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O incumprimento do contrato de trabalho imputável ao trabalhador numa perspetiva não disciplinar
Resumo
O incumprimento do contrato de trabalho imputável ao trabalhador pode gerar responsabilidade disciplinar e responsabilidade civil. Deste modo, o trabalhador pode ser responsabilizado pelos danos que causar ao empregador em virtude da violação do contrato de trabalho.
Existem duas modalidades de incumprimento do contrato de trabalho potencialmente geradoras de responsabilidade civil: i) tipificadas no Código do Trabalho e ii) resultantes da regra geral prevista no art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
Relativamente às situações tipificadas no Código do Trabalho, têm todas como denominador comum a aplicação dos critérios indemnizatórios previstos no art. 401.º do Código do Trabalho e estão relacionadas com a cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador. Este art. 401.º do Código do Trabalho prevê a aplicação de duas indemnizações autónomas. Enquanto a primeira tem carácter sancionatório, a segunda diz respeito aos danos decorrentes da cessação do contrato de trabalho em desrespeito do aviso prévio por parte do trabalhador.
Salvo no caso de cessação da comissão de serviço, ao art. 401.º do Código do Trabalho apenas pode recorrer o empregador.
Com o Código do Trabalho de 2003 e, atualmente, com o art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009, ficou consagrada expressamente a integração da regra geral de incumprimento dos contratos associada ao Direito do Trabalho. Contudo, ao contrário da solução francesa e belga, o legislador português não estabeleceu qualquer limite à responsabilidade civil do trabalhador resultante do incumprimento do contrato de trabalho.
A extensibilidade das regras previstas no Código Civil ao incumprimento do contrato de trabalho deve afastar-se se forem incompatíveis com o carácter continuado da relação de
trabalho. Daí que seja importante fazer salvaguardas na aplicação da exceção de não cumprimento e da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil.
Qualquer litígio resultante do incumprimento do contrato de trabalho é uma questão emergente de contrato de trabalho, independentemente de se recorrer a regras gerais civis.
Abstract
The breach of the employment contract by the employee may generate disciplinary responsibility and liability. Therefore, the employee may be liable for the damages caused to the employer as a consequence of the breach of the employment contract.
There are two types of breach of the employment contract that may generate liability: i) the ones typified in the Portuguese Labour Code and ii) the ones arising from the general rule set by article 323, no. 1, of the Portuguese Labour Code.
In what regards the situations typified by the Portuguese Labour Code, they all have the following common denominators: (i) the criteria for calculation of the indemnity amount as set by article 401 of the Portuguese Labour Code; and (ii) they all refer to the termination of the employment contract by the employee. Article 401 of the Portuguese Labour Code sets two autonomous indemnities. One of them has a punitive aim. The other one refers to the damages caused by the termination of the employment contract without the legal notice period.
Both the former Portuguese Labour Code of 2003 and the current Code approved on 2009 (article 323, no. 1) set that the general civil principle regarding the breach of contracts is applicable to the employment contracts. However, unlike French and Belgian law, Portuguese law does not establish any limit to the liability of the employee arising from the breach of the employment contract.
The rules of the Portuguese Civil Code that are incompatible with the continuous nature of the employment contract must not be applicable to the breach of such type of contracts. It is therefore important to assure the application of the exeptio non adimpleti contractus and the presumption of misconduct specified in article 799 of the Portuguese Civil Code.
Any dispute that arises from a breach of an employment contract is an issue resulting from such type of contracts regardless of the application of the general civil principles.
Índice
2. O incumprimento contratual na lei geral 6
3. O incumprimento do contrato de trabalho 10
4. Situações de responsabilidade civil do trabalhador, emergente de incumprimento contratual, tipificadas no Código do Trabalho 14
4.1 Incumprimento do aviso prévio em caso de denúncia de contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador 15
4.2 Incumprimento do aviso prévio em caso de cessação de comissão de serviço 22
4.4 Resolução do contrato de trabalho 28
4.5 Invalidade e cessação de contrato de trabalho 30
5. O art. 363.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 e a inovação legislativa estabelecida 36
6. O art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009 39
6.2 Exceção do não cumprimento 40
6.3.1 Presunção de culpa em contexto de responsabilidade disciplinar 42
6.3.2 Presunção de culpa em contexto de responsabilidade civil 46
6.4 Limites interpretativos 48
6.5 Consequência da aplicação do regime 49
7. A Divergência Jurisprudencial 51
7.2 Posição do Supremo Tribunal de Justiça 52
7.3 Posição do Tribunal da Relação do Porto 53
7.4 Posição do Tribunal da Relação de Lisboa 53
7.5 Posição do Tribunal da Relação de Évora 57
7.6 Reflexão sobre o posicionamento jurisprudencial atual 58
1. Introdução
O interesse científico sobre o incumprimento contratual de um trabalhador numa relação laboral tem-se debruçado essencialmente na ótica da infração disciplinar. Por outras palavras, a análise deste tema tem sido circunscrita ao seu enquadramento enquanto violação dos deveres laborais por parte do trabalhador nos termos previstos no art. 128.º do Código do Trabalho1 e inerente consequência sancionatória.
Na verdade, esta abordagem acaba por se tornar natural, uma vez que o contrato individual de trabalho contém caraterísticas muito próprias. Com efeito, esta relação contratual atribui a uma das partes – o empregador – o poder de sancionar a contraparte – o trabalhador – em caso de incumprimento do contrato. Assim, por diversas vezes, a única consequência imputada a um trabalhador por violação do contrato de trabalho traduz-se no exercício do poder disciplinar por parte do empregador. Esta natureza resulta da relação de subordinação de uma parte à sua contraparte. Nesta medida, o efeito sancionatório que emana do poder de direção do empregador tem sido inclusivamente entendido como “o elemento coativo da norma ditada pelo empregador no exercício daquele poder”2.
Com o desenvolvimento das relações de trabalho, aumentou a complexidade das obrigações do empregador e do trabalhador. Assim, é possível apreender que o incumprimento contratual do trabalhador pode ter como consequência outros efeitos que não são “ressarcidos” com o direito sancionatório do empregador. Deste modo, do incumprimento do contrato de trabalho podem resultar danos patrimoniais para o empregador que não são acautelados pela tutela disciplinar. Por outro lado, os danos causados pelo trabalhador e a responsabilidade civil daí adveniente, devem ser enquadrados no âmbito do contrato de trabalho e não com mero recurso às regras dos contratos civis gerais.
Com a introdução do art. 363.º, n.º 1 no Código do Trabalho de 20033, ficou finalmente aberto o caminho para o reconhecimento legislativo dos princípios obrigacionais contratuais na
1 Na data da elaboração do presente estudo, está em vigor o vulgarmente designado Código do Trabalho de 2009, resultante da publicação da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2012, de 25 de Junho. Deste modo, a referência a artigos do Código do Trabalho seguirá a sequência dos referidos diplomas.
2 Cfr. XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx, Do fundamento do poder disciplinar laboral, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 223.
3 Ao fazermos referência a Código do Trabalho de 2003, limitamo-nos a recorrer a uma designação correntemente utilizada. Não queremos assumir qualquer posição relativamente à natureza da reforma de 2009. A título de exemplo, XXXXX XXXXXX XXXXXXX aborda a divergência entre os autores que identificam a Lei n.º 7/2009 como um novo Código, enquanto outros limitam-se a encontrar neste diploma uma mera revisão do
relação de trabalho. As alterações introduzidas no art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009 vieram reforçar esta posição. Resulta, pois, de forma inequívoca o carácter privado da relação contratual laboral, apesar da imperatividade de parte das suas regras4.
Assim, com o presente estudo, pretendemos percecionar a extensão do incumprimento do contrato de trabalho e respetivos efeitos. Deste modo, propomo-nos fazer a decomposição de uma relação laboral por forma a permitir um necessário enquadramento dos direitos e obrigações gerados. Pretende-se, pois, nesta análise verificar se o direito do trabalho mantém a sua autonomia em todos os feixes de um contrato individual de trabalho apesar da extensibilidade das normas previstas no Código Civil. Tendo em conta que o incumprimento contratual é essencialmente estudado numa perspetiva de violação contratual por parte do empregador, procuramos enquadrar o tema num contexto em que o incumprimento é apenas imputável ao trabalhador.
Pelo que, face ao exposto, vamos analisar o incumprimento contratual imputável ao trabalhador numa perspetiva não disciplinar.
2. O incumprimento contratual na lei geral
Em primeiro lugar, é importante fazer uma abordagem às regras gerais relativas ao incumprimento do contrato, previstas no art. 798.º e seguintes do Código Civil. Ora, como sabemos, de acordo com este artigo “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”. Este princípio adjacente às relações contratuais acaba por se tornar um verdadeiro princípio geral de direito privado. Enquadra-se, assim, no padrão genético identificado por MENEZES CORDEIRO de que “a
Código do Trabalho (cfr. REDINHA, Xxxxx Xxxxxx, Código Novo ou Código Revisto? – A propósito das modalidades de contrato de trabalho, Código do Trabalho – A Revisão de 2009, Coimbra Editora, 2011, Coimbra, pp. 241 e 242.) Assim, por Código do Trabalho de 2003, referimo-nos à Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
4 Neste sentido, XXXXX DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX refere que “o direito individual do trabalho é usualmente definido como o complexo de normas reguladoras do contrato de trabalho e da relação jurídica emergente, nos aspetos do seu desenvolvimento e vicissitudes. Porque reportado a uma situação jurídica negocial envolvendo duas entidades privadas, na prossecução de interesses particulares, é qualificado como um conjunto de normas de direito privado, apesar da natureza imperativa da maioria dos seus comandos” (cfr. XXXXXXX, Xxxxx do Rosário Palma, Da autonomia dogmática do direito do trabalho, Xxxxxxxx, 0000, pp. 51)
relação obrigacional visa, na sua matriz, assegurar e prolongar a função do contrato, assente na criação e circulação de riqueza”5.
Para o presente estudo, importa ter em conta algumas normas em particular, nomeadamente quanto à responsabilidade do devedor, presunção da culpa, impossibilidade de cumprimento e mora do devedor. Estas normas serão relevantes para a abordagem ao incumprimento em sede de contrato de trabalho. Até porque um contrato, independentemente da sua natureza, gera obrigações que podem ser incumpridas por parte dos seus contraentes.
Deste modo, para efeito de compreensão do conceito de incumprimento, entendemos ser vital começar por apreender o conteúdo oposto – o cumprimento das obrigações contratuais. Como ensina XXXXXXX XXXXXX, o cumprimento de uma obrigação é a realização voluntária da prestação debitória6. Nesta medida, em regra, o devedor cumpre a sua obrigação contratual se realizar a prestação a que se vinculou perante o credor. Isto porque os contratos devem ser pontualmente cumpridos7. Por contraposição, o incumprimento é uma anomalia na relação bilateral estabelecida entre as partes – traduz-se, pois, no não cumprimento da prestação debitória a que o devedor se vinculou.
O incumprimento de uma obrigação contratual pode ser causal ou resultar de um motivo de força maior. No entanto, para que possa ser gerador de responsabilidade civil pelos danos causados, tem de ter como causa o comportamento do devedor ou do credor. Por outras palavras, apenas há lugar a ressarcimento se o incumprimento for imputável a uma das partes.
Por este motivo, quanto à causa do incumprimento de uma obrigação, esta pode assumir as seguintes modalidades reconhecidas pela doutrina8: a) imputável ao credor; b) imputável ao
5 cfr. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações Tomo III, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 391.
6 cfr. XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, Reimpressão 1997, pp. 7. Por sua vez, XXXXX XXXXX XX XXXXXXX XXXXX refere-se ao cumprimento da obrigação como o “aspeto mais culminante da vida da relação obrigacional” (cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, Direito das Obrigações, 4.ª Edição, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 697). Já XXXX XXXXXXX PROENÇA menciona que as obrigações extinguem- se pelo seu cumprimento que entende ser a realização “plena, diligente e de acordo com a boa fé a que se vinculou o devedor” (cfr. PROENÇA, Xxxx Xxxxxxx, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 1.ª Edição, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 18).
7 Quer XXXXXXX XXXXXX, quer XXXXX XXXXX XX XXXXXXX XXXXX referem-se ao princípio da pontualidade. Na verdade, quanto a este princípio, ambos sublinham que não está associado apenas ao cumprimento a tempo e horas da obrigação, devendo “coincidir, ponto por ponto, em toda a linha, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito” (v. XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações …, cit., pp. 15 e XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, Direito… cit., pp. 698).
8 A este respeito, XXXXXXX XXXXXX designa-as como modalidades do não cumprimento quanto à causa, enquanto que XXXXX XXXXX XX XXXXXXX XXXXX limita-se a relevar a imputação da culpa ao devedor ou credor. Ambos os autores referem a importância que poderá ter a força maior no caso do incumprimento não ser
devedor. Para o objeto do nosso estudo, importará dar mais relevância ao incumprimento imputável ao devedor por ser esta a modalidade onde, em bom rigor, existe uma real falta de cumprimento da obrigação a que uma das partes se vinculou9. Nesta medida, para o desenvolvimento da presente análise, apenas abordaremos o incumprimento imputável ao trabalhador enquanto devedor de uma obrigação.
Quanto “ao efeito ou estado de facto criado pelo não cumprimento”10, podemos ter: a) incumprimento definitivo; b) cumprimento defeituoso ou c) mora. Esta classificação do incumprimento afigura-se como importante se tivermos em conta os efeitos que deviam ser gerados pelo cumprimento do devedor. Neste caso, veremos que todas estas modalidades podem ter repercussão no não cumprimento de um contrato de trabalho em particular.
Assim, para o nosso estudo, releva apenas o incumprimento imputável ao devedor, seja definitivo ou um mero cumprimento defeituoso ou ainda a constituição em mora. Optamos por proceder a uma referência abreviada destes temas. Vejamos:
Por incumprimento definitivo, entende-se aquela situação em que a prestação a que o devedor se obrigou deixou de poder ser realizada por um de dois motivos i) impossibilidade prática do cumprimento; ou ii) perda de interesse do credor. O cumprimento defeituoso, como a própria designação indica, consiste na realização da prestação debitória de forma imperfeita levando à insatisfação do interesse do credor. Por fim, na mora existe um “mero retardamento, dilação ou demora da prestação”11, pressupondo que o atraso não impede a realização da prestação e que se mantém o interesse do credor no cumprimento da obrigação.
Sistematicamente no Código Civil, a responsabilidade do devedor e a presunção de culpa estão incluídos na divisão I da subsecção II referente à falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor. Esta divisão diz respeito aos princípios gerais. Assim, o incumprimento contratual gera a obrigação do devedor indemnizar o credor pelos prejuízos causados, desde que resulte de um comportamento culposo. Por sua vez, desde que demonstrado o incumprimento ou o cumprimento defeituoso, presume-se culposo. Esta presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil é um princípio basilar da falta de
imputável a qualquer das partes (cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, Direito… cit, pp. 729 e XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações …, cit., pp. 62 e 63).
9 XXXXXXX XXXXXX refere mesmo que “só nos casos de não cumprimento imputável ao obrigado se pode rigorosamente falar em falta de cumprimento” (XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações… cit., pp. 63)
10 XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, Direito… cit., pp. 729.
11 cfr. XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações… cit., pp. 64.
cumprimento de uma obrigação. Como bem ensina XXXXXXX XXXXXXX, o legislador usa “esta técnica [da presunção da culpa em análise] também como meio de regular e compor da maneira que considera mais justa ou mais acertada um conflito de interesses”12. Assim, a inversão da regra do ónus da prova previsto no art. 342.º do Código Civil justifica-se por forma a proteger o credor que demonstra que o devedor incumpriu o contrato, simplificando a prova da culpa. No âmbito de um contrato, o interesse do credor acabou por prevalecer sobre o do devedor13. Até porque, como defendem XXXXX XX XXXX e XXXXXXX XXXXXX, em princípio, o devedor é que está em condições de provar as razões do seu comportamento perante o credor ou dos motivos que o levaram a não cumprir a prestação a que estava vinculado14. Esta parece-nos ser, sem dúvida, a solução mais adequada tendo em conta os interesses adjacentes a uma relação contratual.
Tendo em conta o n.º 2 do art. 799.º do Código Civil, fica também expresso pelo legislador que a culpa deve ser aferida em abstrato com recurso ao art. 487.º, n.º 2 do mesmo diploma. Por outras palavras, a culpa será aferida pelos critérios da diligência de um bom pai de família e não a diligência concreta do devedor15. Este enquadramento abrange, contudo, como defende XXXX XXXXXXX PROENÇA, a apreciação em abstrato das deficiências da vontade e da conduta dos devedores16.
Por fim, a presunção legal prevista no art. 799.º do Código Civil parece ser ilidida com uma mera prova genérica por parte do devedor, não havendo restrições quanto à forma em que deve ser feita a sua ilisão17.
Deste modo, ainda que de forma resumida, abordámos as ideias chave associadas ao incumprimento dos deveres contratuais previstas na lei geral. Tendo em conta que o contrato
12 Cfr. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 113.
13 Quanto a este ponto MENEZES CORDEIRO vai ainda mais longe na medida em que defende que a presunção de culpa prevista no art. 799.º, n.º 1 do Código Civil é uma verdadeira presunção de culpa e de ilicitude (XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx, Tratado… cit., pp. 392)
14 Cfr. LIMA, Pires, XXXXXX, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, 1986, pp. 55.
15 Sobre este tema em particular, XXXXX XX XXXX e XXXXXXX XXXXXX referem-se ao n.º 2 do art. 799.º como uma disposição legal que visou resolver o problema quanto à apreciação da culpa do devedor (cfr. LIMA, Pires, XXXXXX, Antunes, Código Civil … Vol. II, cit., pp. 55 e 56)
16 Cfr. PROENÇA, Xxxx Xxxxxxx, Lições … cit., pp. 223. Sobre este tema, XXXX XXXXXXX PROENÇA dá o exemplo do um advogado sem experiência que aceita acompanhar uma assunto altamente complexo e especializado, como uma situação onde em abstrato é possível constatar as deficiências da vontade e da conduta do devedor.
17 Cfr. PROENÇA, Xxxx Xxxxxxx, Lições … cit., pp. 230 e 231.
de trabalho assume uma natureza de negócio jurídico bilateral18 privado, importará começar já com a transição para a análise do incumprimento do contrato de trabalho em sentido estrito.
3. O incumprimento do contrato de trabalho
Chegados a este ponto, constatamos que, no âmbito de um contrato individual de trabalho, é natural que uma das partes possa faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres. Este incumprimento pode estar indexado não só à obrigação principal – a prestação de trabalho – como também aos demais deveres a que um trabalhador se encontra vinculado. Desta forma, é importante proceder à identificação dos deveres resultantes de uma relação laboral. Com esta identificação, podemos apreender o núcleo de deveres protegidos por esta relação contratual específica e compreender em que medida o contrato poderá ser incumprido por parte do trabalhador.
Desde logo, convém salvaguardar que uma relação laboral não impõe ao trabalhador uma obrigação de resultado, mas uma obrigação de meios. Assim, em termos de cumprimento contratual e inerente satisfação do interesse do credor enquanto empregador, podem surgir algumas dificuldades de enquadramento. Até porque, como veremos, os deveres do trabalhador não se reduzem à mera prestação da atividade principal. Como bem ensina XXXXX XXXXXXX XX XXXXX, «nas obrigações de meios não se pretende com o vínculo obrigatório que o “interesse final” do credor saia satisfeito, mas somente que o devedor desenvolva para esse fim uma dada diligência»19. Devemos ter em conta esta ideia-chave ao longo do presente estudo.
O art. 126.º do Código do Trabalho começa por estabelecer os deveres gerais das partes de um contrato individual de trabalho20. Deste modo, impõem-se quer ao empregador, quer ao trabalhador proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das suas obrigações. Por esta razão, xxxxxxxx XXXXXX XXXX que para o cumprimento do contrato de trabalho não basta a mera realização da prestação devida em termos formais21. Já XXXXX XXXXXX XXXXXXXX identifica este artigo como a transposição para o ordenamento laboral do
18 Isto, naturalmente, sem prescindir a questão particular da pluralidade de empregadores.
19 Cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Direito das Obrigações, Vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 253.
20 A formulação do art. 126.º do Código do Trabalho tem semelhanças com o 762., n.º 2 do Código Civil. No entanto, este artigo do Código do Trabalho vai ainda mais longe nas obrigações estabelecidas na medida em que impõe o dever de colaboração das partes na execução do contrato.
21 Cfr. XXXX, Xxxxxx, Novo Código do Trabalho e Legislação Complementar - Anotados, 1.ª Edição, Maio de 2009, Anotação ao art. 126.º, pp. 245.
princípio geral da boa fé no cumprimentos das obrigações22. Por sua vez, XXXX XXXXXXX XXXXXXXX, comentando o Código do Trabalho de 200323, refere-se a esta integração como a criação de “princípios gerais reguladores da constituição e da dinâmica do desenvolvimento da relação jurídica do trabalho”24.
Por outro lado, o artigo 126.º do Código do Trabalho desenha um princípio da mútua colaboração das partes na execução do contrato25. Este princípio acaba por resultar das caraterísticas próprias do contrato de trabalho. Na realidade, sendo este contrato de cariz tendencialmente duradouro, torna-se mais importante esta colaboração entre as partes, ainda para mais se tivermos em conta a intervenção do trabalhador na atividade corrente do empregador26.
Assim, de acordo esta natureza do contrato de trabalho implícita no art. 126.º do Código do Trabalho, ficam salvaguardados os interesses do empregador na obtenção da maior produtividade e os interesses do trabalhador na promoção humana, profissional e social. Trata-se de um ponto de equilíbrio entre as partes na execução de um contrato de trabalho.
No entanto, na pendência de um contrato de trabalho, a expressão máxima dos deveres laborais impostos ao trabalhador está necessariamente relacionada com a prestação da atividade para a qual foi contratado. Dentro deste contexto, os artigos 127.º e 128.º do Código do Trabalho determinam de forma meramente indicativa o núcleo de deveres do empregador e
22 cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Código do Trabalho Anotado, 9.º Edição, 2013, anotação ao art. 126.º, pp. 332.
23 O art. 126.º correspondia ao art. 119.º no Código do Trabalho de 2003.
24 cfr. XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx, Comentários ao Código do Trabalho, Editora Livros do Brasil, 1.ª Edição, 2004, pp. 78.
25 Este princípio resultava de forma expressa do art. 18.º da LAT que determinava que “a entidade patronal e os trabalhadores são mútuos colaboradores e a sua colaboração deverá tender para a obtenção da maior produtividade e para a promoção humana e social do trabalhador”. No entanto, entendia-se que este artigo tinha sido revogado pela nova ordem jurídica constitucional por se defender que se estava perante uma expressão do corporativismo. XXXXX XXXXXX XXXXXXXX identifica o teor do art. 18.º da LAT com o art. 126.º do Código do Trabalho (v. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Código do Trabalho Anotado, Cit. pp. 332). Na verdade, para este autor, o princípio da mútua colaboração vai ter o seu reflexo no princípio da boa fé na execução do contrato pelo que a norma não revestiria de desconformidade com a Constituição.
26 A este respeito, antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, XXXXXXXX XXXX XXXXXX chamava a atenção para o carácter colaborativo da relação de trabalho (XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Curso de Direito do Trabalho, Verbo, 2.ª Edição, 1993, pp. 295). Este autor discordava da desconformidade constitucional defendida por XXXXX XXXXX e XXXXXXXX XX XXXXXXX (XXXXX, Xxxxx, XXXXXXX, Xxxxxxxx de, Legislação do Trabalho, 16.ª Edição, Revista e atualizada, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, anotação ao art, 18.º da LAT, pp.
89) e BARROS MOURA (cfr. XXXXX, Xxxxxx, Compilação de Direto do Trabalho, Coimbra, 1980, pp. 83). De acordo com XXXXXXXX XXXX XXXXXX “podem coexistir colaboração e conflitualidade nas relações de trabalho” reforçando como uma “evidência quotidiana”.
do trabalhador27. Todos estes deveres estão relacionados com a execução do objeto principal do contrato de trabalho. Por um lado, ao empregador impõe-se um conjunto de deveres primários relacionados com o respeito, urbanidade e probidade, garantia de manutenção das condições de trabalho e pagamento pontual da retribuição. Por outro lado, incumbe ao trabalhador respeitar o empregador, comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade, realizar o trabalho com zelo e diligência, entre outras obrigações.
Relativamente à construção do núcleo destes deveres, XXXXX XXXXXX XXXXXXXX refere-se ao exercício da atividade como dever principal do trabalhador, separando-o daqueles que designa como “deveres secundários” por estarem apenas associados à prestação da atividade28. Admitimos que esta seja a melhor solução para identificar o peso dos deveres que sobre o trabalhador impendem. Não existem grandes dúvidas que a prestação da atividade para o qual foi contratado é o dever principal do trabalhador. Os demais deveres constantes do art. 128.º do Código do Trabalho são exemplos identificados pelo legislador de obrigações cujo cumprimento o trabalhador está vinculado, independentemente de se encontrar a executar a prestação da sua atividade. Xxxxx, XXXXX XXXXX acrescenta ainda, quanto a este ponto, que “a enumeração legal não pretende ser exaustiva, podendo conceber-se outros deveres do trabalhador subordinado que representam corolários do seu dever de cumprir o contrato de acordo com as regras de boa fé”29. Significa, pois, que o legislador não só optou por salvaguardar o princípio da boa fé contratual no art. 126.º do Código do Trabalho, como entendeu enumerar de forma meramente exemplificativa algumas obrigações que considera resultar deste princípio.
O dever de lealdade é um dos exemplos mais importantes para este efeito. Na verdade, este dever não cessa, naturalmente, com o horário de trabalho do trabalhador. Acompanha, pois, o trabalhador independentemente de se encontrar a prestar a sua atividade. Está, assim, intimamente ligado ao princípio da boa fé contratual que é exigível ao trabalhador. Caso contrário, não seria sancionável (do ponto de vista disciplinar ou de ressarcimento de dano) um ato de deslealdade do trabalhador após o seu horário de trabalho.
27 Na verdade, o legislador enumera um conjunto de deveres, cabendo à doutrina e à jurisprudência determinar os demais.
28 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito do Trabalho, 5.ª Edição, 2010, pp. 519. Este autor identifica os deveres descritos no art. 128.º do Código do Trabalho como deveres secundários relacionados com a prestação da atividade.
29 XXXXX, Xxxxx, Direito do …, cit., pp. 549
Tal como o empregador, também o trabalhador está obrigado, por força do contrato de trabalho, a cumprir a obrigação de prestar a sua atividade, assim como de todos os restantes deveres acessórios interligados à obrigação principal e incorporados no princípio da boa fé. Por esta razão, com o art. 126.º e 128.º do Código do Trabalho, o legislador laboral procurou adaptar os deveres de um trabalhador à natureza obrigacional resultante de um contrato de trabalho. Há, assim, um verdadeiro enquadramento das obrigações do trabalhador enquanto verdadeiras obrigações de meios, pelo que, em regra, o interesse do credor fica satisfeito se o devedor levar a cabo a conduta que lhe era exigível30.
O incumprimento destes deveres pode, porém, ser gerador de responsabilidade civil. Na verdade, o não cumprimento do contrato quanto a qualquer um destes deveres pode implicar a obrigação do trabalhador ressarcir o empregador pelos danos causados. Se nos reportamos somente aos artigos 126.º e 128.º do Código do Trabalho, o âmbito potencial da lesão do património do empregador é diverso e terá que ser identificado em cada caso concreto. Deste modo, é fundamental que estejam verificados os pressupostos da responsabilidade civil do trabalhador face o empregador. Não nos podemos esquecer, todavia, que os danos que o trabalhador pode incorrer em virtude de incumprir os deveres a que se encontra obrigado, podem ser danos diretos ao empregador ou danos indiretos, no caso destes danos serem provocados a terceiros. Como bem ensina XXXXXXXX XXXX XXXXXX “no plano das relações externas, (…) as pessoas singulares que encarnam e são suporte dos órgãos da sociedade, no exercício das suas funções e no âmbito da sua competência, atuam exata e necessariamente como se fossem a empresa, sendo a sua conduta imputável à própria empresa empregador”31. Por este motivo, como vimos, os atos praticados pelos trabalhadores no âmbito das suas funções podem gerar danos a ser ressarcidos pelo empregador face a terceiros.
Tendo em conta a posição do trabalhador perante terceiros em que, por vezes, assume a posição do empregador, entendemos que, no caso de promover danos com a sua conduta, estes devem ser ressarcidos pelo empregador nos termos do disposto no art. 500.º do Código Civil. Neste caso, incumbirá ao empregador indemnizar o terceiro, independentemente de culpa sua, se a obrigação de indemnizar recair também sobre o trabalhador, podendo
30 Cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Direito das Obrigações, Vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 253 e XXXXXX, Xxxxxxx, Das Obrigações… cit, pp. 10.
31 Cfr. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Nota sobre a responsabilidade do empregador pelos atos dos trabalhadores, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Janeiro-Dezembro de 2010, Ano LI (XXIV da 2.ª Série, n.ºs 1-4, pp. 25
posteriormente promover o reembolso de tudo o que pagou. Todavia, esta regra ficará excluída se os danos causados pelo trabalhador resultarem também de culpa empregador32. Estamos aqui no âmbito da responsabilidade civil extracontratual do empregador. Importará, por isso, averiguar se o comportamento do trabalhador que causou o dano ao terceiro se pode consubstanciar numa violação de qualquer um dos deveres previstos no art. 126.º e 128.º do Código do Trabalho. Só assim poderão ser apurados os efeitos internos destes factos para a além do previsto no art. 500.º do Código Civil.
Por sua vez, o art. 800.º, n.º 1 do Código Civil, diz respeito à responsabilidade do devedor perante o credor pelos atos das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação acordada. Dito de outra forma, o empregador é responsável pelos atos praticados pelos trabalhadores a que recorreu para cumprir uma obrigação a que se vinculou33. Quanto a este ponto, XXXXXXXX XXXX XXXXXX tem dúvidas que esta responsabilidade possa promover a inversão do ónus da prova, no caso de se tratar de um cumprimento defeituoso ou não cumprimento de obrigações acessórias ou secundárias, da mesma forma como ocorre com o incumprimento da obrigação principal34. Não obstante, este autor entende que ao credor não deve ser exigível provar algo mais para além dos factos imputados ao empregador. Subscrevemos esta posição. Na verdade, existe uma presunção de culpa sobre o empregador difícil de contornar que poderá ser ressarcido pelo trabalhador, uma vez mais, se for identificada alguma violação dos seus deveres laborais.
Assim, constata-se ser relevante estudar a extensão da responsabilidade civil contratual em que o trabalhador pode incorrer perante o empregador.
4. Situações de responsabilidade civil do trabalhador, emergente de incumprimento contratual, tipificadas no Código do Trabalho
Após abordarmos de uma forma genérica os deveres gerais do trabalhador e a responsabilidade civil daí adveniente, vamos passar a analisar situações mais objetivas previstas no Código do Trabalho.
32 Imagine-se, por exemplo, um trabalhador que causou um dano a um terceiro por não lhe ter sido ministrada formação para o exercício da tarefa em questão – um operário que numa obra tinha instruções do empregador para usar uma empilhadora, pesa embora não tivesse formação e que danificou uma parede de uma empresa com instalações ao lado daquelas do dono da obra. Aqui o terceiro teria de demandar o empregador demonstrando a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
33 Imagine-se no exemplo anteriormente dado que o operário nas mesmas circunstâncias criava danos ao dono da obra aquando da execução do contrato de empreitada.
34 Cfr. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Nota …, cit., pp. 31.
Na verdade, o legislador salvaguardou de forma expressa no nosso ordenamento jurídico um conjunto de condutas do trabalhador que identifica como geradoras de responsabilidade civil face ao empregador.
O elenco que identificaremos de seguida não é taxativo. Reportamo-nos apenas aos comportamentos cujo dano causado ao empregador está previsto expressamente na Lei e é tendencialmente quantificável. Isto se tivermos em conta que o legislador impõe ao trabalhador um conjunto de condutas numa fase contratual e pós-contratual sob pena de indemnização ao empregador. Aqui o raciocínio é inverso aos deveres gerais previstos no art. 126.º e 128.º, pois os danos resultantes da violação destes artigos não são tendencialmente quantificáveis pelo legislador.
4.1 Incumprimento do aviso prévio em caso de denúncia de contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador
Em primeiro lugar, temos umas situações mais recorrentes no quotidiano laboral – a vulgarmente designada “demissão”35 por parte do trabalhador.
A denúncia do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador é livre36. Desta forma, ao contrário do que acontece com o empregador, o trabalhador pode unilateralmente fazer cessar o contrato de trabalho a qualquer momento. Não obstante, impõe-se ao trabalhador o cumprimento dos seguintes requisitos37: i) comunicação escrita ao empregador38 e ii) respeito pela antecedência mínima legal prevista para o contrato em causa39.
35 A denúncia do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador é correntemente chamado de “demissão”.
36 A jurisprudência nacional tem-se debruçado por diversas vezes sobre a liberdade de desvinculação de um trabalhador. Neste sentido, o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA foi mais longe quando mencionou em Acórdão de 04.05.1994 que ao trabalhador não pode ser imposta a subsistência de um vínculo que não deseje mais (cfr. Acórdão do STJ de 04.05.1994, documento n.º XX000000000000000, Relator: Xxxx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx). Por outro lado, XXXXX XXXXX identifica a liberdade do trabalhador denunciar o seu contrato de trabalho a todo momento e sem necessidade de uma justa causa como o reconhecimento da dimensão pessoal da prestação de trabalho (XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho – Relações Individuais de Trabalho, Vol I, Coimbra Editora, 2007, pp. 1039). Já XXXX XXXX XXXXX refere-se à faculdade de livre desvinculação do contrato de trabalho por parte do trabalhador como “a antítese da escravatura” (AMADO, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 431). Neste contexto, XXXXXX XXXXXX XXXX e XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, referindo-se ao ordenamento jurídico espanhol, sustentam que mesmo que se demonstre que or do trabalhador invocou uma justa causa de resolução que não se demonstrou, ainda assim, o ato de desvinculação do trabalhador não fica privado da sua eficácia (cfr. OLEA, Xxxxxx Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, Xxxxxxx xxx Xxxxxxx, Xxxxxx, Civitas, vigésimosexta edicion, 2009, pp. 634).
37 Cfr. art. 400.º do Código do Trabalho.
38 Esta comunicação escrita ao empregador configura a natureza de uma verdadeira declaração recetícia, pelo que apenas produz os seus efeitos quando chega ao conhecimento do destinatário da declaração. Não obstante, caso não haja reconhecimento notarial da assinatura do trabalhador, este pode revogar por qualquer forma a denúncia no prazo de 7 dias. Por este motivo, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA decidiu em acórdão de 09.04.2008 que
Esta regra é comum noutros ordenamentos jurídicos europeus. Em Espanha, a dimisión voluntaria não requer existência de nenhuma causa por parte do trabalhador, mas apenas uma declaração expressa ou tácita dirigida ao empregador com a manifestação da sua vontade extintiva40. O mesmo acontece no ordenamento jurídico francês onde o trabalhador pode denunciar livremente o contrato de trabalho, seja um contrato a termo, seja o contrato sem termo. Em Itália, é livre de denúncia do contrato de trabalho por tempo indeterminado, mas o
pese embora a declaração da cessação do contrato por iniciativa do trabalhador seja uma declaração recetícia, o empregador não pode legitimamente ter essa situação como definitiva antes do decurso do prazo de arrependimento (Ac. TRL, de 09.04.2008, processo n.º 296/2008-4,Relator: Seara Paixão, disponível em xxx.xxxx.xx). Também em Espanha, por exemplo, trata-se de uma declaração recetícia, no entanto, o legislador espanhol dispensa a forma escrita (XXXX, Xxxxxx Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, Derecho…, cit., pp. 635)
39 O prazo de aviso prévio para denúncia de um contrato a termo por parte de um trabalhador varia consoante dois pressupostos autónomos. Tratando-se de contrato de trabalho sem termo, o aviso prévio depende da antiguidade do trabalhador na data comunicação da denúncia. Assim, para um trabalhador com uma antiguidade igual ou inferior a 2 anos, o aviso prévio é de 30 dias. Por sua vez, se a antiguidade for superior a 2 anos, então o trabalhador terá de conceder um aviso prévio mínimo de 60 dias face à data da cessação do contrato. Se o trabalhador que pretenda denunciar o contrato estiver vinculado ao empregador por um contrato de trabalho a termo, então, o critério relevante é a duração prevista no contrato. Deste modo, a duração do aviso prévio mínimo é de 30 dias nos contratos de duração igual ou superior a 6 meses ou de 15 dias em contratos de duração inferior. De registar que o legislador optou por salvaguardar as expectativas do empregador de forma diferente conforme a natureza do contrato de trabalho. Nos contratos a termo, entendeu-se como razoável associar o aviso prévio à duração do contrato e não à antiguidade. Apenas desta forma seria possível garantir as legítimas expectativas do empregador no sentido que o contrato fosse pontualmente cumprido. Defendendo a mesma posição, temos XXXXX XXXXXXX XXXXXXX que também sublinha a diferença do critério do aviso prévio nos contratos a termo e nos contratos sem termo (MARTINS, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 3.ª edição, Cascais, 2012, pp. 543 a 545)
Por outro lado, no ordenamento jurídico espanhol, o critério de aviso prévio previsto no art. 49.º, n.º 1, al. d) do Estatuto de los Trabajadores depende da contratação coletiva aplicável (convénios coletivos) ou da prática estabelecida no sector de atividade. XXXXXX XXXXXX XXXX e XXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX mencionavam, no âmbito da legislação espanhola anterior, que em caso de inexistência de fixação de prazo de aviso prévio, deveria ser aproveitado o prazo de 15 dias referido no antigo art. 41.º, n.º 3 do Estatuto de los Trabajadores (atual art. 49.º, n.º 1, al. c) do mesmo diploma) que tem servido de indicação para as decisões jurisprudências (cfr. XXXX, Xxxxxx Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx, El Estatuto de los Trabajadores, tercera edicion, Civitas, Madrid, 1991, pp. 227 e 228). No ordenamento jurídico francês, os prazos de aviso prévio não estão regulado por Lei, acordo ou convenção coletiva, dependem dos usos laborais associados à profissão que pode ser regulamentado pelo Conseil d´Etat (Cfr. Article L 1237-1 do Code du Travail). XXXXXXXXX XXXXXXXX-XXXX e XXXXXX-XXXX XXXXXXXX sublinham o facto da Lei raramente identificar a duração do pré-aviso (XXXXXXXX-XXXX, Xxxxxxxxx, XXXXXXXX, Xxxxxx-Xxxx, Droit du Travail, LGDJ, Paris, 2007, pp. 451). Por sua vez, XXXXXXXX XXXXX menciona que a jurisprudência francesa tem estimado a indemnização por incumprimento do aviso prévio no valor das retribuições que receberia durante a execução do aviso prévio (XXXXX, Xxxxxxxx, Droit du Travail, 3.ª Edition, Dalloz, Paris, 2009, 229). No ordenamento jurídico italiano, à semelhança do que acontece em França e Espanha, o aviso prévio é fixado por contrato coletivo ou os usos (cfr. XXXXXXX, X. xxx, XXXXXXX, X., XXXX, X., Xxxxxx, XXXX Xxxxxxxx, Xxxxxx, 0000, pp. 476). Já no Reino Unido, o período de aviso prévio para a desvinculação é determinado de antemão pelas partes. Aqui estamos perante um sistema jurídico-laboral com outras caraterísticas, na medida em que este direito é igual para as duas partes. Não havendo qualquer previsão num contrato de trabalho celebrado no Reino Unido de aviso prévio para a comunicação da cessação do contrato de trabalho, este deverá ser regulado pelos usos ou pelo critério de prazo razoável a ser determinado judicialmente (XXXXX, Xxx, XXXXXX, Xxxxxx, Employment Law, Ninth Edition, Xxxxxx, 0000, pp. 425).
40 Cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, XXXXX, Xxxx Xxxx Xxxxxxx, NAVARRETE, Xxxxxxxxx Xxxxxx, Manual de Derecho Del Trabajo, Granada, Novena Edición, 2011, Editorial Comares, pp.679.
mesmo já não pode acontecer um contrato a tempo determinato41. Por sua vez, no Reino Unido, a denúncia do contrato de trabalho depende de uma notice of termination. Deste modo, um contrato de trabalho pode cessar desde que uma parte comunique à outra a sua vontade (o trabalhador ao empregador ou vice-versa)42.
De acordo com o art. 401.º do Código do Trabalho, havendo o incumprimento da obrigação de aviso prévio em caso de denúncia, o trabalhador deve pagar ao empregador uma indemnização de valor igual à retribuição base e diuturnidades correspondentes ao período em falta. XXXX XXXX XXXXX identifica a denúncia em incumprimento do aviso prévio como “válida e eficaz, mas irregular”43. Assim, em virtude desta irregularidade, o legislador estabelece um critério objetivo mínimo do dano, provocado pelo trabalhador por incumprimento do aviso prévio, a ser ressarcido a título de indemnização44. Contudo, o art. 401.º salvaguarda outra indemnização que possa resultar dos danos causados pela inobservância do prazo de aviso prévio ou de obrigação assumida em pacto de permanência.
Relativamente aos outros danos, o legislador procurou estender a obrigação indemnizatória do trabalhador para além do limite mínimo. Está, assim, aberta a porta ao ressarcimento de outros danos que devem ser acrescidos ao valor do aviso prévio em falta calculados de acordo com a retribuição base e diuturnidades. XXXX XXXX XXXXX refere-se ao facto desta indemnização não obstar a que o trabalhador possa vir a responder civilmente pelos danos causados ao empregador, sem contudo distinguir o papel das indemnizações identificadas45. No fundo, parece resultar do art. 401.º duas obrigações autónomas: i) uma de natureza sancionatória por incumprimento do contrato e ii) outra tendo em conta os danos concretamente sofridos pelo empregador. Na verdade, o legislador recorre à expressão “sem prejuízo de indemnização por danos causados pela inobservância do prazo de aviso prévio”. Deste modo, numa interpretação a contrario, é possível concluir que a cessação antecipada do
41 Cfr. XXXXXXX, X. xxx, XXXXXXX, X., XXXX, X., Xxxxxx, XXXX Xxxxxxxx, Xxxxxx, 0000, pp. 476.
42 Para um maior desenvolvimento sobre o conceito do dismissal by notice, cfr. XXXXX, Xxx, XXXXXX, Xxxxxx, Employment Law, Ninth Edition, Oxford, 2008
43 XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 434. Por sua vez, XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX acrescenta, ainda no âmbito da legislação anterior à codificação, que “a inobservância de pré-aviso não inviabiliza a cessação: é óbvio que ninguém pode ser obrigado a trabalhar contra a sua vontade” (cfr. CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 856). Sustenta-se igualmente desta forma a eficácia de denúncia do trabalhador, ainda que em incumprimento dos seus deveres laborais.
44 Neste sentido, XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXXX refere mesmo que o valor encontrado através do recurso ao art. 401.º é o mínimo e não depende da existência nem da dimensão dos prejuízos causados (XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx, Direito do Trabalho, 15.ª Edição, Almedina, pp. 652).
45 Cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 434.
contrato de trabalho por denúncia gera desde logo a obrigação de pagamento de uma indemnização de acordo com critérios fixos, acrescida dos danos apurados e demonstrados pelo empregador.
Neste contexto e também no mesmo sentido, XXXXXXXX XXXX XXXXXX refere que “o empregador se pretender uma indemnização maior que a correspondente à retribuição pelo aviso prévio em falta (que funciona como mínimo) alegará e provará os prejuízos superiores”46. Igualmente XXXXX XXXXXX XXXXXXXX defende que havendo incumprimento do prazo de aviso prévio, o trabalhador terá de pagar ao empregador uma indemnização pelos prejuízos causados, que não deverá ser inferior ao valor da retribuição e diuturnidades correspondentes ao período de antecedência em falta47. XXXXX XXXXX sustenta, por sua vez, que “a lei admite que o empregador invoque e demonstre um prejuízo ou dano superior, mas aí haverá que ter em linha de conta os princípios e as regras dessa responsabilidade, mormente em sede de causalidade e de culpa do lesado”48. Assim, é por demais evidente que a indemnização para além dos critérios mínimos previstos na lei requerem um nexo de causalidade entre o dano e o incumprimento do aviso prévio por parte do trabalhador. XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXXX menciona exemplos como a perturbação ou quebras no processo produtivo diretamente imputados à falha imprevista de um dos seus elementos fundamentais49. Não se pode tratar, pois, de um dano permanente causado ao empregador. Apenas podem ser ressarcidos danos temporários motivados, única e exclusivamente, pelo incumprimento do aviso prévio.
No entanto, parece notório que a expressão da lei não é muito feliz. O que faz com que seja necessário perceber a extensão da “segunda indemnização”. Perceber o alcance desta indemnização é essencial para identificar a existência ou não de uma responsabilidade sancionatória não disciplinar imposta no Código do Trabalho contra o trabalhador. Nesta medida, temos dois cenários: a) a primeira indemnização, correspondente à retribuição base e diuturnidade em falta, traduz-se numa mera sanção pelo incumprimento do aviso prévio a que deve ser acrescido qualquer montante demonstrado judicialmente como dano decorrente deste comportamento ou b) a segunda indemnização visa somente permitir o aumento da indemnização no caso da primeira não satisfazer os danos sofridos pelo empregador.
46 Cfr. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pp. 820. Este autor entende que a redação do art. 401.º não é clara na medida em estabelece o direito do empregador a duas indemnizações.
47 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito do Trabalho, Almedina, 2010, 5.ª Edição, pp. 1040.
48 Cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit., pp. 1065 e 1066.
49 Cfr. XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx, Direito… cit., pp. 653
XXXXX XXXXXXX XXXXXXX fez uma aproximação com vista a resolver este problema. Neste contexto, este autor defende que estamos perante somente uma indemnização “cujo valor será, no mínimo e independentemente da ocorrência de danos, igual ao da retribuição-base e diuturnidades, podendo ser mais elevado quando o empregador prove que sofreu danos de montante superior ao valor mínimo da indemnização que o trabalhador está obrigado a pagar”50.
Todavia, entendemos que foi outra a solução pretendida pelo legislador. Na realidade, a primeira parte do art. 401.º do Código do Trabalho, indicia uma sanção pelo incumprimento do contrato. O valor indemnizatório mínimo é atribuído por inteiro, não afetando o direito ao ressarcimento dos danos efetivamente causados. Daí que a parte final do art. 401.º salvaguarda uma indemnização por a) danos causados pela inobservância do prazo de aviso prévio ou b) obrigação assumida em pacto de permanência. Ora, não nos parece que o legislador entendesse que a indemnização por incumprimento de obrigação assumida em pacto de permanência pudesse ser reduzida ou consumida pela indemnização por incumprimento do aviso prévio como defende XXXXX XXXXXXX XXXXXXX00. Por esta razão, entendemos que a “segunda indemnização” prevista no art. 401.º não pode ser reduzida pelo
montante calculado de acordo com o critério da retribuição base e diuturnidades em falta por parte do trabalhador aquando da denúncia do contrato. Entendemos tratar-se de uma indemnização com um espírito semelhante à cláusula penal exclusivamente compulsória identificada pela doutrina e jurisprudência mais autorizada.
De acordo com o arresto do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 27.09.201152, este tipo de cláusula penal pressupõe uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes a de pressionar o devedor a xxxxxxx00. Pese embora a proximidade da desta indemnização com a referida modalidade de cláusula penal, esta não compõe a sua efetiva natureza. Na verdade, a cláusula penal
50 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548
51 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548.
52 Acórdão do STJ, de 27.09.2011, Processo n.º 81/1998.C1.S1, disponível em xxx.xxxx.xx.
53 Comentando este acórdão, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX refere que o interesse prático da cláusula penal exclusivamente compulsória manifesta-se no facto de permitir que as partes estabeleçam que o credor possa exigir, em caso de incumprimento do contrato, qualquer direito atribuído por lei, para além da quantia pré- determinada. Este autor acrescenta ainda que em caso de não cumprimento do contrato, “o credor tem a certeza que poderá exigir uma determinada soma, que acrescerá à que lhe for devida para reparação (…) dos danos que incumprimento lhe causar” (cfr. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx, Cláusula penal pura ou exclusivamente compulsória, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 141.º, n.º 3972, Xxxxxxx-Xxxxxxxxx xx 0000, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, pp. 188 a 191).
pressupõe o acordo das partes, enquanto que a indemnização prevista no art. 401.º do Código do Trabalho é imposta ope legis. Assim, pese embora as semelhanças, esta indemnização visa compelir o trabalhador a cumprir o prazo de aviso prévio sob pena acabar por ser “punido” através do pagamento das quantias resultantes dos critérios previstos na mencionada disposição legal do Código do Trabalho.
Importa ainda termos em conta o exemplo francês quanto ao ressarcimento de danos. Com efeito, apenas a denúncia abusiva, por parte do trabalhador, pode gerar responsabilidade civil pelos danos causados ao empregador por incumprimento do aviso prévio. Ao contrário do art. 401.º do Código do Trabalho, o article L 1237-2 do Code du Travail faz depender a responsabilidade pelos danos de um comportamento abusivo do trabalhador. Para além disso, o legislador francês vai ainda mais longe. Na verdade, se após a rutura abusiva o trabalhador celebrar um novo contrato de trabalho, o novo empregador passa a ser solidariamente responsável pelos danos no caso de i) ter tido intervenção na cessação do contrato; ii) tiver conhecimento do vínculo do trabalhador e iii) o novo empregador continuar a empregar o trabalhador depois de ter sabido que este último ainda estava vinculado a um outro trabalhador por um contrato de trabalho. Neste caso, não se aplicará o regime de solidariedade se, no momento em que o empregador foi advertido, o contrato de trabalho abusivamente cessado pelo trabalhador tiver expirado, seja, no caso de contrato a termo, por ter decorrido o respetivo termo, seja, no caso de contratos de duração indeterminada, por decurso do pré- aviso ou se tiver decorrido um prazo de quinze dias desde a datada cessação do contrato. Acresce ainda que, em caso de reclamação judicial dos danos por parte do empregador, o legislador salvaguarda que a dúvida beneficia o trabalhador54. Não obstante, a solução francesa parece fragilizar o princípio da liberdade de desvinculação do trabalhador, na medida em que admite ser abusiva a denúncia do contrato em conluio com o novo empregador55.
Pelo contrário, o legislador português apenas valora o incumprimento do aviso prévio e respetivos danos, sem imputar qualquer nexo de causalidade a uma futura celebração de
54 Cfr. Article L 1235-1 do Code du Travail. Neste contexto, XXXXXXXX XXXXX refere que em caso de desrespeito pelo pré-aviso, o trabalhador pode ser condenado a pagar uma indemnização que a jurisprudência estima nos salários a que o trabalhador teria direito durante o pré-aviso. Xxxxxxxx, contudo, o papel da solidariedade do empregador que contrata o trabalhador no pagamento da indemnização devida ao empregador anterior (XXXXX, Xxxxxxxx, Droit … cit., pp. 229).
55 Registe-se que a aplicação do regime de solidariedade beneficia claramente o anterior empregador do trabalhador, na medida em que passa a ter o seu crédito garantido por dois patrimónios – o do trabalhador e o do novo empregador. Numa primeira linha, o trabalhador que incumpriu o aviso prévio pode estar numa situação mais confortável porque o seu atual empregador é solidário no pagamento da indemnização. Todavia, temos de ter em conta que este empregador pode recorrer ao direito de regresso.
contrato de trabalho por parte do trabalhador. É, portanto, aqui que se manifesta de forma mais intensa a liberdade de desvinculação contratual do trabalhador, garantido que este não tem de manter uma relação contratual indesejada, podendo escolher melhores condições contratuais perante outro empregador.
Em termos práticos, no nosso ordenamento jurídico é habitual o empregador limitar-se a recorrer à compensação com os créditos devidos ao trabalhador para ver os seus danos ressarcidos56. No entanto, admite-se que a intervenção judicial do empregador seja mais apelativa no caso de se tratar de um trabalhador com funções de carácter técnico elevado ou de direção. Nesta medida, de acordo com o art. 400.º, n.º 2 do Código do Trabalho, existe a possibilidade do aviso prévio, em caso de denúncia do contrato por parte do trabalhador, poder ser alargado por instrumento de regulamentação coletiva ou por contrato individual de trabalho até 6 meses. No entanto, esta faculdade apenas é admissível para cargos de direção ou de particular responsabilidade no seio do empregador.
Por outro lado, importa analisar se o empregador tem a faculdade de dispensar o trabalhador do cumprimento do aviso prévio. Neste caso, podemos ter dois cenários autónomos: i) o trabalhador comunica a denúncia e o empregador dispensa-o unilateralmente do cumprimento do prazo de aviso prévio, sem que o trabalhador aceite essa dispensa; ii) o trabalhador comunica a denúncia, chegando a acordo com o empregador com vista à dispensa do aviso prévio.
XXXXX XXXXXXX XXXXXXX teorizou sobre cada um destes cenários57. Relativamente ao primeiro, este autor entende que a dispensa por parte do empregador não o exime de proceder ao pagamento das retribuições relativas ao aviso prévio. Concordamos com esta posição na medida em que muitas vezes o empregador pode não ter interesse na presença do trabalhador após a denúncia, mas ainda assim este cumpriu a sua obrigação58.
56 XXXXX XXXXXXX XXXXXXX refere que a compensação pode ser operada nestas circunstâncias em virtude da lei apenas impedir o recurso a esta figura na pendência da relação de trabalho (cfr. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548). Assim, numa interpretação a contrario, seguindo esta posição doutrinária, o empregador pode recorrer à compensação com créditos do trabalhador desde que o contrato de trabalho tenha cessado.
57 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 549
58 XXXXX XXXXXXX XXXXXXX afasta a aplicação do princípio geral do art. 779.º do Código Civil que permite ao beneficiário do prazo, que neste caso seria o empregador, exercer o seu direito de renúncia (XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 549). Compreende-se esta opção, pois é evidente que não é lícito nem legítimo para credor, neste caso, decidir pela cessação unilateral antecipada do contrato.
Quanto ao segundo cenário, parece ser consensual que, desde que haja um acordo entre empregador e trabalhador, é possível fazer cessar imediatamente o contrato após a denúncia. Para este efeito, fica o trabalhador desonerado de manter o vínculo laboral durante o aviso prévio e o empregador de pagar a retribuição que seria devida durante o seu decurso. XXXXX XXXXXXX XXXXXXX menciona ainda que a formalização deste acordo não transfigura a denúncia do trabalhador numa revogação por mútuo acordo, mas somente a alteração da data da sua eficácia59.
Esta regra estabelecida no art. 401.º assume uma importância chave quanto à quantificação do dano causado pelo trabalhador ao empregador. Com efeito, como veremos, o critério indemnizatório estabelecido por este artigo é aplicado noutras situações devidamente tipificadas no Código do Trabalho. Por outras palavras, determina a indemnização mínima garantida pelo empregador em caso de incumprimento do trabalhador de alguns deveres previstos expressamente no Código do Trabalho por mera remissão.
4.2 Incumprimento do aviso prévio em caso de cessação de comissão de serviço Também a comissão de serviço recorre ao art. 401.º do Código do Trabalho para estabelecer os seus métodos indemnizatórios nos termos que vamos expor de seguida.
Atualmente, o art. 161.º do Código do Trabalho estabelece o objeto do regime da comissão de serviço de forma expressa. Não obstante, antes da codificação o seu regime decorria do Decreto-Lei n.º 404/91, de 16 de Outubro. Este diploma necessitava de ajustar o conceito de comissão de serviço por remissão ao contrato de trabalho. Daí que, ainda ao abrigo deste diploma, XXXXX XXXXX XXXXX referiu que “a remissão legal para o regime laboral comum permite-nos aventar a ideia de que o que se pretende com a admissibilidade da figura no mundo do trabalho é tão somente (…) o de admitir certas especialidades de regime jurídico em determinadas relações laborais sem abandonar, porém, o tipo «contrato de trabalho»”60.
Com a codificação da legislação laboral, o regime da comissão de serviço foi absorvido pelo Código do Trabalho estando colocado na subsecção IV da secção IX – referente às modalidades de contrato de trabalho. Deste modo, parece pacífico que a comissão de serviço está identificada pelo próprio legislador como uma modalidade de contrato de trabalho ao
59 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 549
60 Cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxx, Principais aspetos do regime jurídico do trabalho exercido em comissão de serviço, Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao professor Xxxxxx Xxxxxx Xxxx, Almedina, Coimbra, pp. 242.
lado das demais, excluindo o contrato sem termo61. Talvez por esta razão, deixou de estar incluída na previsão legal da comissão de serviço uma remissão para as regras do contrato individual de trabalho62. Este enquadramento é importante para compreendermos, mais à frente o seu regime quanto à cessação.
Na verdade, a comissão de serviço é, como ensina XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “um regime especial para o desempenho de atividades que pressupõem a existência de uma especial relação de confiança entre o empregador e o trabalhador”63. A doutrina clássica da comissão de serviço, associa este regime apenas a situações de “particular relação de confiança” e pressupondo um carácter de “transitoriedade” e “amovibilidade”64. Xxxxx, XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXXX refere-se à comissão de serviço como uma expressão da flexibilidade funcional65.
No entanto, com a alteração legislativa promovida pela Lei n.º 23/2012, de 25 de Junho, o regime de comissão de serviço passou a poder ser atribuído a funções de chefia, desde que previsto em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. Por esta razão, o legislador não faz depender a atribuição deste regime contratual apenas a uma especial relação de confiança, como acontecia anteriormente, mas também ao mero estatuto de chefia. Dentro de determinadas estruturas empresariais, uma função de chefia intermédia pode não representar uma particular relação de confiança entre um empregador e o trabalhador. Deste modo, o conceito parece ter adquirido uma nova dimensão. Caberá, assim, aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho adaptarem as regras às estruturas de cada sector.
Face à natureza particular do regime da comissão de serviço, constata-se que, por força do art. 163.º do Código do Trabalho, qualquer das partes pode pôr termo ao contrato mediante aviso prévio por escrito com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, consoante a sua duração tenha sido inferior ou superior a 2 anos. No entanto, o n.º 2 deste artigo é expresso ao referir que “a falta de aviso prévio não obsta à cessação da comissão de serviço, constituindo a
61 A secção IX do Código do Trabalho inclui o contrato a termo resolutivo, trabalho a tempo parcial, trabalho intermitente, comissão de serviço, teletrabalho e trabalho temporário.
62 XXXXX XXXXX XXXXX questiona se a aplicação das regras do contrato individual em bloco se adequa à “filosofia” da comissão de serviço (cfr. XXXXX, Xxxxx Xxxxx, A Comissão de Serviço, A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp 379).
63 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito… cit., pp. 721. Não obstante, XXXXX XXXXX identifica a comissão de serviço como uma situação transitória de carácter precário (cfr. XXXXX, Xxxxx, Comissão de Serviço, Questões Laborais, Ano VII, 16, Coimbra Editora, 2000, pp. 153).
64 Cfr. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Manual… cit., pp 466.
65 Cfr. XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx, Direito do Trabalho, 15.ª Edição, Almedina, pp. 232. Este autor defende que a comissão de serviço é um desvio àquela que designa de “aquisição do estatuto profissional”.
parte faltosa na obrigação de indemnizar a contraparte nos termos do art. 401.º”. Desta forma, o legislador estabelece como critério mínimo indemnizatório as regras contidas no art. 401.º do Código do Trabalho. A particularidade desta remissão reside no facto de utilizar este mesmo critério para as duas partes, aproveitando uma regra que em abstrato está desenhada para responsabilizar o trabalhador face ao empregador. Nesta medida, a norma parece ser mais vantajosa para o trabalhador contratado em regime de comissão de serviço do que para as demais situações equivalentes66.
A precariedade do regime de comissão de serviço, quer na modalidade “interna”, quer na modalidade “externa”67, justifica que o legislador apenas determine o limite mínimo indemnizatório. Isto porque uma comunicação antecipada pode gerar a perda de subsistência do trabalhador, no regime de comissão “externa”, ou a perda de parte do rendimento e estatuto profissional, na comissão “interna”68.
Por outro lado, a comissão de serviço está, apesar das recentes alterações legislativas, ainda associada a funções de grande grau de confiança. Deste modo, o incumprimento do aviso prévio por parte do trabalhador pode também gerar prejuízos ao empregador. Daí que o critério indemnizatório mínimo do art. 401.º do Código do Trabalho esteja estabelecido igualmente em favor do empregador.
66 No Código do Trabalho existem dois outros casos em que a cessação de um contrato de trabalho está dependente de um aviso prévio do empregador, cujo incumprimento deve ser ressarcido ao trabalhador. A primeira destas situações resulta do art. 114.º, n.º 4 do Código do Trabalho. Com efeito, no caso do período experimental ter durado por um período superior a 60 ou 120 dias, a denúncia do contrato por parte do empregador depende de um aviso prévio de 7 ou 15 dias respetivamente. Acontece que o incumprimento, total ou parcial, deste aviso prévio por parte do empregador, determina o pagamento da retribuição correspondente ao período de tempo em falta. Aqui o legislador optou por estabelecer um critério indemnizatório máximo para um incumprimento do empregador. A segunda destas situações decorre do art. 345.º, n.º 3 do Código do Trabalho. Neste caso, um contrato de trabalho a termo incerto caduca quando o empregador comunicar a sua cessação com uma antecedência mínima de 7, 30 ou 60 dias consoante o contrato tenha durando até seis meses, de seis meses a dois anos, ou por período superior respetivamente. Dentro deste contexto, não havendo o cumprimento do aviso prévio aplicável a um contrato em particular, o empregador deve pagar ao trabalhador o valor da retribuição correspondente ao período em falta. Mais uma vez, o legislador estabeleceu um critério indemnizatório máximo ao empregador que incumpra a sua obrigação de aviso prévio.
67 XXXXXXXX XXXX XXXXXX refere-se à distinção entre comissão de serviço interna ou externa (cfr. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx, Manual… cit., pp. 467 e 468). Na verdade, esta classificação visa identificar qual o alcance do vínculo do trabalhador. Por comissão de serviço interna entende-se aquela em que um trabalhador de um empregador passa a desempenhar de forma transitória novas funções de confiança. Cessado este regime, o trabalhador volta a desempenhar as suas funções anteriores. Por sua vez, na comissão de serviço externa, o trabalhador é contratado para desempenhar funções de confiança ao abrigo de uma comissão de serviço. Aqui temos uma situação de maior precariedade, na medida em que após a cessação da comissão serviço, cessa também a relação laboral entre o trabalhador e o empregador.
68 Para este efeito estamos apenas a ter em conta o incumprimento do aviso prévio e não a vertente indemnizatório resultante do art. 164.º, n.º 1, a. b) e al. c) do Código do Trabalho.
Ao contrário do que acontece na mera denúncia de contrato de trabalho, na comissão de serviço existe uma presunção de estatuto profissional acrescido. A denúncia contratual inesperada poderá causar elevados danos ao empregador. No entanto, o legislador optou por recorrer ao mesmo critério da mera denúncia em inobservância do aviso prévio.
4.3 Abandono do Trabalho
O abandono do trabalho é uma forma de denúncia do contrato por iniciativa do trabalhador. Assim, de acordo com o art. 403.º, n.º 1 do Código do Trabalho, “considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelem intenção de não o retomar” 69.
Para efeito de apreciação de conceito de abandono, importa a inércia do trabalhador que, através de uma conduta de ausência, reiterada ou não, denúncia o seu contrato. Desta forma, em termos práticos, o contrato de trabalho cessa por ser legítimo e lícito ao empregador i) presumir, nos termos do n.º 2 do art. 403.º do Código do Trabalho, que o trabalhador abandonou o posto de trabalho por estar ausente pelo menos dez dias úteis consecutivos, sem que o empregador conheça o motivo da ausência70 ou ii) entender que o trabalhador abandonou o serviço pela prática de factos relativamente aos quais não reste qualquer dúvida que não tenciona regressar71. Esta complexidade da figura foi já mencionada por XXXXXXX
XXXXXXXX XXXXXXXXX00. Por outro lado, de acordo com XXXXX XXXXX, o abandono do
trabalho é uma ausência qualificada, na medida em que as faltas injustificadas tem de estar associadas a factos relativamente aos quais é possível concluir que o trabalhador não tenciona regressar ao trabalho73.
69 Relativamente às alterações legislativas entre o Código do Trabalho de 2003 e de 2009, parece-nos que a ligeira alteração entre o antigo 450.º, n.º 2 e o atual 403.º, n.º 2 pode ser bastante relevante. Discordamos, portanto, de AMARO XXXXX que considera que esta alteração não tem “significado especial” (XXXXX, Xxxxx, Cessação do Contrato de Trabalho Promovida pelo Trabalhador, Código do Trabalho – A Revisão de 2009, Coimbra Editora, 2011, Coimbra, pp. 482). Com efeito, a presunção de abandono dava-se, com o Código do Trabalho de 2003 pelo decurso de 10 dias úteis “sem que o empregador tenha recebido comunicação do motivo da ausência”. Depreende-se aqui que o empregador poderia invocar a presunção se não fosse praticado um ato material de comunicação. Por outro lado, no atual Código, o legislador substituiu a frase acima referida por “sem que o empregador seja informado do motivo da ausência”. Assim, enquanto que anteriormente bastaria o empregador não ter recebido qualquer comunicação do sobre a ausência, após a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2009, parece que o legislador dificultou a presunção à mera informação de facto.
70 Designado por XXXX XXXX XXXXX como “abandono presumido” (AMADO, Xxxx Xxxx, Abandono do Trabalho: um instituto jurídico em remodelação?, Direito do Trabalho + Crise = Crise do direito do trabalho?, Coimbra Editora, Coimbra 2011, pp. 14).
71 XXXX XXXX AMADO atribui a esta modalidade de abandono o nome de “abandono do trabalho proprio sensu”
(XXXXX, Xxxx Xxxx, Abandono do Trabalho… cit., pp. 14).
72 Cfr. XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx, Direito… cit., pp. 653.
73 Cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit., pp. 1072
Deste modo, verificando-os pressupostos do abandono do trabalho, o legislador entendeu enquadrá-lo como um verdadeiro ato de denúncia por iniciativa do trabalhador. Xxxxx, XXXXX XXXXXXX XXXXXXX identifica esta figura como “um caso de denúncia irregular ou ilícita”74. Neste contexto, o legislador estendeu a este regime os critérios indemnizatórios previstos no art. 401.º do Código do Trabalho. Por outras palavras, o abandono do trabalho é uma forma de denúncia de facto do contrato de trabalho pelo trabalhador, na medida que é o resultado de uma manifestação tácita de vontade de não manutenção do vínculo laboral. Por essa razão, o legislador manteve os mesmos critérios indemnizatórios por incumprimento de aviso prévio. Com efeito, sendo um dos motivos da atribuição da indemnização o facto do empregador ser surpreendido por uma desvinculação abrupta do contrato de trabalho e sofrer danos em virtude deste comportamento, não poderia ser outra a solução imposta para o abandono.
Aqui o grande problema é perceber, no caso do abandono presumido, se o início do incumprimento do aviso prévio ocorre na data em que o trabalhador começa a faltar ou na data em que o abandono produz os seus efeitos. A identificação deste momento é importante para determinar qual a duração do incumprimento do aviso prévio.
Neste caso, entendemos que o incumprimento dá-se a partir do primeiro dia em que o trabalhador deixou de comparecer no local de trabalho. Estando verificados os pressupostos do abandono, o ato voluntário do trabalhador no sentido de cessar o seu contrato começa no início da ausência. Caso contrário, seria mais vantajoso para o trabalhador optar por fazer cessar o contrato através da sua ausência do que fazê-lo através da comunicação ao empregador. Desta forma, entendemos ser mais equilibrado considerar que o incumprimento do aviso prévio ocorre retroativamente com o início da ausência por parte do trabalhador. Defendemos que é esta a solução mais adequada se tivermos em conta a letra da lei e recorrendo aos preceitos interpretativos previstos no Código Civil. Presume-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados seguindo o entendimento acima identificado.
Face ao acima exposto, se estivermos perante um abandono presumido e o trabalhador começar a faltar sem comunicar ao empregador o motivo da sua ausência e incorrer na presunção prevista no ar. 403.º, n.º 2 do Código do Trabalho, temos dois momentos distintos:
i) data da denúncia e ii) data da cessação. O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA sobre este
74 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 553.
tema pronunciou-se no sentido que “a comunicação registada, com aviso de receção (…) não é elemento constitutivo da figura do abandono do trabalho, mas uma sua condição de eficácia unilateral”75. Neste acórdão é possível ainda constatar que “a extinção do vínculo ocorre no momento em que se verificou a ausência com vontade de não retomar o trabalho”. Fica aqui o caminho que aponta no sentido que a data do início da ausência seria a verdadeira data da extinção do contrato. XXXX XXXX XXXXX, a este propósito, menciona que a comunicação do empregador nos termos do disposto no n.º 3 do art. 403.º do Código do Trabalho, “não se traduz numa declaração de vontade extintiva proferida pelo empregador, mas sim de uma condição de eficácia da dissolução contratual por abandono, isto é, numa condição de eficácia da extinção do vínculo imputável ao trabalhador”76.
A título de exemplo vejamos as diferentes interpretações possíveis face ao mesmo enquadramento: um trabalhador com uma antiguidade superior a dois anos inicia a ausência no dia 1 de Março, presumindo-se o abandono a partir do dia 11 de Março. O empregador comunica a cessação do contrato no dia 13 de Março.
Numa primeira interpretação, se fosse entendido que a comunicação mencionada no n.º 3 do art. 403.º tinha a natureza de declaração de vontade extintiva do contrato por parte do empregador, então a indemnização prevista no art. 401.º deveria ter em conta o dia 13 de Março. Nesta medida, o trabalhador seria responsável por indemnizar o empregador em pelo menos 60 dias de retribuição base e diuturnidades por incumprimento pelo aviso prévio. No entanto, ao trabalhador são devidos créditos até o dia 13 de Março, nomeadamente quanto aos proporcionais de subsídio de férias e de Natal.
Por outro lado, numa segunda interpretação da mesma norma, considerando-se tal como o acórdão acima mencionado e de acordo com a posição de XXXX XXXX XXXXX, a comunicação por parte do empregador mais não é que uma condição de eficácia da cessação do contrato. Constata-se que a causa da extinção do contrato foi o comportamento praticado pelo trabalhador e não a comunicação do empregador. Neste sentido, no mesmo exemplo, a denúncia ocorreu no dia 1 de Março. Para efeito da indemnização devido ao empregador, as duas interpretações chegam ao mesmo fim – quantificada em 60 dias de retribuição base e diuturnidade. Contudo, seguindo esta posição, os créditos devidos ao trabalhador são
75 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13.10.2004, processo 6098/2004-8, publicado em xxx.xxxx.xx.
76 AMADO, Xxxx Xxxx, Abandono do Trabalho… cit., pp. 17.
calculados até o dia 1 de Março. Por outras palavras, o trabalhador que incumpriu as regras de aviso prévio não pode ser beneficiado por não ter denunciado formalmente o seu contrato de trabalho. O legislador não pretende, pois, atribuir uma vantagem a uma parte que incumpriu uma obrigação contratual apenas porque o fez de forma tácita. Como bem referiu XXXXX XXXXXXX XXXXXXX esta interpretação decorre do facto “de o abandono do trabalho valer como resolução do contrato, por iniciativa do trabalhador”77.
Face ao exposto, o abandono, independentemente da sua modalidade, é uma verdadeira denúncia do contrato por iniciativa do trabalhador. Por esta razão, qualquer interpretação da remissão prevista no seu regime legal para o art. 401.º do Código do Trabalho deverá almejar enquadrá-lo como uma extensão aos efeitos de uma denúncia formalizada por escrito ao empregador.
4.4 Resolução do contrato de trabalho
Com já vimos, o trabalhador pode promover a extinção do contrato de trabalho a qualquer momento. Assim, uma das formas de extinção do contrato por iniciativa do trabalhador é a resolução do contrato com justa causa.
De acordo com o art. 394.º do Código do Trabalho, tendo ocorrido justa causa, o trabalhador pode fazer cessar o contrato de trabalho imediatamente. Para este efeito, é necessário que o empregador tenha adotado um comportamento que justifique a impossibilidade de manutenção da relação de trabalho78. XXXXX XXXXXXX XXXXXXX identifica a resolução como uma declaração vinculada e/ou fundamentada do trabalhador sustentada num contexto de justa causa79. O legislador identifica no mencionado art. 394.º um conjunto de condutas do empregador que podem ser enquadráveis neste conceito80.
A promoção da resolução com justa causa por parte do trabalhador pressupõe o cumprimento de um procedimento. Em primeiro lugar, o trabalhador deve comunicar a resolução por escrito
77 Cfr. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 561
78 A justa causa pode ser subjetiva ou objetiva. Por justa causa subjetiva entende-se aquela que resulta do comportamento ilícito do empregador. A justa causa objetiva está relacionada com o trabalhador ou a prática de atos lícitos do empregador (cfr. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 522).
79 Cfr. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 522.
80 O legislador recorre à mera enumeração exemplificativa. XXXXX XXXXX xxxxxxx a opção legislativa introduzida com o Código do Trabalho de 2003, na medida em que alterou a anterior enumeração taxativa de comportamento do empregador que poderiam ser enquadrados como justa causa (Cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … Cit, pp. 1042).
com indicação suscita dos factos que a justificam nos 30 ou 60 dias subsequentes ao seu conhecimento. Isto, naturalmente, desde que enquadrados no conceito de justa causa.
Após o trabalhador fazer cessar o contrato por este motivo, poderá demandar judicialmente o empregador com vista à obtenção de uma indemnização que pode ser determinada entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades.
Para o objeto do nosso estudo, importa ter em conta o papel do art. 399.º do Código do Trabalho por prever a responsabilidade do trabalhador em caso de resolução ilícita do contrato de trabalho. Neste contexto, o legislador, por mais uma vez, recorre aos critérios indemnizatórios do artigo 401.º do Código do Trabalho para balizar o direito a ressarcimento de danos mínimos por parte do empregador. Poder-se-ia afirmar que a letra da lei poderia sustentar o entendimento já descrito de XXXXX XXXXXXX XXXXXXX00. Com efeito, o art. 399.º
refere que o empregador “tem direito a indemnização dos prejuízos causados, não inferior ao montante calculado nos termos do artigo 401.º”. Esta remissão parece incoerente na medida em que dá a entender que a indemnização terá sempre como limite mínimo o valor atribuído pelos critérios do incumprimento do aviso prévio em caso de denúncia. Assim, a formulação infeliz do art. 399.º parece apontar para os exemplos que XXXXX XXXXXXX XXXXXXX indica quando se refere aos critérios indemnizatórios do art. 401.º82. Significaria, pois, que havendo uma resolução ilícita do contrato de trabalho, os danos a serem ressarcidos ao empregador seriam aqueles que fossem apurados de acordo com o seguinte critério: valor do aviso prévio em falta, acrescido da diferença dos danos apurados se superior ao montante anterior.
Desta forma, tratando-se de um trabalhador com um vencimento base de € 1.000,00 com mais de 2 anos de antiguidade, a indemnização seria pelo menos de € 2.000,00. Se os danos apurados fossem de € 2.500,00, seriam acrescidos € 500,00 ao montante calculado anteriormente de € 2.000,00. A indemnização final seria de € 2.500,00. Acontece que, tal como já defendemos83, esta não parece ser a opção do legislador para o art. 401.º. Por maioria de razão, também não foi a opção para o art. 399.º. Na verdade, recorrendo aos mais elementares princípios interpretativos previstos no art. 9.º, n.º 3 do Código Civil, devemos presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada. Nesta medida, entendemos que a remissão do art. 399.º visa a aplicação direta das regras previstas no art. 401.º. No fundo, o
81 v. supra 4.1., pp. 15 e ss. e XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548.
82 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548
83 v. supra 4.1., pp. 18 e 19.
legislador procura equivaler a resolução ilícita à denúncia em incumprimento do aviso prévio. Compreende-se esta opção, caso contrário o legislador estaria a permitir que o trabalhador pudesse cessar de forma imediata o seu contrato de trabalho invocando uma justa causa que não se veio a demonstrar ou pura e simplesmente inexistente. A remissão expressa para o art. 401.º e o conteúdo desta norma leva a que o intérprete possa concluir, como bem ensina XXXXXXX XXXXXXX, que a redação do texto do art. 399.º “atraiçoou” o pensamento do legislador84.
Sobre este tema, o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu que sendo a resolução ilícita “fica sujeito ao regime da rescisão sem justa causa, ou seja, ao regime de rescisão com aviso prévio pelo que o trabalhador fica obrigado a pagar à entidade empregadora uma indemnização de valor igual à remuneração de base correspondente ao aviso prévio em falta”85. Parece, assim, ainda mais evidente o reconhecimento de que o legislador pretende equiparar o regime da resolução ilícita à denúncia em incumprimento de aviso prévio.
Concluímos, pois, que a redação do art. 399.º é infeliz na medida em que induz o intérprete em sentido diferente da norma para a qual remete. Não obstante, entendemos que a remissão para o art. 401.º do Código do Trabalho é total.
4.5 Invalidade e cessação de contrato de trabalho
Apesar do contrato de trabalho possuir uma natureza de direito privado e, por inerência, civilística, constata-se que o Código do Trabalho tem uma secção especificamente dedicada à invalidade do contrato de trabalho. Quanto a este ponto, XXXX XXXX XXXXX refere-se a esta secção do Código como reveladora de “especificidades regimentais de relevo” da invalidade deste contrato86. Por outro lado, XXXXX XXXXX realça a escassez de jurisprudência sobre esta matéria que justifica pelo facto do período experimental permitir que as partes que se aperceberam do erro em que caíram aquando da celebração do contrato, possam promover a célere cessação do contrato de trabalho87.
Desde logo, convém sublinhar que o recurso à invalidade do contrato de trabalho permite a sua cessação unilateral por cada uma das partes. Todavia, torna-se vital perceber de forma
84 Cfr. XXXXXXX, Xxxxxxx, Introdução ao Direito …, cit., pp. 182
85 v. Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 08.11.2006, Coletânea Jurisprudência STJ, 2006, 3.º, pp. 282.
86 Cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 179.
87 XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit., pp. 515. Este parece-nos o fator mais relevante identificado por este autor. Todavia, XXXXX XXXXX saliente ainda o dever de informação do empregador como outro dos elementos essenciais para o afastamento da relevância prática da invalidade do contrato de trabalho.
sumária as diferenças do seu regime face às regras contidas no Código Civil. Assim, podemos ter duas invalidades – i) invalidade parcial e ii) invalidade total.
Vamos começar pela invalidade parcial. Esta invalidade é, sem dúvida, a mais comum. Com efeito, muitos contratos de trabalho são celebrados com cláusulas nulas. Importa, pois, identificar quais os efeitos da invalidade parcial do contrato de trabalho. Neste ponto, entendemos, tal como XXXX XXXX XXXXX, que o art. 121.º, n.º 1 do Código do Trabalho parece, à primeira vista, indicar uma solução semelhante à prevista no art. 292.º do Código Civil88. Na realidade, uma leitura menos atenta deste artigo do Código do Trabalho induz o intérprete no sentido de que a anulação parcial do contrato de trabalho não determina a invalidade de todo o contrato de trabalho, salvo quando se demonstre que este não teria sido celebrado sem a parte viciada. Ora, em regra, o contrato de trabalho é um verdadeiro contrato de adesão. Deste modo, o trabalhador aceita condições pré-determinadas pelo empregador89. Aliás, no limite e por força do art. 105.º do Código do Trabalho, as regras do regime das cláusulas contratuais gerais podem aplicar-se ao contrato de trabalho. Por este motivo, a existir uma cláusula contratual inválida esta será imputável ao empregador e no seu interesse. Conclui-se, pois, que havendo uma cláusula inválida, dificilmente seria possível demonstrar que o contrato de trabalho seria celebrado sem a parte viciada. Assim, a consequência da invalidade parcial poderia quedar-se sempre pela invalidade de todo o contrato. Contudo, ao contrário do que decorre do art. 292.º do Código Civil, o n.º 2 do art. 121.º do Código do Trabalho contém uma salvaguarda essencial na adaptação das regras civilísticas no contrato de trabalho. Com efeito, se a cláusula do contrato de trabalho violar uma norma imperativa, considera-se substituída por esta. Por forma a evitar que o recurso do empregador a cláusulas nulas possa gerar a invalidade de todo o contrato, tratando-se a violação de normas imperativas, repõe-se ope legis a regularidade do contrato90. Utilizando o exemplo de XXXX
88 XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, cit., pp. 179. Neste mesmo sentido, defende também XXXXX XXXXXXX XXXXX, no entanto, vai ainda mais longe ao referir que este artigo afirma o instituto geral da redução do negócio jurídico em contexto de contrato de trabalho (cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx, XXXXXXXXXXX, Xxxxx, XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx, XXXX, Xxxxxxxxx, XXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx da, Código do Trabalho Anotado, Anotação ao art. 121.º, pp. 344).
89 O que não invalida que em determinadas situações o contrato de trabalho resulte de verdadeiras negociações entre o trabalhador e o empregador no sentido de determinar as condições de trabalho.
90 XXXX XXXX XXXXX refere-se a uma substituição automática das cláusulas inválidas pelas normas invalidantes
(XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, cit., pp. 181).
XXXX XXXXX, se um empregador determinar num contrato de trabalho a previsão de 50 horas de período normal de trabalho semanal, ocorre uma redução para a regra geral das 40 horas91.
Por outro lado, temos a invalidade total ou absoluta. O art. 122.º do Código do Trabalho determina que o contrato nulo ou anulado produz efeitos como válido ao tempo em que seja executado. Ora, esta salvaguarda é importante na medida em que afasta a aplicação retroativa da anulação do negócio jurídico prevista no n.º 1 do art. 289.º do Código Civil. Compreende- se esta opção por parte do legislador, principalmente se tivermos em conta que a nulidade total do contrato de trabalho não consegue afastar a execução contínua de um contrato de trabalho. Xxxxx, como defende XXXX XXXX XXXXX, temos aqui um verdadeiro princípio da irretroatividade da invalidade contratual92.
No âmbito da invalidade de um contrato de trabalho, o legislador também entendeu estabelecer critérios indemnizatórios. Para este efeito, o art. 401.º do Código do Trabalho volta a assumir uma particular importância, pois estabelece o critério de indemnização no caso de denúncia sem aviso prévio de contrato a termo declarado nulo ou anulado após a cessação. Também se aplica este limite no caso de o trabalhador invocar com má fé a cessação do contrato de trabalho com base nesta invalidade, estando o empregador de boa fé.
Novamente o art. 401.º estabelece as balizas e critérios de indemnização do trabalhador ao empregador por incumprimento dos seus deveres legais.
4.6 Pacto de permanência
De acordo com o art. 137.º do Código do Trabalho, é legítimo às partes de um contrato de trabalho convencionar que o trabalhador se obriga a não denunciar o contrato de trabalho por um período não superior a 3 anos, como compensação ao empregador por despesas “avultadas” em que tenha incorrido com a sua formação profissional. Como bem ensina XXXXX XXXXX, o escopo desta norma não é dificultar a cessação do contrato de trabalho por parte do trabalhador, mas “proteger a contrapartida de um investimento significativo e excecional (…) realizado pelo empregador que custeia, por exemplo, um curso de formação profissional, um estágio no estrangeiro”93. Não se trata, contudo, de formação regular cuja obrigação impende sobre o empregador, mas aquela que assume um carácter extraordinário.
91 XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, cit, pp. 181. No entanto, apenas podemos ter em conta este exemplo se excluirmos outros pressupostos alternativos, tal como a previsão de regime de isenção de horário de trabalho ou aplicação de regime de adaptabilidade ou banco de horas.
92 Cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato de Trabalho, cit, pp. 182.
93 Cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit, pp. 625
Com efeito, este regime permite que o trabalhador possa desobrigar-se da obrigação de permanência desde que pague o montante das despesas auferidas pelo empregador94.
Neste contexto, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA identificou o pacto de permanência, ao abrigo da antiga Lei do Contrato de Trabalho95 como uma “cláusula penal” lícita em contexto de um contrato de trabalho se visar compensar o empregador de despesas extraordinárias com a formação do trabalhador96. Compreende-se que o legislador enquadre o pagamento de despesas extraordinárias em formação, por parte de um trabalhador, como uma verdadeira cláusula penal no caso de incumprimento do pacto de permanência. Isto porque resulta de forma evidente do acordo entre empregador e trabalhador. Na verdade, as partes ao celebrar um pacto de permanência estão a acordar antecipadamente o montante da indemnização. No entanto, aqui não está em causa a antecipação face à obrigação de cumprimento de aviso prévio, mas sim da obrigação de permanecer ao serviço do empregador por um determinado período de tempo. Deste modo, ao pacto de permanência, devem ser aplicadas, com as necessárias adaptações, as regras previstas no art. 810.º a 812.º do Código Civil.
Este regime justifica-se na medida em que reconhece ser legítimo ao empregador promover formação dispendiosa aos seus trabalhadores, expectando obter retorno dessa formação em contexto de trabalho97. Desta forma, é permitida a celebração de acordos para a manutenção da relação de trabalho por um período até 3 anos. Naturalmente que o trabalhador que queira antecipar a cessação do contrato antes deste período pode fazê-lo, mas terá de ressarcir o empregador pelo investimento realizado. Também por essa razão, o art. 401.º garante que, em caso de incumprimento de aviso prévio em situação de denúncia por iniciativa do trabalhador, esta indemnização prevista no art. 137.º, será quantificada como um dos danos causados ao empregador98.
94 XXXXX XXXXX refere que o custo com a formação tem de ser “real e efetivo” e não com fundos ou subsídios públicos (XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit, pp. 625). Compreende-se esta abordagem deste autor, pois, importa para este efeito acautelar o património do empregador que investiu quantia “avultada” na formação do trabalhador e não o empregador que promoveu essa formação com fundos externos que lhe foram disponibilizados.
95 v. 36.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 49 408, de 24.11.1969.
96 Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA de 22.09.2004, disponível no BTE, 2.ª Série, n.º 1-2-3/2006, pp. 258.
97 Daí que o legislador se refira em primeira linha à prestação de trabalho como a verdadeira compensação pelas despesas efetuadas com a formação profissional do trabalhador.
98 Quanto a este tema, XXXXX XXXXX levanta dúvidas quanto à constitucionalidade da norma semelhante contida na legislação anterior ao Código de 2003. Contudo, apesar das reservas levantadas, XXXXX XXXXX entende que
Entendemos ser de magna importância o conteúdo da parte final do art. 401.º do Código do Trabalho quando interpretado em consonância com o art. 137.º. Por um lado, parece evidente que o legislador pretendeu que os danos provocados pelo incumprimento das regras referentes ao pacto de permanência ficassem intactos no momento da quantificação da indemnização por inobservância do prazo de aviso prévio. O legislador especificou que o montante das despesas avultadas em que o empregador incorreu com ações de formação do trabalhador são danos diretamente invocáveis aquando da denúncia em incumprimento do aviso prévio. Neste caso, estamos perante a violação de duas obrigações distintas por parte do trabalhador: i) obrigação de cumprimento do aviso prévio em caso de denúncia e ii) obrigação de reembolso do empregador relativamente às despesas avultadas correspondentes à formação profissional extraordinária facultada. Como já vimos, o trabalhador é livre de se desvincular do empregador a qualquer momento. Todavia, apesar da denúncia ser sempre lícita, assume-se como irregular se forem incumpridas as duas obrigações. Assim, o trabalhador terá de pagar uma indemnização pelo valor calculados de acordo com os critérios do art. 401.º e reembolsar as descritas despesas em que o empregador incorreu. É aqui que importa recuperar uma ideia já abordada no presente estudo e que agora requer um maior desenvolvimento99. A obrigação de pagamento das despesas de formação por parte do trabalhador quando devidas, não podem ser afetadas pela indemnização em virtude de incumprimento do aviso prévio. Vejamos o seguinte exemplo:
Um trabalhador com um salário base de € 1.000,00 com mais de dois anos de antiguidade, teve uma ação de formação em Londres no valor de € 2.000,00, tendo as partes acordado um pacto de permanência por dois anos. Num determinado dia, o trabalhador informa o empregador que aquele é último dia de trabalho. No dia seguinte de manhã, o trabalhador devia dar uma formação por conta do empregador, tendo a mesma sido cancelada face à denúncia abrupta do contrato de trabalho porque era o único trabalhador do empregador com know-how para ministrar a formação. Aliás, por esse motivo foi-lhe facultada a formação que recebeu em Londres. Em virtude do cancelamento da formação, o empregador teve € 1.000,00 de danos por ter tido de pagar a cedência do espaço onde esta iria ter lugar.
caso se tratam de despesas “excecionais”, é razoável a proteção conferida ao empregador por parte do legislador laboral (cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho, Vol. II, Serviços de Ação Social da UC, Coimbra, 1999, pp. 60 e 61).
99 v. supra pp. 17 e 18,
Por força do disposto na primeira parte do artigo 401.º, o trabalhador teria de indemnizar o empregador em € 2.000,00 correspondentes aos 60 dias de aviso prévio em falta. Entendemos ainda, por motivos já abordados, que ao empregador é igualmente legítimo demonstrar ser credor de mais € 1.000,00 pelos danos decorrentes pela denúncia abrupta do contrato. Pelo que a indemnização seria já na ordem dos € 3.000,00. Por fim, por força do pacto de permanência assinado pelas partes, o trabalhador teria ainda de repor as despesas de formação no montante de € 2.000,00. Neste caso, a indemnização devida pelo trabalhador ascenderia a
€ 5.000,00.
Outra interpretação do art. 401.º, tal como defendido por XXXXX XXXXXXX XXXXXXX000, implicaria estarmos perante uma indemnização de apenas € 3.000,00. Significaria, pois, que o valor correspondente ao aviso prévio em falta ia consumir o valor das despesas de formação a serem reembolsadas pelo empregador. Ora, não podemos sufragar este entendimento. O papel do reembolso das despesas de formação, tal como resulta do art. 401.º in fine é vital para compreendermos o verdadeiro sentido da norma. As obrigações assumidas em virtude de um pacto de permanência e os danos causados pela inobservância do prazo aviso prévio são enquadrados da mesma forma pelo legislador. Parece por demais evidente que, caso o valor das despesas com formação a serem reembolsadas pelo trabalhador sejam iguais ou inferiores ao montante correspondente à inobservância do aviso prévio, se o empregador não tiver direito a uma indemnização superior, haverá uma vantagem patrimonial injustificada para o trabalhador que denunciou abruptamente o seu contrato de trabalho. Afastar-se-ia, assim, a indemnização contemplada no art. 137.º ou aquela prevista na parte inicial do art. 401.º. Não parece, pois, que foi esta a solução alcançada pelo legislador. Com o recurso às regras de interpretação da norma, o seu sentido nunca poderia salvaguardar um regime mais favorável a quem incumpre duas obrigações do que a quem incumpre apenas uma. Estaríamos perante a situação caricata de permitir que fosse mais interessante para um trabalhador vinculado a um pacto de permanência desvincular-se com efeitos imediatos do seu empregador101. Desta forma, entendemos que o art. 137.º é fundamental para concluirmos no sentido do carácter cumulativo das indemnizações descritas na parte inicial e na parte final do art. 401.º do Código do trabalho.
100 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Cessação… cit., pp. 548.
101 Não estamos a ter aqui em conta qualquer potencial indemnização com base numa denúncia abusiva por parte do trabalhador.
Parece ainda ser relevante lembrar que as regras previstas para o recurso ao pacto de permanência no Código do Trabalho de 2003 apontavam para uma restituição em caso de resolução com justa causa ou despedimento ilícito102. O teor do atual art. 137.º do Código do Trabalho clarifica que a formação extraordinária ministrada apenas gera um direito de crédito no caso de o trabalhador incumprir o pacto de permanência. A este respeito, XXXXX XXXXXXXXXXX aponta esta alteração como a confirmação de que as obrigações resultantes do pacto de permanência apenas decorrem da denúncia do contrato103. A relação umbilical entre o pacto de permanência e a denúncia é, portanto, evidente.
Face ao exposto, constatamos que o pacto de permanência assume-se como mais uma situação tipificada no Código do Trabalho de responsabilidade civil do trabalhador em caso de incumprimento. Para além disso, também a indemnização prevista ao abrigo deste regime assume a característica de ser tendencialmente quantificável. A sua natureza é igualmente uma expressão do carácter civil de um contrato de trabalho.
5. O art. 363.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 e a inovação legislativa estabelecida
O art. 363.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 veio consagrar de forma expressa que “se uma das partes faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres laborais torna-se responsável pelo prejuízo causado à contraparte”. De acordo com XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, uma das orientações que presidiu à elaboração do Código do Trabalho foi a “integração das soluções laborais no regime comum do Direito Civil”104. Neste contexto, relembra-nos este autor que a integração das regras civis assumiu, quanto ao art. 363.º, o papel de remissão para o regime do Direito das Obrigações105.
102 Cfr. art. 147.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2003.
103 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx, XXXXXXXXXXX, Xxxxx, XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx, XXXX, Xxxxxxxxx, XXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx da, Código do Trabalho Anotado, 8.ª Edição, 2009, anotação ao art. 137.º, pp. 376.
104 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, A Reforma do Código do Trabalho: perspetiva geral, A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, 2004, pp. 34.
105 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, A Reforma, cit., pp. 34. Parece ser importante referir que XXXXXXX XXXXXXX CORDEIRO referia-se, no período anterior à codificação da legislação laboral, ao direito individual do trabalho como o sector do direito do trabalho mais próximo do direito das obrigações, chegando ao ponto de definir o contrato de trabalho se traduziria no direito de um contrato em especial (CORDEIRO, Manual de… cit., pp. 514). Não temos dúvidas que com a codificação o nosso legislador não acompanhou esta posição redutora do contrato de trabalho a mero contrato civil especial. No entanto, veio reconhecer expressamente o importante papel do direito das obrigações no regime do contrato de trabalho, tal como identificado por XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX.
Até à data da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, não resultava da legislação laboral nacional qualquer referência ao regime geral do incumprimento do contrato. Porém, defendia a doutrina que este princípio estava já consagrado por força do art. 798.º do Código Civil106. Por outro lado, havia preocupação no sentido de defender a autonomia do Direito do Trabalho face ao Direito Civil comum estabelecendo-se fronteiras entre os dois ramos do Direito107.
Ao codificar a legislação laboral, entendeu o legislador garantir expressamente a aplicação do regime do incumprimento contratual em geral ao contrato de trabalho. Assim, deixam de existir quaisquer dúvidas quanto à obrigação de cumprimento pontual do contrato de trabalho por parte quer do trabalhador, quer do empregador. Este artigo do Código do Trabalho de 2003 veio dar suporte à dinâmica contratual de uma relação de trabalho. Na verdade, a natureza do contrato de trabalho passou a ser claramente civilística, impondo uma obrigação bilateral de cumprimento das obrigações. Fica, assim, assumido o carácter sinalagmático do contrato de trabalho, pese embora a estruturação da exceção do não cumprimento tenha restrições naturais tendo em conta a natureza do contrato de trabalho108, como veremos mais à frente no presente estudo109.
Para além disso, tendo em conta uma lógica de responsabilidade civil do trabalhador enquanto contraente, fica também evidente que esta responsabilidade não se fica pelas situações associadas à violação do aviso prévio ou de pacto de permanência.
Acresce ainda que, com a integração desta norma, constata-se que o incumprimento dos deveres laborais por parte do trabalhador não gera somente responsabilidade disciplinar. No
106 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX refere que sendo o Direito do Trabalho um ramo especial do Direito Privado são- lhe aplicáveis os princípios gerais do direito civil (XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Código do Trabalho Anotado, 8.ª Edição, 2009, pp. 866).
107 A título de exemplo, XXXXXXX XX XXXXX VEIGA relembrava antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003 que a intervenção do Estado no Direito do Trabalho era particularmente intensa ao contrário do direito civil comum que se limitava a estabelecer regras essencialmente supletivas (cfr. VEIGA, Xxxxxxx xx Xxxxx, Lições de Direito do Trabalho, Lisboa, 1995, pp. 51).
108 Quanto a este ponto, XXXXXX XXXX refere que apesar do contrato de trabalho se tratar de um contrato sinalagmático, a exceção de não cumprimento está restrita à fisionomia própria da relação laboral (cfr. XXXX, Xxxxxx, Novo Código do Trabalho e Legislação Complementar - Anotados, 3.ª Edição, Setembro de 2012, pp. 634)
109 Não podemos, contudo, deixar de ter em conta que a aplicação das regras civis ao contrato de trabalho têm ainda de pressupor que, como referiu XXXXX XXXXXX, a “invenção” do direito do trabalho consistiu em garantir ao direito do trabalho um estatuto jurídico original tendo em conta a sua dimensão pessoal (XXXXXX, Xxxxx, Critique du Droit de Travail, Quadrige/PUF, Paris, 1994, pp. 255). Qualquer interligação entre estes dois ramos do direito requerem esta particular atenção sob pena do direito do trabalho deixar de possuir o seu caráter de autonomia perante os demais.
entanto, ainda antes da introdução desta norma na legislação laboral, decidiu a Secção Social do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, em acórdão datado de 11.11.1998, que “o trabalhador pode ser civilmente responsabilizado pelos danos que causa à entidade empregadora, emergente do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação de prestar a atividade intelectual ou manual a que se vinculou ao subscrever o contrato de trabalho entre ambos acordado”110. Fica assim evidenciado que alguns tribunais assumiam já a natureza civil de um contrato de trabalho, nomeadamente quanto à aplicação das suas regras de incumprimento.
Não obstante, esta posição legislativa e jurisprudencial acaba por não ser consensual no âmbito dos demais ordenamentos jurídicos europeus. Com efeito, existe uma tradição francófona de limitação da responsabilidade civil do trabalhador no âmbito do incumprimento do contrato. A este propósito, XXXXXXXXXX XXXX refere que o direito especial não tem vocação para se substituir na totalidade ao direito comum por ter de se ajustar a situações particulares111, daí que se refira aos critérios de imunidade do trabalhador. Ainda no ordenamento jurídico francês, o art. 19.º do 1.º do Code du Travail que se encontrava em vigor em 1964 estabelecia que o contrato de trabalho seguia as regras do direito comum. Só que o problema do incumprimento do contrato, segundo G.H. XXXXXXXXXX, não se resume à simples transposição das regras civis112. Assim, este autor defende que enquanto o direito civil está tradicionalmente associado à liberdade contratual, igualdade das partes contratantes e reciprocidade em matéria de contratos sinalagmáticos, o contrato de trabalho pressupõe uma assimetria113.
Esta tradição francófona tem expressão também na Bélgica. No ordenamento jurídico belga, de acordo com XXXXXXXX XXXXXX e XXXXXX XXXXXXXXXX, em caso de danos causados pelo trabalhador ao empregador ou a terceiros na execução do contrato de trabalho, não responde por estes a não ser em situações de dolo ou negligência grosseira114. O trabalhador apenas responde por negligência leve se cometer repetidamente a mesma falha que provoque o dano.
110 v. Ac. TRC, de 11.11.1998, Coletânea de Jurisprudência, V/98, pp. 62
111 XXXX, Xxxxxxxxxx, Droit du Travail et Responsabilité Civile, LDGJ, 1997, pp. 127. A este propósito XXXXXXXXXX XXXX sustenta que a responsabilidade civil é o material de consolidação, os tribunais são os artesãos e o Código do Trabalho o arquiteto
112 Cfr. XXXXXXXXXX, G.H., Rapport sur l’inexecution du contrat du travail en droit français, Travaux de L’Association Xxxxx Xxxxxxxx, 0000, X. XXXX/0000, pp. 376
113 Cfr. XXXXXXXXXX, X.X., Rapport …, cit., pp. 376.
114 CAPART, Rodrigue, STRONGYLOS, Xxxxxx, La responsabilité civile des travailleurs, Le droit du travail dans tous ses secteurs, Commission Université-Palais, Anthémis, 2008, pp. 362.
Esta regra derroga o direito comum, na medida em que afasta a responsabilidade do trabalhador por falhas não habituais115. Não deixa de ser uma técnica interessante, em virtude de determinar desde logo o alcance da responsabilidade civil do trabalhador por danos causados ao empregador ou a terceiros.
O contexto na legislação portuguesa é, contudo, diferente. Assim, XXXX XXXXX XXXXXXX questionou-se, ainda no âmbito do Código do Trabalho de 2003, se a culpa pode ser verificada através de uma transposição mecânica dos conceitos que são usualmente aplicados no direito das obrigações116. Para este efeito, é importante perceber se as alterações legislativas que resultaram na entrada em vigor do Código do Trabalho de 2009 tiveram algum impacto na resposta à questão levantada por XXXX XXXXX XXXXXXX.
6. O art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009
6.1 Introdução
Com a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2009, o artigo em análise passou a estar incorporado no art. 323.º, n.º1. De acordo com este artigo, “a parte que faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres é responsável pelo prejuízo causado à contraparte”. Assim, o legislador não promoveu grande alteração quanto a esta regra, limitando-se a garantir pequenas modificações linguísticas que entendemos não terem relevância117.
Neste contexto e tendo em conta o teor do art. 323.º, n.º 1, parece ser intenção do legislador garantir a aplicação do regime do incumprimento do contrato previsto no Código Civil ao contrato de trabalho. Não obstante, o contrato de trabalho tem uma natureza que impõe a aplicação destas regras com reservas. Isto porque a afetação do regime da responsabilidade civil do trabalhador pode colidir com o regime da responsabilidade disciplinar. Se é certo que toda a infração disciplinar resulta do incumprimento do contrato e dos deveres dele emergentes, já o incumprimento do contrato pode não ser uma verdadeira infração disciplinar.
115 XXXXXX, Xxxxxxxx, STRONGYLOS, Xxxxxx, La responsabilité …, cit., pp. 362. Estes autores referem ainda que o art. 18.º da Loi du 3 Juillet, 1978 tem carácter imperativoe não pode ser alterado por contratação coletiva. Referem ainda que abrange igualmente os contratos de trabalho de direito de outros Estados cujo dano foi causado em território belga.
116 LIZARDO, Xxxx Xxxxx, A responsabilização do trabalhador por atos praticados no exercício das suas funções e os tribunais competentes para a sua apreciação, Questões Laborais n.º 30, Coimbra Editora, 2007, pp. 216.
117 Relativamente a este tema, XXXXX DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX entende que a versão do Código do Trabalho de 2003 ao conter uma remissão do poder disciplinar para o capítulo do incumprimento do contrato desqualificava este poder à regra geral prevista no art. 363.º, n.º 1, tendo em conta que considera este como componente essencial da posição de domínio do empregador RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Xxxxxxxx, 0000, pp. 701 e 702).
Imagine-se o exemplo de um trabalhador que solicita um adiantamento por conta da retribuição ao empregador e que não consegue repor essas quantias em virtude da sua situação financeira ter-se agravado. Aqui teríamos um incumprimento do contrato em virtude do trabalhador ter recebido o adiantamento de uma prestação de trabalho que ainda não realizou, mas não se trata de uma infração disciplinar. Por outro lado, a responsabilidade disciplinar não tem como pressuposto o dano patrimonial, como acontece relativamente à responsabilidade civil.
Quanto a este problema, XXXXX DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX entende que o princípio da cumulação e independência entre a responsabilidade civil e a responsabilidade disciplinar, está implícito na regra geral da responsabilidade civil das partes pelos danos que causem à contraparte, nos termos do art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho118. Esta questão assume, contudo, especial relevância na consolidação das normas do Código Civil em conjunto com as do Código do Trabalho quando está em causa o incumprimento do contrato.
Posto isto, não parecem resultar quaisquer dúvidas que o contrato de trabalho é um verdadeiro contrato sinalagmático119. Contudo, pese embora seja pacífica a remissão do Código do Trabalho para as regras gerais do Direito das Obrigações, no que toca ao enquadramento respeitante ao contrato de trabalho, as partes não podem recorrer a estas normas de forma incondicional. Na verdade, a aplicação das regras civis carecem de uma interpretação cautelosa por parte do intérprete. A exceção de não cumprimento do contrato e a presunção de culpa são dois institutos que necessitam de uma particular atenção quanto ao seu alcance no foro laboral.
6.2 Exceção do não cumprimento
Em primeiro lugar, vejamos a exceção do não cumprimento. De acordo com o art. 428.º do Código Civil, cada uma das partes de um contrato tem a faculdade de recusar a sua prestação
118 XXXXXXX, Xxxxx do Rosário Palma, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Xxxxxxxx, 0000, pp. 726.
119 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX refere-se ao contrato de trabalho como sinalagmático por dele emergirem direitos e obrigações recíprocos para ambas as partes, explicitando que a prestação da atividade tem como contrapartida o pagamento do salário (Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito… cit., pp. 310). Por sua vez, XXXX XXXX XXXXX menciona que o Direito do Trabalho tem “limado as arestas” do sinalagma resultante do contrato de trabalho porque, caso contrário, seria presumível que não havendo prestação de trabalho, necessariamente não haveria lugar a pagamento da retribuição (cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato… cit, , pp. 57). Também XXXXX XXXXX reconhece o carácter sinalagmático do contrato de trabalho salvaguardando que a interdependência entre as obrigações principais – que identifica como a prestação de trabalho e a prestação da retribuição – tem a tendência a atenuar no contrato de trabalho, dando como exemplo o caso das faltas justificadas e os créditos de dias e de horas dos delegados e dirigentes sindicais (cfr. XXXXX, Xxxxx, Direito … cit., pp. 43).
enquanto a outra não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. A aplicação sem reservas deste regime no âmbito de uma relação de trabalho poderia desencadear situações manifestamente absurdas. Imagine-se, por exemplo, uma situação onde um trabalhador faltou 3 dias ao trabalho durante um mês e que o empregador se recusa a pagar parte do salário enquanto o trabalhador não repuser esses dias de trabalho. Outro exemplo, este identificado por XXXXXXX XX XXXXX XXXXX, resulta do facto das férias e as faltas justificadas com remuneração representarem um afastamento do regime laboral da exceção do não cumprimento120. O intérprete das normas laborais tem de mitigar o regime da exceção do não cumprimento. Deve, portanto, ter em conta a natureza tendencialmente duradoura do contrato de trabalho e regulamentadora da obrigação do trabalhador fornecer a força do seu trabalho ao empregador.
No primeiro dos exemplos acima referidos, ao empregador é legítimo apenas não pagar o salário do trabalhador pelos 3 dias em que não prestou a sua atividade. Isto porque não é expectável que haja a reposição da prestação de trabalho nestes dias. Haverá, por isso, um incumprimento definitivo da prestação de trabalho nos dias em questão. Naturalmente que não está em causa o resultado atividade, mas a obrigação de meios a que o trabalhador se vinculou.
Por outro lado, no segundo exemplo, apesar de não haver prestação de trabalho, ainda assim o empregador tem a obrigação de pagar a remuneração ao trabalhador e, no caso das férias, liquidar o respetivo subsídio.
Também quanto à exceção de não cumprimento, XXXXX XXXXX relembra que tem sempre fonte contratual e “visa assegurar o respeito pelo contrato” 121. Deste modo, apesar de reconhecer o desafio da aplicação deste instituto, este autor reconhece que existem algumas vantagens na sua utilização – para o trabalhador a possibilidade de não ter de promover a resolução do contrato de trabalho, para o empregador para não o compelir a recorrer a sanções disciplinares.
120 VEIGA, Xxxxxxx xx Xxxxx, Lições de Direito do Trabalho, Lisboa, 1995, pp. 311. Também XXXX XXXX XXXXX refere-se às caraterísticas especiais que algumas faltas justificadas, férias ou feriados têm face ao carácter sinalagmático do contrato de trabalho (cfr. XXXXX, Xxxx Xxxx, Contrato… cit., pp. 57). Neste contexto, XXXXX DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX identifica o sinalagma do contrato de trabalho como um sinalagma imperfeito na medida em que em determinadas circunstâncias o dever principal de uma das partes prevalece perante a ausência de prestação da outra (XXXXXXX, Xxxxx do Rosário Palma, Direito do Trabalho, cit., pp. 92). 121 XXXXX, Xxxxx, Direito … cit., pp. 874.
Não obstante, o legislador laboral salvaguarda verdadeiras situações de exeptio non adimpleti contractus no Código do Trabalho. Na verdade, incorrendo o trabalhador em faltas justificadas com perda de retribuição e faltas injustificadas, é legítimo ao empregador não pagar a respetiva retribuição. Esta é, aliás, uma das consequências gerais da ausência do trabalhador.
O Código do Trabalho também prevê em favor do trabalhador algumas situações de verdadeira exceção de não cumprimento no que toca ao não pagamento da retribuição por parte do empregador. Na realidade, o art. 325.º a 327.º do Código do Trabalho confere ao trabalhador uma efetiva exceção de não cumprimento em virtude de falta de pagamento pontual da retribuição. Não é, pois, um instituto totalmente afastado pela realidade de uma relação laboral, antes pelo contrário.
Por essa razão, XXXX XXXX XXXXXXXX criticou o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO de 18.05.1987 que decidiu que a exeptio non adimpleti contractus não era aplicável ao contrato de trabalho, baseando-se em factos ocorridos ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho122. Este autor refere-se àquele que corresponde atualmente o art. 325.º a 327.º do Código do Trabalho como uma mera especialidade do regime previsto no art. 428.º do Código Civil.
Defendemos, pois, que o art. 428.º do Código Civil se aplica ao contrato de trabalho desde que adaptado aos seus fins especiais. Tal como parece indicar XXXX XXXX XXXXXXXX, todas as normas previstas na legislação laboral indiciadoras de estabelecerem uma verdadeira exceção de não cumprimento, são meras especialidades do art. 428.º do Código Civil.
6.3 Presunção de culpa
6.3.1 Presunção de culpa em contexto de responsabilidade disciplinar
Em segundo lugar, é preciso também ter em conta que a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil tem de ser interpretado igualmente com cautelas. Com efeito, a violação dos deveres laborais por parte de um trabalhador pode gerar, como já vimos, responsabilidade disciplinar. No entanto, uma infração disciplinar não pode deixar de ser um incumprimento contratual. Daí que seja pertinente questionar se existe uma presunção de
122 Cfr. XXXXXXXX, Xxxx Xxxx, A exceção de não cumprimento, 2.ª Edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 187 e ss.
culpa no âmbito de um processo disciplinar por assumir a natureza de um verdadeiro incumprimento contratual. Ou, pelo menos, se existe diferença de regimes.
De acordo com o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA “o dever de assiduidade – consagrado no art. 121.º, n.º 1, al. b) – está relacionado com a diligência que o trabalhador coloca na realização da sua atividade, sendo certo que o enunciado preceito proíbe as faltas e os atrasos injustificados”123. Ainda neste acórdão, foi defendido que “visto que a relação laboral pressupõe uma execução continuada, as faltas sucessivas integram um cumprimento defeituoso do vínculo, suscetível de gerar na entidade patronal a quebra de confiança no trabalhador e, em consequência, potenciar o seu legítimo despedimento”. Ora, na esteira desta decisão judicial, face ao incumprimento continuado do dever de assiduidade e pontualidade por parte de um trabalhador, estamos, perante um cumprimento defeituoso do contrato. Aliás, resulta deste acórdão que “as faltas, sendo injustificadas, integram um comportamento ilícito, presumindo-se a culpa do trabalhador”. Este acórdão assume uma extrema importância porque associa o regime do art. 799.º do Código Civil à infração disciplinar enquanto cumprimento defeituoso do contrato.
A questão que importaria aqui analisar, numa fase preliminar, é se a infração disciplinar pode ser considerada como um incumprimento do contrato com a necessária presunção de culpa e em que medida é que este artigo é compatível com as regras referentes ao poder disciplinar do empregador. Parece ser este o caminho sufragado pelo referido acórdão. Em sentido contrário a este entendimento, temos XXXXX XXXXX que, apesar de aceitar o carácter contratual da responsabilidade do trabalhador por violação dos deveres emergentes de contrato de trabalho, considera despropositado aplicar a presunção da culpa, nomeadamente em contexto disciplinar124. Também neste sentido temos MARIA DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX que procura associar o regime civil resultante do art. 323.º, n.º 1 ao “incumprimento dos deveres negociais das partes, com destaque para os deveres principais”125 especificando ainda a sua aplicação às secções II e IV do capítulo do incumprimento.
123 cfr. Acórdão do STJ, de 02.12.2010, Processo n.º 637/08.0TTBRG.P1.S1, Relator: Xxxxx Xxxxxxx, publicado em xxx.xxxx.xx
124 XXXXX, Xxxxx, Direito do Trabalho … cit, pp. 887.
125 XXXXXXX, Xxxxx do Rosário Palma, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Xxxxxxxx, 0000, pp. 703. Esta autora classifica como incongruente a opção do legislador consagrar expressamente um princípio da responsabilidade civil no Código do Trabalho, ainda para mais identificando como “efeitos gerais do incumprimento”. Xxxxx, XXXXX XX XXXXXXX XXXXX XXXXXXX vai mais longe ao referir que a greve e o processo disciplinar são os dois meios específicos de tutela colocados à disposição do trabalhador e empregador numa relação laboral.
Por sua vez, XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, debruçando-se sobre a presunção de culpa em sede de incumprimento por ausência ao trabalho, entende que ao processo disciplinar deve ser aplicado o princípio da presunção da inocência por se tratar de um processo sancionatório126. Esta autora identifica como problema a compatibilização entre a presunção civil da culpa e o princípio do in dubio pro reo resultante dos preceitos penais, quedando-se no sentido de que “o automatismo direto da atribuição da culpa, no caso da inércia probatória do trabalhador, não joga bem com a relação de sujeição do trabalhador à entidade empregadora, nomeadamente com o exercício do poder disciplinar como consequência de condutas presumidamente culposas”127. Também neste sentido temos XXXXX XXXXX XX XXXXXXXXXXX que entende como excessiva a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil ao trabalhador, devido ao facto de se encontrar num contexto de subordinação jurídica128.
Assim, é importante a tónica utilizada no sentido que a presunção de culpa não pode ser aplicada em contexto disciplinar por assumir uma maior proximidade com as sanções penais. Neste contexto, XXXXX DO ROSÁRIO XXXXX XXXXXXX inova ao construir a sua posição com base numa interpretação sistemática do Código do Trabalho e colocando enfâse nas características próprias do contrato de trabalho que o torna diferenciador dos demais contratos civis.
É, pois, de difícil análise a questão da aplicação da presunção da culpa num contexto disciplinar. Relembramos que toda a infração disciplinar é necessariamente um incumprimento do contrato na medida em que o trabalhador violou um dos seus deveres laborais. Parece evidente e pacífico que o art. 32.º, n.º 10 da Constituição Portuguesa aplica-se à estrutura do processo disciplinar129. O processo disciplinar deve estar imbuído de mecanismos que permitam o pleno exercício do contraditório por parte do trabalhador. Temos mais dúvidas quanto à aplicação do princípio da inocência previsto no art. 32.º, n.º 2 da Constituição. Na verdade, mesmo em sede de contraordenações laborais este princípio tem
126 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, A inexecução do contrato de trabalho – Um enfoque à luz da igualdade efetiva entre sexos, Tesis Doctoral – Doctorado Europeo, Salamanca, 2010, disponível em xxx.xx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxx/xxxx_xxxxxxxxxxx.xxx, pp. 46 e 47.
127 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, A inexecução, cit., pp. 47 e 48.
128 ALBUQUERQUE, Xxxxx Xxxxx de, O cumprimento defeituoso da relação de trabalho, Revista Jurídica da AAFDL, 15, 1991, pp. 138 e ss.
129 XXXXX XXXXXXX e XXX XXXXXXXX entendem ser inconstitucional a aplicação de qualquer sanção laboral sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (cfr. XXXXXXX, Xxxxx, XXXXXXXX, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, Coimbra, pp. 363)
sofrido algumas restrições, nomeadamente através dos efeitos probatórios do auto de notícia130. Por outro lado, ao contrário do processo penal e mesmo do processo contraordenacional, no processo disciplinar não está em causa qualquer interesse público. Os únicos interesses salvaguardados pelo processo disciplinar são os privados do empregador. Daí que a comparação do processo disciplinar ao processo penal parece ser excessiva. Aliás, mesmo a ação especial de regularidade da licitude do despedimento onde são discutidos os factos e a culpa do trabalhador despedido, assume uma tramitação muito próxima do processo civil. Para além disso, do ponto de vista sistemático, constatamos que o poder disciplinar está enquadrado no Capítulo VI do Código do Trabalho referente ao “incumprimento do contrato”. O art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho está na Secção I deste Capítulo designando-se como “disposições gerais”. Parece, pois, ter sido opção do legislador integrar os efeitos gerais do incumprimento do contrato ao poder disciplinar. Para haver um afastamento do art. 799.º do Código Civil ao exercício do poder disciplinar, importava que tal aplicação colocasse em causa a proteção especial do trabalhador enquanto contraente tendencialmente débil da relação laboral.
Não nos podemos esquecer que a responsabilidade contratual implica a violação de uma obrigação a que cujo cumprimento as partes se vincularam. Como define XXXXXX XXXXXXX XX XXXX XXXXX, a responsabilidade contratual “é originada pela violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico; é a responsabilidade do devedor para com o credor pelo não cumprimento da obrigação”131. Daí que é compreensível o iter da decisão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA acima identificada, uma vez que é difícil sustentar a não aplicação do art. 799.º do Código Civil em situações em que claramente existe uma modalidade de incumprimento do contrato de trabalho por parte do trabalhador.
130 Ao contrário do que acontece em sede disciplinar onde estão salvaguardados interesses particulares do empregador, o direito contraordenacional laboral, tal como o direito penal, salvaguarda o poder sancionatório do Estado. Ainda assim, o legislador logrou fazer impender sobre o empregador um verdadeiro ónus de presunção da prática dos factos imputados pelo organismo responsável pela atividade inspetiva. Na verdade, resulta do art. 13.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, que se consideram provados os factos materiais constantes do auto de notícia, se não for colocada em causa a autenticidade do documento ou o seu conteúdo não for colocado em causa de forma fundamentada. Pese embora não se trate de uma efetiva presunção de culpa, trata-se de uma verdadeira presunção de prática das infrações imputadas. Em termos práticos está-se a meio caminho para a presunção de culpa. Discordamos, portanto, com XXXX XXXXXX XXXXXXX quando afasta completamente desta norma qualquer presunção de culpabilidade (cfr XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx, Contraordenações Laborais – Regime Jurídico, 3.ª Edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 36). Este regime das contraordenações laborais fragiliza o entendimento sobre a aplicação do art, 32.º, n.º 2 da Constituição aos processos disciplinares como fator de afastamento da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil.
131 Cfr. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição atualizada, Coimbra Editora, 11.ª reimpressão, 1996, pp. 123. Este autor inclusivamente identifica a responsabilidade contratual enquanto responsabilidade negocial.
Temos, assim, de separar o ónus da prova dos factos imputados ao trabalhador da inversão do ónus da prova quanto à culpa. Ora, o art. 342.º, n.º 1 do Código Civil estabelece o princípio geral que aquele que invocar um direito tem de fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Neste contexto, o empregador que alega o incumprimento contratual do trabalhador tem de provar os factos invocados132. Num contexto disciplinar torna-se complicado, contudo, compatibilizar o art. 799.º do CC com o princípio in dubio pro reo que se defende aplicar a processos sancionatórios.
No entanto, na esteira da solução do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, parece indicar XXXXX XXXXXX XXXXXXXX que defende que “qualquer incumprimento dos deveres emergentes do contrato de trabalho, por parte do trabalhador ou do empregador presume-se culposo”133. Xxxxx, este autor vai ainda mais longe equiparando o artigo 128.º, alíneas a) e b) do Código do Trabalho como o fundamento legal do cumprimento defeituoso da atividade laboral134. Acrescenta ainda que a realização da atividade com falta de zelo gera uma perda de confiança do empregador face ao trabalhador, daí que o cumprimento defeituoso funda-se na presunção de culpa135.
Ora, como o ónus da prova da culpa em sede disciplinar não é objeto do presente estudo, não vamos tomar uma posição. Pretendeu-se, isso sim, demonstrar que a aplicação do art. 799.º do Código Civil pode ser discutida em sede de responsabilidade disciplinar ou contratual com argumentos distintos.
6.3.2 Presunção de culpa em contexto de responsabilidade civil
Deste modo, se temos dúvidas quanto à aplicação da presunção prevista neste artigo num contexto disciplinar, já não a temos num contexto não disciplinar. Com efeito, invocando o incumprimento contratual, entendemos que incumbirá ao devedor – neste caso, o trabalhador
– provar que a falta de cumprimento do contrato de trabalho ou o seu cumprimento defeituoso não procede de culpa sua. A aplicação deste preceito justifica-se na medida em que, apesar de tudo, estamos perante um contrato de natureza privada. Atribuir ao empregador a obrigação de provar a culpa do incumprimento do trabalhador gerador de um dano seria desvirtuar a natureza da relação laboral sobrecarregando o empregador, enquanto contraente, com um
132 Seja em ação judicial onde esteja a ser esteja a discutida uma infração disciplinar, quer em ação comum onde o empregador tenha demandado um trabalhador seu por incumprimento do contrato de trabalho.
133 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Incumprimento do contrato de trabalho, Revista do CEJ, 1.º Semestre, 2005, Número 2,Almedina, Coimbra, pp. 8 e 9.
134 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito… cit, pp. 868.
135 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito… cit, pp. 869
ónus de difícil enquadramento. Na realidade, inexiste qualquer particular fator de proteção que justifique uma interpretação diferente. Mesmo tendo o contrato de trabalho um papel de subsistência por parte do trabalhador, não sairá afetado pela presunção de culpa que sobre si impende no caso de ter sido provado o incumprimento. Bem ensina XXXX XXXXXXX XXXXXXX que a lei deve estabelecer presunções legais para socorrer uma das partes136. Neste caso, o empregador mais não é que um credor que sofreu um dano com o incumprimento contratual do devedor – o trabalhador. Entendemos, pois, que o art. 799.º do Código Civil aplica-se a todas as situações de incumprimento contratual numa vertente não disciplinar. Também neste sentido, XXXXXX XXXX refere que este ónus da prova é um dos princípios gerais que regem a responsabilidade obrigacional que se aplicam ao contrato de trabalho por força do art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho137. Para além disso, não resulta da letra deste artigo qualquer afastamento deste regime probatório. Se quanto ao poder disciplinar pode haver conflito de normas, cremos que aqui não se impõe qualquer norma em sentido oposto.
Este tema não é, contudo, pacífico noutros ordenamentos jurídicos. A título de exemplo, em 2008, a CASSAZIONE decidiu que no apuramento responsabilidade contratual do trabalhador por danos causados a bens utilizados ao serviço do empregador, é ónus da prova do empregador provar o dano e o nexo de causalidade entre o facto ou omissão do trabalhador. Por outro lado, de acordo com esta decisão, incumbe ao trabalhador provar que adotou as diligências adequadas para demonstrar que agiu com diligência e, em geral, atuou sem culpa138. No entanto, esta jurisprudência não é unânime.
136 Cfr. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 112.
137 Cfr. XXXX, Xxxxxx, Novo Código do Trabalho… cit., 2012, pp. 633.
138 Cfr. Acórdão da CASSAZIONE de 26.05.2008, n.º 13530. Neste caso estava em causa os danos causados pelo trabalhador a um veículo automóvel do empregador. A posição do Tribunal é sustentada no facto de entender não existir fundamento para a aplicação de um regime provatório diferente em contexto de contrato de trabalho. Esta decisão refere ainda que o dever de diligência não é a prestação obrigacional principal, mas somente o modo como a prestação laboral deve ser cumprida. Por outras palavras, aborda o dever de diligência como um dever de conduta associado à prestação principal do trabalhador. Este acórdão foi criticado por XXXXXXX XXXXXXX que chama a atenção para o facto de ter aplicado o ónus da prova de acordo com o princípio comum do direito das obrigações, com base no qual o credor pode limitar-se a provar os danos e o nexo de causalidade, ficando dispensado de demonstrar a culpa. Para sustentar esta crítica, a autora italiana apresenta um conjunto de acórdãos em sentido contrário (cfr. XXXXXXX, Xxxxxxx, La responsabilità, del lavoratore per i danni ai peni aziadali affidatigli, Rivista di Diritto del Lavoro, Giuffrè Editore, Napoli, Anno XXVIII, 2009, pp. 35 a 38). Um dos acórdão mencionados – CASSAZIONE de 25.09.1996, n.º 8435 – vai no sentido de que em situação de dano provocado por um trabalhador no exercício das tarefas que lhe foram atribuídas pelo empregador, incumbe a este último provar que o facto danoso está relacionado com uma conduta do trabalhador violadora dos seus deveres de fidelidade e diligência, restando ao trabalhador demonstrar que o incumprimento não lhe é imputável. Fica evidente o desajuste jurisprudencial italiano quanto ao ónus da prova em sede de responsabilidade civil do trabalhador.
Não obstante, entendemos que o art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho não impede, de todo, a aplicação do art. 799.º do Código Civil por não afetar o fim adjacente à relação laboral. Aliás, o próprio art. 337.º, n.º 2 do Código do Trabalho onera o trabalhador com um ónus probatório dificultado na reclamação de créditos com mais de 5 anos. Assim, se tivermos em conta que estamos apenas no âmbito do ressarcimento de danos, entendemos não existir qualquer motivo que justifique a não aplicação da presunção de culpa para aferir a responsabilidade pelo incumprimento contratual imputável ao trabalhador.
6.4 Limites interpretativos
O enquadramento das regras civis no contrato de trabalho requer, como já referimos, evidentes restrições face ao seu papel regulador da relação entre trabalhador e empregador.
Não restam dúvidas que a remissão proposta pelo art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho implica a reinterpretação do regime civil de incumprimento previsto no Código Civil. Com esta interpretação, não queremos afastar este regime, mas apenas compô-lo sob pena de afetar a natureza laboral do contrato. Neste sentido, XXXXX XXXXXX XXXXXXXX refere que “há toda a conveniência em fazer a transposição do mesmo para o domínio do contrato de trabalho, até porque, por vezes, há certas especificidades e surgem dúvidas de qualificação”139.
Para além disso, não nos podemos esquecer que o contrato de trabalho tem natureza privada. No entanto, a imperatividade de parte das suas normas dificulta a aplicação prática do regime do incumprimento. Acresce ainda que devemos ter em conta o facto do incumprimento do contrato de trabalho gerar ainda responsabilidade disciplinar, criando novos desafios para o seu enquadramento.
Assim, salvaguardada a adaptação à natureza do contrato de trabalho, deve ser tido em conta o máximo respeito pelas regras de interpretação das normas legais. Pese embora se assuma a identificação do art. 323.º, n.º 1 como uma verdadeira remissão para regime de incumprimento do Código Civil, pelos motivos acima indicados, esta remissão deverá proteger as especificidades de um contrato de trabalho. Ao interpretar esta norma devemos seguir os ensinamentos de XXXXXX XX XXXXXXX que defende que o conteúdo virtual dos preceitos jurídicos devem ser extraídos e desenvolvidos pelo intérprete de acordo com as
139 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito… cit., pp. 843
seguintes diretivas140: i) “Legitimado um fim, estão legitimados os meios indispensáveis para se conseguir esse fim”; ii) “Quem tem direito ao mais, tem direito ao menos. Se é vedado o menos, deve sê-lo também o mais”.
O contrato de trabalho tem para uma das partes uma função alimentar vital para a sua subsistência – neste caso, o trabalhador. Em virtude desta relação umbilical do contrato de trabalho com a subsistência de uma das partes, importa ter em conta o especial interesse de proteção que as normas laborais habitualmente possuem. Daí que, como já vimos, existe um conjunto de normas imperativas previstas no Código do Trabalho aplicáveis ao contrato de trabalho. O fim de proteção das especificidades da natureza de uma relação de trabalho deve suportar os meios necessários para alcançar este fim, nomeadamente a não aplicação da remissão para normas incompatíveis com este contrato.
O poder disciplinar é o maior fator objetivo da assimetria da relação de trabalho. Quando afastado o exercício do poder disciplinar, a relação contratual laboral equilibra-se por natureza, pese embora seja evidente a dependência que o trabalhador tem do empregador para garantir os seus meios de subsistência.
Na interpretação das normas civis quanto ao incumprimento do contrato de trabalho, devem afastar-se essencialmente todas as regras incompatíveis com o carácter continuado da relação de trabalho, aplicando-se as demais. Esta incompatibilidade deve ser aferida em concreto e não em abstrato.
6.5 Consequência da aplicação do regime
Aplicando-se à relação de trabalho a obrigação de indemnizar a contraparte pelos danos causados em caso de incumprimento contratual, assume-se, como já se referiu, a natureza privada do contrato de trabalho.
Com efeito, em caso de incumprimento do contrato de trabalho, através da violação dos seus deveres, o trabalhador pode i) responder disciplinarmente pela sua conduta; e/ou ii) responder civilmente pelos danos causados pelo incumprimento.
140 XXXXXXX, Xxxxxx xx, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2.ª Edição, Xxxxxxx Xxxxx, Editor, Sucessor, Coimbra, 1963, pp 153.
Incumbirá ao empregador decidir quais os meios mais adequados para atuar no caso concreto. No entanto, a responsabilidade civil e a responsabilidade disciplinar não são incompatíveis. Assim, no fundo, o poder disciplinar é o grande fator objetivo diferenciador entre as partes.
Por um lado, a responsabilidade disciplinar servirá somente para punir o comportamento e não para garantir o ressarcimento do dano sofrido pelo empregador. Por outro lado, o dano será sempre ressarcido por recurso às regras da responsabilidade civil contratual, desde que a conduta do trabalhador seja violadora dos deveres a que se encontra vinculado enquanto trabalhador. Estes danos podem ter sido causados diretamente ao empregador ou a terceiros.
Deste modo, o trabalhador pode ser responsabilizado pelos danos causados ao empregador enquanto parte de um contrato, sem qualquer especial grau de culpa como ocorre de acordo com a legislação francesa ou belga. O legislador português exige apenas que o incumprimento contratual seja culposo, presumindo esta culpa com recurso ao art. 399.º do Código Civil.
Esta responsabilidade civil pode ser gerada por qualquer uma das modalidades de incumprimento – definitivo; mora ou cumprimento defeituoso. No caso do incumprimento definitivo, é importante identificar em que situações a prestação imposta ao trabalhador passa a ser impossível ou quando se pode assumir a perda de interesse do empregador. Podemos ter incumprimento definitivo quando o trabalhador não prestou a sua atividade num evento que iria ocorrer numa determinada data. Sendo esse evento localizado no tempo, a ausência do trabalhador mais não pode ser reposta141. Relativamente à mora, o seu enquadramento típico está relacionado com a violação do dever de assiduidade e pontualidade e das atividades não desempenhadas por esse motivo. XXXXX XXXXXX XXXXXXXX sublinha quanto a este ponto que a mora depende da vontade das partes – “só há mora se o credor (empregador) tiver interesse em aceitar a prestação posteriormente e se o devedor (trabalhador) estiver disposto a realizá-la”142. Por fim, quanto ao cumprimento defeituoso, está associado ao dever de zelo e de diligência na execução da prestação principal objeto do contrato de trabalho. Resulta, pois, da falta de respeito destes deveres, desde que tal conduta não tenha a anuência do empregador. Isto porque, como bem refere XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, desta
141 Vejamos o exemplo de um fotógrafo de uma empresa que deveria comparecer num casamento e não o fez. Apesar de a relação de trabalho consistir numa obrigação de meios, admite-se, sem dúvida, que aqui existe um incumprimento definitivo do trabalhador face à obrigação de ter comparecido no casamento.
142 cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito…, cit., pp. 863. Este autor refere ainda que esta necessidade de consenso advém da particularidade da relação laboral.
desconformidade não pode resultar qualquer concordância do empregador143. O que parece ser evidente na medida em que não seria admissível considerar defeituosa a atividade praticada pelo trabalhador em desconformidade, mas com autorização do empregador144. Aqui haveria um cumprimento do dever de obediência por parte do trabalhador.
Aos danos causados por qualquer um destes comportamentos do trabalhador corresponderá a aplicação do regime de prescrição previsto no art. 337.º do Código do Trabalho. Trata-se, pois, de um crédito do empregador emergente da violação de contrato de trabalho, pelo que prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que o contrato cessou.
Por força deste enquadramento, todas estas questões são emergentes de contrato de trabalho e devidamente autonomizadas neste contexto. O facto do Código do Trabalho beber parte das suas regras ao Código Civil, não afasta a sua autonomia dogmática.
7. A Divergência Jurisprudencial
7.1 Introdução
Apesar da introdução de uma regra geral de incumprimento do contrato de trabalho, ainda assim, a aplicação das normas laborais em sede judicial não é, de todo, consensual. XXXX XXXXX XXXXXXX refere, aliás, com total pertinência que “atendendo ao previsto na Lei Orgânica dos Tribunais, poder-se-ia supor que as questões laborais apenas fossem judicialmente abordadas nos respetivos tribunais de competência especializada, mas a experiência demonstra que tal não é inteiramente correto”145. Este autor acrescenta ainda, mais uma vez de forma pertinente, que “tem surgido o recurso a outros tribunais, para além dos do trabalho, com o objetivo de discutir aspetos unicamente derivados da prestação de uma relação laboral”146. Neste sentido, XXXXX XXXXXX XXXXXXXX acrescenta em anotação ao art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho que “tradicionalmente, a matéria do incumprimento não era autonomizada no Direito do Trabalho, levando a que as diferentes
143 cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Direito…, cit., pp. 866.
144 Vejamos o exemplo de um trabalhador que recebe uma nova máquina para trabalhar e que informa o empregador que não tem formação para a utilizar. Tendo o empregador mantido a ordem de utilização da máquina, qualquer dano provocado pelo trabalhador não pode ser considerado como cumprimento de defeituoso. 145 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx, cit., pp. 215.
146 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx, cit., pp. 215
situações de desrespeito por obrigações contratuais fossem reguladas em lugares distintos, sem as necessárias conexões”147.
Para estes autores é evidente que a prática judicial ainda não assume com regularidade a autonomia que o tema do incumprimento do contrato de trabalho pode assumir apesar do seu regime acompanhar as regras gerais previstas no Código Civil.
Na verdade, uma análise profunda da nossa jurisprudência permite apreender a variedade de sentido das decisões judiciais sobre as competências dos tribunais relativamente a temas respeitantes a incumprimento de contrato de trabalho. Desta forma, para que possamos perceber como tem sido enquadrado o incumprimento do contrato por parte do trabalhador ou de responsabilidade civil de uma das partes de um contrato de trabalho, temos de analisar alguns dos exemplo de decisões judiciais e sua evolução temporal. Ressalva-se, contudo, que um dos grandes motores da divergência da jurisprudência está relacionada com o recurso a ações de enriquecimento sem causa, quer por parte do trabalhador, quer por parte do empregador para salvaguardar o seu património em função da violação do contrato de trabalho.
7.2 Posição do Supremo Tribunal de Justiça
Posto isto, é desde logo relevante começarmos por fazer referência ao acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 11.05.2005148 que entendemos ser um dos mais importantes na defesa da autonomia dogmática do incumprimento do contrato de trabalho no Direito do Trabalho. Neste arresto, estando em causa a reclamação de uma indemnização por parte do trabalhador perante o empregador num tribunal comum, decidiu este tribunal que “o incumprimento contratual tanto pode ocorrer por violação do dever principal (o dever que imprime carácter ao vínculo) como de outros deveres acessórios, complementares ou secundários (deveres que abrangem não só os destinados à perfeita realização obrigacional, mas também todos os necessários ao correto processamento da relação obrigacional)”. Nesta medida, esta decisão é irrepreensível na medida em que afasta qualquer interpretação mais conservadora que determine que o incumprimento do contrato de trabalho apenas está relacionado com os deveres principais de uma relação de trabalho. Este acórdão vai bem mais longe e estende os tentáculos do incumprimento de um contrato de trabalho também aos
147 Cfr. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx, Código do Trabalho Anotado, 9.ª Edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 685
148 Acórdão do STJ de 11.05.2005, Documento n.º XX000000000000000, Relator: Xxxxx Xxxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx.
deveres acessórios. Assim, como já tínhamos referido e agora suportado neste acórdão, é possível concluir que a violação de outros deveres por parte do trabalhador ou do empregador podem traduzir-se num incumprimento do contrato de trabalho. Nesta situação particular estava em causa a eventual violação do princípio da boa fé na atuação das partes. Deste modo, esta decisão judicial chega ao ponto de enquadrar a boa fé no cumprimento do contrato de trabalho como elemento estruturante inerente a uma relação laboral. Este acórdão é exemplar na identificação das obrigações emergentes de um contrato de trabalho.
7.3 Posição do Tribunal da Relação do Porto
No mesmo sentido temos o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO de 16.04.2012149. Decidiu este tribunal que “é da competência do Tribunal do Trabalho a ação em que a entidade empregadora pede a condenação da ex-trabalhadora no pagamento de uma indemnização por prejuízos causados pela violação dos deveres de zelo e diligência, de cumprimento de ordens e instruções respeitantes à execução ou disciplina do trabalho e do dever de promover e executar atos atinentes à melhoria da produtividade da empresa”. Constata-se que novamente um Tribunal Superior entendeu que a responsabilidade civil laboral pode ser aferida através da violação de deveres, alguns deles acessórios da prestação principal. Mas este acórdão acaba por ir mais longe ao determinar que uma ação emergente de relações de trabalho subordinado pode estar relacionada com os conflitos que tiveram a sua origem num contrato individual de trabalho150. Fica evidente neste acórdão, em respeito do art. 363.º do Código do Trabalho de 2003, que é legítimo a um empregador i) alegar judicialmente factos constitutivos da existência de um contrato de trabalho entre as partes; ii) descrever a conduta ilícita desenvolvida pelo trabalhador; iii) identificar o nexo de causalidade. Torna-se claro que se impõe às partes o cumprimento de todos os deveres emergente de um contrato de trabalho, sob pena de responsabilidade pelos danos causados.
7.4 Posição do Tribunal da Relação de Lisboa
O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA não tem seguido uma corrente firme quanto a este tema. Na verdade, por mais de uma vez, este tribunal tem decidido sobre pretensões suportadas em enriquecimento sem causa, não só por parte do empregador, como do trabalhador. Em virtude destes diversos recursos, este tribunal tem sido forçado a pronunciar-se sobre a competência
149 Acórdão do TRP de 16.04.2012, Documento n.º RP20120416561/11.9TTPRT.p1, Relator: Xxxxxxx Xxxx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx
150 Quanto a este ponto, o acórdão cita XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX (cfr. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx, Código de Processo do Trabalho – Anotado, Coimbra Editora, 1996, 4.ª Edição, pp. 70).
ou incompetência dos Tribunais de Trabalho nestas questões. Por forma a apreender a eficácia da autonomia do incumprimento do contrato de trabalho face ao direito privado comum, é interessante acompanhar alguns acórdãos do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.
Em primeiro lugar, temos um acórdão em profunda oposição do vertido nas já identificadas decisões do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 11.05.2005 e TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO
PORTO de 16.04.2012. Na verdade, o acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA de 26.06.2006151 versa sobre uma ação comum onde um empregador demanda um ex- trabalhador por danos causados no exercício das suas funções152. Este tribunal começa por corretamente referir que o Autor não suportou a sua ação numa violação dos deveres inerentes ao contrato de trabalho, mas na responsabilidade extracontratual. No entanto, parece-nos que esta decisão depois acaba por se desviar num sentido menos coerente. Com efeito, este acórdão determina o afastamento da jurisdição judicial laboral não só porque o Autor construiu uma ação judicial com base na responsabilidade extracontratual do seu trabalhador153, mas também por “não ter sido formulado pedido cumulativo relativo à responsabilidade disciplinar do R. enquanto trabalhador do A”. É aqui manifestada a dificuldade de separação do conceito de responsabilidade disciplinar e responsabilidade civil do trabalhador emergente de um contrato de trabalho. Pese embora resulte do sumário que “o princípio geral constante do art. 363.º do Código do Trabalho segundo o qual se uma das partes faltar culposamente ao cumprimento dos seus deveres torna-se responsável pelo prejuízo causado à contraparte, mera regra enunciativa da responsabilidade por cumprimento contratual, não exclui que a atuação ilícita encontre fundamento na violação de outros deveres, designadamente aqueles que se impunham ao réu enquanto auxiliar da A. instituição de crédito, mandatária dos seus clientes para a prossecução da atividade de compra e venda em bolsa”, entendemos que estes deveres podem inserir-se na relação laboral em sentido lato. Daí que possa haver responsabilidade por incumprimento contratual não fundada em procedimento disciplinar, como já vimos.
Com efeito, o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA tem emitido diversas decisões que desenvolvem o tema do enriquecimento sem causa suportado em questões emergentes de
151 Acórdão do TRL de 20.06.2006, Processo n.º 4066/2006-7, Relator: Xxxxxx Xxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx
152 Trata-se de uma situação em que o trabalhador exercia funções numa instituição de crédito, tendo lançado débitos a descoberto sem autorização dos clientes.
153 Posição relativamente à qual não discordamos.
contrato de trabalho. Em primeiro lugar, no seu acórdão de 12.02.2008154, debruçou-se sobre um pedido de um empregador num tribunal comum para garantir o pagamento por excesso dos créditos salariais de um trabalhador após a cessação do contrato de trabalho. Apesar da ação ser estruturada como um enriquecimento sem causa por parte do trabalhador, pelo que se admitirá que se trata de uma ação devidamente interposta num tribunal comum, não deixa de ser necessário salvaguardar alguns pontos resultantes deste acórdão. Em primeiro lugar, parece querer-se tornar relevante nesta decisão o facto da relação laboral ter cessado. Em segundo lugar, ignora-se que é essencial determinar quais os créditos laborais efetivamente devidos por forma a poder-se identificar qual a quantia em dívida por parte do trabalhador. Assim, independentemente do modo como o Autor estruturou a ação, não se pode ignorar que é irrelevante que o facto do contrato de trabalho ter cessado. A tutela das regras de incumprimento do contrato de trabalho mantem-se naturalmente apesar do contrato ter cessado. Deste modo, parece importar referir que o facto do trabalhador identificado nesta decisão judicial ter recebido indevidamente créditos após a cessação do contrato, podemos estar perante uma verdadeira responsabilidade pós-contratual. Com efeito, em termos de desenvolvimento do conceito de responsabilidade civil contratual, tem sido definido que numa relação obrigacional complexa, podem surgir duas relações não conectadas com os deveres primários da prestação – relação pré-contratual e relação pós-contratual. A relação pré-contratual encontra-se devidamente definida em termos legislativos155 e doutrinários. Nesta medida, existem diversos estudos que analisam o impacto da responsabilidade civil numa fase anterior à celebração do contrato.
Por outro lado, alguma doutrina tem defendido que pode haver igualmente lugar a uma relação pós-contratual. Neste sentido, XXXX XXXXXXXX defende que existem deveres de proteção mesmo após extinguirem-se os deveres de prestação156. Esta posição não é isolada. Enquanto MOTA PINTO157 sustenta a existência desta responsabilidade no art. 239.º do Código Civil158, já MENEZES CORDEIRO aponta a sua fundamentação no art. 762.º159. Alinhamos com
154 Acórdão do TRL de 12.02.2008, Processo n.º 9012/2007-1, Relator: Xxxx Xxxxxxx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx
155 v. art. 227.º, n.º 1 do Código Civil
156 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx, Princípios de Direitos dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 224
157 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxx, Da cessão de posição contratual, Almedina, 1982, pág. 355 e 356.
158 Relembre-se quanto a este ponto a dispersão da doutrina relativamente ao caminho interpretativo desenvolvido para obter a integração de declarações negociais. Contudo, XXXX XXXXX chega ao ponto de defender que o Juiz deverá afastar-se da vontade hipotética ou conjetural das partes quando a solução que estas teriam estipulado contrariasse os ditames da boa fé (v. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, 1996 pág. 460). Neste mesmo sentido parece entender igualmente CASTRO MENDES, pese
XXXX XXXXX quando refere que os deveres laterais “têm de ser configurados como tendo sobrevivido à extinção dos deveres de prestação”160. Ficam, assim, abertas as portas à extensão da responsabilidade pós-contratual aos deveres de conduta. Aliás, muitas vezes, estes deveres impõem-se de forma mais predominante após a extinção do contrato que lhes deu origem. Também XXX PRATA relembra que existem algumas situações em que pode surgir a obrigação de indemnizar por força de um comportamento violador da boa fé de uma das partes do contrato após a extinção da última obrigação161. XXX XXXXXXX define responsabilidade pós-contratual como a “possibilidade de surgimento de um dever de indemnizar, por força de um comportamento adotado por uma das partes de um contrato, depois da extinção do último crédito”162. Este autor, tal como os anteriores, admite que certos deveres laterais possam “sobreviver” à extinção dos deveres de prestação, dando, em concreto, os exemplos da fidelidade e da cooperação com a outra parte163. O facto de o trabalhador ter recebido indevidamente créditos laborais por parte do empregador após a cessação do contrato de trabalho, não afasta a possibilidade do potencial ressarcimento estar enquadrado, no mínimo, na responsabilidade pós-contratual do trabalhador.
Posteriormente, o mesmo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA voltou a emitir uma decisão sobre um pagamento indevido de um empregador a um trabalhador resultante de um acordo
embora colocando a boa fé a seguir às normas imperativas e supletivas da lei enquanto elemento de integração de lacunas de negócios jurídicos (XXXXXX, Xxxxxx, João, Teoria Geral, Vol. III, 1979, pág. 567). XXXXXXX XXXXXX e XXXXX XX XXXX reforçam a ideia de que o recurso aos ditames da boa fé assume maior importância quando não há uma coincidência entre vontade presumida de cada uma das partes de um contrato (LIMA, Xxxxx, XXXXXX, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, 1987, comentário ao art. 239.º, pág. 226). Não obstante, a parca análise jurisprudencial deste tema leva a que não seja possível aferir o total acolhimento desta posição. Refira-se apenas o acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (25.09.1990, BMJ 399.º, pág. 492) que aponta numa solução em consonância com os ditames da boa fé, independentemente dos atos em causa não obedecerem aos requisitos de forma exigidos para o contrato em discussão (neste caso, a utilização de um imóvel arrendado para fins diversos daqueles acordados no contrato de arrendamento, mas tolerados pela co-contraente). Já o acórdão de TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA (30.10.2002, CJ, 4.º, pág. 25) decidiu no sentido de que só quando não é possível entender a posição do real destinatário da declaração negocial é que se tem de recorrer à vontade presumível ou ditames de boa fé.
159Cfr. XXXXXXXX, Xxxxxxx, Da boa fé no direito civil, 2011, pág. 631. Veja-se o exemplo do acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA (24.05.2005, CJ, 2005, 3.º, pág. 90) que decidiu que devido ao princípio da boa fé impõe-se a uma empresa que negoceia com os consumidores por conta de outras empresas do mesmo grupo o dever de se assumir como interlocutor válido nos momentos posteriores da execução dos contratos. Aqui a boa fé não é um elemento de integração de lacuna, mas uma imposição conformadora dos deveres das partes. 160 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, pág. 354. XXXX XXXXX refere-se à jurisprudência alemã onde foi já reconhecida a figura da responsabilidade pós-contratual, com base no princípio da boa fé.
161 PRATA, Xxx, Dicionário Jurídico, 3.ª Edição revista e atualizada, 1998, pág. 867
162 Cfr. ALARCÃO, Rui, Direito das Obrigações, texto com base nas lições do Prof. Xxx Xxxxxxx, Coimbra 1983, pág. 53.
163 Cfr. XXXXXXX, Xxx, Direito …, cit., pág. 54
relativo à cessação do contrato de trabalho164. Desta vez, o empregador propôs a ação num tribunal comum. O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA decidiu que constituindo o objeto em análise a restituição de parte da quantia definida em acordo para revogação de contrato de trabalho, o litígio emerge de uma relação laboral. Constata-se, pois, que foi invertida a tendência jurisprudencial no TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA sobre este tema. Na verdade, este tribunal, em decisão quase contemporânea sobre factos semelhantes165, entendeu que “a apreciação do pedido (…) passa, em primeiro lugar, e sobretudo, pela alegação e prova da cessação do contrato de trabalho e da respetiva licitude, da data da produção dos respetivos efeitos (…) para o tribunal poder concluir que o réu já não teria direito a receber a retribuição respeitante ao mês de agosto e que, assim sendo, tal pagamento foi indevido”. Tornou-se, deste modo, importante para este tribunal determinar o iter necessário para identificar as obrigações resultantes do contrato de trabalho por forma a poder determinar o mérito da causa. Por esta razão, a evolução destas decisões demonstra a crescente importância da autonomização do contrato de trabalho em matéria de incumprimento.
7.5 Posição do Tribunal da Relação de Évora
Não obstante haver alguma coerência nos acórdãos mais recentes do TRIBUNAL DA RELAÇÃO
DE LISBOA e do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, temos um acórdão do TRIBUNAL DA
RELAÇÃO DE ÉVORA em sentido contrário166. Com efeito, nesta decisão uma trabalhadora entendeu propor uma ação num tribunal comum a solicitar o pagamento de créditos salariais ao seu empregador após ter resolvido o contrato com justa causa e com recurso ao enriquecimento sem causa. Pese embora o acórdão siga uma linha de raciocínio puramente processual com recurso à interpretação do art. 85.º da LOFTJ, acaba por determinar que o Tribunal tem apenas, estando em causa o enriquecimento sem causa, de aferir a falta da causa justificativa desse enriquecimento. Conclui, assim, que estando a ação construída com recurso a este instituto, não se trata de uma questão emergente de um contrato de trabalho.
164 v. Acórdão do TRL de 17.03.2011, Processo n.º 8163/09.3TBCSC-A.L1-8, Relator: Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx
165 v. Acórdão de 01.02.2011, Processo n.º 1374/07.8HLSB.L1-7, Relator: Xxxxx Xxxx Xxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. Apesar dos factos serem semelhantes, neste acórdão estava em causa o pagamento indevido de créditos salariais após despedimento.
166 V. Acórdão do TRE de 25.10.2012, Processo n.º 876/12.9TBSTB.E1, Relator Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. Este tribunal emitiu ainda outra decisão interessante no acórdão de 26.06.2007 onde foi claro quando referiu que “Reconduzindo-se a causa de pedir, enquanto facto jurídico que fundamenta o pedido, ao incumprimento (ou ao cumprimento defeituoso) do contrato de trabalho, por violação dos deveres de zelo e diligência, e não a qualquer ato ilícito praticado à margem do conteúdo das obrigações funcionais do trabalhador, cabe tal matéria no âmbito da previsão do art.º 85º, nº 1, al. b) da Lei nº 3/99, de 13/1 (LOFTJ), e por isso na competência material dos tribunais do trabalho” (v. Acórdão do TRE, de 26.06.2007, Processo n.º 785/07-2, Relator: Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx).
Não obstante o sentido deste acórdão, convém relembrar que o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, na decisão já analisada de 11.05.2005, foi bem claro ao decidir que “não podendo a responsabilidade contratual ser exercida por se encontrarem prescritos os créditos reclamados, também não podia o pagamento destes ser obtido à luz do instituto do enriquecimento sem causa”, na medida em que “face à forma como a ação foi estruturada, só na perspetiva da relação contratual (...) seria possível decidir se existiu ou não um enriquecimento injusto da ré à custa do autor”. Alinhamos, pois, no sentido decidido pelo SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, por entendermos que a análise da relação contratual em causa – neste caso, o contrato de trabalho – é fundamental para se identificar se o enriquecimento é injusto. Deste modo, ainda que tenha sido proposta uma ação com fundamento no instituto do enriquecimento sem justa causa para reclamar créditos inerentes de uma relação laboral, este tema não deixará de ser emergente de um contrato de trabalho.
7.6 Reflexão sobre o posicionamento jurisprudencial atual
Posto isto, gradualmente os tribunais têm começado a apreender que, apesar do regime do incumprimento do contrato de trabalho seguir de forma geral as regras gerais do Direito das Obrigações, este tem uma autonomia dogmática que se impõe à natureza processual em causa. Por outras palavras, os danos resultantes do incumprimento do contrato de trabalho, seja numa fase pré-contratual, contratual ou pós-contratual traduzem-se numa questão emergente de um contrato de trabalho. Apura-se, desta forma, que os tribunais do trabalho são os mais adequados para dirimir os litígios que resultam de uma relação laboral. A integração do art. 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho no ordenamento jurídico-laboral português veio facilitar este enquadramento. Naturalmente que apenas com o decurso do tempo é que vai ser possível perceber em que medida é que a autonomia dogmática do contrato de trabalho se vai assumir nos tribunais portugueses.
8. Conclusões
Após o presente pudemos proceder às seguintes conclusões que entendemos ser as mais importantes:
a) Em caso de incumprimento de um contrato de trabalho, o trabalhador poderá assumir duas responsabilidades: i) responsabilidade civil; e ii) responsabilidade disciplinar. Nesta medida, apesar do poder disciplinar do empregador ser um fator objetivo da
assimetria da relação de trabalho e característica fundamental de um contrato de trabalho, o trabalhador pode responder pelos danos que causar ao empregador.
b) Enquanto o poder disciplinar visa tutelar aspetos essencialmente sancionatórios, já não tutela qualquer ressarcimento de danos provocados pelo trabalhador ao empregador.
c) Existem duas modalidades de incumprimento do contrato de trabalho imputável ao trabalhador geradoras de responsabilidade civil: i) Tipificadas expressamente no Código do Trabalho; e ii) resultantes da regra geral prevista no art 323.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
d) As situações tipificadas no Código do Trabalho como geradoras de responsabilidade por parte do trabalhador possuem todas um denominador comum – a aplicação dos critérios indemnizatórios resultantes do art. 401.º do Código do Trabalho. Para além disso, todas dizem respeito à promoção direta ou indireta da cessação do contrato de trabalho sem respeito do aviso prévio respetivo imposto ao trabalhador.
e) O art. 401.º do Código do Trabalho prevê a aplicação de duas indemnizações distintas. A primeira indemnização tem um carácter sancionatório pelo incumprimento e corresponde ao pagamento do valor igual à retribuição base e diuturnidades correspondentes ao aviso prévio em falta. A segunda indemnização diz respeito aos danos efetivamente sofridos pelo empregador em virtude do incumprimento do aviso prévio. Estes danos não podem ser permanentes, mas apenas aqueles que resultem diretamente da cessação do contrato nestas circunstâncias. Incluem também os danos resultantes do incumprimento do pacto de permanência.
f) A primeira indemnização prevista no art. 401.º do Código do Trabalho é sempre exigível pelo empregador independentemente dos valores apurados de acordo com os critérios da segunda indemnização. Deste modo, estas indemnizações são cumuláveis.
g) Esta regra é comum à denúncia do contrato por iniciativa do trabalhador, incumprimento do aviso prévio em caso de cessação de comissão de serviço, abandono do trabalho, resolução do contrato de trabalho, invalidade e cessação de contrato de trabalho e pacto de permanência.
h) Ao art. 401.º do Código do Trabalho apenas pode recorrer o empregador no caso de incumprimento do contrato de trabalho, salvo no caso da cessação da comissão de serviço.
i) Apenas com o Código do Trabalho de 2003 é que ficou consagrado expressamente a integração de uma regra geral de incumprimento dos contratos associada ao Direito do
Trabalho. Esta regra mantém-se atualmente no Código do Trabalho de 2009, mais concretamente no seu art. 323.º, n.º 1.
j) Ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, nomeadamente o francês e o belga, o nosso legislador não estabeleceu qualquer limite à responsabilidade civil do trabalhador adveniente do incumprimento contratual. Daí que o incumprimento do contrato de trabalho segue as regras gerais previstas no Código Civil.
k) A exceção de não cumprimento aplica-se ao contrato de trabalho desde que devidamente adaptada à natureza da relação laboral com vista a evitar situações absurdas.
l) As dúvidas que temos quanto à aplicação da presunção de culpa prevista no art. 799.º do Código Civil em contexto de exercício do poder disciplinar, já não temos quanto ao incumprimento de contrato para apuramento de danos. Neste caso, o empregador é um mero credor que demanda o devedor pelos danos causados pelo incumprimento do contrato. Para além disso, não existem normas específicas incompatíveis com a aplicação deste regime probatório.
m) A extensibilidade das regras previstas no Código Civil ao incumprimento do contrato de trabalho deve afastar-se se forem incompatíveis com o carácter continuado da relação de trabalho em concreto.
n) Independentemente do ao incumprimento do contrato de trabalho se aplicarem regras civis, estas estão sempre umbilicalmente ligadas ao seu contexto laboral. Nesta medida, o incumprimento do contrato de trabalho e respetiva responsabilidade civil pelos danos são questões emergentes de contrato de trabalho.
o) Apesar de alguma divergência jurisprudencial inicial, cada vez mais é aceite pelos tribunais nacionais que todos os temas associados incumprimento do contrato de trabalho numa perspetiva não disciplinar são questões emergentes de contrato de trabalho. Por esta razão, apesar de se recorrer às regras civis para a resolução destes litígios, são os Tribunais do Trabalho os competentes para os decidir.
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