca e externa ou extrínseca da função social dos contratos, passa-se a examiná-los de forma mais detida, já que tais aspectos foram objetos de Enunciados do Conselho da Justiça Federal, além do que doutrinadores modernos costumam a disseca-los, como é o caso de Xxxxxx Xxxxxxx e de Xxxxx Xxxxx.
Partindo da premissa de que a função social dos contratos pode ser conceituada, segundo Xxxxxx Xxxxxxx0 como sendo “um princípio contratual, de ordem pública, pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, visualizado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade”, fica claro a sua dupla eficácia.
Esta dupla eficácia fica mais transparente ao se analisar os Enunciados 21 e 360, do Conselho da Justiça Federal “Enunciado 360: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes” e “Enunciado 21: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”.
No que pertine a eficácia interna, extrai-se alguns efeitos dentre elas a proteção da parte vulnerável na relação contratual, a vedação da onerosidade excessiva no contrato, a proteção dos direitos da personalidade no contrato, nulidade de cláusulas antissociais por ilicitude e a conservação contratual.
Quanto à eficácia externa tem-se que é possível que um contrato gere efeitos perante terceiros (tutela externa do crédito), assim como é possível que uma conduta de terceiro repercuta no contrato, sem mencionar ainda a possibilidade de existir um contrato equilibrado, mas nocivo à sociedade.
7 TARTUCE, Xxxxxx. Função Social dos contratos. vol. 2. São Paulo: Método, 2ª edição, 2007, pág. 415
4 – EFICÁCIA INTERNA OU INTRÍNSECA DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
A Codificação Civil atual e o Código de Defesa do Consumidor dispõem de inúmeros dispositivos, os quais retratam a eficácia interna da função social dos contratos.
Consoante já adrede afirmado, o contrato não pode mais ser concebido como uma relação jurídica afeta somente às partes contratantes, na medida em que atualmente é necessário também verificar sua utilidade e o interesse para a sociedade.
Os dispositivos a serem estudados mitigam a força obrigatória dos contratos, bem como protegem a parte vulnerável da relação contratual.
No âmbito da legislação consumerista, há inúmeros dispositivos de ordem pública, cuja violação pode acarretar a nulidade de cláusulas contratuais ou até mesmo a do contrato.
O artigo 6º, inciso V, da Lei nº 8.078/90, possibilita a revisão ou a resolução do contrato em virtude de abusos eventualmente cometidos por fornecedores ou prestadores de serviços, como por exemplo, as práticas abusivas mencionadas nos incisos do artigo 39, ou a existência de cláusulas abusivas previstas nos incisos do artigo 51.
Importante lembrar que esses dispositivos mantêm íntima relação com a função social dos contratos, pois permitem a relativização do “pacta sunt servanda”, na medida em que possibilitam ao órgão estatal a revisão dos contratos ou declaração de nulidade de cláusulas contratuais que afrontam a ordem pública.
Essa intervenção estatal é bem observada na obra de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx0, ao afirmarem que “o Código de Defesa do Consumidor inova consideravelmente o espírito do direito das obrigações, e relativos à máxima „pacta sunt servanda‟. A nova lei vai reduzir o espaço antes reservado para a autonomia da vontade proibindo que se pactuem determinadas cláusulas, vai impor
8 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx e MIRAGEM, Xxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2013, pág. 623
normas imperativas, que visam proteger o consumidor, reequilibrando o contrato, garantindo as legítimas expectativas que depositou no vínculo contratual”.
Oportuno ressaltar que o rol constante nos incisos do artigo 51 da Lei Consumerista é meramente exemplificativo, já que os incisos IV e XV retratam cláusulas gerais ou abertas ao estabelecerem que são abusivas as cláusulas que determinem “obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis coma a boa-fé ou a equidade” ou quando “estejam em desacordo com sistema de proteção ao consumidor”.
Exemplo prático de abusividade de cláusula contratual é dado pela Súmula 302 do Colendo Superior Tribunal de Justiça ao proclamar que “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”.
O parágrafo segundo do artigo 51 da Lei nº 8.078/90 expressa claramente o princípio da conservação contratual, uma vez que revela a importância dos contratos perante a sociedade ao dispor que “a nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.
Nota-se dessa forma que a preservação do contrato está intimamente ligada a função social do contrato, uma vez que o reconhecimento da nulidade é o último caminho a ser percorrido, pois se for útil e justo o contrato, deverá ser mantido.
O Enunciado 22 do Conselho da Justiça Federal aprovado na I Jornada de Direito Civil espelha bem esta realidade ao dispor que
A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.
Importante frisar que tamanha é a importância da norma de ordem pública que, nos termos do parágrafo quarto do artigo 51 da Lei nº 8.078/90, autoriza o Ministério Público ajuizar ação coletiva para declarar “a nulidade de cláusula contratual que
contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes” em total harmonia com a função social do contrato.
No que tange ao Código Civil, na mesma linha da Lei Consumerista, dispõe de vários dispositivos que mitigam a força obrigatória dos contratos ao impedir a celebração de contratos em desarmonia com ordem social ou quando venham a afetar a parte vulnerável no contrato de modo a desequilibrar a avença.
Dentre eles, podemos citar o artigo 108, do Código Civil, que impõe a obrigatoriedade de escritura nas compra e venda de imóveis superiores a 30 (trinta) salários mínimos, amparando o direito do comprador economicamente destituído de condições financeiras, na medida em que o dispensa do pagamento das despesas com escritura pública.
O parágrafo segundo do artigo 157 do Código Civil prevê o princípio da conservação do contrato, anexo à função social, nos casos de lesão, ao possibilitar a manutenção do negócio jurídico ao invés de anula-lo, se “for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”.
Nesse sentido foi editado o Enunciado 149 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, ao proclamar que “Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002”.
Outro dispositivo importante que retrata a conservação e a função social contratual é o artigo 170, do Código Civil, que permite a conversão do contrato nulo “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro”, subsistindo “este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.
Ilustra bem a aplicação deste disposto a possibilidade de conversão de uma compra e venda de imóvel nula por falta de escritura pública em contrato preliminar de compra e venda.
Atualmente, é possível apenar aquele que abusa do direito também na esfera contratual, com base no artigo 187, do Código Civil, pois quem assim age está desrespeitando o fim social do contrato, salientando que tal dispositivo está intimamente ligado ao princípio da boa-fé objetiva.
No campo do direito obrigacional, a função social do contrato pode ser extraída do artigo 413, do Código Civil, a qual objetiva a adequação da fixação da multa ao contexto social, espancando o enriquecimento ilícito e possibilitando ao magistrado reduzir seu valor utilizando-se da equidade.
Na IV Jornada de Direito Civil foram aprovados dois Enunciados demonstrando claramente a relação entre a eficácia interna da função social dos contratos e a redução da cláusula penal:
355 – Art. 413: Não podem as partes renunciar à possibilidade de redução da cláusula penal se ocorrer qualquer das hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, por se tratar de preceito de ordem pública.
356 – Art. 413: Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já determinou a redução da multa com base neste dispositivo:
AÇÃO DE DESPEJO C/C COBRANÇA DE ALUGUÉIS. ÔNUS DA PROVA DO AUTOR. ART. 333, I, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CUMPRIMENTO PARCIAL DA AVENÇA. REDUÇÃO EQUITATIVA DA CLÁUSULA PENAL. ART. 413, DO CÓDIGO CIVIL. - Ao autor
incumbe o ônus da prova de fatos constitutivos de seu direito, nos termos do art. 333, inciso I, do CPC. Não restando demonstrado que os recibos de quitação juntados pelo réu se referem a aluguéis vencidos em período anteriormente ao cobrado, ônus do qual o autor não se desincumbiu, se revela acertada a decisão pela qual se decotou o débito quitado do crédito pretendido pelo autor. - Considerando o adimplemento parcial pelo locatário,
é de se observar o estabelecido no art. 413, do Código Civil, cabendo ao magistrado a redução equitativa da cláusula penal. (TJ-MG - AC: 00000000000000000 MG , Relator: Xxxxxxx Xxxx, Data de Julgamento: 10/10/2013, Câmaras Cíveis / 13ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/10/2013)
Por fim, sem a pretensão de esgotar os dispositivos do Código Civil que retratam a proteção da função social dos contratos, citam-se os artigos 423 e 424, que protegem o aderente, cujos preceitos são tidos como norma de ordem pública, ressaltando a posição de Xxxxx Xxxx Xxxxx Lôbo9 que entende que tratam do princípio da equivalência material.
Importante mencionar que a eficácia interna da função social dos contratos também pode ser encontrada na legislação extravagante como é o caso da Lei do Inquilinato.
O artigo 35, da Lei nº 8.245/91 permite ao locatário renunciar às eventuais benfeitorias realizadas no imóvel locado ao disciplinar que “Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção”.
Todavia, é forçoso reconhecer que se esta cláusula de renuncia estiver alocada em um contrato de adesão, não poderá prevalecer em razão do disposto no artigo 424, do Código Civil, que dispõe que são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente.
Neste caso, respeitadas as opiniões em contrário, prevalece a cláusula geral prevista no Código Civil em detrimento do dispositivo da Lei do Inquilinato.
O Enunciado 433 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na V Jornada de Direito Civil, adotou este entendimento:
9 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxx. A teoria do contrato e o novo Código Civil. Recife: Nova Livraria, 2003, pág. 18
A cláusula de renúncia antecipada ao direito de indenização e retenção por benfeitorias necessárias é nula em contrato de locação de imóvel urbano feito nos moldes do contrato de adesão.
O mesmo entendimento pode ser seguido nos casos de renúncia antecipada ao benefício de ordem ou de excussão pelo fiador (inciso I do artigo 828 do Código Civil), o qual poderá ser afastado se inserido num contrato de adesão.
Acompanhou este entendimento o Enunciado 364 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, ao dispor que “No contrato de fiança é nula a cláusula de renúncia antecipada ao benefício de ordem quando inserida em contrato de adesão”.
O Egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região, já teve a oportunidade de reconhecer a nulidade da cláusula de renúncia ao benefício de ordem em contrato de adesão, enquadrando do fiador como devedor subsidiário:
CIVIL - AÇÃO MONITÓRIA - FIES - FIANÇA - CONTRATO DE ADESÃO - NULIDADE DA CLÁUSULA DE RENÚNCIA AO BENEFÍCIO DE ORDEM - RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA 1.
Insurge-se a exequente contra a exclusão dos fiadores do polo passivo da demanda, sustentando, em síntese, que a nulidade da cláusula de renúncia ao benefício de ordem não afasta a responsabilidade dos fiadores de responder pela dívida, ainda que de forma subsidiária. 2. Nos contratos de fiança, a regra é o fiador gozar do benefício de ordem. O afastamento deste direito nos contratos de adesão foge da excepcionalidade, passando a ser imposto como regra em contrato formulado por apenas uma das partes. 3. Entretanto, a nulidade da cláusula de renúncia ao benefício de ordem nos contratos de adesão, como no caso do FIES, não exime os fiadores de responsabilidade pelas obrigações assumidas perante a CEF, ou seja, de responder pelo crédito concedido ao devedor principal, subsidiariamente, na forma do art. 827 do Código Civil. 4. Assim sendo, deve ser reconhecida a responsabilidade subsidiária dos réus/fiadores pelo título executivo judicial constituído na ação monitória (art. 1.102c, § 3º do CPC), motivo pelo qual devem ser mantidos no pólo passivo da presente demanda. 5. Apelação conhecida e provida. (TRF-2 - AC: 200851170008020 , Relator: Desembargador Federal XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXXXX DA GAMA, Data de Julgamento:
09/08/2010, SEXTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação:
27/08/2010)
Portanto, ante o exposto, nota-se a íntima relação entre a função social dos contratos e a proteção do aderente, buscando-se assim uma isonomia material.
5 – EFICÁCIA EXTERNA OU EXTRÍNSECA DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS
A eficácia externa da função social dos contratos está ligada a proteção da coletividade na medida em que é possível que existam contratos equilibrados, sem onerosidade excessiva, mas que são nocivos à sociedade, como por exemplo, os que causem danos ambientais.
É claro que nesta espécie de contrato, não há nada de prejudicial às partes contratantes, no entanto, é nocivo à coletividade.
Nesses contratos, portanto, ao serem celebrados, deverão ser observados não só os diretos e obrigações dos contratantes, mas também os riscos ambientais eventualmente causados, como por exemplo, a forma de transporte de um produto nocivo a saúde (por exemplo, transporte de ácido) que, se vazar, poderá acarretar um dano ambiental irreversível.
Outro exemplo corriqueiro da incidência da proteção ambiental dos contratos é encontrado nos grandes empreendimentos imobiliários, os quais pressupõe a feitura de um estudo de impacto ambiental que engloba o estudo de impacto de vizinhança, a viabilizar a construção.
Isso porque esses empreendimentos, além de afetarem diretamente o meio ambiente (substituindo área verde por concreto), ainda prejudicam toda vizinhança e, muitas vezes, o bairro inteiro ao ocasionar aumento extraordinário de circulação de pedestres e veículos, acarretando enorme trânsito local.
Vislumbrando a prevenção, Xxx Xxxx Xxxxxxx Esteves10 salienta que “É imprescindível que as partes contratantes antes de realizarem um contrato conheçam todos os riscos ambientais do objeto do contrato, analisem as atitudes que poderão tomar para evitar danos ambientais, que poderão ser irremediáveis, a eventual forma de resolução de conflitos ambientais que possam surgir no decorrer da execução do contrato, visto que há países que já aceitam a arbitragem como forma de resolução de
10 XXXXXX, Xxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito ambiental aplicado aos contratos. São Paulo: Verbo Jurídico, 2008, p. 60.
conflitos em matéria ambiental, bem como a adequação de suas atividades em especial à legislação”
Portanto, resta claro a eficácia externa da função social dos contratos nos casos citados.
6 – CONCLUSÃO
A obediência ao princípio da função social dos contratos, como se vê, tornou-se um dos pilares mais importantes na elaboração de qualquer espécie de contrato.
Hodiernamente não se permite a celebração de contratos com cláusulas abusivas prejudiciais a qualquer das partes, bem como não se admite o firmamento de avenças desprovidas de efeitos.
O Código Civil vigente não é o único a tratar do referido princípio, pois o Código de Defesa do Consumidor desde a sua promulgação em 1990, já trazia em seu bojo normas que impediam o desequilíbrio contratual nas relações de consumo.
Na mesma esteira de raciocínio podemos extrair normas afetas ao equilíbrio contratual da Lei do Inquilinato conjugada com o Código Consumerista que proíbe a renúncia antecipada ao direito de retenção e indenização por benfeitorias realizadas pelo locatário no imóvel do locador se inseridas em contratos de adesão.
Oportuno ressaltar que a função social dos contratos desdobra efeitos até mesmo em relação a quem não participou da avença, como é o caso da seguradora que não firmou contrato com o terceiro (vítima), mas é obrigada a indeniza-lo diretamente na mesma ação indenizatória promovida em face somente do segurado, assim como pode influenciar no meio ambiente, nas hipóteses de construção de empreendimentos de grande vulto, como por exemplo, um shopping center, que certamente, além de potencialmente afetar o meio ambiente natural, pode impactar no aumento do trânsito local acarretando aborrecimentos à vizinhança do empreendimento, os quais não participaram da relação contratual com do dono do shopping e a construtora.
Portanto, nota-se que com a evolução constante da sociedade importa também na evolução da forma em que são celebradas as avenças, as quais são limitadas pelo princípio da função social do contrato.
Em suma, nota-se que atualmente, em razão da existência da função social dos contratos, não é mais possível a elaboração de contratos desequilibrados ou que possam ser nocivos a sociedade, sendo passíveis de serem afastados pelo poder judiciário.
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