AO GESTOR DA PLATAFORMA PROCESSO COLETIVO
AO GESTOR DA PLATAFORMA PROCESSO COLETIVO
Associação dos Motoristas de Aplicativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte, associação civil sem finalidade lucrativa, inscrita no CNPJ sob o número tal, sediada na Rua Tal, Município de Belo Horizonte, vem, respeitosamente, por intermédio de seu advogado, nos autos do processo coletivo supra indicado, manifestar sobre o que se segue:
1 - Resumo da audiência pública e da pertinência com a associação requerente
Consta, como resumo da audiência pública, a análise, discussão e votação a respeito da natureza jurídica da relação entre a Uber e os motoristas do aplicativo gerido por tal empresa, tendo em vista que a natureza da relação jurídica de vínculos geridos por plataformas digitais vem revolucionando a prestação de serviços no mundo.
A par disso, muitas são as questões jurídicas envolvidas na abordagem do assunto: o âmbito de atuação da empresa; a relação com os prestadores de serviços; a interferência em mobilidade urbana no âmbito das cidades e o controle dos serviços de transporte pelos municípios; a arrecadação de impostos, os contratos de seguro; a relação de consumo; etc.
Assim, no presente processo, que culminará com uma audiência pública simulada, será discutida e ao final votada se a relação jurídica do Uber com os motoristas é ou não relação de emprego, ou se deve ser considerada trabalho autônomo.
Estabelecido o objeto da audiência pública, já em relação à requerente, cumpre salientar que esta é formada por motoristas de aplicativo e tem como objeto social a defesa dos interesses de seus associados, os quais, em assembleia, decidiram que a requerente participasse da audiência pública, manifestando a posição desta associação de ser favorável ao reconhecimento do vínculo de emprego.
2 - Da relação empregatícia havida entre motorista e a Uber
De início, uma constatação precisa ser feita. A evolução tecnológica vem trazendo impactos nas relações jurídicas, as quais não podem, sob pena de obsolescência, serem avaliadas de forma estanque e alheia à dinâmica das modificações do mundo e o papel do ser humano neste contexto.
E é, justamente, num cenário tecnológico que repousa o tema sob deliberação coletiva.
Entende a Requerente que, a tecnologia, no caso específico dos motoristas de aplicativo da Uber, não modifica a relação jurídica entre aqueles e a Uber. Ou melhor, a tecnologia não cria uma relação sui generis de modo a afastar o vínculo empregatício.
Pelo contrário, a relação de emprego está bem presente.
2.1 - Da distinção necessária. Ausência de mera venda de tecnologia. Uber como credora do fruto do trabalho do braço operário.
Analisando-se de forma detida a tecnologia sob enfoque desta audiência pública, no aplicativo Uber, do ponto de vista do motorista, não há ali um oferecimento de tecnologia e cobrança pela disponibilização de tal serviço, mas, sim, uma empresa credora do produto do braço operário, como qualquer outra empregadora.
Esta distinção é fulcral, e vem sendo tratada pelos estudos específicos realizados por estudiosos do direito do trabalho, como se percebe dos ensinamentos de Maurício Godinho Delgado1, para o qual, a nosso modo de ver, com acerto, assevera sobre a instituição de um ‘capitalismo sem reciprocidade’:
“O surgimento de plataformas ou aplicativos eletrônicos, que instrumentalizam a conectividade virtual, para promover a intermediação mercantilizante da mão de obra, apresenta-se, na verdade, a exemplo a terceirização, como mais um fenômeno de inserção de um intermediário na relação laboral, a figurar como um especulador sobre o trabalho alheio.
Quer dizer, a tecnologia de conectividade virtual capaz de colocar, com extrema facilidade, usuários precisando de deslocamento em contato com motoristas que satisfariam a necessidade desses usuários, não apaga a presença da Uber lucrando – e muito –, com a força de trabalho do motorista, o qual é, para os efeitos legais, um empregado, havendo ali uma relação empregatícia, cujos requisito serão demonstrados.
A exigência legal da existência da relação de emprego, conforme prevê a CLT, depende da presença cumulativa dos requisitos de onerosidade, habitualidade, pessoa física, pessoalidade e subordinação.
2.2 Da onerosidade
1 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015.
A Uber, como já enfatizado mais acima, não vende o uso do aplicativo ao motorista, isto é, ela não lucra a partir da cessão do uso de uma tecnologia. Pelo contrário, a Uber lucra sobre a mão de obra do motorista. Diante dos termos do contrato feito com o motorista, típico contrato de adesão e sem possibilidade de modificações à pedido do contratado (como corriqueiramente ocorre nos contratos de emprego), a Uber fatura por cada corrida feita. Ou, em outro dizer, ela explora a força de trabalho do motorista para lucrar.
Isso configura onerosidade que é a contraprestação paga pelo empregador ao empregado pela utilização da força de trabalho do obreiro.
As taxas cobradas pela Uber, portanto, têm como causa a intermediação de corridas, extraindo seu faturamento a partir da intermediação do pagamento deste serviço, figurando o aplicativo como mero meio para atingir este escopo comercial.
Muito oportuno salientar, aliás, que é a própria Uber que define o valor da corrida (e, portanto, o que ela receberá de taxa), o que destaca a onerosidade havida, afinal, não é o motorista quem estipula preço no seu labor, mas a Uber, atuando como uma típica empregadora.
2.3 Habitualidade (não eventualidade)
A Uber, de forma aparente, não faz controle/exigência do horário do labor. Tentando afastar isso, ela tem como slogan o ‘defina seu horário e ganhe dinheiro’. Porém, essa liberdade divulgada não passa de mecanismo de ofuscar a presença de requisito da relação de emprego.
Inserida no contexto da crescente precarização das relações de trabalho com um todo, a Uber sabe que o motorista irá trabalhar no aplicativo.
E não só isto. A Uber tem mecanismos de operar, de forma silenciosa, uma exigência de habitualidade, eis que prevê em seu contrato de adesão com o motorista punições em casos de recusas de corrida e não utilização do aplicativo por longos períodos, o que evidencia, incontestavelmente, que ela faz um controle da jornada. E não atingido patamares de mínimos, ela faz uso de meios para compelir o labor do motorista.
Não bastante a existência de meios coercitivos para um mínimo de jornada, a Uber conta com meios indutivos, que são os bônus, premiações, e fazem com que o motorista cada vez mais trabalhe para ela.
De mais a mais, a própria legislação trabalhista prevê o contrato de trabalho intermitente (art. 443, 3º CLT). Neste tipo de contrato de trabalho a subordinação encontra-se presente, mas não é contínua. Ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador.
2.4 Pessoa física e Pessoalidade
A pessoa física e a pessoalidade são evidentes. O motorista deve ser pessoa física, habilitada a dirigir veículos, e que cumpra determinados requisitos exigidos pela empresa. Demais disto, o motorista deve ser obrigatoriamente cadastrado no aplicativo, com apresentação inclusive de antecedentes criminais, e sujeito à aprovação. Ou seja, há a pessoa física, e, mais do que isso, uma clara e manifesta ‘aplicação para vaga de emprego’.
2.5 Subordinação
O trabalho prestado pelo motorista está totalmente integrado à uma dinâmica empresarial, a ensejar uma subordinação estrutural, consubstanciada numa subordinação algorítmica.
Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, em seu artigo intitulado Direitos fundamentais na relação de trabalho, assevera que:
(...) estrutural é, pois, a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento.
No caso da Uber, a tecnologia de ponta conta com algoritmos que fazem a gestão do labor prestado pelo motorista.
O motorista não consegue verificar todas as ofertas de corridas de disponíveis – muito menos ele estabelece o preço das corridas. É o aplicativo, mediante algoritmos, que faz a gestão das corridas, desde quais serão ofertadas ao motorista, indicação de melhores rotas, locais com maior concentração de ofertas de corridas, até a fixação dos valores.
O motorista, muito diferente do que haveria numa mera locação do aplicativo para que oferte serviços de motorista a terceiros, fica totalmente subordinado ao aplicativo da Uber, cujo algoritmo visa, obviamente, a maior remuneração à sua proprietária. O aplicativo faz às vezes de uma empregadora, porém isso não desnatura, de forma alguma, a presença da subordinação, ao menos numa acepção estrutural-algorítmica.
Neste sentido da existência da subordinação na relação entre Uber e Motoristas, vide os recentes precedentes:
RELAÇÃO DE EMPREGO. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO. TRABALHADOR AUTÔNOMO. MOTORISTA DE APLICATIVO. Na
linha de compreensão firmada pelo grupo de estudos "GE Uber" instituído pelo Ministério Público do Trabalho, "na análise da existência da subordinação, deve ser dada ênfase não na tradicional forma de subordinação, na sua dimensão de ordens diretas, mas a verificação da existência de meios telemáticos de comando, controle e supervisão, conforme o parágrafo único do art. 6º da Consolidação das Leis do Trabalho; (...) em respeito à vedação do retrocesso social, conclui-se este estudo afirmando-se que as novas relações que vêm ocorrendo através das empresas de intermediação por aplicativos, apesar de peculiares, atraem a plena aplicabilidade das normas de proteção ao trabalho subordinado, autorizando o reconhecimento de vínculos empregatícios entre os trabalhadores e as empresas intermediadoras". Nestes casos é inequívoco que a empresa atua como verdadeira fornecedora de serviço de transporte e é responsável pela eleição dos condutores (motoristas), sendo que a inexistência de exclusividade, por si só, não obsta o reconhecimento da relação empregatícia. Uma vez incontroversa a prestação de serviços habituais e a integração do reclamante na dinâmica produtiva da ré, caracterizando o que a doutrina moderna denomina de subordinação estrutural, impõe-se conferir ao apelo provimento para declarar a existência de vínculo empregatício com a reclamada, na função de motorista.
(TRT3, 0010433-09.2021.5.03.0167 (ROT), x. 28 09 2022)
RELAÇÃO DE EMPREGO. MOTORISTA CADASTRADO NA
PLATAFORMA UBER. 1. O reconhecimento da relação de emprego exige o preenchimento dos requisitos estabelecidos nos artigos 2º e 3º da CLT, quais sejam: trabalho prestado por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação jurídica. A reunião concomitante dos elementos fáticos e jurídicos enseja a configuração do vínculo empregatício. 2. Os serviços eram prestados pelos motoristas, de forma pessoal, com onerosidade, não eventualidade e onerosidade. 3. A subordinação jurídica exigida para a configuração da relação empregatícia pode se verificar, segundo a moderna doutrina, nas dimensões subjetiva, objetiva ou estrutural. Pode ser subjetiva, quando se revela por meio de intensas ordens e deveres de obediência; objetiva, em virtude da realização pelo obreiro dos objetivos sociais da empresa; e, estrutural, nas hipóteses em que o trabalho insere-se na
organização, funcionamento e estrutura do empreendimento, ainda que em atividade meio. Caso presente uma dessas dimensões, configurado está o elemento mais sensível e de destaque da relação de emprego. 4. Ainda que existam elementos de autonomia na relação havida entre as partes, eles não afastam a configuração da relação de emprego ante a quantidade de requisitos que apontam a efetiva existência de subordinação algorítmica, com poder diretivo e disciplinar por parte da demandada. 5. Recurso ordinário do autor conhecido e provido para declarar o vínculo de emprego entre o autor e a ré em face da demonstração da presença de todos os elementos fático-jurídicos estabelecidos nos arts. 2º e 3º da CLT.
(TRT da 3.ª Região; PJe: 0010635-26.2021.5.03.0186 (ROT);
Disponibilização: 02/09/2022, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 1085; Órgão Julgador: Quarta Turma; Relator: Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx)
É do tempo atual, como bem acentua juiz Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, titular da 2ª Vara do Trabalho de Divinópolis, em brilhante sentença a respeito do objeto deste processo coletivo (e que também reconheceu a relação de emprego), a migração progressiva do modelo de estrutura empresarial por sociedade pessoal para outro de sociedades de capitais. Rompe-se, definitivamente, com o residual verniz de vínculo interpessoal ainda existente em organizações estruturadas para gestão do capital (como as holdings). O anseio capitalista de acúmulo de capital passa a prescindir de estruturas jurídicas mais elaboradas, antes necessárias ao controle e à fiscalização de resultados dos empreendimentos em que investiam. Tais estruturas jurídicas de controle e fiscalização foram substituídas por algoritmos operados diretamente por fundos de investimento.
E, corroborando a presença da subordinação trabalhista, depreende-se que a Uber mantém um registro do motorista, que contabiliza sua pontuação advinda das notas atribuídas pelos usuários, seus números de cancelamento/aceitação de corridas, registro de ocorrências, e faz com tais dados análises para determinar cursos de reciclagem, aplicações de penalidade e até mesmo desligamento do motorista do aplicativo. Puro poder decorrente da subordinação empregatícia.
3 - Da precarização das relações de emprego. Uma necessária reflexão.
Por último e não menos importante, cabe chamar a atenção para a precarização das relações de emprego que a Xxxx acaba causando.
Em seu site, como chamariz para atrair novos motoristas, a Uber difunde a ideia de que seria possível faturar R$ 1.544,00, por semana. Porém, para alcançar tal valor, seria necessário trabalhar, no mínimo 50 horas semanais:
(xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx/xx-xx/x/x/xxxx/)
Ora, trabalhar 50 horas semanais supera o limite de 44 horas semanais previstas constitucionalmente, estas últimas fixadas com base em diretrizes e parâmetros internacionais de proteção à saúde do trabalhador.
O cenário se agrava com o fato de que nem o valor difundido na publicidade é líquido, isto é, a própria Uber em letras minúsculas, sem qualquer destaque, relata que a quantia mencionada não considera os custos inerentes à atividade do motorista (combustível, etc), que devem ser abatidos ao final da receita obtida, atribuindo ao motorista todo o ônus do negócio da empresa, em total descompasso com a premissa de que os custos inerentes à execução do labor do empregado são, senão, do empregador.
Quer dizer, somente deste fragmento da atuação da Xxxx, além de mascarar uma relação de emprego, ela precariza o trabalho seja pela ‘normalização’ do labor por horas superiores aos parâmetros fixados em observância às regras de saúde do trabalhador, além de atribuir ao empregado o custo do negócio da própria empregadora.
‘Defina seus horários para ganhar dinheiro’ como propagandeia a Uber em site, é do maior sofisma para mascarar uma conformação de condutas a partir de valores neoliberais que derrubam conquistas sociais necessárias a evitar um desiquilíbrio intolerável da exploração da vida humana na cadeia de geração de lucro aos detentores dos meios de produção.
3 - Dos pedidos e requerimentos
Ante ao exposto, a Associação dos Motoristas de Aplicativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte pede seja reconhecido o vínculo de emprego entre os motoristas do aplicativo Uber e a Uber do Brasil Tecnologia Ltda e Uber Technologies Inc, de modo que seja ajuizada ação coletiva visando que as aludidas empresas sejam compelidas ao pagamento de todas as verbas trabalhistas e previdenciárias aplicáveis, além do cumprimento das obrigações de fazer, consistente nas anotações inerentes ao reconhecimento da relação empregatícia.
Requer-se a produção de prova em todos os meios em direito admitidos, especialmente a prova documental, pericial, oitiva de testemunhas e depoimento pessoal.
Nestes termos, pede deferimento.
Belo Horizonte, 23 de outubro de 2022.
Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxx OAB/MG 142.989