CONTRATO DE “KIXIKILA”
CONTRATO DE “KIXIKILA”
UMA REALIDADE EXTRAJURÍDICA NO ORDENAMENTO ANGOLANO
Por: Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx0
Resumo
No presente artigo trouxemos uma realidade nova no mundo da ciência do Direito que nos levará a reflexão (assim esperamos) em torno do contrato atípico comumente denominado Kixikila. Na nossa abordagem, buscamos trazer um conceito técnico-jurídico para adequar o seu estudo aos elementos característicos dos contratos em geral constantes dos diversos diplomas legais e das leis civis, mormente o Código Civil.
Além da definição, em linhas gerais e sucintas debruçamo-nos sobre a origem da palavra kixikila. Como não deixaria de ser classificamos o kixikila, procuramos ainda responder a questão da natureza bem como também mencionamos o assunto atinente aos princípios da autonomia privada e o da boa-fé como os delimitadores do contrato de kixikila, vimos a função social e económica do contrato de kixikila no contexto actualista, ainda desenhamos os aspectos característicos próprios do contrato de kixikila.
A seguir colocamos o kixikila ao lado dos contratos de mútuo e o de depósito estes como figuras afins ao kixikila, sendo por isso realidades diferentes.
Neste trabalho também estamos respondendo à questão que se levanta nalgumas franjas da sociedade (dentre elas algumas instituições de justiça) se o contrato de kixikila é legal ou ilegal, também nos interessou a questão do cumprimento e incumprimento do contrato bem como as obrigações dos contraentes. No final, concluímos e sugerimos diversos aspectos e até um nomen iuris para a realidade nova.
Palavras Chave: Kixikila, Contrato, Alienação, rendimentos.
1 Licenciado em Direito pela Universidade Lueji A´Nkonde; Advogado Estagiário, Líder Juvenil da Igreja Evangélica dos Irmãos em Angola do B.º Kawazanga e professor do II Ciclo Secundário na disciplina de língua Portuguesa, Colégio Xxxx Xxxxxxxxxx.
ABSTRACT
In the present article we brought a new reality in the world of the science of the right that it will take us the reflection (we waited like this) around the atypical contract commonly denominated kixikila. in our approach, we looked for to bring a technician-juridical concept to adapt his study in general to the characteristic elements of the contracts constant of the several legal legislations and of the laws civíl, especially the civil code.
Besides the definition, in general and brief lines we leaned over on the origin of the word kixikila. as he would not stop being classified the kixikila, we still sought responedr the subject of the nature as well as we also mentioned the concerning subject to the beginnings of the deprived autonomy and the one of the good-faith as the delimiters of the kixikila contract, saw the social function and económic of the kixikila contract in the corrently context, we still drew the own characteristic aspects of the kixikila contract.
To proceed we put the kixikila beside the loan agreements and the one of deposit these as similar illustrations to the kixikila, being for that different realities.
In this work we are also answering the subject that gets up in somes bangs of the society (among them some institutions of justice) if the kixikila contract is legal or illegal, it also interested us the subject of the execution and breach of contract as well as the contracting parties' obligations. in the end, we ended and we suggested several aspects and until a nomen iuris for the new reality.
Words key: kixikila, contract, alienation, incomes.
1. Introdução
O brocardo latino “ubi homo ibi societa, ubi societas ibi ius” é muito célebre entre nós, não só por remontar séculos de cultura jurídica, mas por representar uma verdade indubitável a nível das sociedades modernas. A expressão ganha cada vez mais pujança em relação a décadas anteriores. Nefastamente, o aparecimento da sociedade traz consigo aparecimento de outras realidades e fenómenos sociais, fenômenos estes que incorporam o dia-a-dia das pessoas.
As realidades sociais costumam no mais das vezes ser designadas por contratos sociais, porquanto, é um conjunto de factores que à dada altura facilita a vida na comunidade. Não que isto signifique que todos devessem por obrigação participar de todas as convenções sociais, pelo contrário, desde que as respeitem.
O contrato de kixikila é uma realidade jurídica que constitui um fenômeno ex novo na realidade social angolana, pelo que esteve no anonimato jurídico, no entanto, começa a nascer e a elevar-se como uma realidade prática entre os membros da sociedade, para possibilitar por isso a sua aceitação como uma realidade jurídica, passando a integrar então o leque de todos os outros contratos jurídicos legais.
Neste atípico contrato, trouxemos uma novidade no mundo jurídico (não que o fosse no campo social). Um assunto que constitui ou que pelo menos constituiria uma preocupação legislativa, por envolver massas monetárias avultadas. Pelo país inteiro este tipo contratual é realizado e um fluxo monetário muito elevado tem sido alvo de transferências todos os dias.
O que nos motivou a escrever sobre o assunto, prende-se com o facto de sabermos que todo aquele fluxo monetário e contacto pessoal é feito fora da margem de protecção legal, o que pode e vem causando comentários que relegam aquele contrato a um reduzido plano de acto ilegal.
Assim, abraçado o desafio, corremos para passar em revista aquilo que parece ser algo de pouco interesse jurídico, mas que resolve problemas conjunturais que de outra maneira acabaria por não ser possível de ser solucionado. O assunto é totalmente novo o que constituiu para nós um grande desafio de pesquisa e estudo, no entanto confortante navegar em águas desconhecidas com a segurança de que não nos perderíamos pelo vazio informativo.
Nesta abordagem, nós buscamos conhecer vários aspectos associados ao kixikila, um estudo profundo, porém, não exaurido como se tivéssemos encontrado a solução definitiva para este assunto. Informamos do ponto de vista científico e apresentamos aquilo que pode vir ser uma matéria jurídica inteiramente angolana a qual precisará ser estudada e sobre ela formular-se teorias, desejamos óptima leitura para si.
2. Definição e Origem
Nesta tentativa de buscar a definição do kixikila, procuramos ouvir primeiro da parte dos que o praticam que de resto definiram conforme a visão pessoal:
“É um acordo firmado entre as pessoas no sentido de facilitar a planificação da vida, dos projectos e a realizá-los em curto espaço de tempo em relação ao tempo que se levaria se se planificasse apenas com base no salário ou rendimento mensal”;
“o Kixikila é nada mais nada menos que o empréstimo de valores monetários ficando a outra parte obrigada a restituir o mesmo montante recebido”;
“Kixikila numa sociedade não igualitária como a nossa pode ter vários significados, tais como: empréstimo de dinheiro, acto de caridade para com alguém que estiver a necessitar da exacta quantia num determinado momento, ou uma ajuda mútua entre as pessoas da mesma comunidade”.
Para nós o contrato de Kixikila (adiante designado frequentemente kixikila) compreende, o acto através do qual duas ou mais pessoas acordam previamente entre si a alienação de parte ou todosos seus rendimentos mensais em favor de um dos contraentes com base num processo cíclico.
Com base nesta definição, podemos assacar elementos constitutivos do contrato de Kixikila, que são: acto, duas ou mais pessoas, acordo prévio, alienação de parte ou todos rendimentos mensais, em favor de um dos contraentes e processo cíclico.
Identificados os elementos constitutivos do contrato em causa, é imperioso estabelecer o seu sentido nesta estrutura conceitual, de formas a compreendermos a essência ou a razão de ser da definição. Comecemos então com o acto, entendendo-se como tal a acção, reação ou o resultado prático de um procedimento previamente acordado entre as partes. Embora o conceito de acto esteja mais inclinado ao âmbito do Direito Administrativo, onde, inclusive Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxxxx Xxxx (p. 280, 2013) trazem a definição de Freitas do Amaral, do acto administrativo como sendo o acto jurídico unilateral praticado por um órgão da administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto.
O que se vê da definição acima apresentada constitui claramente o oposto no tocante ao acto relativo ao Kixikila. Pois se no Direito Administrativo o acto é jurídico e praticado por um órgão administrativo, no Kixikila o acto não reveste a natureza jurídica (tal como veremos infra) nem é praticado por um órgão administrativo, se não pelos contraentes de forma particularizada. No Kixikila o acto não se reveste de carácter administrativo no rigor da palavra.
O Kixikila é um acto praticado por duas ou mais pessoas. Diferente de alguns outros contratos que podem ser unilaterais, o Kixikila tem como característica principal a aglomeração de pelo menos duas pessoas, pelo que ele é sempre um contrato bilateral ou multilateral
Um outro aspecto que diferencia este acto do acto administrativo é o acordo prévio, para que haja o contrato de Kixikila terá que haver necessariamente uma espécie de pré-acordo que estabelecerá as propostas que terão que ser aceites por outro(s) contraente(s), conforme forem duas ou mais pessoas, a prescrição das cláusulas verbais que irão nortear o contrato e se necessário o prazo do início da execução.
O acto através do qual duas ou mais pessoas acordam previamente entre si, terá como principal escopo, a alienação dos rendimentos mensais. A alienação é entendida como a
transferência do domínio para a esfera de outrem. No Kixikila este rendimento pode ser parte ou todo, embora esta última não seja frequente. Não se transmite para a esfera do contraente qualquer outro bem, ou espécie, regra geral e, aliás, única, é a transferência de soma monetária que resulta dos rendimentos que podem ser salário para os funcionários ou lucro de uma actividade comercial definitiva.
Essa alienação é necessariamente mensal2, pois o que conta para se fixar o prazo da alienação é, geralmente, o rendimento do contraente que for funcionário ou que tiver uma relação de subordinação jurídico-laboral, cujo rendimento é o salário que só é recebido no fim do mês, pelo que já nos acordos prévios as partes costumam estabelecer o intervalo de dias em que as transferências precisam ser efectuadas em favor do contraente a quem couber recebê-los.
No contrato de Kixikila a rotatividade ou o processo cíclico é notório, pois cada contraente aliena os seus proventos em favor de outro esperando o ciclo completar-se até chegar a sua vez e assim sucessivamente. Neste contrato, o ciclo nunca é interrompido, até que todos os contraentes recebam a seu tempo o justo reembolso na proporção do seu dispêndio. Até lá os contraentes estão vinculados e obrigados a permanecerem no contrato.
Depois de termos desmistificado o conceito do contrato, importa agora fazer uma breve incursão sobre esta modalidade contratual que efectivamente é uma realidade nova no modo de vida de alguns angolanos.
Há quem diga que o termo kixikila deriva da língua kimbundu e significa “caridade ou prestar ajuda”, no vernáculo tchokwe a expressão corresponderia a kushikila que é um conceito polissémico que viria a significar “enterrar algo ou recomendar algo a alguém. Em todo o caso, ainda temos a missão de procurar conhecer com maior profundidade a etimologia e o significado deste conceito que acreditamos não termos alcançado na sua plenitude.
É praticamente difícil precisar quando começou e onde por esta vastidão territorial tenha principiado, mas é óbvio que ela tenha surgido em meados da segunda década do século XXI, constituindo um novo modo de vida impulsionado pelo fraco poder de compra face aos rendimentos das famílias angolanas. Entre os anos 2014 à 2019 com a depreciação do Kwanza face ao Dólar houve uma mudança galopante na subida de preços de produtos (com particular destaque dos bens de primeira necessidade), então o salário ou os rendimentos passaram a não ser suficientes para cobrir as despesas com as necessidades básicas, chegando em vários pontos do país, as pessoas terem que juntar dinheiro e comprar o produto alimentar de que têm necessidade e então repartir na medida proporcional3.
Essa ideia pode ter parecido boa para as pessoas que compreenderam que ao invés de juntar dinheiro em frente a uma loja ou entregar parte do dinheiro para depois a parceira ter que ir procurar pessoa com as quais se juntaria para a famosa “sócia” é deselegante e demonstra um grau maior de pobreza, optaram por uma via mais simples a de alienar os rendimentos.
2Admite-se também com pouca frequência a possibilidade de haver uma alienação semanal ou quinzenal.
3Esta prática é conhecida entre nós como “fazer sócia” ou simplesmente “sócia”. Esta por sua vez já era praticada pelas comerciantes “zungueiras” que indo para as lojas juntam o dinheiro para a compra de um produto para fins comerciais.
Esta prática veio a resultar em muitas vantagens para aqueles cujo volume de rendimento mensal fosse insuficiente para prover as mais prementes necessidades. Sem olvidar o facto de que por outro lado é praticado o dito “vale4”, que tem vindo a ser mais prejudicial ainda.
3. Classificação do Contrato de Kixikila
A nível da doutrina jurídica, várias têm sido as classificações apresentadas para dar resposta à morfologia do negócio jurídico. Algumas delas não se encontram em diplomas legais, outras, porém, estão latentes nas normas vertidas nos códigos e outras fontes legais de criação do Direito.
Este modo de classificação jurídica dos contratos resulta da autonomia da vontade vertida no art.º 405.º do CC, pois é assim que surgem novas realidades jurídicas no tocante aos negócios jurídicos. O Direito classifica os contratos como sendo: mistos, união de contratos, contratos reais e consensuais (quanto ao modo de formação), contratos com efeitos obrigacionais e contratos com eficácia real, contratos sinalagmáticos e não sinalagmáticos, contratos onerosos e gratuitos, contratos nominados e inominados, típicos e atípicos e contratos formais e consensuais (MARQUES, 2012, v.I, pp.100-110).
Xxxxx (2015, pp. 439-455) vai um pouco mais além e apresenta mais elementos neste campo da classificação5 (por questão de economia de tempo vamos apenas aqui apresentar elementos complementares): contratos unilaterais e contratos bilaterais ou plurilaterais, contratos consensuais (não solenes) e formais (solene).
Esta classificação é aplicável a qualquer realidade contratual, isto é, todo o contrato precisa ter alguns dos elementos classificativos que o caracterizarão distintivamente. Por isso, faremos esta aplicação, buscando fundamentar elementos enquadráveis no contrato de kixikila.
3.1. Contrato real ou consensual
Aqui chegados, precisaremos saber se o Kixikila é um contrato real ou consensual. Isto nos permitirá classificar de forma correcta esta realidade contratual. Para isso, precisaremos indagar-nos, sobre o que é um contrato real e o que é um contrato consensual? Ou quando é que podemos dizer que determinado cotrato é real e não consensual ou vice-versa?
O contracto quanto ao modo de formação, pode ser real, quando no acto da celebração é exigida a entrega da coisa base ou objecto do contrato. Neste âmbito o contrato só se efectiva com a traditio da coisa6. E o contrato consensual por sua vez, é aquele cuja conclusão depende da declaração da vontade e de aceitação7. São tipos de contratos em que sua eficácia tem efeito prático apenas com a aceitação das partes, no entanto a traditio, poder ser diferida para um momento posterior.
4 Contrato usurário que consiste em uma pessoa (devedor) pagar ao credor o dobro do valor recebido à título de mútuo.
5 Vale apenas referir que em sua classificação o autor faz menção do termo negócio e não já contrato.
6 Trata-se por exemplo do contrato de depósito, nos termos do art.º 1185.º do CC, onde sem a entrega da coisa a ser depositada não há igualmente o contrato.
7 Podemos considerar por exemplo o contrato de Empreitada, art.º 1207.º do CC, que para que se afira a sua vaidade não depende da entrega da obra ou de qualquer outra coisa fungível.
Feita a definição, como podemos classificar o Kixikila? Fica evidente através do conceito que kixikila é um contrato consensual, pois os que se comprometem para a conclusão deste contrato, costumam diferir a traditio do objecto do contrato para um momento posterior ao da declaração da vontade. Num momento, as partes acordam e concluem o contrato e noutro eles apenas estão cumprindo o estipulado no contrato.
3.2. Contratos com efeitos obrigacionais e contratos com eficácia real
Sobre este assunto, chamaremos à colação os ensinamentos de Xxxxxxx Xxxxxxx0 os quais daremos por reproduzidos:
Os efeitos produzidos pelos contratos derivam da vontade das partes, manifestada através das suas declarações negociais ao abrigo do princípio da liberdade contratual. No âmbito da classificação que agora analisamos, aquela que permite classificar os contratos quanto aos efeitos que produzem, os contratos distinguem-se entre obrigacionais (se o seu objecto for um direito de crédito, ou uma prestação, dependendo da perspectiva) e reais (se incidirem sobre uma coisa).
Se procurarmos classificar neste âmbito o kixikila, não encontraremos dúvidas em distingui-lo como contrato com efeitos reais, porquanto, a coisa a qual Xxxxxxx faz referência consubstancia-se no valor monetário que é o objecto de transferência.
3.3. Contratos sinalagmáticos e não sinalagmáticos
Para que um contrato seja classificado como sinalagmático, terá que haver uma reciprocidade nas obrigações para as partes que integrarem determinada realidade contratual. Novamente, o crédito vai para Marques9 o qual nos dá um esclarecimento conceitual sobre este assunto: “os contratos sinalagmáticos caracterizam-se pelo facto de qualquer dos contraentes ficar simultaneamente credor e devedor do outro ou dos outros contraentes”, ao passo que “os contratos não sinalagmáticos podem ser contratos unilaterais em que apenas uma das partes assume obrigações”.
Fica de igual modo evidente, mesmo só nos baseando no conceito já dado do Kixikila, que se trata de uma reciprocidade de obrigações, ainda que, para o resto dos membros seja diferido por causa da natureza interpolada (mensalidade) em que as prestações devem ser efectuadas. Não há como cogitar a possibilidade de que seja o contrário, pois, só o facto de os contratos não sinalagmáticos poderem ser unilaterais, afasta tal possibilidade. No kixikila, os contraentes após alienarem parte ou todo o rendimento, esperam pacientes receber o que lhes é devido, vislumbrando-se claro a figura do credor-devedor.
Esta característica reveste-se de grande valor doutrinal, pois, há a considerar a genética e a funcionalidade do kixikila, na mesma proporção em que o são os demais contratos. Neste contrato (Kixikila), só por existirem obrigações recíprocas para todos os contraentes, o surgimento
8 Idem.
9 Ibidem.
de uma prestação aparece concomitantemente, ligado ao da outra prestação, que no entanto, vai tratar-se da contraprestação. Esta dualidade é a que se costuma designar por sinalagma genético.
3.4. Contratos onerosos e gratuitos
Segundo XXXXXXXX, apud Xxxxxxx Xxxxxxx00, a despeito desta característica traz a seguinte definição: “dizemos que um contrato é oneroso quando implicar esforços económicos para todos os contraentes, em simultâneo e com vantagens correlativas; será gratuito quando cada uma das partes dele retire tão só vantagens ou sacrifícios”.
Xx Xxxxx (2014, pp 450 à 451)11, entende que os contratos onerosos envolvem atribuições patrimoniais para ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais. E seriam gratuitos, os contratos em que há apenas uma prestação sem uma contraprestação. Este autor acrescenta ainda, no que respeita aos contratos onerosos, [...] Não é necessário um equilíbrio ou uma equivalência das prestações ou atribuições patrimoniais, consideradas pelo seu valor objectivo ou normal.
Em nosso entender, até porque resulta claro, da natureza do próprio contrato, a reciprocidade é indispensável no contrato de Kixikila. Na verdade, Este é um tipo de contrato que não se enquadra no tipo gratuito ou à título gratuito, nem mesmo na sequência do que se disse de Burity da Silva, pois, ele exige que a retribuição seja na medida exacta do que o outro contraente despendeu, não pondendo ser inferior ou superior àquela.
Vejamos: se A, B e C estão vinculados no Kixikila e B e C já receberam suas prestações de Akz 50.000,00 cada, isto significa que da parte do A foi despendido Akz 100.000,00 portanto, assim sendo, B e C serão os próximos a despender os seus Akz 50.000,00 a favor de A.
Como se pode ver, uma retribuição exacta é a que melhor satisfará os interesses dos contraentes, sem a qual, alguém ainda estará em débito com o outro contraente. De resto o Kixikila é sem dúvidas um contrato oneroso, não havendo possibilidades, de na sua essência ser gratuito.
3.5. Contratos nominados e inominados
A seguir, daremos uma olhada no que diz respeito a contratos nominados e inominados. São contratos nominados, aqueles cuja lei lhes reconhece um nome, o nomen iuris, usado e conhecido através da referida lei, já o, contrato, inominado, seriam o oposto, aqueles cuja lei nada diz ou não atribui um nomen iuris, sendo conhecido apenas pelo nome informal que resulta das práticas domésticas.
Kixikila é um contrato inominado, pois, o nome kixikila, não vem de uma designação legal e, nem a sua prática resulta de algum tipo contratual legalmente existente. Para que tenha um nomen iuris teria que obedecer à reforma da legislação civil, onde deveria ser enquadrado.
Assim, para estes tipos de realidades “ajurídicas”, os próprios contraentes costumam arranjar nomes para atribuir ao fenómeno que os vincula, é assim que nasce a nomenclatura de diversas realidades jurídicas que as posteriori irão ser implementados no círculo jurídico. Importa
10 Ibidem.
11 Vide in Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, 2015, Edição da Faculdade de Direito da U.A.N
referir que esta nomenclatura pode ser aceite tal como está, ser modificada quando ganhar a tipicidade.
3.6. Contratos típicos e atípicos
Estas figuras classificativas não podem ser confundidas com as que acabamos de mencionar supra, pois, apesar de serem muito próximas, dizem respeito à realidades diferentes, conforme veremos a seguir.
Contratos típicos são aqueles que contêm o seu regime jurídico num diploma legal, aqueles que chegam a efectivar-se por força da lei e sua modalidade e/ou como ele deve processar- se na prática, ao passo que os atípicos:
resultam apenas da vontade das partes que os celebram ao abrigo do princípio da liberdade contratual que, por isso, podem estabelecer, dentro dos limites legalmente fixados, o regime que melhor entenderem, tal como resulta do artigo 405.º CC12
Nesta ordem de ideias, o contrato de kixikila é um contrato atípico, posto que, não existe para si, um regime jurídico. Ele resultou da vontade das partes e nasceu (como de resto já se disse) em meio a necessidades estremas, tem sido celebrado socorrendo-se as partes das práticas costumeiras de forma livre e espontânea.
Por isso, mesmo não podendo ser colocado ao lado do contrato de compra e venda, por este ser nominado e típico, por força da lei, podemos sim colocá-lo, quanto aos efeitos, pois também existe um acto de vontade expressa nele. Assim como na compra e venda geram-se obrigações, no Kixikila também há estas obrigações. O kixikila é inominado e atípico, sobre tudo, por ser uma realidade muito recente, mas é indubitavelmente assim que nascem os contratos13. Para que ganhe um nomen iuris e tipicidade, basta que os legisladores estejam atentos a estas novas formas de se relacionar das pessoas.
3.7. Contratos solenes ou formais e não solenes ou informais
A solenidade de um contrato, está baseada na observância de certos rituais que a não existirem, isto é, a não serem observados, anulam (diz-se da nulidade e anulabilidade) os efeitos que se pretendem produzir, porque se o contrato tem um certo tipo de práticas legalmente assentes, as partes não o podem concluir sem as envolver. Tal como o nome sugere, os contratos formais são aqueles que seguem uma forma pré-estabelecida à qual todos seguem para a conclusão de determinado contrato, e não solenes ou informais aqueles que não dependem de nenhum ritualismo para a sua validade. A sua conclusão depende única e exclusivamente da vontade das partes.
Por exemplo, dispõe o Código Civil que para a conclusão do mútuo de valor igual ou superior a Akz 20.000,00, sua validade dependerá da escritura pública (artigo 1143.º).
12 MARQUES. Xxxxxxx Xxxxxxx, Direito das Obrigações, Vol I, Polis, 2012, p 108.
13 Se olharmos para as questões das fontes do Direito, dentre as fontes iuris essendi temos quanto a criação do direito a fonte histórica que cria uma realidade jurídica baseando-se nas práticas....
O kixikila é por excelência um contrato informal, porque não obedece a nenhuma regra pré-estabelecida, guia-se pelas práticas enraizadas na convivência social. Na verdade, todo o contrato antes de ser positivado, segue o curso estabelecido pelas partes de acordo com as práticas costumeiras de cada sociedade. Estas práticas depois de positivadas, isto é, estabelecidas por um diploma legal como sendo o seu modus faciendi, toma então a roupagem legal que constituirá seu regime jurídico.
3.8. Contratos unilaterais e contratos bilaterais ou plurilaterais
Como não deixaria de ser, vamos agora, fazer esta abordagem que é considerada a mais importante classificação nos negócios jurídicos14 (o mesmo que contrato). O contrato é unilateral, bilateral ou plurilateral consoante tenha uma única parte, duas ou mais partes envolvidas. No contrato unilateral, existe apenas uma declaração de vontade, que esta possa ou venha a ser expressa por uma pluralidade de pessoas que constituam um lado no contrato.
Por um lado, nos negócios unilaterais há uma só (uma única) declaração de vontade ou várias mas paralelas ou concorrentes, formando um só grupo. Os autores ou sujeitos das declarações podem ser vários, mas há só uma parte, um só lado, um só interesse ou interesses análogos (se o interesse for compartilhado por várias pessoas). [...] nos negócios bilaterais existem duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo diverso e até oposto, mas convergentes que se completam num resultado jurídico unitário. As declarações de vontade não são concorrentes ou paralelas, mas convergentes. Há uma oferta ou proposta e a aceitação que se conciliam num consenso15.
O que se diz dos contratos bilaterais no que acima fico exposto, vale para os contratos plurilaterais com o acréscimo de que não se trata só de duas, mas de mais declarações convergentes entre as partes. O kixikila pode assumir qualquer uma das duas últimas formas elencadas. Duas pessoas podem celebrar o kixikila, assim como três ou mais pessoas, embora na prática só se vejam mais, de dois a três contraentes.
Por fim, ainda seguindo o ensino de Xxxxxx xx Xxxxx (ibidem) verificaremos algumas características do regime dos negócios que estabelecem uma clara discrepância entre os contratos unilaterais e bilaterais e permitem claramente aduzir que o kixikila é efectivamente um contrato bilateral ou plurilateral, eis as características:
Nos contratos unilaterais, torna-se dispensável a anuência do outro contraente;
Nele vigora também o princípio da tipicidade, que é regra nestes tipos contratuais16. Esta característica não é vista no kixikila, onde vigora o numerus apertus porque permite a negociação.
O Regime contido na parte geral do Código Civil só se aplica taxativamente nos contratos bilaterais onde vigora o princípio da liberdade contratual, tal como não deixaria de ser.
14 SILVA. Xxxxxx X. Burity da, idem, p, 440.
15 Idem, pp 440 à 441.
16 Ou o do numerus clausus.
4. Natureza do contrato (kixikila)
Falar da natureza de um contrato é o mesmo que tratar da sua morfologia, o que seria estudar as características e elementos que o tornam distinto dos outros contratos, por exemplo, quando a antropologia trata da natureza do ser humano, já sabemos que dela queremos estudar
“O conjunto das características físicas e orgânicas, mentais, psicológicas, afetivas, etc., que, nos seres humanos, são supostamente comuns a toda a espécie e invariáveis, isto é, independentes da influência das sociedades ou culturas específicas em que os indivíduos nascem e se desenvolvem”17.
Quando em Direito pretendemos estudar a composição de uma realidade determinada, fizemo-lo buscando desmistificar o fenómeno em causa. No campo social (mormente, nas ciências jurídicas) a natureza poderá ser jurídica ou social, daí que analisado o contrato e a fonte ou o lugar de onde ele emana que é o meio social, através de uma realidade social relacionada a carência ou insuficiência social, poderemos dizer que se trata de um contrato cuja natureza seja, por evidências suas, social.
5. Autonomia Privada e Boa-fé como Princípios norteadores do Contrato de Kixikila
A autonomia privada ou a autonomia da vontade e a boa-fé, são irrevogavelmente encarados como os princípios fundamentais para o estabelecimento do contrato de kixikila, isto é, as bases sobre as quais este contrato deve assentar-se.
Vários autores dão a definição do que é a autonomia privada. Tal é o conceito levantado por Xxxxxxx Xxxxxx, segundo quem: “a autonomia privada é a possibilidade de alguém estabelecer efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica” [...] é uma permissão genérica de actuação”.
Xxxx Xxxxx partilha do mesmo conceito, porém, o faz da seguinte maneira:
O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade ou autonomia privada consiste no poder reconhecido aos particulares de autoregulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica (99). Significa tal princípio que os particulares podem no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas18.
E para Xxxxxx xx Xxxxx, a autonomia privada é a liberdade que as pessoas têm de se regerem e vincularem a si próprias, umas perante as outras, de prometerem e de se comprometerem19.
17 Definição do Dicionário Aurélio (digital)
18 Pinto. Mota Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2005, pag. 102
19 Idem, pag 162.
Quanto a nós, perfilhamos a linha conceitual dos autores já citados, acrescentando é claro, que a autonomia privada constitui o mais amplo direito civil concedido às pessoas para estabelecer conforme a sua vontade as diversas relações jurídicas mediante concertação.
No Direito Civil, a autonomia da vontade constitui o alicerce para a vinculação de entes privados em interesses recíprocos, mas esta vinculação, insere-se no conceituado princípio da liberdade contratual que encontra a sua consagração legal no disposto pelo art.º 405.º do Cód. Civ. que dispõe o seguinte: Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
No princípio da liberdade contratual operam três tipos de liberdades, a saber: a) liberdade de celebração ou estipulação; b) liberdade de fixação e, c) liberdade de modelação.
Na liberdade de celebração ou estipulação, os contraentes têm a faculdade de livremente aceitarem uma vinculação contratual ou negá-la, resumindo-se desta maneira que ninguém pode ser obrigado a aceitar a conclusão de um negócio ou contrato.
Para que haja kixikila as partes terão que estar de livre e mútuo acordo que estão concluindo tal contrato.
Uma outra liberdade é a de fixação, que diferente dos contratos de adesão, na liberdade de fixação, os contraentes têm a faculdade de estabelecer as diversas cláusulas que parecerem mais adequadas e que favoreçam as partes. Na fixação de cláusulas, no caso do kixikila, as partes costumam proceder de forma mais livre e espontânea possível, até porque as cláusulas que norteiam o contrato são restringidas ao mínimo necessário.
Também as partes no kixikila costumam no mais das vezes modelar os termos dos contratos20. Embora tal não seja visível, pela natureza do próprio contrato e por não ser este ainda reconhecido no ordenamento jurídico. A ideia de modelação nos contratos em geral sugere a situação em que as partes se guiam pelas estipulações existentes para concluir o seu contrato. Ainda assim, a própria disposição normativa estabelece um limite legal “dentro dos limites da lei”.
O princípio da autonomia da vontade no kixikila é de suma importância, sem este o contrato jamais seria o que é.
Ainda para falarmos sobre os principais princípios norteadores do Kixikila, temos a considerar o da boa fé, sem a qual, haveriam transtornos que atingiriam proporções mais elevadas que o próprio objecto. O art.º 227.º do CC mata o enigma, quando postula o seguinte: “quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé”, e ainda, “na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução”21
20 Entenda-se que o normal é que, por se tratar mesmo de um contrato atípico, concomitantemente, não haveriam cláusulas pré- estabelecidas. Porém, importa dizer que há cláusulas e alguns princípios observados há muito pelos contraentes que pode não ser escolha de outros contraentes pelo que, os outros contraentes descartam-no. Em suma, o que queremos dizer é, que se os contraentes A, B e C celebraram o CAR e resolveram sobre o modo de alienação a ser mensalmente, o todo do salário mensal, D, F e G podem não optar pela mensalidade em nem esperar o salário, logo, estes saíram da rotina.
21 Conforme o art.º 239
A boa fé nos dizeres de Xxxxxxx Xxxxxxx, é um princípio jurídico orientador dos sujeitos que celebram negócios jurídicos. Trata-se de um princípio que serve de critério normativo para a valoração de comportamentos.
Xxxx Xxxxx, vai mais longe e exprime uma realidade mais clara no campo do princípio da
boa fé:
A boa fé é hoje um princípio fundamental da ordem jurídica, particularmente relevante no campo das relações civis e. mesmo, de todo o direito privado. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético jurídicos da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma jurisdicidade social e materialmente fundada. A consagração da boa fé corresponde, pois, a superação de uma perspectiva positivista do direito, pela abertura a princípios e valores extra-legais e pela dimensão concreto-social e material do jurídico que perfilha (120).Significa o que acabamos de dizer que o princípio da boa fé se ajusta a — e contribui para — uma visão do direito em conformidade com a que subjaz ao Estado de Direito Social dos nossos dias, intervencionista e preocupado por corrigir desequilíbrios e injustiças, para lá das meras justificações formais.
A nível do Direito e da Doutrina, a boa fé é vista em duas vertentes. Uma que remete para a boa fé objectiva e outra que remete para a boa fé subjectiva. Segundo Xxxxxx xx Xxxxx, a boa fé objectiva:
É um critério normativo de valoração de condutas, um padrão objectivo de comportamento, ou seja, um princípio norteador da conduta das partes. Actua como uma regra importa do exterior e que as pessoas devem observar [...] A boa fé subjectiva é um estado de consciência do agente, que consiste, portanto, em não ter consciência de lesar direito alheio. Ela reporta-se a um elemento intencional individual, exprimindo um estado ou situação de espírito que envolve o convencimento ou consciência de se ter um comportamento em conformidade com o direito.
Também Xxxxxxx Xxxxxxx, faz um pronunciamento sobre as duas vertentes da boa fé e estabelece o seguinte postulado doutrinário:
Naquela de que ora tratamos, a boa fé afirma-se como um padrão de conduta que é orientador da actuação do sujeito. Esse padrão de conduta impõe ao sujeito em causa a observância de um comportamento conforme àqueles que são usualmente denominados como deveres típicos [...] A boa fé subjectiva traduz-se num estado de espírito juridicamente relevante, em concreto, num estado de conhecimento ou ignorância perante determinada situação jurídica.
Desta forma, a boa fé deve ser um princípio basilar para o contrato de kixikila, sem o qual as partes desonrariam com o acordo que geralmente obedece a forma de estipulação verbal, o que acaba não cobrindo, os desejos presentes e futuros das partes.
A boa fé no kixikila acaba sendo uma exigência da vida social, pois sem a questão da boa fé e neste particular a boa fé objectiva, os negócios consensuais gerariam muitos conflitos que seriam de difícil resolução para o Direito, posto que, celebrados sem uma base de sustentação jurídica.
Fica aqui estabelecido como um dado de convenção social de que, os contratos consensuais, são necessariamente regulados pelo princípio da boa-fé, posto que não havendo o formalismo que é exigido nos grandes contratos, uma única característica típica deste seria a infalível obediência ao princípio da boa fé. É assim que, contratos atípicos sobrevivem em meio a outros contratos típicos e nominados.
6. Função social e económica do kixikila
O contrato de kixikila passou a ser celebrado, para dar resposta a um problema social de perca do poder de compra face a depreciação da moeda nacional e a subida galopante e desenfreada de preços de produtos, sobretudo os da cesta básica, tal como em linhas gerais ficou dito aquando da introdução do presente artigo.
Os que tiveram a brilhante ideia de alienar os seus rendimentos a favor de terceiros, perceberam as dificuldades pessoais dentro da sociedade em que se inserem de satisfazer as mais básicas necessidades e/ou de realizar determinados projectos. O acto de entrega dos rendimentos a outra pessoa chegou a ser um acto de poupança, no sentido de viabilizar a concretização de qualquer objectivo.
O poder de compra é o factor x para aderir este tipo de modalidade contratual. Hoje por hoje, quem tem o rendimento mensal igual ou inferior a Akz 300.000,00 é capaz de nunca sonhar com uma casa própria e mobilada nem uma cozinha abastecida com o necessário para a sobrevivência da família, especialmente, tratando-se de família angolana que segundo o senso populacional realizado em 2014, apontava para uma média de 4 membros num agregado familiar.
É precisamente a classe baixa e média que passa pelas dificuldades que acima apontamos, como forma de suprir esta carência, entra o kixikila. Alguns fazem-no quando têm interesse em concluir determinado projecto, outros para dar início a uma, e enfim, outros ainda como uma forma de poupança.
Podemos entender ao analisar o comportamento dos contraentes do kixikila, sobretudo aqueles que têm neste tipo inominado e atípico de contrato, o simples interesse de juntar o valor para facilitar a planificação da vida familiar, apontam o kixikila como um meio eficaz para poupança, na medida em que não é possível cancelar ou anular o contrato enquanto o ciclo não for completado. Já o cenário pode ser diferente quando se tratar de uma poupança bancária, onde a qualquer momento o cliente tem acesso ao valor e pode usá-lo até para fins não previstos no orçamento de casa, como pode ainda interromper um depósito à prazo, ficando apenas sem os juros que resultariam deste depósito.
7. Características próprias do kixikila
Pode se identificar o contrato de kixikila geralmente através da peculiaridade desta nova figura contratual, por intermédio dos contraentes, o objecto da relação contratual e as garantias dos contraentes.
Os contraentes nesta espécie de contrato, são duas ou mais pessoas que exercem profissões semelhantes e/ou que tenham um vencimento mensal compatível um do outro ou ainda que não difere em muito da dos outros contraentes, não precisam ser todos funcionários públicos, basta apenas que tenham rendimentos comprovadamente capazes de na hora exigida satisfazer as exigências de crédito para com o membro a quem couber a alienação do valor.
Os contraentes são necessariamente mais de dois membros, dependendo de quantos tiverem aderido o contrato, no entanto, como não há uma lei que delimite o número de participantes, a convenção do contrato de kixikila pode albergar só em um acto mais de cinco pessoas.
No contrato de alienação, o objecto são os rendimentos. Os rendimentos podem provir de uma actividade laboral remunerada ou actividade rentável que o indivíduo pratica. Geralmente, a verificação da condição de possibilidade financeira é o elemento preponderante no contrato de alienação de rendimentos, sem o qual, outras partes encontram motivos para não dar avanço aos termos seguintes que levam à conclusão deste contrato.
Algumas vezes, e não poucas, a preocupação dos contraentes em relação a um membro, não tem que ver com onde vem o dinheiro, desde que se confirme a capacidade de cumprir com as exigências que as partes convencionam.
E, finalmente, quanto a garantias, entendem-se como sendo o conjunto de providências, postas à disposição do titular activo de uma relação jurídica, em ordem a obter satisfação do seu direito, lesado22. Diferente de outros contratos, o de kixikila não tem garantias dos contraentes, pois, as partes não costumam convencionar a respeito.
8. Figuras afins ao Contrato de Kixikila
8.1. Mútuo
O contrato de mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, conforme o artigo 1142.º do CC.
Esta figura é muito próxima ao kixikila, pois em ambos os contratos, ocorre a alienação de dinheiro para uma outra pessoa mediante um acordo prévio. Todavia, o mútuo é realizado por apenas um ou vários mutuários e um ou vários mutuantes em simultâneo, isto quer dizer que, há apenas duas partes no contrato, ao passo que no kixikila pode haver mais de duas partes, cada uma com interesses iguais no contrato.
Semelhanças e diferenças: no mútuo o empréstimo pode não ser em dinheiro, pode ser também uma coisa qualquer fungível; 1ª parte do art.1142.º do CC; o mútuo pode ser gratuito ou oneroso (art.º 1145.º CC) ao passo que o kixikila será sempre gratuito, por não envolver juros a
22 Xxxxxx xx Xxxxx, ibidem, p 241
nenhum dos contraentes; o mútuo pode ou não estabelecer prazo dentro ou a partir do qual o mutuário satisfará a sua dívida com o mutuante (art. 1147.º e 1148.º do CC), já no contrato de kixikila a estipulação do prazo para a alienação, é tanto indispensável quanto necessária, ainda que na maioria das vezes, o cumprimento tenha estado a obedecer as regras da obrigação natural, nos termos do art. 402.º do CC;
8.2. Depósito
Nos termos do 1185.º do CC, depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega a outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.
O depósito é o contrato muito próximo ao de Kixikila na medida em que existe a entrega de coisa, que constitui o objecto do depósito a uma outra pessoa que se obriga a guardá-la e restituí- la sempre que esta for solicitada.
No entanto, parece-nos que no depósito não está estabelecido um prazo através do qual a coisa que pode ser móvel ou imóvel seja entregue. Pode-se notar, que no depósito a coisa depositada deve ser a mesma a ser restituída, ao passo que no kixikila a parte à qual se vai atribuir os proventos, recebe em dobro em relação ao mês que lhe é atribuído, mas que o valor servirá apenas para cobrir a alienação anterior ou posterior.
Resulta do artigo 1158.º do CC por força do 1186.º também do CC que o depósito pode ser gratuito ou oneroso. A onerosidade resulta de o depositante ter de despender um sacrifício de valor económico em favor do depositário e, a gratuidade resulta do inverso, assemelhando-se o depósito ao kixikila neste último aspecto.
Se por um lado o depósito pode ser tanto em coisa móvel ou imóvel, o kixikila pelo contrário admite única e exclusivamente valor pecuniário, sem olvidar nem pôr em causa o princípio da autonomia da vontade como de resto ficou detalhado supra.
Apesar de o depósito ter traços comuns ao kixikila, são, todavia, realidades ex tanc cada uma com características próprias que o diferenciam da outra, por isso dissemos que são realidades próximas, ou seja, realidades afins.
9. Legalidade vs ilegalidade do Contrato de Kixikila
Conforme se foram propagando certos tipos de contratos usurários, como é o caso do também atípico contrato de “vale”23 e outras práticas de burla, determinadas pessoas foram apresentando diversas ideias e dentre elas, o facto de que o contrato de kixikila é um contrato ilegal. E as razões, para além das mencionadas acima, têm que ver com o facto de este contrato não ser previsto e nem estatuído.
Na verdade, não há nada de ilegal no kixikila, pois só não pode ser um mútuo bancário por uma questão técnica e sistematicamente concatenada e pela autorização legal para o efeito. Ainda assim, chama-se à colação o princípio da autonomia privada que norteia todos os contratos, conforme ficou mencionado supra, para lhe dar o cunho jurídico que muitos entendem não ter.
23 Vale é uma espécie de contrato atípico parecido na sua forma primacial, com o contrato de mútuo, que consiste em o mutuário receber do mutuante 100% de juros sobre o valor mutuado.
Uma verdade é estabelecida, quando se lê o artigo 1143.º do CC. Que se tratando de uma figura próxima ao mútuo que, assim como no contrato de mútuo, no kixikila também devesse, contratos desta dimensão pudesse se tornar necessário que se observasse o disposto no artigo acima mencionado. No entanto, esta realidade seria pouco observada e por uma razão muito simples, que este contrato nasceu no meio de pessoas que pouco sabem de leis e se sabem a ignoram completamente nas suas relações diárias, além do mais, como se trata de um contrato que visa mitigar a carência, suprir determinadas necessidades, os contraentes fazem de tudo para evitar a burocracia e todo aquele processualismo técnico que tende a tornar a situação em uma série de trâmites difíceis e desgostoso.
Porém, para que haja garantias no caso de desaparecimento físico ou qualquer tipo de impossibilidade física ou psíquica, as partes precisavam celebrar o contrato cujo valor global mensal para a alienação atinja um valor mínimo de Akz 50.000,00, de formas a garantir que no incumprimento haja a possibilidade de se recorrer por via judicial, querendo as partes.
10. Cumprimento e incumprimento do contrato de kixikila
Dispõe o Código Civil que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art.º 762.º). Os contratos constituem a nosso ver a principal fonte das obrigações no contexto do Direito Civil, por isso, as disposições constantes da parte geral do Código Civil, são necessariamente aplicáveis aos contratos atípicos e neste particular, ao contrato em estudo, por isso, as disposições normativas relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações precisam ser aplicadas mutatis mutandis ao Kixikila.
No contrato de kixikila o cumprimento da prestação baseia-se na entrega total dos valores acordados e nos termos em que foi acordado, caso contrário, a prestação reputa-se por não cumprida, o que geralmente na prática gera conflitos de âmbito pessoal que acabam transbordando além do ciclo contratual.
No entanto, quando por eventualidade houver incumprimento e este for imputado ao devedor ou à parte que tinha a obrigação dentro dos limites contratuais do cumprimento, deve sobre si recair a responsabilidade contratual, nestes casos, dever-se-ia chamar à colação uma justa taxa de juros de mora, no sentido de garantir a disciplina no cumprimento das cláusulas previamente acordadas entre as partes.
O cumprimento não pode ser parcial se tal não resultar do livre consentimento da parte à qual couber a transferência dos valores entre. Precisará ser justificado por razões objectivas, nunca pelas razões subjectivas evitando assim que haja prejuízos por parte de uns e benefícios por parte de outrem, posto que, não se trata de uma dívida e sim de um contrato com características próprias.
11. Obrigação dos Contraentes no Contrato de Kixikila
Em todos os contratos existem as obrigações das partes ou contraentes, que levam os indivíduos dentro do estabelecido a conhecer os seus poderes e as suas limitações, fazendo-se respeitar a mais célebre frase: “o nosso direito termina onde começa o do outro”. Para que seja possível cada um tirar proveito preconizado com o contrato.
Assim, sendo o kixikila um contrato, tem na sua essência partes ou contraentes aos quais esta figura novíssima no ordenamento jurídico angolano deve configurar na sua estrutura d ireitos e deveres possibilitando assim que a pessoa se possa vincular ou não.
Com base na observação e na entrevista realizada, apontaremos alguns direitos e deveres que colhemos, bem como também acrescentaremos aqueles que por força da lei, seriam imprescindíveis para que um contrato possa firmar-se e ser exequível entre os contraentes.
12. Direitos dos contraentes no Kixikila
a) Direito a incluir e sugerir ou acrescentar cláusulas no acto da celebração que seja compatível e que não prejudique os outros contraentes;
b) Direito de receber os rendimentos dos outros contraentes na data estipulada, ou quando mais o de ser avisado pelo atraso da entrega;
c) Direito de exigir dos contraentes a entrega dos valores quando for vencido o prazo;
d) Direito de exonerar-se ou extinguir o contrato quando a parte se sinta prejudicada.
12.1. Deveres dos contraentes no Kixikila
a) Dever de respeitar as cláusulas estabelecidas, devendo para o efeito respeitar e fazer respeitar as cláusulas contratuais;
b) Dever de informar e agir com verdade, visando sempre o bem-estar e a manutenção do contrato;
c) Dever de fazer a entrega dos valores, objecto do contrato atempadamente, sem a necessidade de esperar a cobrança.
Conclusão e Sugestões
Verificou-se de resto que na sociedade a relação jurídica pode estabelecer-se de diversas maneiras sempre no querer dos membros daquela sociedade que trazem à tona um facto latente para servir os propósitos de toda uma sociedade.
No caso concreto, o kixikila é hoje um contrato atípico que não tem o devido reconhecimento agora e, sobretudo, na classe social alta, mas é de conhecimento generalizado da sociedade baixa (se quisermos mesmo usar este termo), praticam-no como todos os outros contratos reconhecendo-lhe a eficácia que se impõe às outras realidades contratuais.
O seu reconhecimento legal dependerá em parte da prática constante, da aceitação por todos os membros da sociedade como sendo um contrato na mesma proporção que os outros contratos e da vontade legislativa por parte do legislador isso se se quiser salvaguardar os direitos e os deveres dos intervenientes no sentido de lhe dar mais eficácia jurídica (não que já não a tenha, por força do art.º 405.º do CC conforme citado supra).
O poder social consiste necessariamente no querer e este querer precisa ser um querer livre, espontâneo e que gera consequências subsumíveis a um acto jurídico capaz de se traduzir numa obrigação à qual o direito grosso modo venha tutelar.
Sugerimos à guisa conclusiva, o seguinte:
▪ Por causa de envolver pecúnia, era importante que no tudo ou mais o Kixikila seguisse a forma estabelecida no artigo 1143.º do CC;
▪ Que as partes ao celebrar o contrato de Kixikila pudessem fazê-lo por via de
contrato reduzido a escrito, o qual constituirá um documento com maior relevância jurídica;
▪ Que se confira ao contrato de kixikila um nomen iuris, o qual desde já sugerimos: “Contrato de Alienação de Rendimento”, no sentido de evitar vulgarizar esta importante figura de direito angolano;
▪ Deixamos em aberto essa pesquisa no sentido de convidar os eventuais investigadores a inclinar-se na investigação do assunto na vertente comercial, visto que é ali onde provavelmente esta figura tenha surgido.
Bibliografia utilizada
o Constituição da República de Angola, Imprensa Nacional – 2010;
o Código Civil. Angola, Plural Editores, 3.ª Ed, 2015;
o Código Comercial, Vol I, República de Angola. Escolar Editora;
o Xxxxxxxxx xx Xxxxx para Juristas, XXXXXXXX, Xxxxxxxx. 11.ª Ed, Escolar Editora, Lobito 2014;
o Teoria Geral do Direito Civil, XXXXXX XX XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx X., 2.ª Ed. Revista e actualizada, XXXXX, Xxxxxx 0000;
o Direito das Obrigações, Vol I. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx, 2.ª Xx. Xxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxx 0000;
o Direito Empresarial (Parte I) Sumários desenvolvidos, Prof. BUCA, Ondina. fonte: Internet, acesso a 11 de Maio de 2022;
o Direito Comercial I, JALENCO, Xxxxxx Xxxxxx. Fonte: internet acesso a 11 de Maio de 2022;
o A Lei da Concorrência Angolana e o Desafio do Mercado Informal, XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxx da. Dissertação de Mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto, 2019.