CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO - CAUSA FINAL DOS CONTRATOS DE TRATO SUCESSIVO - RESILIÇÃO UNILATERAL E SEU MOMENTO DE EFICÁCIA - INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL - NEGÓCIO PER RELATIONEM E PREÇO DETERMINÁVEL - CONCEITO DE "COMPRA" DE CONTRATO E ABUSO DE DIREITO
CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO - CAUSA FINAL DOS CONTRATOS DE TRATO SUCESSIVO - RESILIÇÃO UNILATERAL E SEU MOMENTO DE EFICÁCIA - INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL - NEGÓCIO PER RELATIONEM E PREÇO DETERMINÁVEL - CONCEITO DE "COMPRA" DE CONTRATO E ABUSO DE DIREITO
Revista dos Tribunais | vol. 826/2004 | p. 119 - 136 | Ago / 2004 Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 6 | p. 873 - 898 | Jun / 2011
DTR\2004\511
Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx
Professor titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (90-94). Ex-Chefe do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo. Atual presidente da Comissão de Legislação e Recurso do Conselho Universitário da Universidade de São Paulo.
Área do Direito: Civil
Sumário:
1. Consulta - 2. Parecer
1. Consulta
1. O escritório de advocacia Demarest & Xxxxxxx nos dá a honra de formular consulta sobre litígio entre sua cliente Distribuidora S.A. e a firma Goncourt Ltda. ("Distribuidora S.A." e "Goncourt Ltda." nomes de fantasia), envolvendo contrato de distribuição de vacinas contra aftosa e de outros produtos para saúde animal. Celebrado em 10.08.2000, o contrato ("Contrato"), deveria viger por cinco anos, a partir de 1.º.10.2000 (cláusula 13.1).
2. Parecer
3. De acordo com o Contrato, os pedidos submetidos pela Distribuidora S.A. à Goncourt Ltda. nos moldes das estipulações contratuais, "pedidos firmes", devem ser prontamente atendidos pela última, desde que disponíveis em seu estoque de produtos aprovados para comercialização (cláusula 2.1). Na eventualidade da Goncourt Ltda., "por razão econômica, política, de logística e/ou por qualquer outra razão", não entregar um pedido de produtos "durante os 60 (sessenta) dias seguintes", deverá pagar determinada "compensação" (cláusula 5.8). Dispõe o Contrato, ainda, que dúvidas, controvérsias ou disputas referentes à sua execução deverão ser solucionadas mediante arbitragem, conduzida pelo Centro de Arbitragem da Câmara Americana de Comércio em São Paulo (cláusulas 23.2 e 23.3).
4. O Contrato foi celebrado com prazo determinado, isto é, "por um período inicial de 5 (cinco) anos", podendo ser "automaticamente renovado por sucessivos períodos anuais", a menos que uma das partes notifique a outra por escrito, 180 (cento e oitenta) dias antes do final do prazo, de sua intenção de não renová-lo (cláusula 13.1). Além de outras hipóteses de extinção da avença (tais como o inadimplemento das partes), prevê o Contrato a possibilidade de a Goncourt Ltda. "recomprar este contrato de distribuição" - (o texto contratual é bilingüe e "recomprar este contrato de distribuição" é a tradução para o português de "to buy-back this distribution contract") - a qualquer momento antes do advento de seu termo final, mediante pagamento de "indenização" a ser calculada conforme os parâmetros contratuais (cláusula 13.7). Na verdade, antes que "indenização" a referência deveria ser ao preço da recompra dos direitos do contrato de distribuição.
5. Assim expõe o consulente o conflito criado entre as partes, bem como suas repercussões judiciais e em procedimento arbitral: "Não obstante a estipulação contratual quanto à vigência do contrato, aliada ao perfeito cumprimento das obrigações contratuais pela Distribuidora S.A., a partir de novembro do ano passado [2001], a Goncourt Ltda. passou a cumprir defeituosamente a sua obrigação contratual de entregar as vacinas para distribuição pela Distribuidora S.A. O cumprimento defeituoso é ressaltado, vez que, em cada oportunidade em que as vacinas eram liberadas pelo Ministério da Agricultura, a Goncourt Ltda. utilizava-se de artimanhas de modo a atrasar a entrega das vacinas à Distribuidora S.A. Diante desses fatos, amparando-se na cláusula 5.8 do Contrato, a Distribuidora S.A. iniciou procedimentos para o recebimento da compensação pecuniária, prevista na referida cláusula, pelo atraso injustificado na entrega das vacinas liberadas pelo Ministério da Agricultura. Assim, a primeira medida adotada pela Distribuidora S.A. foi o início do processo arbitral perante o Centro de Arbitragem da Câmara Americana de São Paulo. Posteriormente, como o processo arbitral teve início conturbado, antevendo dificuldades para a sua efetiva constituição, e premida pelo perigo de dano se mantida a situação criada pela Goncourt Ltda., a Distribuidora S.A. ajuizou perante o juízo estatal, medida cautelar inominada, por meio da qual pretendeu a preservação do resultado útil do processo arbitral. Xxxxxxxx, decisão liminar foi proferida em primeiro grau pelo juízo da 34.ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, que ordenou que a Goncourt Ltda. entregue à Distribuidora S.A. todas as vacinas que sejam liberadas pelo Ministério da Agricultura até o julgamento final do processo arbitral, sob pena de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). A partir de então a Goncourt Ltda. entregou as vacinas que foram liberadas, tendo, todavia, feito tais entregas sempre com atraso, sem qualquer justificativa".
6. Na contestação à medida cautelar inominada ajuizada pela Distribuidora S.A., dentre outras considerações de índole processual, a Goncourt Ltda. alega que (i) o Contrato é "leonino", havendo desequilíbrio de obrigações (principalmente com relação à cláusula de exclusividade), em seu prejuízo; (ii) não deixou de cumprir o Contrato, sendo que "qualquer falha ou problema de entrega das vacinas pela requerida [Goncourt Ltda.] decorreu única e exclusivamente por força maior, irresistível e insuperável momentaneamente ( sic)" (em especial, menciona a reprovação de lotes de vacinas pelo
Ministério da Agricultura, bem como "uma série de problemas de produção, envolvendo qualidade e segurança em sua fábrica, o que afetou sua capacidade produtiva"); (iii) o "contexto econômico" do Contrato sofreu "profunda alteração entre a celebração e o curso da relação", estando presentes os "requisitos para a aplicação da cláusula rebus sic stantibus"; e (iv) a Distribuidora S.A. "está em mora nos pagamentos das compras efetuadas, bem como em flagrante inadimplemento do empréstimo concedido na forma do contrato de distribuição". E conclui: "Frise-se que, inclusive destacado por esse MM. Juízo, que toda a controvérsia do contrato deverá ser discutida em seu mérito na arbitragem instalada na forma do contrato, ou seja, os alegados descumprimentos, a eventual culpa, os preços, eventuais multas ou indenizações etc.".
7. Naquela altura, a situação das partes poderia ser assim definida. Quer a Distribuidora
S.A. quer a Goncourt Ltda. reconheciam a existência, a validade e a eficácia do negócio jurídico celebrado entre elas, que vinha sendo cumprido (na ótica de cada uma das partes) e, como era de se esperar, continuaria a sê-lo, até o advento do termo final, determinado de comum acordo pelas partes. Todavia, dada a discrepância da avaliação das partes quanto ao preciso alcance das disposições contratuais, bem como as alegações de excessiva onerosidade por parte da Goncourt Ltda., o procedimento arbitral iniciado pela Distribuidora S.A. seria o foro adequado para discutir todas as questões envolvendo o cumprimento do Contrato. Tanto é assim que, em 29.05.2002, a própria Goncourt Ltda. solicitou a instauração de procedimento arbitral perante o Centro de Arbitragem da Câmara Americana de Comércio em São Paulo, deduzindo o seguinte pedido: "A Goncourt Ltda.entende que o Contrato de Distribuição deve ser rescindido em razão de vícios, inclusive de consentimento, que o maculam, bem como em razão de violações de obrigações contratuais por parte da Distribuidora S.A., notadamente o não pagamento de produtos entregues e de mútuo com vencimento convencionado para 31.12.2001. Sem embargo, o Contrato de Distribuição tornou-se inexeqüível por diversos fatores, seja em razão de força maior decorrente das constantes reprovações dos produtos pelo Ministério da Agricultura, seja pela onerosidade excessiva para a Goncourt Ltda., além de afrontar os mais comezinhos princípios que regem a contratação bilateral, como enriquecimento indevido, desigualdade de obrigações, boa-fé, entre outros. Em razão das irregularidades do Contrato de Distribuição, que ficarão patentes no procedimento arbitral, além da sua rescisão, a Goncourt Ltda. também entende que a Distribuidora S.A. deve ressarcir-lhe o prejuízo que foi e está sendo obrigada a suportar. Assim, os pedidos da arbitragem serão para a rescisão do Contrato de Distribuição, bem como para reparação pela Distribuidora
S.A. de todos os prejuízos sofridos, pela Goncourt Ltda. Não há, no momento, valor estimado para os pedidos supra". Portanto, a Goncourt Ltda. reconhecia expressamente, nestes termos, a necessidade de discutir o cumprimento e a eventual extinção do Contrato no contexto do procedimento arbitral.
8. Os dois procedimentos arbitrais foram, então, reunidos e os árbitros escolhidos pelas partes. Entretanto, na véspera da convocação para a reunião de formalização do termo de compromisso arbitral e tentativa de conciliação, isto é, no dia 04.11.2002, a Distribuidora
X.X. xxxxxxx-se com a seguinte carta, enviada pela Goncourt Ltda.: "Ficam V. Sas.
notificadas que esta empresa decidiu exercer o seu direito de recompra do contrato, nos termos do parágrafo 13.7, da cláusula 13, nesta data. Em razão do exercício desse direito
V. Sas. fazem jus a R$ 7.862.400,00 [...] a título de indenização contratualmente prevista. Referido montante estará sujeito aos impostos devidos, e será abatido do débito de V. Sas. com esta empresa. Este abatimento implica no pagamento da indenização a Distribuidora S.A., acima mencionada. O débito mencionado, nesta data, é de R$ 8.928.225,42 [...] correspondente a duplicatas em aberto e empréstimo objeto de notificação judicial. O valor remanescente de R$ 1.065.825,42 [...] deverá ser pago por V. Sas. de imediato, juntamente com o cumprimento do disposto no parágrafo 13.6 da cláusula 13. Tendo em vista que o presente ato formaliza o exercício do direito livremente contratado, fica resilida, nesta data e para todos os efeitos legais, a relação jurídica com V. Sas." (grifos nossos). Portanto, pouco mais de dois anos e um mês após o início da vigência do Contrato, e para total surpresa da Distribuidora S.A., a Goncourt Ltda. dava por unilateralmente resilida a relação contratual, com efeitos imediatos.
9. Prossegue a narração da consulente: "Ato contínuo, no mesmo dia, ou seja, ainda no dia
4 de novembro, a Goncourt Ltda. vendeu as vacinas do seu lote de número 12/02, diretamente a clientes da Distribuidora S.A. A Distribuidora S.A. diante da conduta acintosa da Goncourt Ltda. noticiou ao juízo estatal o descumprimento da decisão liminar, inclusive a suposta resilição na qual se amparava a Goncourt Ltda. O juiz da 34.ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo determinou, então, que fosse a Goncourt Ltda. pessoalmente intimada para que continue a cumprir a decisão acautelatória. A Goncourt Ltda., não obstante a ordem judicial, completou a venda iniciada no dia 4, já no dia 5 de novembro, desconsiderando por completo a decisão judicial. Instada a justificar o seu comportamento, requereu ao juiz que considerasse a sua resilição como válida, de modo a ser caracterizada como fato novo no processo a justificar a extinção do feito sem julgamento do mérito por perda de objeto, ou mais corretamente, por carência de ação superveniente. No momento, aguarda-se decisão do juiz a respeito do requerimento formulado pela Goncourt Ltda. e pela Distribuidora S.A., especificamente quanto ao requerimento da Distribuidora S.A., para que seja a multa pelo descumprimento da decisão cautelar majorada para obstar a conduta desleal da Goncourt Ltda. ou sejam impostas outras medidas de apoio para obrigá-la a cumprir a decisão judicial, tais como, a intimação de terceiros, nomeadamente a Central de Selagens e os Armazéns Gerais XYZ, que têm obrigação de armazenar, selar e fazer a liberação para transporte das vacinas de todas as empresas fabricantes de vacinas contra febre aftosa no Brasil".
10. Diante do exposto, pergunta o consulente:
1) "O término do contrato pela Goncourt Ltda. amparado exclusivamente na cláusula 13.7 do Contrato é possível ou deve ela ser combinada com os demais dispositivos contratuais?"
2) "O término unilateral do contrato produz efeitos imediatos como quer a Goncourt Ltda.? Entender dessa forma não seria o mesmo que equiparar tal cláusula à possibilidade de rescisão unilateral, imotivada e sem notificação prévia do contrato, sem que haja previsão expressa nesse sentido e sem que a natureza do contrato autorize/legitime essa
conclusão?"
3) "Mesmo que não houvesse uma decisão judicial (liminar) a obrigar a entrega das vacinas à Distribuidora S.A., ainda assim teria a Goncourt Ltda. direito de terminar o contrato abruptamente?"
4) "A conduta da Goncourt Ltda., da forma como historiada nesta consulta e ainda, a partir do que se pode depreender das suas petições do processo judicial e no processo arbitral, pode ser considerada lícita ou acorde com as normas em vigor?"
5) "Pode a Goncourt Ltda. pretender a compensação de créditos e débitos nos termos da sua carta de resilição contratual? Estão presentes os requisitos exigidos pelo art. 1.009 e seguintes do CC?"
6) "Considerando que não houve descumprimento ou inexecução do contrato pela Distribuidora S.A. e, por outro lado, que houve atraso na entrega das vacinas pela Goncourt Ltda. e venda direta das vacinas no mercado de consumo, se a Distribuidora S.A. optar pela manutenção do contrato, faz jus ao recebimento de indenização a ser paga pela Goncourt Ltda., à luz da cláusula 5.8 do Contrato?"
7) "Indaga-se, ainda, se existem outras considerações pertinentes a juízo de Vossa Senhoria".
11. Depois de formulada a consulta acima transcrita, sobreveio decisão de primeiro grau, indeferindo o pedido da Goncourt Ltda. para que a demanda cautelar fosse julgada extinta por conta da resilição pretendida. Em virtude disso, acrescentou a consulente os seguintes quesitos:
8) "Considerando que a Goncourt Ltda. notificou a Distribuidora S.A. nos termos da cláusula 13.7 do contrato de distribuição, indaga-se: (i) a mera notificação (sem o pagamento imediato de qualquer indenização) é suficiente para operar a resilição/término do contrato, exonerando a Goncourt Ltda. de suas obrigações, ou constitui apenas e tão-somente manifestação da vontade de recomprar o contrato?; (ii) Em caso negativo, que outros elementos ou manifestações de vontade são necessários para operar a resilição/término do contrato, além da notificação?; e (iii) É certo afirmar que o pagamento de indenização prevista na cláusula 13.7 constitui condição para que a resilição possa produzir efeitos com relação ao término do contrato de distribuição?"
9) Supondo haja discordância entre as partes dos valores devidos em razão da aplicação da cláusula 13.7 do contrato de distribuição, e determinação judicial/arbitral de tal valor tem caráter constitutivo, declaratório ou condenatório?"
Passamos a responder.
2. PARECER
12. O contrato de distribuição celebrado entre a Goncourt Ltda. e a Distribuidora S.A. pertence, por sua natureza, à categoria dos contratos de duração, cuja elaboração
sistemática deve-se, sobretudo, às doutrinas italiana e alemã (contratti di durata, Dauerverträge). Tais contratos abrangem mais de uma espécie, mas incluem, em particular, contratos de trato sucessivo ou de execução continuada; desses contratos originam-se "relações obrigacionais duradouras" (dauernde Schuldverhältnisse). Sobre os contratos de duração em geral, pode-se seguir a tipologia de Xxxxxxx Xxxx que ensina haver três modos pelos quais o tempo pode influenciar as relações contratuais. Em uma primeira hipótese, o agente tem interesse em que a satisfação de suas necessidades ocorra em um determinado momento; o tempo funciona, assim, como fator de determinação da "sede temporal" do ato, isto é, do termo (essencial ou não) assinalado à execução da prestação de uma das partes ou de ambas, marcando a distância entre o ato constitutivo da relação jurídica e o ato de adimplemento. Pode-se falar, pois, em "execução diferida". No segundo caso, o tempo diz respeito à lenta formação da execução, a qual demanda certo lapso temporal, necessário para que o ato se aperfeiçoe. É o que ocorre, por exemplo, no contrato de empreitada, no qual a satisfação do interesse e o adimplemento dependem do resultado final de uma atividade preparatória mais ou menos longa (realização da obra). Embora a execução possa ser dita "continuada", o adimplemento, afinal, é instantâneo. O tempo, nesse caso, não tem o condão de prolongar o ato de adimplemento, mas sim de prepará-lo. Finalmente, na terceira hipótese, o tempo corresponde ao "interesse na satisfação continuada de uma necessidade duradoura". O ato de adimplemento, portanto, não é diferido no tempo, nem se aperfeiçoa após certo lapso temporal, mas dura. Tem-se adimplemento continuado ou protraído no tempo. Ao passo que no segundo caso o tempo é "suportado" por uma ou por ambas as partes, em virtude da impossibilidade de obter a satisfação de seus interesses instantaneamente (pense-se novamente na empreitada), na terceira categoria apontada pelo autor, o tempo é "desejado" pelas partes. Somente nesse último caso há, portanto, contrato de duração em sentido restrito, de que são exemplos o contrato de distribuição, o contrato de sociedade e o contrato de trabalho, dentre outros ("I contratti di durata", Scritti giuridici, Padova: Cedam, 1992. vol. III, p. 209 et seq.). É verdade que uma visão ainda mais atual exigiria um acréscimo às posições de Xxxxxxx Xxxx no sentido de que, hoje, há contratos em que as fases de conclusão e execução do contrato não se distinguem com precisão, mas esse tema, nesse passo, é impertinente.
13. Nos contratos de duração em sentido restrito, ou seja, nos de trato sucessivo, como no de distribuição, o alongar-se o adimplemento por uma certa duração é exigência para que o contrato satisfaça os interesses que levaram as partes a contratar, atingindo a sua finalidade, ou seja, é um essentiale negotii. O tempo faz parte, nesses contratos, da sua causa final, ou de sua função, ou de sua "causa", sem adjetivação, no dizer habitual da maioria dos autores italianos. É o que afirma Xxxxxxx Xxxx: "Quanto si è già osservato sulla funzione della durata nel caso ora considerato, e cioè che alla durata corrisponde la soddisfazione (continuativa) di un interesse durevole, porta ad affermare che, nella materia delle obbligazioni, la durata così intesa attiene alla funzione del contratto, nel senso che il protrarsi dell'adempimento per una certa durata è condizione perché il contratto produca l'effetto voluto dalle parti e soddisfi i bisogni che le mossero a contrattare; e nel senso, correlativo al primo, che l'utilità che le parti si ripromettono dal contratto è relativa alla durata del rapporto. Onde la durata stessa non è subíta dalle parti
- come è subíto il tempo (o la 'distanza') nell'ipotesi precedente - ma è voluta da esse in quanto l'utile del rapporto è alla durata proporzionale. È con riferimento a questa caratteristica della durata che si è affermato che 'per i rapporti di obbligazione a scopo immediato, tanto meglio quanto più brevemente si svolgono, mentre per i rapporti di obbligazione ad esecuzione continuativa, tanto meglio quanto più si xxxxxxxxxx xxx xxxxx' [x referência é a Xxxxxxxxxx. "La diffida nei contratti e nel contratto di lavoro". Rivista del Diritto Commerciale, 1939, vol. I, p. 523 et seq.]". E, em outro trecho: "La durata dell'adempimento attiene alla causa del contratto nel duplice senso che questo non adempie alla funzione economica cui è preordinato se la sua esecuzione non si prolunga nel tempo, e che l'utile che alle parti deriva dal rapporto è proporzionale alla durata di questo. La durata è quindi elemento causale e non modalità accessoria del contratto: la causa, nei contratti di durata, non consiste nell'assicurare ad una parte una singola prestazione isolata, ancorché tale prestazione possa pretendere dal debitore una precedente attività continuativa (locatio operis), o possa essere effettuata in parti e in momenti diversi (contratti ad esecuzione ripartita), ma nel'assicurare la ripetizione di una prestazione per una certa durata, o la prestazione di una attività continuativa, come tale, del debitore per una certa durata. Ciò discende dalla circostanza, su cui si è insistito, che alla durata corrisponde, sempre sotto il profilo causale, un interesse o bisogno durevole cui appunto il contratto soddisfa e che la durata è condizione di tale soddisfazione e quindi, anche per questa via, essentiale e non accidentale negotii" (op. cit., p. 221, 248-249).
14. Um dos modos específicos de extinção de uma relação jurídica de trato sucessivo, por estar relacionado às circunstâncias acima apontadas, é a resilição unilateral, levada a efeito por ato denominado "denúncia". A eficácia da denúncia é a de pôr termo final a um contrato (mais propriamente, a uma relação contratual) estabelecido por prazo indeterminado, apagando os seus efeitos a partir daí (ex nunc). No presente caso, está claro que o Contrato foi estipulado por prazo inicial determinado de 5 anos ("período inicial"
- cláusula 13.1), a ser automaticamente renovado por sucessivos períodos anuais (a menos que houvesse notificação em sentido contrário - cláusula 13.1), caso em que o prazo inicial iria sendo acrescido de um ano, sucessivamente (o que não o tornaria, a nosso ver, indeterminado). A cláusula 13.7, na qual a Goncourt Ltda. amparou a "resilição" unilateral, prevê a possibilidade de "recomprar" o Contrato a qualquer momento "antes da data de expiração". A declaração de vontade de recomprar, comunicada pela Goncourt Ltda. à Distribuidora S.A., deu-se em 04.11.2002, portanto pouco mais de 2 anos e 1 mês após o termo inicial do Contrato, antes da metade do prazo inicial mínimo determinado pelas partes. Desse modo, vê-se logo, até mesmo pela denominação contratualmente utilizada, que o exercício da opção de recompra não é a resilição unilateral típica, a qual, por assim dizer, se verifica quando se trata de contrato por prazo indeterminado. Conquanto diversas as hipóteses, faremos a seguir algumas observações sobre os limites ao exercício do direito de resilição unilateral, as quais, como maior força, hão de ter aplicação à recompra pretendida pela Goncourt Ltda.
15. Sendo o prazo de duração do contrato de distribuição um essentiale negotii, as eventuais vicissitudes desse prazo devem ser analisadas levando em consideração o
reflexo direto que provocam no próprio fim do contrato. Como já tivemos oportunidade de escrever, há vários sentidos da palavra "causa". A palavra "causa" é plurívoca. A causa mais relevante, do ponto de vista da interpretação do contrato, é a causa enquanto função econômico-social do negócio jurídico, que, para evitar confusão com os demais significados, preferimos denominar "fim do negócio jurídico" (Negócio jurídico e declaração negocial. Noções gerais e formação da declaração negocial. Tese para o concurso de Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986. p. 129). A correta interpretação do Contrato celebrado entre a Distribuidora S.A. e a Goncourt Ltda. deve, portanto, levar em conta que a causa (fim) do Contrato está diretamente ligada à sua duração, tal como estabelecida de comum acordo pelas partes.
16. Antes de fazer considerações referentes ao modo pelo qual a Goncourt Ltda. pretendeu exercer o direito de opção de compra, deve-se extrair o conteúdo das disposições contratuais, principalmente daquelas referentes ao prazo e aos modos de extinção do vínculo contratual, a fim de inserir a mencionada cláusula 13.7 no contexto do contrato e interpretá-la da maneira mais adequada. Com efeito, o que se estipula no art. 13 do Contrato, acerca da duração e término, pode ser assim resumido, no que mais de perto nos interessa. O Contrato foi celebrado por prazo inicial determinado de 5 anos, a ser automaticamente renovado por sucessivos períodos anuais (cláusula 13.1). Caso uma das partes não desejasse renovar o Contrato, deverá notificar a outra por escrito, sendo tal notificação eficaz somente se feita com uma antecedência mínima de 180 dias (cláusula 13.1). No caso de inadimplemento de qualquer das partes, a parte que não estiver inadimplente poderá terminar o Contrato, desde que notifique a parte faltosa com no mínimo 60 dias de antecedência (cláusula 13.2). Além de outras hipóteses em que o término do Contrato não se subordina à notificação (cláusula 13.4), ou, em casos graves e específicos, nos quais a notificação é "de efeito imediato" (cláusula 13.3), dispõe por fim, a cláusula 13.7: "(Goncourt Ltda.) sempre terá a opção e será autorizada pela Distribuidora, a qualquer momento, a recomprar este Contrato de distribuição antes da data de expiração. A indenização devida à Distribuidora será calculada utilizando-se dos seguintes parâmetros: a) os anos restantes do presente Contrato; b) o volume de mercado esperado para os anos restantes de acordo com o programa de erradicação definido pelo Ministério da Agricultura; c) as previsões de vendas da Distribuidora e o rendimento da Distribuidora. A indenização mencionada acima não será aplicável se a Diretoria do Grupo Goncourt Ltda. decidir deixar (não vender) os negócios de FMD no Brasil e ambas as partes calcularão a indenização através de processo de mediação" (grifos nossos).
17. Vê-se, destarte, que a recompra prevista na cláusula 13.7, interpretada no contexto contratual, e considerando-se sua natureza de compra, ou resgate, dos direitos do contrato, há de ter sua eficácia própria condicionada ao prévio pagamento de "indenização" à Distribuidora S.A., ou, pelo menos, à fixação do preço em valor certo - voltaremos a esse ponto - a ser quantificado em procedimento de arbitragem segundo os parâmetros contratuais. É importante notar que os parâmetros estabelecidos na referida cláusula não tornam a determinação do valor da "indenização" - rectius, do preço devido à Distribuidora
S.A. -, mero cálculo matemático. Note-se em especial a imprecisão quantitativa decorrente
dos critérios estipulados, tais como "o rendimento da Distribuidora" e "as previsões de vendas da Distribuidora". Certamente cada parte calculará o preço a seu modo e é prevendo tal circunstância que se fala em recurso à arbitragem. A exata fixação do preço da compra foi postergada; houve somente determinação dos parâmetros; portanto, preço determinável, mas não determinado (cf. art. 104, II, do CC/2002 (LGL\2002\400) e ainda, especialmente, o art. 487 sobre a compra e venda, no mesmo Código).
18. Ademais, não traz a cláusula em análise menção ao modo pelo qual a decisão de resgate do Contrato deve ser manifestada à Distribuidora S.A., nem, expressamente, ao momento em que tal comunicação produzirá efeitos. Há, portanto, nesse passo, uma lacuna contratual em sentido lato. Como preencher tal lacuna? Antes de mais nada, mediante uma interpretação que leve em conta a vontade comum das partes manifestada no todo contratual. Ora, se a notificação de não renovação só é eficaz se entregue à contraparte 180 dias antes do fim do prazo do Contrato (cláusula 13.1) e a resolução por inadimplemento tem sua eficácia condicionada a um aviso prévio de 60 dias (cláusula 13.2), com mais razão ainda o exercício da opção de compra, sem definitiva fixação do preço, não poderá ser considerada imediatamente eficaz. É o resultado de uma interpretação sistemática e contextual da cláusula apontada. Bastasse uma notificação de efeitos imediatos e haveria menção expressa nesse sentido, tal como se verifica na cláusula 13.3. Tendo sido o Contrato estabelecido por prazo mínimo de 5 anos (prazo esse que é elemento essencial do negócio, como se viu), é evidente que a admissão de uma declaração de vontade de compra, sem fixação de preço, acarretando incontinente uma espécie de resilição imotivada ante tempus sempre surpreenderia a Distribuidora S.A., que veria toda a estrutura da empresa de distribuição, por ela montada com o fim único de atender à Goncourt Ltda., ociosa, de um dia para o outro. É evidente, pois, que, nesse caso, mais do que em qualquer outra hipótese de extinção da relação contratual, o rompimento deve ser precedido de notificação escrita e sua eficácia deverá subordinar-se, além da fixação definitiva do preço - assunto ao qual voltaremos -, ao transcorrer de lapso de tempo razoável (aviso prévio) para que Distribuidora S.A. possa adaptar-se à ruptura do Contrato.
19. Até aqui, interpretou-se a cláusula 13.7 recorrendo a todas as cláusulas contratuais (inc. II do art. 131 do Código Comercial de 1850, agora revogado); trata-se do princípio bimilenar, dito da totalidade hermenêutica: "incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua particula eius proposita iudicare vel respondere" (Celso em D. 1, 3, 24). Outro elemento, porém, que deve ser considerado, agora sob a ótica da interpretação integrativa do contrato, baseada na boa-fé objetiva (art. 113 do CC/2002 (LGL\2002\400)), há de ser o entendimento do fim econômico e social do direito contido na cláusula 13.7. Que a interpretação deve observar todas as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais se salienta o fim econômico e social, não é novidade. Até mesmo sem a regra da boa-fé objetiva, este já era o sentido atribuído ao art. 85 do CC/1916 (LGL\1916\1), agora reproduzido no art. 112 do CC/2002 (LGL\2002\400) (com alteração que atende à doutrina de Xxxxxxx Xxxxxxxx, "Parte geral - Dos factos jurídicos (arts. 74 a 160)", Manual do Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, de Xxxxx xx Xxxxxxx, Rio de Janeiro: Xxxxxxxx Xxxxxxx dos
Xxxxxx, 1923, p. 186). Analisando o § 133 do CC alemão, fonte de inspiração do art. 85, já Xxxxx Xxxx extraía do dispositivo a regra segundo a qual o intérprete deve levar em conta todas as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais sobressai o fim econômico do negócio (A interpretação dos negócios jurídicos, trad.portuguesa Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, Coimbra: Xxxxxxx Xxxxx, 1942, p. 105). Ora, da análise dos dispositivos contratuais, depreende-se que o fim econômico e social do direito expresso na cláusula 13.7 não é estabelecer o termo final para uma relação jurídica constituída indefinidamente, com o escopo de evitar que as partes ficassem vinculadas eternamente, como se tratasse de resilição imotivada, mas sim permitir uma extinção excepcional do Contrato, atendendo rigorosamente aos interesses de ambas as partes, em especial garantindo à Distribuidora
S.A. o pagamento do preço correspondente à recompra, ruptura anormal do Contrato. Portanto, o fim econômico e social da estipulação contida na cláusula 13.7, bem como o próprio fim do Contrato, determinam a interpretação acima feita. Nesse sentido, é altamente discutível, até mesmo que Goncourt Ltda. possa lançar mão do direito de recompra, tendo, tal como narrado pela consulente, descumprido o Contrato; parece razoável entender, que o privilégio atribuído à Goncourt Ltda. por força da cláusula 13.7 pressupõe o integral cumprimento de suas obrigações contratuais.
20. A interpretação correta do Contrato leva, conseqüentemente, a extrair o seguinte entendimento do que foi estabelecido pelas partes: a Goncourt Ltda. tem o direito de recompra, pondo fim à relação jurídica derivada do contrato antes do término do prazo convencionado, desde que não esteja inadimplente e, principalmente, condicionando-se a eficácia da declaração de vontade ao pagamento prévio do preço, ou, pelo menos, à sua fixação segundo o procedimento contratualmente previsto - trata-se de negócio jurídico per relationem -, eis que seu montante deve ser apurado em processo arbitral, levando em conta os cálculos de ambas as partes. Além disso, é preciso sempre reconhecer o prazo necessário para que a Distribuidora S.A. possa adaptar-se ao final prematuro do Contrato. Qualquer outra interpretação violaria a boa-fé, a figura contratual escolhida de negócio per relationem (sobre isso, falaremos adiante) e os cânones hermenêuticos fundamentais. Não pode a Goncourt Ltda., agindo maliciosamente, interpretar o Contrato em desacordo com as demais cláusulas contratuais, sem considerar seu fim econômico e social e em desrespeito à boa-fé.
21. A confirmar o acerto da asserção sobre o prazo necessário para adaptação, pode ser citado o art. 473 do CC/2002 (LGL\2002\400), que estatui: "A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos" (reforços gráficos nossos). O art. 720 do mesmo Código, por seu turno, inserido no capítulo relativo ao contrato de agência e de distribuição (não regulado no Código Civil de 1916 (LGL\1916\1)), complementa o dispositivo transcrito, nos seguintes termos: "Se o contrato for por tempo indeterminado, qualquer das partes poderá resolvê-lo, mediante aviso prévio de noventa dias, desde que transcorrido prazo
compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente. Parágrafo único. No caso de divergência entre as partes, o juiz decidirá da razoabilidade do prazo e do valor devido" (reforços gráficos nossos). Vê-se como o art. 720 abre a possibilidade de o juiz entender que a denúncia, embora comunicada com aviso prévio, e no contrato com prazo indeterminado, não é eficaz, porque não transcorreu ainda prazo suficiente para que o distribuidor recupere o investimento feito. Se isto é assim nesses contratos, os de prazo indeterminado, com mais razão ainda deverá ser no caso presente em que se trata de exercício de opção, como direito formativo de compra, implicando extinção de relação contratual duradoura. O espírito do dispositivo encontra-se também no art. 22, § 2.º, da Lei 6.729/79 (concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre), que dispõe: "Em qualquer caso de resolução contratual, as partes disporão do prazo necessário à extinção das suas relações e das operações do concessionário, nunca inferior a 120 (cento e vinte) dias, contados da data da resolução".
22. Passemos à questão do preço da recompra e à figura do negócio per relationem. É ponto importantíssimo na cláusula 13.7 o consistente no fato de que a "recompra do contrato" - na verdade, compra dos direitos do contrato - tem preço determinável , e não, determinado. Trata-se, pois, de negócio jurídico per relationem. Essa figura negocial não tem merecido, como deveria, a atenção da doutrina e da jurisprudência brasileira. Entretanto, em 1974, já dela tratávamos, procurando, ainda que insuficientemente, lhe fixar os contornos, no livro Negócio jurídico: existência, validade e eficácia (São Paulo: Saraiva, p. 156 - hoje em 4.ª edição, sem alteração de texto, salvo remissões aos artigos do CC/2002 (LGL\2002\400), p. 136): "Evidentemente, faz parte do objeto do 'negócio jurídico', e é também conteúdo expresso, tudo aquilo que, por remissão, se incluiu no negócio. Tem-se, então, o chamado negócio per relationem, isto é, aqueles negócios, no qual uma parte do seu conteúdo, ou já consta de outros atos ou negócios, havendo no negócio per relationem somente uma remissão que a integra ao seu conteúdo sem repeti-la, ou será ainda determinada por outros atos ou negócios a serem realizados. Há, pois, dois tipos de negócio per relationem: a) negócio formalmente per relationem, isto é, cujo conteúdo já está todo determinado e no qual apenas não se repete, por economia, o que consta alhures 'na verdade, o negócio jurídico formalmente per relationem é falso negócio jurídico per relationem' e b) negócios substancialmente per relationem, isto é, em que parte do conteúdo, no momento de sua perfeição, é deixada 'em branco', a fim de ser fixada no futuro. Nesse último caso, parte do conteúdo é, pois, determinável, mas não ainda, determinada". Na ocasião, citamos Xxxxx e Cariota Ferrara, em seus livros sobre o negócio jurídico em geral; posteriormente, na Espanha, em 1982, foi publicada toda uma monografia sobre o assunto: El negócio juridico per relationem nel Codigo Civil (Madri: Colex), de Xxxxx Xxxxxxx Xxxx-Xxxxxxx Xxxxxxx.
23. O caso mais típico de negócio jurídico per relationem é justamente o de compra e venda com preço ou objeto determinável. Escreve a citada autora espanhola (p. 69): "1. El negocio per relationem en la compraventa. Entre los negocios que pueden celebrarse per relationem se encuentra, en primer lugar y por su frecuencia, el contrato de compraventa. En su esquema típico la compraventa es un contrato que, por lo general, tiene todos los
elementos determinados en el momento de su perfección. Pero también es frecuente que adopte ciertas modalidades en las que algún elemento se determine per relationem. Así cuando: a) El objeto de la compraventa se determina per relationem mediante la remisión a una cosa cierta (arts. 1.273 y 1.445 del CC), o en las compraventas con prestaciones alternativas y genéricas (arts. 1.131 y ss. y 1.167 del CC) o, en fin, en la emptio rei speratae (art. 1.271 del CC); b) El precio se determina per relationem por remisión a una cosa cierta (art. 1.447, 1.º, CC), por remisión a un tercero o arbitrador (art. 1.447, CC) y por remisión a determinado día, Bolsa o mercado (art. 1.448, CC). Es decir, dos elementos esenciales del contrato de compraventa, como son el objeto y el precio, pueden determinarse -y es frecuente además en la vida práctica- per relationem" (reforços gráficos nossos). E, citando jurisprudência: "Que aunque nuestro Código civil en los articulos 1.445 y 1.450 exige que el precio de la compraventa sea cierto, ello no quiere significar que su exacta cuantia ha de ser precisada en el acto mismo de la celebración del contrato, sino que dicho cuerpo legal permite aplazar la fijación de él para un momento posterior, simpre que al perfeccionarse el contrato se hubiesen convenido unas normas claras y concretas para que se haga la oportuna determinación de dicho precio, sin dejar lugar a dudas" (sentença de 22.02.1968 do Supremo Tribunal).
24. A conseqüência dos negócios per relationemé semelhante (mas não igual) a dos negócios sob condição suspensiva, ou seja, são ineficazes até que haja a determinação do ponto ainda não determinado. Essa ineficácia é, naturalmente, a que diz respeito aos efeitos próprios, e não, a efeitos preliminares, secundários ou anexos, como são sua irrevogabilidade, a faculdade de tomar as providências necessárias para a determinação do conteúdo etc. No caso examinado, o exercício da opção de recompra é, em tudo, semelhante ao exercício do direito de retrovenda ("compra a retro" = "buy-back"); não se pode considerar a declaração de vontade como idônea a produzir o resgate antes do pagamento ou, pelo menos, antes da fixação do preço segundo o contrato, para que haja oferta efetiva. Em síntese: a notificação de 4 de novembro de 2002 é exercício, pela Goncourt Ltda., de direito de opção de recompra; com ela, a compra e venda está aperfeiçoada, mas, como se trata de negócio per relationem, os efeitos não são imediatos. É preciso que o preço seja pago, ou, pelo menos, passe da condição de determinável à de determinado - e determinado segundo o contrato -, para que haja oferta efetiva.
25. Xxxxxxxx Xxxxxx, em sua monumental La compravendita (Milão: Xxxxxxx, 1971, p. 1.059) exige pagamento ou, pelo menos, uma oferta efetiva. Essa oferta, no caso, acrescentamos nós, deverá evidentemente ser fixada nos termos do pacto de resgate previsto na cláusula 13.7 do contrato, que exige cálculo segundo três "parâmetros": a) anos restantes de contrato; b) volume de mercado esperado nesses anos; e c) previsões de venda e rendimento da distribuidora. O referido autor escreve: "Ocorre l'effettivo pagamento, o almeno l'effettiva offerta; non è sufficiente, invece, la mera dichiarazione di essere pronto a pagare, sia pure compiuta con serietà, con l'intenzione di pagare entro breve tempo, e con la capacità economica di farlo. Il pagamento può essere offerto senza l'osservanza di alcuna particolare formalità, sempre purchè l'offerta non si riduca ad un semplice preavviso di futuro pagamento ma sia effetiva, cioè consista nel mettere
contemporaneamente a disposizione del riscattato la somma dovuta, di guisa che l'incassarla dipenda, ormai, solo da questi".
26. Há ainda, finalmente, outro ângulo sob o qual a questão pode ser analisada: o do abuso de direito, intimamente ligado à boa-fé objetiva em seu nível mais elementar. Há muito tempo se reconhece que os direitos devem ser exercidos dentro de determinados limites estabelecidos pelo sistema jurídico. Quando o exercício de um direito não respeita tais limites, diz-se que há abuso de direito. A doutrina do abuso de direito surgiu, como é sabido, a partir da jurisprudência francesa do início do século XIX mas também na doutrina alemã encontrou grande desenvolvimento. Na Alemanha, a teoria do abuso de direito inicialmente ligou-se ao § 226 do BGB (proibição de chicana), depois ao § 826 (ato que atenta contra os bons costumes), e finalmente ao § 242 (execução do contrato de acordo com a boa-fé), permanecendo o abuso de direito, ao final, como espécie de "figura ordenadora intermédia", a qual "permite agrupar, em tratados e comentários, subfiguras ligadas à boa fé mas que, dentro do vasto campo desta, são de arrumação difícil" (Menezes Xxxxxxxx, Xx xxx xx xx xxxxxxx xxxxx, xxxxx., Xxxxxxx: Almedina, 1997, p. 687-694 e 706; e também em Tratado de direito civil português, 2. ed., Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, vol. 1, t. I, p. 241 et seq.).
27. O Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 consagra a proibição do abuso de direito, determinando, em seu art. 187: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Tal norma não difere, em substância, da contida no art. 160 do CC/1916 (LGL\1916\1) (interpretado a contrario sensu). A fonte imediata de inspiração do art. 187 do CC/2002 (LGL\2002\400) foi o art. 334 do CC português de 1966, de redação quase idêntica, o qual, como esclarece Menezes Cordeiro, foi praticamente copiado do Código Civil (LGL\2002\400) grego de 1946, cuja inspiração, por sua vez, foi a doutrina alemã (op. cit., p. 711 et seq.).
28. O direito de opção de compra é um direito formativo, dito também especialmente na Itália, desde Chiovenda, de direito potestativo. Um direito potestativo pode criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica. No caso, como se trata de recompra, o que mais se salienta é o aspecto extintivo porque a conseqüência do exercício do direito de recompra, a ocorrer quando a declaração de vontade obtiver sua eficácia própria, será a extinção da relação contratual entre a Distribuidora S.A. e a Goncourt Ltda. Sob esse ângulo, haverá uma situação semelhante à da resilição unilateral, como já dissemos, eis que a recompra levará à resolução do contrato por ato unilateral (o exercício da opção). A posição jurídica passiva correspondente ao direito potestativo diz-se situação de sujeição. Cabe esclarecer, todavia, antes de prosseguir, que até mesmo os direitos potestativos podem ter a licitude de seu exercício limitada pela proibição do abuso de direito (Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx Xx, Abuso do direito, reimp., Coimbra: Almedina, 1997, p. 613 et seq.; Menezes Cordeiro, op. cit., p. 898; Xxxxxx Xxxxxxxx, "L'abuso del diritto", Rivista di Diritto Civile, ano XI, parte prima, 1965, p. 242 et seq. e passim). Não há mais, diante da idéia de sociabilidade, que perpassa todo o direito civil atual, direitos subjetivos cujo exercício não possa ser eventualmente considerado abusivo; é inquestionável que até mesmo o exercício do direito
de resilir unilateralmente uma relação jurídica advinda de contrato de duração pode configurar-se abusivo. É sintomático que já em 1904 Xxxxxx-Xxxxx-Xxxxxxx Xxxxxxx, em tese de doutorado intitulada L'abus du droit (Paris: Xxxxxx Xxxxxxxx), chamava a atenção da jurisprudência francesa sobre o abuso do direito de resilir unilateralmente (droit de rompre) contratos de trabalho e de prestação de serviços por tempo indeterminado, caracterizado quando não houvesse motivo legítimo para a ruptura (op. cit., p. 23-25, 65-66). No mesmo sentido, Xxxxxx Xxxxxxx (L'abus du droit (étude critique), Paris: Dalloz, 1913, p. 139 et seq.). O abuso de direito é sempre uma quebra da boa-fé no seu nível mais elementar, o de proibição de agir com má-fé.
29. O abuso do direito de resilir unilateralmente contratos de duração celebrados por prazo indeterminado é tratado há muito tempo pela doutrina e pela jurisprudência. Inicialmente, tal abuso foi reconhecido no campo dos contratos de trabalho. A partir daí, generalizou-se. Uma das aplicações freqüentes dessa doutrina diz respeito ao contrato de sociedade. Entre nós, já Xxxxxx Xxxxxxx advertia, em seu Curso de direito comercial: "Sustentamos que em face de modernas teorias, o sócio não tem o direito absoluto de pedir a dissolução total da sociedade, sem motivos relevantes. [...] É claro que o sócio não é obrigado a permanecer, contra sua vontade, numa sociedade a prazo indeterminado. Sua liberdade constitui um direito inalienável e incontestável. Esta liberdade interessa-lhe sobremodo, mas a garantia de seu exercício diz respeito também à coletividade. Não pode, nem deve, pois, ficar escravizado ao organismo comercial, após falecer-lhe a affectio societatis. Por isso lhe é reconhecido o direito de retomar sua liberdade. Mas, o uso desse direito deve ser exercido, regularmente, sem afetar os interesses dos demais, muito menos os da própria coletividade em que vive e prospera. Não resta dúvida de que a retomada de sua liberdade constitui motivo legítimo para pedir a dissolução. [...] Se, por um lado, possui o requisito do interesse legítimo, por outro não lhe assiste o direito de agir sem considerar os prejuízos que acarretaria aos demais sócios, e que agindo com alguma ponderação poderia evitar" (op. cit., 20. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, vol. 2, p. 270-273) (grifos nossos).
30. No âmbito dos contratos de abertura de crédito celebrados com instituições financeiras, encontram-se decisões recentes da jurisprudência italiana, aplaudidas pela doutrina, nas quais se julgou abusiva e contrária à boa-fé a resilição imotivada ( recesso"ad nutum") dos referidos contratos por parte do banco, quando essa resilição assumiu contornos imprevistos e arbitrários, contrastantes com a razoável expectativa do cliente (Xxxxxxxxx Xxxxxxx, "Abuso del diritto: l'arbitrario recesso ad nutum della banca", Contratto e impresa, 1998, vol. 1, p. 18-26; Xxxxx Xxxxx, "Diritto di recesso dal contratto di apertura di credito a tempo indeterminato e violazione della buona fede", Contratto e impresa, 1999, vol. 3, p. 920-938).
31. A doutrina do abuso da resilição unilateral também é correntemente aplicada em se tratando de contratos comerciais de duração, tais como os contratos de distribuição, de agência, de concessão mercantil e de franquia. Afirmam Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxxxx Xxxxx e Xxxx Xxxxxxx: "En raison de son caractère potestatif, le droit de résiliation unilatérale risque d'être exercé de façon arbitraire. Aussi convient-il de réserver l'hypothèse de son exercice de mauvaise foi. [...] A ce titre l'obligation de respecter un
délai de préavis suffisant constitue déjà la manifestation particulière d'une exigence plus générale de bonne foi contractuelle. Mais celle-ci ne se satisfait pas de la seule application de cette première règle. En effet l'application généralisée de la théorie de l'abus de droit vient encore renforcer la moralisation de l'exercice de la résiliation unilatérale, qui, contrairement à la situation qui prévalait au XIXe siècle, ne peut plus être discrétionnaire. En matière de concession commerciale, la Cour de cassation rappelle ainsi fréquemment que si le concédant peut librement mettre fin à son contrat, c'est à la condition de ne pas agir abusivement". E, após citar algumas decisões, comentam: "Un tel mouvement jurisprudentiel s'inscrit parfaitement dans une évolution générale qui tend aujourd'hui à renforcer le devoir de loyauté et de coopération qui doit animer les parties contractantes au cours de l'exécution du contrat. S'il devait être confirmé, spécialement dans le domaine de la concession, il permettrait d'équilibrer des rapports contractuels qui laissent trop souvent les concessionnaires 'à la merci des concédants'" (Traité de droit civil - les obligations, 2.ª parte ("Les effets du contrat"), 2. ed., Paris: LGDJ, 1994, p. 286-289, reforços gráficos nossos). A preocupação com o modo de exercício do direito de resilição unilateral do contrato de distribuição transparece também nas decisões, adiante citadas, da nossa jurisprudência.
32. Ora, o exercício do direito de recompra, se tivesse efeitos imediatos, como pretende a Goncourt Ltda., seria abusivo porque não teria respeitado os limites impostos pelo fim econômico e social do direito de opção, pela boa-fé e pelos bons costumes. A demonstração não é difícil e a nosso ver pode ser feita tanto sob o perfil do fim econômico e social quanto sob a ótica da boa-fé. Inicialmente, no que toca ao fim econômico e social, um juízo de correspondência entre o direito exercido no caso concreto e o fim econômico e social para o qual o direito foi conferido revela a disparidade caracterizadora do abuso (e conseqüentemente da ilicitude). Como já visto, o direito de recompra pressupunha o atendimento rigoroso aos interesses da parte prejudicada isto é, da Distribuidora S.A., em especial mediante o pagamento do preço que compensasse os direitos do Contrato e a ruptura anormal. Ao pretender agir da maneira narrada, a Goncourt Ltda. simplesmente estaria ignorando o fim econômico e social do direito a ela conferido, abusando do direito. Idêntico é o raciocínio de Menezes Cordeiro. Analisando decisão proferida pelo Arbeitsgericht de Hannover em 09.02.1972, pela qual se decidiu "que celebrado um arrendamento por prazo indeterminado, não pode o senhorio, por força da regra da boa fé, denunciar o contrato apenas três meses e meio volvidos sobre a sua celebração, depois do inquilino ter realizado certos melhoramentos" (note-se, aliás, a preocupação com os investimentos feitos pela parte que sofre com a resilição unilateral, a exemplo do que se verifica nos arts. 473 e 720 do CC/2002 (LGL\2002\400)), afirma o autor: "[...] a hipótese seria, aliás, de contrariedade ao fim social e econômico do direito" (Da boa fé no direito civil, cit., p. 747, nota 384). Diga-se entre parênteses que o civilista português não vê, propriamente, nesse caso, quebra da boa-fé, mas, para nós, todo abuso de direito é quebra da boa-fé em seu primeiro nível. Como quer que seja, admitir eficácia imediata para a notificação da Goncourt Ltda. de 04.11.2002 seria permitir a integral frustração do fim do Contrato e da cláusula 13.7.
33. Já sob a ótica da boa-féem seu segundo nível, o de deveres fundamentalmente positivos, a Goncourt Ltda., ao pretender exercer um pseudodireito de resilir unilateralmente o Contrato nos moldes aqui noticiados, violou deveres conexos ao exercício do direito de recompra, tais como os deveres de cooperação e de lealdade (art.
422 do CC/2002 (LGL\2002\400)), cuja observância deve permear as fases de desenvolvimento e extinção da relação contratual, frustrando a confiança já criada na Distribuidora S.A. Antes de prosseguir, note-se que as relações contratuais duradouras, tais como a derivada do Contrato em análise, têm como peculiaridade uma "vinculação pessoal mais forte" (Larenz, Metodologia da ciência do direito, 3. ed., Lisboa: Fundação Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx, 1997, p. 671), o que intensifica a necessidade de as partes respeitarem o princípio da boa-fé. Trata-se de "contrato relacional" na tipologia americana. Ora, no caso em tela é evidente que a Goncourt Ltda., ao pretender uma resilição abrupta do Contrato ainda no curso da primeira metade do prazo fixado pelas partes, sem conceder prazo necessário para que a Distribuidora S.A. se adaptasse ao término do Contrato, reorganizando a sua empresa, e sem pagar, ou até mesmo sem fixar, para uma oferta efetiva, o preço devido à Distribuidora S.A. conforme o procedimento estabelecido no Contrato, violou a boa-fé. Lembre-se que a Distribuidora S.A. é uma sociedade constituída com o único propósito de distribuir os produtos da Goncourt Ltda. e que realizou todos os investimentos necessários para estruturar uma empresa de distribuição que atendesse às necessidades específicas das vacinas contra febre aftosa fabricadas pela Goncourt Ltda. Afinal, a Distribuidora S.A. obrigou-se a distribuir exclusivamente as vacinas produzidas pela Goncourt Ltda. A exclusividade é, aqui, fator particularmente relevante, pois "[...] em casos como este [distribuição com exclusividade], a denúncia do contrato solapa toda a base econômica do distribuidor, ao passo que ao fabricante bastará escolher novo distribuidor para a mesma área, que já a encontrará semeada pelo antigo" (Xxxxxxxx Xxxxx de Xxxxx, "Sobre a denúncia dos contratos de distribuição, concessão comercial e franquia", Revista Forense, vol. 343, p. 144). Aproveitando a lição de Xxxxxx Xxxxxxx acerca da dissolução da sociedade, pode-se dizer, portanto, que a Goncourt Ltda. não tinha o direito de agir sem considerar os prejuízos que acarretaria à Distribuidora S.A. e que, "agindo com alguma ponderação, poderia evitar" (op. cit., p. 273).
34. A ruptura brusca do Contrato feriria as justas expectativas da Distribuidora S.A., causando-lhe prejuízos que a Goncourt Ltda. não poderia ignorar. Com a instauração de processo arbitral para discutir o Contrato, a Goncourt Ltda. reforçou ainda mais a expectativa de que o Contrato seria mantido até decisão final proferida na instância competente. A má-fé da Goncourt Ltda. transparece, ademais, das próprias informações e argumentos contraditórios dos quais vem se valendo para sustentar sua frágil posição. Um exemplo parece esclarecedor. A Goncourt Ltda. chegou a alegar que a sua "capacidade anual instalada" era de 40 milhões de doses de vacinas (carta datada de 04.07.2002). Todavia, na contestação à medida cautelar inominada ajuizada pela Distribuidora S.A., afirmou que tal capacidade era de aproximadamente 46 milhões de doses, questionando os pedidos superiores a esse montante (p. 28 da contestação). Por fim, admitiu que a "produção anual estimada pelo Contrato (Demonstrativo 'D')" era de 60 milhões de doses (demonstrativo do cálculo da indenização anexo à carta de 04.11.2002). De fato, o
demonstrativo D anexo ao Contrato fala em uma participação inicial de 26% em um mercado total de 230 milhões de doses de vacina, o que resulta em 59,8 milhões de doses. Por sua vez, o demonstrativo C anexo ao Contrato estima as vendas totais, no ano de 2001, em 65.160 milhões de doses. A projeção das partes, feita de comum acordo no momento da celebração do Contrato, indicava, portanto, um aumento gradual do mercado de vacinas contra febre aftosa. Quanto às alegações de desequilíbrio nas prestações definidas pelo Contrato, basta uma rápida leitura do instrumento contratual para concluir que a Goncourt Ltda. transferiu à Distribuidora S.A. praticamente todos os riscos do negócio (riscos de distribuição, de venda dos produtos, de promoção dos produtos e de uso das marcas - cláusulas 2.1, 6.1 a 6.4 e 14.1), e ainda conservou o controle sobre o mesmo. Note-se, ademais, que qualquer alegação, por parte da Goncourt Ltda., de eventual vício de consentimento a macular o Contrato, não merece ser acolhida, tendo em vista que a Goncourt Ltda. reconheceu a validade e a eficácia do Contrato durante os mais de 2 anos em que o cumpriu (tanto que se propôs a rescindi-lo por suposto inadimplemento da Distribuidora S.A.), não podendo vir agora, em flagrante contradição com a sua conduta anterior (venire contra factum proprium), alegar vício de consentimento. Qualquer vício estaria sanado; é o que dispõe o art. 175 do CC/2002 (LGL\2002\400) (art. 151 do CC/1916 (LGL\1916\1)), verbis: "execução voluntária de ato anulável".
35. A respeito dos pretendidos efeitos imediatos, os tribunais brasileiros têm decidido casos análogos no mesmo sentido do que expusemos. Podem ser citadas as seguintes ementas:
"Contrato de concessão mercantil. Caracterização. Distinções. Propriedade do fundo de comércio e dos produtos adquiridos para revenda, com exclusividade. Ruptura do contrato. Pré-aviso. A rescisão do contrato pelo concedente é de ter-se como abusiva, se ele rompe unilateralmente a avença, sem pré-aviso, de maneira intempestiva, ou com prazo insuficiente, diante da antigüidade da relação jurídica, sem que nada, na conduta do concessionário, justifique tal manifestação de vontade. A culpa do concedente abre oportunidade ao concessionário de pedir reparação dos prejuízos, que sofreu. [...] Procedência parcial da ação afastada a pretensão de lucros cessantes. [...] Recurso extraordinário não conhecido" (STF - RE 95.052-RS - rel. Min. Xxxx xx Xxxxxxxx - x. 26.10.1984 - RTJ 133/326).
"Contrato de distribuição exclusiva de produtos. Vigência por tempo indeterminado. Legalidade da rescisão desse contrato por meio de denúncia imotivada, desde que constitua exercício regular do direito. Abusividade no caso reconhecida tendo em conta o tempo de duração anterior do contrato, de sua importância econômica financeira, da antecedência do aviso prévio ser insuficiente para que a distribuidora redirecionasse os seus negócios sem prejuízo e de outras circunstâncias peculiares da espécie. Manutenção da sentença de procedência da ação, com alteração, contudo, das verbas que compõem a indenização e do modo pelo qual serão apuradas. Recursos parcialmente providos para tanto e para carregar igualmente às partes as verbas sucumbenciais" (TJSP - 9.ª Câm. de Direito Privado - ApCív 104.281-4/4-00 - j. 24.10.2002 - RT 786/263).
"Contrato - Distribuição de bebidas - Resilição unilateral por parte da fabricante - Pretendida indenização - Ação julgada parcialmente procedente - Confirmação da decisão, com dosagem diversa do 'quantum' devido - Indenização devida a fim de evitar-se o locupletamento indevido pela fabricante de bebidas - Recurso da ré desprovido, e o da autora provido parcialmente" (TJSP - 7.ª Câm. de Direito Privado - ApCív 122.337-4/2-00
- j. 08.05.2002).
"Rescisão de contrato. Falta de motivação. Sujeição ao pagamento da indenização consistente em lucros cessantes e danos emergentes. Indenização correspondente ao pagamento das garrafas 'bicadas', bem com as despesas de fretes. Indenização pela depreciação do fundo de comércio. Descabimento. Danos morais. Prova inexistente. Contrato de distribuição por prazo indeterminado rescindido, pelo demandado, sinalado o prazo de trinta dias, importa em sujeição ao pagamento da indenização pretendida consistente em lucros cessantes e danos emergentes, apontados pela perícia. [...] Apelo parcialmente provido" (TJRS - 6.ª Câm. Cív. - ApCív 598378727 - j. 19.12.2001).
"Agravo de instrumento. Ação de obrigação, com preceito cominatório. Antecipação da tutela. 1. Denúncia do contrato de distribuição de produtos Antarctica-Polar que vigorou por muitos anos. Prazo exíguo de encerramento dos negócios, sem previsão de indenização. 2. Ação de obrigação com preceito cominatório e pedido de antecipação de tutela. Possibilidade de exame pelo juiz e determinação para que prossiga a entrega dos produtos, com multa diária em caso de descumprimento. 3. Temperamento da fórmula civilista/obrigacional da pacta sunt servanda, diante da nova realidade que se põe à análise do intérprete dos ajustes. Alteração substancial da base do negócio depois da fusão entre as companhias fabricantes de cervejas. Prejuízo iminente de uma das partes a justificar a manutenção das empresas contratantes no mesmo estado. Reconhecimento do significativo desequilíbrio existente em ajuste sobre a possibilidade de rescisão de um contrato, sem previsão de qualquer tipo de indenização, cortando abruptamente uma relação comercial marcada pela exclusividade - o que equivale a não desenvolver outros negócios com concorrentes, ficando preso a uma só marca ou a um só produto, como no caso em exame. Não se prega acordos perpétuos, eternos, impossíveis de rescindir, ou que se imponha a todos os contratos a intervenção e revisão judicial. Mesmo que tenha sido negociado individualmente, mas diante da verificação de que seu conteúdo revela infração às exigências da boa-fé, o contrato merecerá a intervenção estatal através do juiz. Agravo improvido" (TJRS - 5.ª Câm. Cív. - AgIn 70002678324 - j. 09.08.2001).
36. Na notificação de 04.11.2002, a Goncourt Ltda. calculou unilateralmente não só o montante do preço a ser pago à Distribuidora S.A., em clara violação ao disposto na cláusula 13.7, como também procedeu ainda unilateralmente em relação aos alegados débitos de Distribuidora S.A. para com Goncourt Ltda., "compensando" maliciosamente tais valores com o preço. Ora, tal compensação não atende aos requisitos do art. 369 do CC/2002 (LGL\2002\400) (art. 1.010 do CC/1916 (LGL\1916\1)), pois não envolve dívidas líquidas. Dívida líquida é a "certa, quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto", de acordo com a definição lapidar do art. 1.533 do CC/1916 (LGL\1916\1). Todos os valores em consideração, tanto o preço quanto os supostos débitos de Distribuidora S.A.
devem ser objeto de apuração no processo de arbitragem instaurado pelas partes. Ilíquidas as verbas, impossível, portanto, a compensação pretendida.
37. Isto posto, passamos a responder aos quesitos. Ao 1.º, "O término do contrato pela Goncourt Ltda. amparado exclusivamente na cláusula 13.7 do Contrato é possível ou deve ela ser combinada com os demais dispositivos contratuais?", como deixamos escrito, a cláusula 13.7 deve ser combinada e complementada com os demais dispositivos contratuais. A interpretação correta da referida cláusula encontra-se nos itens n. 17, 18, 19 e, especialmente, no item n. 20 acima: "a Goncourt Ltda. tem o direito de recompra, pondo fim à relação jurídica derivada do contrato antes do término do prazo convencionado, desde que não esteja inadimplente e, principalmente, condicionando-se a eficácia da declaração de vontade ao pagamento prévio do preço, ou, pelo menos, à sua fixação segundo o procedimento contratualmente previsto - trata-se de negócio jurídico per relationem -, eis que seu montante deve ser apurado em processo arbitral, levando em conta os cálculos de ambas as partes. Além disso, é preciso sempre reconhecer o prazo necessário para que a Distribuidora S.A. possa adaptar-se ao final prematuro do Contrato". Ao 2.º, "O término unilateral do contrato produz efeitos imediatos como quer a Goncourt Ltda.? Entender dessa forma não seria o mesmo que equiparar tal cláusula à possibilidade de rescisão unilateral, imotivada e sem notificação prévia do contrato, sem que haja previsão expressa nesse sentido e sem que a natureza do contrato autorize/legitime essa conclusão?", respondemos que o término do contrato pelo exercício do direito de recompra não pode produzir efeitos imediatos. É o que se infere à luz da interpretação do texto contratual e de tudo que decorre da escolha da figura do negócio jurídico per relationem e ainda da boa-fé, aliada ao fim econômico e social do Contrato. Não se pode falar, no caso, de resilição unilateral imotivada e, muito menos, admitir efeitos imediatos de término contratual. Ao 3.º, "Mesmo que não houvesse uma decisão judicial (liminar) a obrigar a entrega das vacinas à Distribuidora S.A., ainda assim teria a Goncourt Ltda. direito de terminar o contrato abruptamente?": ainda que não houvesse a mencionada liminar, a Goncourt Ltda. não teria o direito de resilir o Contrato abruptamente, porque tal ato violaria o Contrato (que exige ou o pagamento prévio do preço ou, pelo menos, sua quantificação, apurada por meio de arbitragem, conforme os parâmetros contratuais, ou por acordo) - além da exigência legal de tempo razoável para que a Distribuidora S.A. possa reorganizar as suas atividades. Ao 4.º, "A conduta da Goncourt Ltda., da forma como historiada nesta consulta e ainda, a partir do que se pode depreender das suas petições do processo judicial e no processo arbitral, pode ser considerada lícita ou acorde com as normas em vigor?", afirmamos que a conduta da Goncourt Ltda., ao pretender denunciar o Contrato sem atender às disposições contratuais e legais, é abusiva (há abuso de direito) e, assim, ilícita; ao vender vacinas diretamente aos clientes da Distribuidora S.A., também desrespeitou claramente o disposto no Contrato. Ao 5.º, "Pode a Goncourt Ltda. pretender a compensação de créditos e débitos nos termos da sua carta de resilição contratual? Estão presentes os requisitos exigidos pelo art. 1.009 e seguintes do CC/1916 (LGL\1916\1)?", dizemos que a Goncourt Ltda. não pode pretender a compensação de créditos e débitos, em virtude da iliquidez das verbas em jogo (quer o preço, "indenização", devido à Distribuidora S.A. quer os supostos débitos da Distribuidora S.A.), cuja existência e
montante devem ser objeto de apuração no processo de arbitragem instaurado pelas partes. Ao 6.º, "Considerando que não houve descumprimento ou inexecução do contrato pela Distribuidora S.A. e, por outro lado, que houve atraso na entrega das vacinas pela Goncourt Ltda. e venda direta das vacinas no mercado de consumo, se a Distribuidora S.A. optar pela manutenção do contrato, faz jus ao recebimento de indenização a ser paga pela Goncourt Ltda., à luz da cláusula 5.8 do Contrato?", respondemos que o atraso na entrega das vacinas contra febre aftosa à Distribuidora S.A. e a venda das mesmas, diretamente aos clientes da Distribuidora S.A., violam as cláusulas 2.1 e 5.8 do Contrato, fazendo, pois, a Distribuidora S.A. jus à indenização prevista na cláusula 5.8 do Contrato. Ao 7.º, "Indaga-se, ainda, se existem outras considerações pertinentes a juízo de Vossa Senhoria.", devemos nos reportar ao que escrevemos sobre o carácter de negócio jurídico per relationem da recompra. Ao 8.º, "Considerando que a Goncourt Ltda. notificou a Distribuidora S.A. nos termos da cláusula 13.7 do contrato de distribuição, indaga-se: (i) a mera notificação (sem o pagamento imediato de qualquer indenização) é suficiente para operar a resilição/término do contrato, exonerando a Goncourt Ltda. de suas obrigações, ou constitui apenas e tão-somente manifestação da vontade de recomprar o contrato?; (ii) Em caso negativo, que outros elementos ou manifestações de vontade são necessários para operar a resilição/término do contrato, além da notificação?; e (iii) É certo afirmar que o pagamento de indenização prevista na cláusula 13.7 constitui condição para que a resilição possa produzir efeitos com relação ao término do contrato de distribuição?", dizemos que o exposto nos itens 22, 23, 25 e, especialmente no item 24 revela que, no caso, há compra de direitos contratuais mediante exercício de direito de opção mas compra per relationem, com preço determinável, e em que, portanto, os efeitos da transferência dos direitos não são imediatos; dependem do pagamento ou, pelo menos, de oferta efetiva que, no caso, expressamente, supõe a fixação de seu valor, segundo os procedimentos contratuais. Ao 9.º, "Supondo haja discordância entre as partes dos valores devidos em razão da aplicação da cláusula 13.7 do contrato de distribuição, e determinação judicial/arbitral de tal valor tem caráter constitutivo, declaratório ou condenatório?", cumpre dizer que, a nosso ver, a fixação do preço mediante decisão judicial/arbitral, ou mesmo por acordo, no caso, não tem propriamente caráter nem declaratório nem constitutivo nem condenatório; essa tricotomia é mais apropriada para os negócios jurídicos e as sentenças, ou seja, para os atos preceptivos in se (autônomos). Pensamos que, nos negócios per relationem, que são atos com suporte fático incompleto, o ato que os completa é somente ato ou fato complementar (ou integrativo). Portanto, a relatio não é, em si, declaratória, constitutiva ou condenatória, e sim, ato complementar do suporte fático do negócio jurídico ao qual se relaciona. É o nosso parecer.