RESUMO
Aplicação da Doutrina do Terceiro Cúmplice nos Contratos de União Estável
Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx 1
RESUMO
O presente trabalho reflete sobre a aplicabilidade da doutrina do terceiro cúmplice, já usual em países como França, Portugal e Estados Unidos, em casos de interferência lesiva de não-pactuante no Direito Contratual no Brasil, especificamente nos contratos de união estável, fazendo um paralelo em relação ao matrimônio.
Palavras-chave: Direito Contratual, teoria do terceiro cúmplice, contrato de união estável.
ABSTRACT
This paper reflects on the applicability of the doctrine of intentional interference with contractual relations, already common in countries such as France, Portugal, and the United States, in cases of harmful interference of third-party in Contractual Law in Brazil, specifically in contracts of common-law marriage, making a parallel in relation to marriage.
Keywords: Contractual Law, the doctrine of intentional interference with contractual relations, contract of common-law marriage.
INTRODUÇÃO
Nosso tema é a aplicação da doutrina do terceiro cúmplice nos contratos de união estável.
O debate é de máxima importância no cenário jurídico nacional, uma vez que tal teoria é pouco difundida entre os operadores do Direito no Brasil, o que não ocorre em países como França, Portugal e Estados Unidos.
Pretende-se analisar, a partir do método dedutivo, se tal teoria pode ser aplicada no Direito Pátrio, mais especificamente no contrato de união estável, através de pesquisa doutrinária e jurisprudencial.
1 Advogada; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; Especialista em Direito Público pela mesma Universidade; Aluna do curso de Especialização em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Dessarte, nosso problema fica sintetizado na seguinte frase: seria, à União Estável, à Teoria do Terceiro Cúmplice aplicável?
O artigo contém três tópicos, a saber: o primeiro tratará dos princípios do direito contratual, visando alicerçar o restante do estudo; o segundo deverá tratar da doutrina do terceiro cúmplice, discorrendo sobre seu conceito, pressupostos de aplicação e exemplificando-a de maneira sucinta; por fim, a terceira parte, da união estável em si, fazendo a conexão com o segundo tópico, visando a responder nosso questionamento.
1. Princípios do Direito Contratual utilizados na conceituação da teoria do terceiro cúmplice
Vindos do século imediatamente predecessor, os princípios do Direito Contratual giram em torno da autonomia da vontade e destacam-se três, quais sejam, a liberdade contratual lato sensu, a obrigatoriedade dos efeitos contratuais e a relatividade dos efeitos contratuais.
Não obstante, outros conceitos não podem ser abdicados neste momento, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Vale, portanto, discorrer en passant sobre tais pilares, no sabor da conceituação do Direito, a fim de estruturarmos alicerce para nossa análise.
1.1. Autonomia da Vontade
Desde o surgimento, passando pelo direito romano, após longa reação contra as limitações impostas pelo Estado durante a Idade Média, a autonomia da vontade alcançou, no período do liberalismo individualista do Século XIX, o cume. Plenamente ligada à liberdade de contratar — esta se submetendo a limites, destarte, não podendo ofender outros princípios ligados à função social do contrato (o que discorreremos mais à frente) —, assegura possibilidade de criar direitos e deveres, a autonomia da vontade, à manifestação volitiva humana, equiparando estas convenções, para as partes pactuantes, à própria lei.
Valemo-nos das considerações de Xxxxxxxxx Xxxxxx de Xxxxxx e Xxxxxx
Xxxxxxxxx:
Na órbita do direito, a autonomia da vontade, fruto do voluntarismo dos oitocentos, concebia o vínculo contratual como resultado de simples fusão entre manifestações de vontade. A autonomia do querer era o único fundamento da vinculatividade. A autonomia clássica era absoluta, como valor em si, abstratamente conferida a todos.2
Na atualidade, a vontade contratual sofre limitação somente perante uma norma de ordem pública. Existem, contudo, na prática, imposições econômicas que dirigem essa vontade. Todavia, segundo análise de Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx, "a interferência do Estado na relação contratual privada mostra-se crescente e progressiva".3
1.1.1. Liberdade Contratual
Admitindo-se que o conteúdo do contrato é, entre as partes, de livre estipulação, é razoável dizer que deva ser suficiente, à sua perfectibilidade, a inexistência dos vícios subjetivos do consentimento. Em consonância, e destacando o conteúdo social do atual Código Civil, seu art. 421 reza: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".4
Assevera Sílvio de Salvo Venosa, na obra "Direito Civil"5, que a liberdade de contratar por ser enxergada por duas óticas. A da liberdade propriamente dita da expressão volitiva de contratar ou não; ou pela ótica da opção eletiva da modalidade contratual. Pela liberdade contratual, as partes são autorizadas a se valerem dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou ainda, se assim o desejarem, que gerem uma modalidade de contrato de acordo com o que lhes atenda de maneira adaptada (contratos atípicos).
A vontade pactual, em tese, à norma de ordem pública, limitar-se-á, unicamente. Na prática, não obstante, há imposições de ordem econômica que enveredam tal volição.
2 XXXXXX, C. C. D. E.; XXXXXXXXX, X. Curso de direito civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2016. p.150.
3 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.371.
4 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Xxxxxxxx, XX.
0 XXXXXX XXXXXX XX XXXXX. Op cit.. p.371s.
1.1.2. Obrigatoriedade dos Efeitos Contratuais
Esteio clássico, o axioma pacta sunt servanda (expressão em latim que significa "pactos devem ser respeitados" ou "acordos devem ser mantidos") — ou, do Código francês6, onde foi elevado à categoria de lei, preceituado no art. 1.134 do Código Civil daquele país, o contrato faz lei entre as partes — define com maestria o princípio da obrigatoriedade dos efeitos contratuais e da intangibilidade do pactuado, com a ideia da efetividade dos efeitos do contrato ser justo meramente por emanar do consenso entre as partes, pessoas livres.
Poder-se-ia, então, inferir que, do direito contratual, tal obrigatoriedade é parte da pedra fundamental, alicerce que, à parte, confere, para obrigar o contratante a cumprir o contrato ou a indenizar pelas perdas e danos. O caos, caso não tivesse, o contrato, rijeza obrigatória, estaria instaurado.
Deste princípio, decorre a intangibilidade do contrato — unilateralmente, o pactuado, não pode ser alterado, nem por um juiz que, como base de conduta, está impedido de intervir em tal conteúdo — como a força vinculante das convenções, simbolizando, na segura circulação de bens e serviços, um ambiente social de confiança.
A tesa força obrigatória a que referimo-nos, traz a vinculação para seu cumprimento em plenidão definido por plúrimas suas fontes — ora por lei, ora pelo juiz, ora pelos pactuantes.
1.1.3. Relatividade dos Efeitos Contratuais
Pautada pela noção da vinculatividade do pacto, restrita às partes, sem afetar terceiros, cuja vontade é um elemento estranho à formação do negócio jurídico, o contrato só ata aqueles que dele participaram, sem prejudicar, nem aproveitar a terceiros. Nesse diapasão, celebramos que, com relação a terceiros, o contrato é res inter alios acta, aliis neque nocet neque potest (aforismo em latim que denota "o negócio feito entre uns, não pode prejudicar a outros").
6 “Art. 1.134. Les conventions légalement formées tienent lieu de loi a ceux que lês ont faites. (...)”, ou seja, estabelece que as convenções legalmente constituídas têm o mesmo valor que a lei, relativamente às partes que as fizeram. Código Civil Francês, de 21 de março de 1804. Paris, França. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxxx-xxxxxxxxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxx-xxxxx/xx0000-x0x00.xxx. Acesso em 25/11/2018.
No sabor da análise de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, "o contrato só obriga aqueles que tomaram parte em sua formação não prejudicando e nem aproveitando a terceiros, já que ninguém pode tornar-se devedor ou credor sem sua plena aquiescência"7
Princípios como este, todavia, são dinâmicos, abertos e vivos, assim como o direito, as leis e a sociedade. Ingênuo seria dessaber que, além da vontade expressa no pacto, a força obrigatória do contrato tem outra origem, que é a lei, reverbera na aplicação dos princípios dos efeitos relativos do contrato. Destarte, a lei pode, inclusive, impor condição de parte a terceiro cuja volição não participa da constituição do vínculo.
Em vista disso, o contrato coisa palpável, tangível, tem repercussões reflexas, as quais, mesmo que indiretamente, tocam terceiros, há outras vontades que podem ter participado do pacto e, de determinados efeitos indiretos do contrato, não se isentam, como em situação de contrato firmado por representante. Pode, também, por via reflexa, vir a ser chamado para os efeitos do negócio, aquele que redige o contrato ou aconselha a parte a firmá-lo.
1.2. Boa-fé Objetiva
De abrangência espectral, da fase pré-contratual à pós-contratual, a boa-fé objetiva cria, entre as partes, deveres como, o de informar, o de sigilo e o de proteção. Na fase contratual como tal, estas obrigações passam a coexistir paralelamente ao vínculo contratual; são deveres anexos ao que foi expressamente pactuado. Previsto no diploma civil, patente no seu art. 4228, este princípio tem valhacouto também no
7 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Os modernos princípios contratuais e o Código Civil de 2002. Disponível em xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/0000/xx-xxxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx-x-x-xxxxxx-xxxxx-xx-0000. Acesso em 28/11/2018.
8 "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé." Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, III, e 51, IV)9, já tendo sido tema de célebres decisões de nossos tribunais, além de vasta literatura.
Inicial ou interlocutória, a má-fé em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Em princípio, pactuante algum deve, sem a essencial boa-fé, ingressar em conteúdo contratual.
Há de se diferenciar ainda a boa-fé objetiva da subjetiva. Nesta, a parte crê que sua conduta é correta, subjazido pelo seu grau de conhecimento, para o qual há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser ponderado. Aquela, parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
1.3. Função Social do Contrato
Com objeto de impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade (contratos que venham trazer prejuízo ao consumidor, por exemplo), quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas (como venda por "atravessadoras" a franqueados), é conditio sine qua non integrar o contrato numa ordem social harmônica. Não é, portanto, quixotescamente, que está determinada na Constituição10 a ideia de função social do contrato, ao imprimir, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV), que leva à proibição de ver o contrato como um corpo celestial desconexo do universo, algo que somente interessa às partes, sem relação com o sobejante. Qualquer contrato tem monta para toda a sociedade e essa alegação, por força da Carta Magna, faz parte, nos dias atuais, do ordenamento positivo brasileiro.
9 "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;" Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990. Brasília, DF.
10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF.
Exsurgidas da plena autodeterminação das partes pactuantes e integradas pela boa-fé objetiva, cláusulas autorregulatórias serão, pelo ordenamento, de alguma forma sancionadas –— em sua validade ou eficácia —, pela inexistência de legitimidade entre os seus objetivos e os interesses dignos de proteção no sistema jurídico. Daqui, poderíamos dizer que surge, com tenacidade, a função social do contrato, que apetece harmonizar a relação entre os pactuantes e a sociedade, não sob o intento de, como induz o art. 42111, coibir a liberdade de contratar — que é cabal, pois não existem limitações ao ato de se relacionar com o outro —, mas para legitimar a liberdade contratual.
2. A doutrina do terceiro cúmplice
O exordial ponto do qual precisamos tratar, diz respeito à eficácia de um contrato perante terceiros. Para rápida exposição do entendimento da doutrina tradicional, socorrer-nos-emos da preleção de Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx, in verbis:
Os direitos absolutos ou erga omnes nos quais se acentua a existência de um vínculo universal ou geral, que liga o sujeito activo a todos os outros indivíduos (ex: o direito de propriedade, os direitos sobre bens imateriais, os direitos de personalidade). Estes têm como correlato a chamada obrigação negativa ou passiva universal, que se traduz no dever que impende sobre as restantes pessoas de não perturbarem o exercício de tais direitos.
Pelo contrário, a referida relatividade dos direitos de crédito significa que valem apenas inter partes. Corresponde-lhes um dever particular ou especial, em regra, de conteúdo positivo, e não um dever universal ou geral.12
Dessarte, para a doutrina clássica, tendo o devedor, por culpa de terceiro, deixado de cumprir suas obrigações contratuais, este poderá ser responsabilizado extracontratualmente para com o devedor, nunca diretamente pelo credor da relação originária.
Contrapõem-se aos doutrinadores clássicos, aqueles que admitem uma eficácia externa do direito de crédito, segundo a qual o direito ao crédito também é tutelado em favor de terceiros, estranhos à relação contratual, os quais podem
11 "Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato." Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
12 XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Direito da obrigações. 12.ed.rev e act. Coimbra: Edições Almedina, 2016. p.91.
responder perante o credor por impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação. Por exemplo:
A realiza com B um contrato-promessa de venda do prédio X e o aliena depois a C13, ou que C agride A, impedindo-o de efectuar uma prestação devida a B. Em ambos os casos, existiria a possibilidade de o credor, B, demandar o terceiro, C, enquanto este fosse culposamente responsável pelo inadimplemento do devedor. 14
Assiste razão a Xxxxxxx Xxxxx Ruas, que traz contribuição para o entendimento do que é uma interferência de terceiro que enseja a aplicação da teoria do terceiro cúmplice: suponhamos que duas partes possuem vínculo contratual que confere a B monopólio na venda de dado produto, em troca de que B somente comercialize o produto de A; e o terceiro C firma contrato com B a fim de que este venda seu produto. Neste caso, C poderia ser responsabilizado por violar o direito de A, isto é, por ter atacado diretamente o contrato firmado entre A e B. Entendimento diverso é dado ao caso em que o terceiro C, por exemplo, importa de maneira ‘paralela’ o produto de A, quebrando, assim, o monopólio de B. Note que, nesse caso, C não participou da violação do contrato firmado entre A e B, embora os interesses de B sejam violados, o que acarreta na não aplicação da teoria do terceiro cúmplice, uma vez que B não possui monopólio absoluto, apenas a certeza de que A vai lhe destinar todo o produto produzido no território acordado.15
A eficácia externa dos contratos não pretende outorgar obrigações contratuais ou eficácia interna do pacto a terceiro, mas sim evidenciar que terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse, devendo respeitar o direito dos pactuantes em ter o contrato cumprido, diapasão com o que xxxxxx citamos a respeito da Relatividade dos Efeitos Contratuais.
Diz-se-ia relevante anotar que a nossa legislação já regulamenta manifestamente cenários de interferência de terceiros na relação contratual, como nos contratos de prestação de serviço16 e de parceria agrícola17, além dos casos de que a
13 Considerando que as partes A e B não atribuam eficácia real à promessa.
14 XXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Direito da obrigações. 12.ed.rev e act. Edições Almedina, 2016. p.93.
15 RUAS, Xxxxxxx Xxxxx. Teoria do terceiro cúmplice no inadimplemento contratual: fundamento e elementos de aplicação. Disponível em xxxx://xxxx0.xxxxx.xx/xxxx0/xxxxxxxxx/xxxx/0000/0/XXX_XXXXXXX_XXXXX_XXXX_XXXXXXX.xxx. Acesso em 01/12/2018. p.11 e 122.
16 Art. 608. “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos.” In: BRASIL. Código Civil. Lei 10.403 de 10 de janeiro de 2001. Brasília, DF.
lei exige publicidade inerente aos registros notariais para que passe a ter eficácia contra terceiros18, sem olvidar a estipulação em favor de terceiros, promessa de fato de terceiro e contrato com pessoa a declarar.
2.1. Fundamentação, Responsabilização e Pressupostos da Teoria no Direito Brasileiro
Para alguns autores, como Pedro Fernandes Alonso Pereira19, o substrato à “teoria da tutela externa do crédito” é a função social do contrato, sendo que, para a aplicação da teoria ao cenário concreto, temos que estar diante de um abuso de direito, configurado pelo exercício arbitrário da liberdade de contratar.
Subjazendo outra perspectiva, parte majoritária da doutrina vem entendendo que a função social do contrato não tem idoneidade para criar obrigações a terceiros, concluindo que o fundamento para a responsabilização de terceiros é o art. 186 do Código Civil Brasileiro, o qual traz à luz o dever genérico de não causar dano a outrem, a saber: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” 20, consistindo, portanto, a interferência lesiva de terceiro, em um ato ilícito. Isso porque, terceiro que conhece a existência do contrato, não age abusando de um direito, mas ignorando o dever de respeitar contrato alheio, de forma a não interferir de maneira prejudicial no seu perfeito cumprimento.
Assiste razão Carlos Roberto Gonçalves21, para quem o legislador do Código Civil de 2002 disciplinou de maneira expressa o abuso de direito como forma de ato ilícito, nos termos do artigo 18722, tornando menos importante a discussão nesta
17 Art. 92. “A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei”. In: BRASIL. Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964. Brasília, DF.
18 São exemplos a convenção de condomínio, convenções antenupciais, contrato de locação predial urbana, a fim de que terceiro comprador não possa denunciar o vínculo locatício.
19 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx. A teoria do terceiro cúmplice. Disponível em xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxx_xx_xxxxxxxx_xxxxxxxx.xxx. Acesso em 02/12/2018.
20 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF. . Art. 186.
21 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro, volume 4: responsabilidade civil. 13.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.69
22 “Também comete ilícito o titular de um crédito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
análise sobre o fato da intervenção nociva de terceiro tratar-se de ato ilícito ou abuso de direito. Consideraremos, neste trabalho, tratar-se de ato ilícito.
Em consonância ao supra exposto, defende a doutrina majoritária que a responsabilização do terceiro não pode ser baseada no contrato, vez que os contratantes não podem prever obrigações para terceiros, sob pena de violação da autonomia da vontade. A responsabilidade civil do terceiro será, portanto, extracontratual subjetiva. Nessa acepção:
Tem-se, portanto, que a regulamentação da situação do terceiro por interferência na relação obrigacional será realizada não como fundamento reflexo de um exercício da autonomia privada das partes, mas com base na responsabilidade civil, que resguarda valores protegidos pelo ordenamento jurídico. A responsabilidade civil extracontratual, aliás, é o fundamento adotado em países como Itália, França, Portugal.23
Tratando-se, por conseguinte, de responsabilidade civil extracontratual subjetiva, é possível coligir que os pressupostos para responsabilizar terceiro pela interferência lesiva em uma relação obrigacional são: ato ilícito, culpa, dano e nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo, sobre os quais doravante passamos a dissertar brevemente.24
Nos termos do que institui o Código Civil, a ilicitude ocorre com a violação de direito de outrem, infringindo, assim, o agente, o dever legal de não violar direito e não lesar a ninguém.
Os direitos de crédito, ao contrário dos direitos reais e dos direitos de personalidade, não possuem mecanismo de publicidade ou evidência explícita de sua existência. Destarte, a culpa, nos casos em tela, engloba necessariamente o conceito de ciência ou possibilidade de ciência do contrato já existente pelo terceiro que interfere no cumprimento normal do pacto, conforme esclarece Xxxxx Xxxxxxx:
23 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx. A interferência lesiva de terceiro na relação obrigacional. São Paulo: Xxxxxxxx, 0000. p. 161.
24 Otavio Xxxx Xxxxxxxxx elenca outros pressuposto que podem contribuir ao entendimento do tema, conforme segue: “a) existência de vínculo contratual ou de expectativas legítimas de deslocamentos patrimoniais (como negociações preliminares; parcerias; acordos de cavalheiros; memorando de entendimentos); b) interferência indevida de terceiros, que conhece ou tem condições de conhecer esse vínculo ou essas expectativas legítimas; c)atuação deliberada do terceiro na execução ou na conservação do contrato ou das relações negociais, bem assim das expectativas legítimas; d) interferência que cause dano à outra parte na relação afetada; e) ausência de justa causa na atuação de terceiro”. XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxx. A doutrina do terceiro cúmplice nas relações matrimoniais. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/00000000/X_xxxxxxxx_xx_xxxxxxxx_x%X0%XXxxxxxx_xxx_xxxx%X0
%A7%C3%B5es_matrimoniais. Acesso em 31/12/2018. p. 37.
De fato, se o terceiro desconhece a existência ou não tem, à luz dos usos e costumes comerciais, a possibilidade de conhecer um direito de crédito, não se tem como exigir desse terceiro um dever de abstenção. Eventual contratação com devedor que seja incompatível com o cumprimento da obrigação inicialmente assumida por este deve ser enquadrada como exercício regular de um direito nos termos do art. 188, I, do Código Civil e, portanto, ato lícito. Nesse caso, apenas o devedor terá a responsabilidade por descumprimento de obrigação contratual.
(...)
O cenário é outro se o terceiro, conhecedor do direito de crédito, atua de modo consciente a lesar o interesse do credor, seja por meio de contratação com o devedor, incompatível com o cumprimento da obrigação originariamente assumida, seja impossibilitando o devedor de adimplir a sua obrigação com o credor ou, ainda, destruindo o objeto da obrigação, por exemplo. Conforme já destacado, o terceiro também pode ser responsabilizado se, à luz das práticas aplicáveis à determinada situação, pudesse conhecer o crédito violado com a sua conduta. 25
Mas não só a conduta do contratante é relevante para a análise da culpa ou da responsabilização; a conduta do contratante inadimplente é também relevante, na medida em que ambos poderão ser responsabilizados solidariamente26, embora a fundamentação legal para a responsabilidade de cada um seja distinta, Já que o contratante inadimplente responderá nos limites da cláusula penal, se houver, e o terceiro responderá ilimitadamente.
A lesão a bem jurídico é também requisito sine qua non para a responsabilização civil, devendo a extensão do dano, a culpa e, claro, o liame subjetivo entre conduta e dano, serem considerados para o arbitramento da indenização.
No Brasil, o caso "Zeca Pagodinho" pode ser citado como um exemplo de tentativa de se valer desta teoria. No mercado da propaganda, uma situação envolvendo o famoso cantor ficou amplamente conhecida, mas que suscitou uma guerra publicitária entre duas grandes marcas de cervejas brasileiras e suas agências. O STJ, nos acórdãos envolvendo o caso, condenou o cantor e sua empresa ao pagamento de danos morais e materiais por descumprimento contratual e violação dos deveres de boa-fé, além de aplicação da cláusula penal. A agência da "Brahma" foi condenada a pagar à agência da "Nova Schin" danos materiais, abordando a questão
25 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxx. A interferência lesiva de terceiro na relação obrigacional. São Paulo: Xxxxxxxx, 0000. p.173.
26 art. 942 “os bens do responsável pela ofensa ou violação do crédito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado,e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação”. BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
da boa-fé, mas com fundamento na concorrência desleal. Em que pese a fundamentação da condenação ter sido baseada na concorrência desleal, este caso é um exemplo de interferência lesiva de terceiro na relação contratual, uma vez que a agência da "Brahma" sabia do contrato do cantor com a concorrente e agiu intencionalmente nitidamente objetivando fazer com que o cantor descumprisse tal contrato.
Há um único precedente de aplicação da doutrina do terceiro cúmplice nos tribunais brasileiros, é o caso envolvendo a Caixa Econômica Federal e o Sistema Financeiro de Habitação27.
27 Recurso Especial n. 468.062-CE, ementado da seguinte maneira: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - FCVS - CAUÇÃO DE TÍTULOS - QUITAÇÃO ANTECIPADA - EXONERAÇÃO DOS MUTUÁRIOS - COBRANÇA SUPERVENIENTE PELA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, SUCESSORA DO BNH - DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE - EFICÁCIA DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS EM RELAÇÃO A TERCEIROS - OPONIBILIDADE - TUTELA DA
CONFIANÇA. 1. CAUSA E CONTROVÉRSIA. A causa (a lide deduzida em juízo) e a controvérsia (a questão jurídica a ser resolvida), para se usar de antiga linguagem, de bom e velho sabor medieval, ainda conservada no direito anglo-saxão (cause and controverse), dizem respeito à situação jurídica de mutuários em relação à cessão de títulos de crédito caucionados entre o agente financeiro primitivo e a Caixa Econômica Federal -CEF, sucessora do BNH, quando se dá quitação antecipada do débito. A CEF pretende exercer seus direitos de crédito contra os mutuários, ante a inadimplência do agente financeiro originário. Ausência de precedentes nos órgãos da Primeira Seção. 2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE TUTELA EXTERNA DO CRÉDITO.
O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros de modo positivo ou negativo, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato. 3. SITUAÇÃO DOS RECORRIDOS EM FACE DA CESSÃO DE POSIÇÕES CONTRATUAIS. Os recorridos, tal como se observa do acórdão, quitaram suas obrigações com o agente financeiro credor - TERRA CCI. A cessão dos direitos de crédito do BNH sucedido pela CEF ocorreu após esse adimplemento, que se operou inter partes (devedor e credor). O negócio entre a CEF e a TERRA CCI não poderia dilatar sua eficácia para atingir os devedores adimplentes. 4. CESSÃO DE TÍTULOS CAUCIONADOS. A doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916, em interpretação aos arts. 792 e 794, referenda a necessidade de que sejam os devedores intimados da cessão, a fim de que não se vejam compelidos a pagar em duplicidade. Nos autos, segundo as instâncias ordinárias, não há prova de que a CEF haja feito esse ato de participação. 5. DISSÍDIO PRETORIANO. Não se conhece da divergência, por não-observância dos requisitos legais e regimentais. Recurso especial conhecido em parte e improvido (STJ - REsp: 468062 CE 2002/0121761-0, Relator: Ministro XXXXXXXX XXXXXXX, Data de Julgamento: 11/11/2008, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 01/12/2008)
A lide entre a CEF e o agente financeiro, Terra CCI, não pode prejudicar o mutuário, que quitou o imóvel antes da cessão dos direitos de crédito do BNH sucedido pela CEF. Deve, portanto, ter seu direito protegido e, xxxxxxxx, não ter de pagar em duplicidade pelo bem. A inadimplência do agente financeiro primitivo em relação à cessão de títulos de crédito caucionados junto à Xxxxx Econômica Federal teria forçado o mutuário a ficar numa situação questionável junto ao banco, porém, seu adimplemento lhe garante quitação efetiva e completa
3. A União Estável
O Código Civil conceitua a união estável no seu artigo 1.723, da seguinte forma: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”28. Esse dispositivo visa a regulamentar o art. 226,
§3º da Constituição Federal de 1988, a saber: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx xxxxxx como pressupostos da para a configuração da união estável convivência more uxorio, ânimo de constituir família, diversidade de sexos, notoriedade, estabilidade ou duração prolongada, continuidade, inexistência de impedimentos matrimoniais e relação monogâmica.29
A convivência more uxorio, em regra, implica na coabitação, mas não necessariamente. A súmula 384 do STF proclama, inclusive, que "a vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato". É indispensável, por sua vez, o ânimo ou objetivo de constituir família (affectio maritalis). Isso é o que diferencia a união estável do namoro. Embora Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx fale em "ânimo ou objetivo de constituir família", o mesmo autor, no desenvolvimento do seu texto, detalha mais especificamente que: no caso de haver um projeto futuro de constituição de família, trata-se de namoro; se há, contudo, família já constituída, havendo filhos ou não, configura-se união estável.
Não obstante o próprio Código Civil citar a diversidade de sexos, o STF, no ano de 2011, reconheceu, no julgamento da ADI 4277 ADPF 13230, com efeito vinculante, a união homoafetiva como entidade familiar regida por regras idênticas às que se aplicam à união estável de casais heterosessuais.
do bem. O caso não trata de fatos instigantes, como nos, nas notas anteriores, mencionados, mas é interessante na medida em que o ministro relator cita diversas vezes, no decorrer do acórdão, a teoria em tela como linha de reforço da fundamentação em artigos do Código Civil. 28 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
29 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2012.p.612.
30 BRASIL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.277. DISTRITO FEDERAL. Disponível em xxxx://xxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx.xxx?xxxXXxXX&xxxXXx000000. Acesso em 02/01/2019.
O requisito da notoriedade diz respeito à publicidade da união, ou seja, ser exposta ao público de forma que os companheiros sejam conhecidos nos locais em que frequentam como se casados fossem. No mesmo sentido, a relação deve se prolongar no tempo, ainda que não haja um prazo mínimo estipulado para a caracterização da união estável. Dessarte, o juiz deverá analisar, no caso concreto, se a união durou por prazo suficiente para que seja reconhecida a estabilidade da união, que também deve ser contínua, sem demasiados rompimentos.
Outro pressuposto para a caracterização em voga é a inexistência de impedimentos matrimoniais — salvo o caso do inciso VI do art. 1.521 do Código Civil, que proíbe o casamento de pessoas casadas, se houver separação judicial ou de fato, mas não as impede de constituir família por união estável.
Quanto à relação ser monogâmica, significa que o vínculo entre os companheiros deve ser único, não se admitindo que pessoa que já convive em união estável ou casada não separada de fato tenha uma outra união estável.
O xxxxxx exposto não deve ser confundido com o dever de lealdade, previsto no art. 1.724 do Código Civil. Para Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, o dever de fidelidade
está implícito no de lealdade e respeito.31 Quanto ao casamento, o código cita
expressamente o dever de fidelidade (CC, art. 1.566, I); quanto à União Estável, diferentemente, o de lealdade.
Para a doutrina majoritária, entretanto, lealdade vai além do compromisso de fidelidade afetiva, consistindo num dever de respeito e consideração entre os companheiros. Segundo Flávio Tartuce32,
31 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2012.p. 625.
32 TARTUCE, Xxxxxx. Direito Civil, v.5: Direito de Família. 12.ed. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. pág. 363
"Ora, é possível que alguém seja leal sem ser fiel. Imagine-se, nesse contexto, um relacionamento de maior liberdade entre os companheiros, em que ambos informam previamente que há a possibilidade de traição Assim, abre-se a possibilidade, como ocorre em alguns países nórdicos, de uma cláusula de férias do relacionamento. Essa cláusula pode ser invocadas, por exemplo, nos casos de crises entre os companheiros, gerando um distanciamento físico e afetivo de ambos no período invocado".
O mesmo autor, entende que tal "permissão" pode, por meio do contrato firmado entre as partes, ser, pelos conviventes, regulamentada. O que é, no casamento, inexequível.
3.1 O Contrato de União Estável
Na seara do regime de bens, o art. 1.725 do Código Civil não abre a possibilidade de se provar a ausência de esforço comum para aquisição do patrimônio a fim de afastar o pretendido direito à meação, pois a união estável, nesse particular, foi integralmente equiparada ao casamento realizado no regime da comunhão parcial de bens. Ao sabor do que reza o dispositivo: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".33
Ao optar por regime diferente do padrão, o caminho possível é um contrato de convivência, onde, nele, se estabelece o regime pretendido.
Este tipo de contrato
"não reclama forma pré-estabelecida ou já determinada para sua eficácia, embora se tenha como necessário seja escrito, e não apenas verbal. Assim, poderá revestir-se da roupagem de uma convenção solene, escritura de declaração, instrumento contratual particular levado ou não a registro em Cartório de Títulos e Documentos, documento informal, pacto e, até mesmo, ser apresentado apenas como disposições ou estipulações esparsas, instrumentalizadas em conjunto ou separadamente, desde que contenham manifestações bilateral da vontade dos companheiros".34
Por meio do contrato de convivência, os indivíduos em união estável promovem, no âmbito econômico e existencial, a autorregulamentação do seu
33 BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
34 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Apud. XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. 9.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2012.p.638.
relacionamento. E tal contratação escrita não representa a validade indiscutível da convivência estável, porque o documento redigido pelos conviventes está, à correspondência fática da entidade familiar e dos pressupostos de reconhecimento (CC, art. 1.723), condicionado, ausentes os impedimentos previstos para o casamento (CC art. 1.521), visto que está impedido de constituir uma união estável quem não pode casar — com as ressalvas do § 1º do artigo 1.723 do Código Civil.
Por conseguinte, portanto, o denominado "contrato de namoro" tem eficácia relativa, pela união estável ser um fato jurídico, fato da vida, situação fática, com reflexos jurídicos, mas que, necessariamente, decorrem do convívio humano. Tem eficácia questionável contrato dessa espécie que estabeleça o contrário e que busque neutralizar a incidência de normas cogentes — de ordem pública, pela simples vontade das partes inafastáveis —, se as aparências e a notoriedade de tal relacionamento público, uma união estável, caracterizarem.
Assim como o pacto antenupcial do casamento, de qualquer maneira, também o contrato de convivência da união estável está, à decretação judicial de nulidade, sujeito, de qualquer de suas cláusulas que contrarie disposição absoluta de lei (CC, art. 1.655).
"Desse modo, será nula qualquer convenção entre os conviventes a respeito de direitos hereditários, como está expresso no artigo 426 do Código Civil, por ser vetada qualquer disposição contratual acerca da herança de pessoa viva, ou de cláusulas dispensando direitos e deveres próprios da união estável (CC, art. 1.724), como o de lealdade e assistência recíproca ou cláusula de renúncia ao direito alimentar no caso de ruptura do relacionamento estável, porque esses são deveres pessoais igualmente previstos em lei para o instituto da união estável e que derivam naturalmente da celebração informal desse casamento de fato."35
Temos, portanto, que, para o afastamento do regime da comunhão parcial de bens, o casal deverá pactuar através de um contrato escrito, levado a registro e que não contenha qualquer disposição que contrarie norma cogente.
3.2 A Interferência de Terceiro na União Estável
Já patenteados os alicerces deste estudo, chegamos ao seu cerne, que é responder à inquirição: seria, à União Estável, à Teoria do Terceiro Cúmplice
35 XXXXXXXX, Xxxx. Curso de Direito de Família. 5.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013.p. 1120.
aplicável? Infidelidade é a palavra que nos vem à mente ao falarmos em interferência de terceiro nas relações afetivas.
É importante grifar que elimina-se, prima facie, qualquer possibilidade de indenização havendo, por parte do convivente ofendido, anuência ou tolerância, a respeito da infidelidade.
Para haver pretensão indenizatória, deve haver um ato ilícito. No entanto, a infidelidade, hoje, não é ilícita à lente do Direito Civil Brasileiro. Sobrevém, entretanto, que, ato contrário aos bons costumes também pode ser considerado ilícito. É axiomático que, num relacionamento, a intervenção do amante, à moral social — que confere conteúdo aos bons costumes —, é ofensiva. Na contemporaneidade, inobstante, a relevância social desse ato foi abrandada com vultosa intensidade e, em muito, perdeu seu grau de repulsa, destarte a revogação do tipo penal do adultério. Reiterando: na União Estável ou no casamento, a existência de um terceiro foi, sem maior referência a uma moralidade dominante, confinada ao limite do interesse subjetivo dos consortes.
Ainda que o contrato de convivência tenha sido feito através de escritura em tabelionato de notas e registrado em Cartório de Registro Civil no domicílio do casal, e, portanto, seja adotado de eficácia erga omnes, entendemos que ainda assim não há que se falar em pretensão indenizatória por parte do convivente ofendido.
Além do que mencionamos a respeito do Direito Brasileira, é de grande valia citar que o Restatement of the Law of Torts dos Estados Unidos — um tratado emitido pelo American Law Institute, que resume os princípios gerais do common law
estadunidense — em seus artigos 76636 e 766A37, menciona, especificamente, a
interferência de terceiro no casamento, proibindo, aos matrimônios, a aplicação da teoria do terceiro cúmplice, expressamente.
No Brasil, como já explanamos, inexiste disposição legal nesse diapasão, mas a jurisprudência tem, reiteradamente, decidido no sentido de não caber, ao cônjuge/companheiro ofendido, indenização, seja pelo cônjuge que traiu, seja pelo
36 § 766. Intentional Interference With Performance Of Contract By Third Person — One who intentionally and improperly interferes with the performance of a contract . . . between another and a third person by inducing or otherwise causing the third person not to perform the contract, is subject to liability to the other for the pecuniary loss resulting to the other from the failure of the third person to perform the contract.
37 § 766A. Intentional Interference With Another's Performance Of His Own Contract — One who intentionally and improperly interferes with the performance of a contract (except a contract to marry) between another and a third person, by preventing the other from performing the contract or causing his performance to be more expensive or burdensome, is subject to liability to the other for the pecuniary loss resulting to him.
terceiro que interferiu na relação38, conforme pesquisa realizada em acórdãos do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo39 e no Superior Tribunal de Justiça40,
utilizando os seguintes termos, sempre combinando dois ou três deles, na pesquisa: união estável, cônjuge, cônjuge traído, adultério, amante, infidelidade, família, indenização, terceiro cúmplice, dano moral.
Conclusão
Pretendemos, neste estudo, apresentar a Teoria do Terceiro Cúmplice, bem como sua aplicação ao Direito Pátrio, sobretudo no que tange a interferência lesiva de terceiro na União Estável e no cumprimento de seu eventual contrato.
Analisando a Legislação Brasileira, não encontramos disposição que trate expressamente de interferência lesiva de terceiro em contratos. Há, porém, na Jurisprudência do STJ, um único caso, no qual houve tal aplicação.
Ao sabor da aplicação nos contratos de União Estável, podemos inferir sua impossibilidade, visto que a conduta do terceiro que interfere na relação não é ilícita, não havendo norma ou princípio que assim disponha, bem como pela inexistência de reprovação a tal ato por conteúdo moral dominante. Na mesma senda é a opinião de
38 Quando tratamos exclusivamente da traição, há muitos casos de configuração de dano moral quando a traição gera outros efeitos, como filho do amante que o marido registrou como seu sem saber da traição.
39 São exemplos de julgamento nesse sentido no TJ/SP: Apelação nº 0003844-31.2013. Disponível em xxxxx://xxxx.xxxx.xxx.xx/xxxx/xxxXxxxxxx.xx?xxXxxxxxxx0000000&xxXxxxx0; Apelação nº 0047026-11.2011.8.26.000, disponível em xxxxx://xxxx.xxxx.xxx.xx/xxxx/xxxXxxxxxx.xx?xxXxxxxxxx00000000&xxXxxxx0; Apelação nº 1004159-20.2016.8.26.0127, disponível em xxxxx://xxxx.xxxx.xxx.xx/xxxx/xxxXxxxxxx.xx?xxXxxxxxxx00000000&xxXxxxx0. Todos acessados em 01/03/2019.
40 São exemplos de julgamento nesse sentido no STJ: “EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº
922.462 - SP (2007/0030162-4)”, disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000 2995&num_registro=200700301624&data=20140414&formato=PDF; E Resp Nº 1.122.547 - MG (2009/0025174-6), disponível em xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx/?xxxxxxxxxxxXXX&xxxxxxxxxxx000 3331&num_registro=200900251746&data=20091127&tipo=5&formato=PDF; Ambos acessados em 04/03/2019.
Xxxxxxx e Guimarães41 e Rodrigues Júnior42, nas relações de casamento, sobre a
aplicação da teoria ora tratada.
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