CONTRATO DE CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO (CCDRU) COMO CONCILIAÇÃO DE INTERESSE DE TERRAS QUILOMBOLAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
DOI: 10.33148/CES25954091 V35n2(2020)1897
CONTRATO DE CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO (CCDRU) COMO CONCILIAÇÃO DE INTERESSE DE TERRAS QUILOMBOLAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
MARCELINO CONTI DE SOUZA1 WILSON MADEIRA FILHO2
XXXXXX XXXXXX FURTADO BRAGA3
RESUMO
A titulação de quilombos tem se tornado tema polêmico e, em especial, aqueles situados na Amazônia e no entorno ou no interior de unidades de conservação. O presente texto relata, em específico, aspectos procedimentais na luta pela titulação dos quilombos Alto Trombetas 1 e Alto Trombetas 2, territórios quilombolas sobrepostos por duas unidades de conservação, a Reserva Biológica do Rio Trombetas (1979) e a Floresta Nacional Saracá- Taquera (1989). Desse modo, trataremos a questão da sobreposição das unidades de conservação sobre os respectivos territórios quilombolas face ainda ao assédio da Mineradora Rio Norte, discutiremos o direito de propriedade à terra e a luta pela titulação comunitária e a abrangência do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) e a eventual paralogia com a tese da dupla afetação.
PALAVRAS-CHAVE: Conflitos socioambientais; Alto Trombetas; Quilombos; INCRA; Mineração
1 ORCID: 0000-0002-4485-736X. Filiação: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.
2 ORCID: 0000-0002-2322-7094. Filiação: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.
3 ORCID: 0000-0002-8596-6773. Filiação: Promotora de Justiça do Ministério Púbico Estadual-PA/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.
Artigo recebido em: 13/03/2020 e aprovado em 11/08/2020.
CONTRACT FOR GRANTING THE REAL RIGHT OF USE (CCDRU) AS A CONCILIATION OF INTEREST FOR QUILOMBOLAS LANDS AND CONSERVATION UNITS
ABSTRACT
The real estate title of quilombola lands has become a controversial topic in Brazil and, mainly, those located in the Amazon and around or within conservation units. This text specifically reports procedural aspects in the struggle for the real estate title of quilombola lands of the quilombos “Alto Trombetas 1” and “Alto Trombetas 2”, quilombola territories overlapped by two conservation units, the Rio Trombetas Biological Reserve (1979) and the Saracá National Forest -Taquera (1989). In this way, we will address the issue of conservation units overlapping in the respective quilombola territories in the face of mining harassment in Rio Norte, discuss the right to land ownership and the struggle of the community for the title, besides the coverage of the Contract for Granting the Real Right of Use (CCDRU) and the possible paralogy to the dual affectation thesis.
KEYWORDS: Socio-environmental conflicts; Alto Trombetas; Quilombos; INCRA; Mining
CONTRATO DE OTORGAMIENTO DEL DERECHO REAL DE USO (CCDRU) COMO LA CONCILIACIÓN DE INTERESES DE LA TIERRAS QUILOMBOLAS Y UNIDADES DE CONSERVACIÓN
RESUMEN
La Registro de la Propiedad Inmueble de quilombos tiene se tornado tema polémico en Brasil y, en especial, aquellos situados en Amazonia y en entorno o interior de unidades de conservación. El presente texto relata en específico, aspectos procesales en la luta por la titulación de los quilombos “Alto Trombetas 1” y “Alto Trombetas 2, territorios quilombolas sobrepuestos por 2 unidades de conservación, la Reserva Biológica de Rio Trombetas (1979) y la Floresta Nacional Saracá-Taquera (1989). De este modo, trataremos la cuestión de la sobrexposición de las unidades de conservación sobre los respectivos territorios quilombolas teniendo en vista lo asedio de la mineradora Rio Norte, discutiremos lo derecho a la propiedad a la tierra y a luta por la titulación comunitaria y la abrangência de los contratos de concesión de derecho Real de uso (CCDRU)Y la eventual paralogia con la tesis de la dupla afectación.
PALABRAS-CLAVES: Conflictos socio ambientales; Alto Trombetas; Quilombos; INCRA; Mineración
1 INTRODUÇÃO
O presente texto relata aspectos procedimentais na luta pela titulação dos quilombos Alto Trombetas 1 e Alto Trombetas 2, territórios quilombolas sobrepostos por duas unidades de conservação, a Reserva Biológica do Rio Trombetas (1979) e a Floresta Nacional Saracá-Taquera (1989). O processo de titulação, iniciado em 1989, arrastou-se de forma lenta, forçando sua judicialização através de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal em 2013, que obteve decisão, em fevereiro de 2015, confirmada pelo TRF-1 em 16 de maio de 2016, determinando providências por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), da Fundação Cultural Palmares (FCP) e do Instituto Xxxxx Xxxxxx de Biodiversidade (ICMBio).
Os autores atuam no território institucionalmente, por intermédio da Direção da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Direção da Unidade Avançada Xxxx Xxxxxxxxx da Universidade Federal Fluminense, do Ministério Público Estadual do Estado do Pará e, em conjunto, por meio do Laboratório de Justiça Ambiental, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF.
Vale observar que as ocupações dos territórios quilombolas no Alto Trombetas datam de mais de 200 anos antes, quando escravizados fugidos de fazendas e cidades do Baixo Amazonas (Pará), subiram às águas mansas do Rio Trombetas em busca de refúgio, alcançando as águas bravas, marcadas pela presença de corredeiras e de cachoeiras, chegando aos territórios indígenas e ali fundando seus mocambos, como eram denominados regionalmente os quilombos (FUNES, 1995). Esses mocambos, por sua vez, foram atacados por expedições de resgates, que tinham caráter punitivo e repressor, com recompensas para a entrega dos escravizados nominados (XXXXXXX XXXX, 2001). Após a derrota da Xxxxxxxxx (1835 a 1840), o governo provincial criou a corporação de Capitães-do-mato, para o policiamento de toda a região amazônica como resposta às insatisfações dos senhores que solicitavam a captura dos seus cativos. Se num primeiro momento o espaço de liberdade estava acima das primeiras cachoeiras, permitindo o isolamento necessário como proteção dessas expedições, nas águas bravas, posteriormente a concretude dessa liberdade se dá abaixo, nas águas mansas. Antes do fim da escravidão oficial, mesmo durante a guerra contra os quilombos, comunidades mocambeiras já faziam parte do cenário do rio manso, ocupando as beiras dos lagos. Comunidades como Tapagem, Abuí, Jacaré, Mãe Cué, Juquiri, Erepecu e Moura já estavam ali desde meados do século XIX, e ali se encontram até os dias atuais, vivenciando, todavia, fortes momentos de tensão com a chegada do grande capital na forma da exploração mineradora e de políticas conservacionistas
imputadas pelo governo federal a partir da década de 1970 (FUNES, 1995).
Para este artigo, nosso recorte de apontamentos sobre a luta pela terra retrocede à “descoberta” das jazidas de bauxita e das negociações de compras dos terrenos dos “fazendeiros” pela empresa canadense Alcan, interferindo nas relações de trabalho e posse da terra. Patrões, posseiros, meeiros e colonos colocavam em risco o domínio de seus territórios com uma série de atos, como a compra do Sítio Conceição para a implantação do porto, as emissões de posse para lavra no platô do Saracá, a presença maciça de vários funcionários da Alcan e da Companhia Vale do Rio Doce.
A circulação dos negros moradores da terra, foi limitada no início da supressão vegetal desse empreendimento e a implantação, na esquerda margem do rio, da Reserva Biológica do Rio Trombetas, sob controle e fiscalização do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), responsável então pelas políticas nacionais de proteção e manejo da fauna e flora brasileiras, forçando os quilombolas nos anos que sucederam a participar de muita negociação e contatos intensos com agentes e agências governamentais e não-governamentais, locais, nacionais e multinacionais (O’DWYER, 2002).
2 A SOBREPOSIÇÃO AO TERRITÓRIO QUILOMBOLA
A partir do final da década de 1950, fortaleceu-se uma onda mundial conservacionista, que defendia a necessidade da existência de espaços naturais institucionalmente protegidos, posteriormente substanciados no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Lei 9.985/2000. Desse modo, após estudos do Comitê Intergovernamental Técnico para a Proteção e Manejo da Flora e Fauna Amazônicas, o IBDF considerou prioritárias para a conservação as áreas indicadas por trabalhos científicos especializados, criando grandes unidades de conservação, à época com fulcro no Código Florestal de 1964, Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. Nessa conjuntura, foi criada a Reserva Biológica do Rio Trombetas, em 21 de setembro de 1979, através do Decreto 84.018, uma das maiores Reservas Biológicas (REBIO) no Brasil.
Os objetivos de criação foram: proteger amostras de ecossistemas amazônicos; assegurar a sobrevivência da tartaruga da Amazônia (Podocnemis expansa) e demais quelônios; assegurar a permanência dos processos naturais de sazonalidades; e proteger áreas encachoeiradas, que abrigam fauna e flora particulares. Considerou-se ser necessária a desintrusão dos ocupantes desses territórios, sendo indenizados apenas os que apresentaram “papéis” de propriedade das terras, não sendo considerados os direitos dos moradores (MMA/IBAMA, 2004).
Com a implantação da REBIO do Rio Trombetas quilombolas foram obrigados a deixar as suas terras na margem esquerda do rio e nas lagoas do Erepecu,
do Xxxxxxxx, do Jacaré, do Juquiri-mirim, do Curuçá, da Avó e de Mae-cué. Foram se acomodando entre as comunidades da margem direita, onde, entrementes, as ações da Mineradora Rio Norte (MRN) já haviam suprimido mais de 250 hectares de floresta, impactando o seu entorno.
Como as ações de conservação desenvolvidas pela MRN ficaram restritas somente à sua área de atuação, deixando o restante da região sob o impacto de sua atividade, foi instituída pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) a Floresta Nacional (FLONA) de Saracá-Taquera, uma unidade de conservação de uso sustentável, criada por meio do Decreto n. 98.704, de 27/12/1989, com área aproximada de 429.600 ha, incluindo as áreas concedidas para a MRN, autorizando a continuidade das atividades de pesquisa e lavra minerais, já em curso ou consideradas reservas técnicas na área da Flona.
Ficou totalmente invisibilizada e, na prática, desconsiderada a existência da população tradicional como residente, o que tornou sua permanência conflituosa, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a regulamentação de seu art. 225, que dispôs sobre o Meio Ambiente, e em seguida pelo SNUC, que estabelece, no §2° de seu artigo 17: “Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade”.
Diante dessa nova forma de domínio territorial que se externava na criação de outra unidade de conservação sobreposta aos seus territórios, as 35 comunidades tradicionais do Alto Trombetas, em julho de 1989, fundam a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO), para lutar pela titulação dos territórios. A ação social vai buscar motivação legal amparada no fazer cumprir o que está previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) na Constituição Federal de 1988, que reconhece o direito aos remanescentes das comunidades dos quilombos à propriedade definitiva de suas terras, texto reforçado pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989.
A sobreposição desses territórios, portanto, com a Flona e com a Rebio, motivaram a primeira ação da ARQMO que firmou um acordo com a Procuradoria Geral da República (PGR), em que essa se comprometeu a impetrar ação declaratória, requerendo da União a titulação das terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos do Trombetas.
Como fomentadora dessa nova mobilização e organização das comunidades quilombolas estava a Comissão Pró-Índio (CPISP), associação civil de direito privado sem fins lucrativos ou econômicos, criada para defender os direitos dos povos indígenas, que
passa a atuar também em parceria com as comunidades quilombolas, apoiando a promoção de seus direitos, constituindo equipes técnicas para a produção de laudos antropológicos e etno-históricos indicativos da origem quilombola daquela população.
Os primeiros laudos foram entregues à PGR no final do ano de 1993 e, posteriormente, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em fevereiro de 1994, dando início ao processo de regularização fundiária. Os relatórios apontavam que a origem quilombola configurava-se para esta população como um elemento constitutivo de sua identidade étnica, juntamente com fatores como critério racial, descendência comum, abarcando tanto o aspecto da consanguinidade quanto o da história de resistência dos ancestrais, além de uma cultura comum, destacando uma maneira específica de explorar as terras conquistadas pelos antepassados quilombolas de forma coletiva e sem causar danos ao ecossistema (XXXXXXX, 1995).
3 O DIREITO DE PROPRIEDADE E O LONGO PROCESSO DE TITULAÇÃO
O direito de propriedade dos remanescentes de quilombos sobre suas terras é um direito constitucional fundamental, necessário para assegurar existência digna, livre e igual. É direito coletivo conferido em função da qualidade da comunidade de remanescente de quilombos. Neste diapasão, o título da propriedade somente pode ser coletivo e pro indiviso, inalienável, indisponível, imprescritível e impenhorável (art. 17 do Decreto nº 4.887/03), à semelhança do que ocorre com as terras indígenas (art. 231, § 4º, CR).
A redação do art. 68 do ADCT não deixa dúvida quanto ao direito que os remanescentes das comunidades quilombolas têm à propriedade definitiva de seu território, devendo o Estado emitir os títulos respectivos e regularizar as situações fundiárias respectivas, mediante um processo administrativo ou eventualmente judicial, que resulte em títulos declaratórios deste direito, com efeitos retroativos. As demandas, tanto possessórias como reivindicatórias de boa-fé e com base em justo título, tornam-se equivalentes à aquisição originária para todos os efeitos civis. O reconhecimento de uma comunidade como quilombola implica ao Estado reconhecer o direito à posse do território respectivo da comunidade mesmo antes de concluída a regularização.
Há de se ressaltar que os Direitos Reais do Código Civil e da proteção possessória do Código de Processo Civil não se aplicam aos direitos dos remanescentes de quilombos sobre suas terras. A jurisprudência aponta que a posse e propriedade tradicionais, são próprias dos institutos de Direito Constitucional, como bem fixou o Supremo Tribunal Federal em relação aos direitos dos índios às suas terras:
O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO
JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA (Caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol - Pet 3388 / RR, Min. CARLOS BRITTO, 19/03/2009 – destaque em caixa alta no original).
O procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT foi estabelecido pelo Decreto nº 4.887, de 20 de Novembro de 2003, no qual já se previa a responsabilidade da Fundação Cultural Palmares, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), do Ibama e, nesse caso em particular, do Instituto Xxxxx Xxxxxx de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), conforme seu Artigo 11:
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria- Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado (Decreto Nº 4.887, de 20 de Novembro de 2003).
Sendo as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, não caberia serem regidas pelas normas do Código Civil, uma vez que vai além da esfera privada. A posse e propriedade da terra são determinadas pelo seu uso, para além do local da moradia, os locais de caça, de coleta, de pesca, de cultivo e de criação, de todas as atividades que significam as formas de manutenção da vida, da organização social e econômica do quilombo. Cabe ao Estado, os seguintes poderes e deveres: a) resgatar uma dívida histórica com os primeiros habitantes destas terras; b) propiciar as condições fundamentais para a sobrevivência física e cultural desses povos e; c) preservar a diversidade cultural brasileira.
Em correlato, estabelecem os artigos 13 e 14 da Convenção OIT nº 169, de 07/06/89, que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro mediante o Decreto Legislativo nº 143, de 20/06/2002, abaixo transcrito:
PARTE II - TERRA
Artigo 13 1.AoaplicaremasdisposiçõesdestapartedaConvenção,osgovernos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.
2. A utilização do termo “terras” nos artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de território, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.
Artigo 14
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.
Ressalte-se aqui que as comunidades quilombolas se enquadram perfeitamente no conceito de povos tribais, contido no art. 1º da Convenção 169 da OIT:
1. A presente convenção se aplica:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.
b) aospovosempaísesindependentes, consideradosindígenaspelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e
que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
A Convenção 169 da OIT, de 1989, ao adotar a teoria da relatividade cultural, ampliou o “diálogo de civilizações”, enfatizando o paradigma de um Estado pluriétnico, adotado também pela Constituição da República de 1988. Com isso, rompe com o propósito da assimilação de minorias étnicas à sociedade nacional, consignado na Convenção 107 da mesma OIT (PEREIRA, 2002, p. 41-47).
Nos seus artigos 215 e 216, a CF de 1988 impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, com a valorização e a difusão das manifestações culturais populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, em prol da diversidade étnica e regional. O patrimônio cultural brasileiro é definido como conjunto dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entre esses bens, estão as formas de expressão, os modos de criar, de fazer e de viver, as obras, os objetos, os documentos, as edificações e os demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, ficando tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, como se viu, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT. A partir do referido decreto, ficou transferida do Ministério da Cultura para o Incra a atribuição para a regularização das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Cada processo se inicia com a autodeclaração de remanescente de quilombo, com base na Convenção 169 da OIT, recebida pela FCP, que, após análise e, se necessário, confecção de laudo antropológico, emite certidão sobre essa auto definição, obedecendo norma específica desse órgão (Portaria da FCP nº 98, de 26/11/2007). Com base na Instrução Normativa 57, do Incra, de 20 de outubro de 2009, cabe às comunidades interessadas encaminhar à Superintendência Regional do Incra do seu Estado uma solicitação de abertura de procedimento administrativo, apresentando a Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos, emitida pela Fundação Cultural Palmares.
O fluxo está definido na Instrução Normativa INCRA Nº 57/2009:
Figura 1: organograma do processo de titulação de Terras de Quilombo
Fonte: INCRA-PA, 2009.
A primeira parte dos trabalhos do Incra consiste na elaboração de um Estudo da área, destinado à confecção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da terra. Uma segunda etapa é a de recepção, análise e julgamento de eventuais manifestações de órgãos e entidades públicas e contestações de interessados. Aprovado em definitivo esse relatório, o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do território quilombola (vide art. 7º e 8º do Decreto 4887/03, c/c IN 57 do INCRA, já mencionados, como também na Nota Técnica 197/2018).
A fase seguinte do processo administrativo corresponde à regularização fundiária, com desintrusão de ocupantes não quilombolas mediante desapropriação e/ou pagamento de indenização e demarcação do território. O processo culmina com a concessão do título de propriedade à comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e em nome da Associação da comunidade da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro para a comunidade beneficiada.
Conforme dissemos anteriormente, foi necessário aos territórios Alto Trombetas I e Alto Trombetas II ajuizar ação em desfavor do Estado, pois a decisão
judicial em primeira e segunda estância obrigava o “dever de fazer”. Os órgãos responsáveis pela titulação, INCRA e FCP divergiram da posição do ICMBIO, quanto ao remédio jurídico para a resolução deste conflito.
Foi, portanto, devido à sobreposição de dois direitos igualmente resguardados pela Constituição Federal – de um lado, o dever do Estado em reconhecer e tutelar as terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos (art. 68 do ADCT) e, de outro lado, o direito conferido a todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), mas também resultado da incansável luta dos quilombolas do Alto Trombetas em fazer valer seus direitos territoriais –, que, em 2008, diante da sabida sobreposição de interesses, a Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal (CCAF) da Advocacia-Geral da União (AGU) deflagrou procedimento conciliatório a fim de solucionar controvérsia entre as autarquias agrária (INCRA) e ambiental (ICMBio). Contudo, como sete anos depois ainda não se havia chegado a bom termo, a AGU, por intermédio da NOTA n. 00121/2015/CCAF/CGU/AGU, decidiu por arquivar o referido procedimento.
A sentença proferida em Ação Civil Pública, expressa nos autos nº 4405- 91.2013.401.3902, em face da União, Incra e ICMBio, que obrigou os entes federais a promover a titulação dos Territórios Quilombolas Alto Trombetas I e Alto Trombetas II, com prazo até maio de 2018. O Ministério Público Federal fez recomendação na mesma direção (Nº 04/3º OFÍCIO/PRM/STM, de 2 de maio de 2016).
O ICMBio persistiu com a tese de que somente seria possível a expedição de título de domínio às comunidades após a “desafetação” das Unidades de Conservação, e da necessidade de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional para que a área de uso das comunidades quilombolas deixassem de ser Flona ou Rebio propôs ainda que até a desafetação fosse concretizada que se utilizasse do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) e do Termo de Compromisso.
O Incra publicou os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) da comunidade remanescente de quilombo em abril de 2017, abrindo uma mesa de diálogos entre as entidades governamentais e as associações dos Territórios quilombolas. As reuniões se deram em Brasília nos meses de maio e agosto de 2017, e ficou acordado para que o ICMBio formalizasse os termos de proposta que permitisse uma alternativa para conciliar os direitos dos quilombolas e a existência de duas Unidades de Conservação e a realização de reuniões informativas junto às bases: duas delas em AT 2 (Comunidades Curuçá-Mirim e Moura) e outra na comunidade da Tapagem (Alto Trombetas 1), respectivamente, nos dias 13, 14 e 16 de dezembro 2017, tempo aprazado entre todos envolvidos, quando o ICMBio apresentou uma proposta
cheia de lacunas, em forma de Cartilha, a qual apresentava conceitos de quilombos, CCDRU, Termo de Compromisso dentre as várias categorias sociojurídicas necessárias para tecer o acordo. Diante da falta de objetividade do ICMBio, prejudicando o desenvolvimento do diálogo e retardando, em pelo menos seis meses, a publicação das Portarias de Reconhecimento dos territórios quilombolas na íntegra com a áreas sobrepostas as duas Unidades de Conservação, identificada no Relatório Técnico de Delimitação e Identificação do Incra.
A proposta apresentada pelo ICMBio aos territórios distinguiu as UC atribuindo duas soluções jurídicas: para a Rebio, UC de proteção integral, propôs um Termo de Compromisso de Usos Múltiplos e para a Flona, UC de uso sustentável, a celebração de um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) permanecendo ambas as áreas como Unidades de Conservação, e não modificando as suas categorizações no SNUC.
A proposta de Termo de Compromisso abrangente garantia o direito de acesso territorial e de uso tradicional dos recursos, sendo que as cláusulas de uso do território seriam definidas em comum acordo e acompanhadas pelo ICMBio, órgão gestor das unidades de conservação (UC). A regulamentação dada pelo Decreto 4.340/2002 já vinculava a permanência das populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral. Desde 2011, são renovados a cada ano os acessos aos castanheiros tradicionais por meio do Termo de Compromisso da Castanha da área da Rebio, que sempre foi firmado pela ARQMO, considerada associação-mãe, que representa os quilombos de Oriximiná e por uma Associação dos Extrativistas Tradicionais do Município de Oriximiná (AETMO), composta por trabalhadores que não estão vinculadas a territórios tradicionais. A partir da safra 2019, as associações do AT1 e AT2 passaram a assinar o Termo por representarem legalmente as comunidades e serem responsáveis pela gestão dos territórios que pertencem.
Cada associação passa a compartilhar com o ICMBio da responsabilidade
de ordenar a coleta e comercialização da castanha, além de listar os castanheiros tradicionais que devem manifestar a adesão ao Termo de Compromisso. Porém, no inciso 4º do artigo 39 do SNUC, impõe-se a necessidade de que o Termo de Compromisso estabeleça prazos, os quais, no caso concreto, foram de três anos, e condições para o reassentamento futuro da população tradicional.
A solução apresentada para pacificar o conflito foi a proposta do Termo de Compromisso de Múltiplos Usos, como função imediata, garantindo as condições de permanência das populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção Integral, como prevê o art. 39 do Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, e seu uso
pelas comunidades que historicamente lá residiam, ao contrário dos deslocamentos compulsórios sofridos pelas comunidades de AT1 e de cinco comunidades do território AT2 (Jamari, Juquirizinho, Juquiri Grande, Último Quilombo e Nova Esperança), que permanecem na área da Rebio.
A construção deste termo mais abrangente, assim como o estudo para a definição da melhor destinação para a área de sobreposição com a Rebio, notadamente a região do Erepecu, deve ser construído de modo participativo, obedecendo os protocolos de consultas dos territórios, atentando e dando vazão para as demandas históricas das comunidades e reparando os passivos históricos.
4 A ABRANGÊNCIA DO CONTRATO DE CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO E EVENTUAL PARALOGIA COM A TESE DA DUPLA AFETAÇÃO
Uma questão que move os interesses do ICMBio e das associações são os direitos superficiários do território, pois a proposta apresentada pelo ICMBio traz, nesse momento, solução fundiária somente na área dos Territórios Quilombolas sobreposto à Flona através de CCDRU em nome das Associações, para reconhecimento e destinação plena, imediata e por prazo indeterminado, do direito exclusivo de uso dessa área pelas comunidades dos territórios quilombolas, o que não representa renúncia ao seu pleito de titulação definitiva (curto e médio prazo).
Pelo CCDRU, o ICMBio, continua responsável pela administração da UC, dentro da qual estão as terras cedidas, por meio de instrumentos de gestão (cadastramento de famílias, perfil da família beneficiaria, formação de conselho, elaboração de plano de manejo, autorização de uso sustentável de recursos naturais etc.), em estreita relação com a comunidade local e com a maioria do conselho, que é deliberativo.
O Contrato de Concessão de Direito Real de Uso não é um contrato de adesão, ou seja, as cláusulas são previamente discutidas e estabelecidas entre as partes antes de sua assinatura. Dessa forma, poderá se alcançar um consenso entre os envolvidos para a melhor forma de uso e gestão da área. É de extrema relevância que, a par da concessão do CCDRU, as Comunidades Quilombolas do Alto Trombetas passem a usufruir de uma maior autonomia na gestão de seu território. Assim, faz-se necessário que o ICMBio esclareça e detalhe os direitos e deveres sobre o uso da área decorrentes dessa nova conjuntura (INCRA, 2018).
Importante ressaltar ainda que, a par desse instrumento jurídico, as comunidades quilombolas poderão pleitear eventuais indenizações e percepções
financeiras advindas dessa atividade, uma vez que, conforme art. 15 da Convenção 169 da OIT “os povos interessados deverão participar, sempre que for possível, dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades”. Entende-se como essencial a atuação conjunta do INCRA, ICMBio e FCP para possibilitar que essas comunidades acessem esse direito (INCRA, 2018).
Com efeito, o CCDRU confere segurança jurídica às comunidades quilombolas até que a titulação definitiva seja efetivada, conforme se vê na minuta do acordo aprovado em 10 de setembro de 2019:
CLÁUSULA QUINTA – DOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO
As atividades a serem desenvolvidas na área concedida serão regidas pelo Plano de Manejo, Acordos de Gestão e Planos Específicos, quando existirem, que estabelecem o zoneamento e as regras de uso dos recursos naturais da FLORESTA NACIONAL DE SARACÁ-TAQUERA de modo harmonizado com os instrumentos de gestão territorial e ambiental dos quilombolas (planos de vida, protocolos e outros), sempre que existirem.
[...]
PARÁGRAFO SEGUNDO – Ficam assegurados os direitos de posse das Comunidades Quilombolas do Alto Trombetas I na área da FLORESTA NACIONAL SARACÁ-TAQUERA sobre
o atual plano de manejo da unidade de conservação até que este seja revisto, com o devido reconhecimento dos usos e da ocupação tradicional pelo grupo étnico e dos limites definidos na Portaria INCRA nº 1.171, de 17 de julho de 2018.
[...]
CLÁUSULA OITAVA – DO ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS
O presente Contrato atesta, para os devidos fins, que o ICMBIO, a FCP e o INCRA reconhecem a ASSOCIAÇÃO como representante legítima dos beneficiários da Floresta Nacional Saracá-Taqeura, na área de abrangência deste contrato, descrita na Cláusula Primeira
[...]
PARAGRÁFO TERCEIRO – O presente contrato reconhece as famílias quilombolas representadas pela ASSOCIAÇÃO como superficiários ocupantes para os fins de percepção dos direitos devidos.
Vale dizer que a questão específica ganha abrangência e singularidades, pois se trata de terras de quilombo no entorno de uma das maiores atividades minerárias do país e que, portanto, redundam em mais ampla participação no manejo florestal e, em especial, o acesso aos royalties e em direitos sobre as terras exploradas, o que
vem a apresentar um novo patamar para esse debate. De escravizados a fugitivos, daí para mocambeiros e subalternizados socialmente, os negros do Trombetas catadores de castanha avultam como sociedade gestora de riquezas.
Dessa forma, em paralelo à luta pela titulação de AT1 e AT2, ações da própria MRN e de parcerias público-privada tem atuado no território. Exemplo disso têm sido as atividades do Programa Territórios Sustentáveis, ligados a ECAM – Equipe de Conservação da Amazônia (2019, p. 21), que em sua Cartilha sobre o Fundo Quilombola informa:
A última etapa de implantação da gestão territorial consistiu na validação do Fundo Quilombola por meio de pilotos. Para este fim, foi aproveitado um compromisso firmado anteriormente entre a Mineração Rio do Norte (MRN) e as associações territoriais de AT1 e AT2 em processos de licenciamento passado, que envolveram doações financeiras anuais de aproximadamente 50 mil para cada uma das 14 comunidades dos dois territórios. Esse acordo de repasse financeiro da MRN para as comunidades, já vigente desde 2014, trazia diversos desafios tanto de autonomia das comunidades na utilização do recurso, até sobrecarga de trabalho e responsabilidade legal para empresa. Assim foi pactuado com as associações de AT1 e AT2 que essas doações pudessem ser um “recurso-semente” para testar o Fundo Quilombola recém construído.
Essa noção de que a identidade comunitária a um território seja capaz de criar um Protocolo Comunitário está tanto associada ao chamado Direitos dos povos autóctones (ROULAND, 2004) como ao alargado debate do Supremo Tribunal Federal que, diante do caso da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, cunhou a expressão “dupla titulação”, reconhecendo que existia afinidade entre a tutela ambiental e tutela indígena e que, portanto, a sobreposição de UC a TI seria compatível. Nessa linha, Azevedo (2017, p. 279) comenta:
Do mesmo modo, o conflito entre terras indígenas e unidades de conservação seria apenas superficial, devendo ser superando por uma interpretação textual que prestigiasse o sistema e unidade das normas constitucionais, sem abrir mão em abstrato de qualquer dos interesses envolvidos. O Decreto Presidencial de 15/04/2005 já teria permitido essa dupla afetação da área. Ainda que se tratasse de uma unidade de conservação criada sob a categoria de Parque Nacional, a Lei 9985 de 2000, que instituiu o SNUC, em seu art. 55, permitiria uma reavaliação das áreas de proteção criadas no regime anterior para definir sua destinação
com base na categoria e função em relação às quais foram criadas. O ministro relativizou o prazo estabelecido pela lei e a regra do não enquadramento das categorias legais para essa adequação, tendo em conta a necessidade de razoabilidade pelo legislador em seus critérios.
O que estamos a objetificar é que, em traçado paralelo, via ADCT e OIT 169, conjugada às mesmas questões, deva se dar também o instituto da dupla afetação para as terras de quilombo sobrepostas por UC. Esse foi o entendimento do Incra e da FCP e parcialmente o entendimento do ICMBio, pois só o considerou para a Flona, ou seja, para a UC de uso sustentável. Todavia, a questão da TI, tratada pelo STF, debruçou-se sobre UC de proteção integral, um Parque, mesmo gênero da Rebio, ainda que em categoria e com objetivos distintos, mas não para a motivação dos votos (AZEVEDO, 2017).
Nesse sentido, a CCDRU, enquanto ferramenta de reconhecimento ao território, torna-se abrangente e teleológica tanto num caso como no outro, enquanto o Termo de Compromisso de Usos Múltiplos, embora reconhecidamente represente um esforço conciliatório, não possui a mesma abrangência no que tange ao reconhecimento de direitos ao território. E, sobretudo, num momento em que os direitos ambientais e os direitos dos povos e comunidades tradicionais são seguidamente desprestigiados por ações do próprio governo federal, não se pode titubear em ações que representem o esforço para consecução de um modelo de desenvolvimento original, adequado e colegiado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A continuidade do processo de conciliação prevê uma extensa agenda de trabalho acordada entre governo e associações quilombolas que inclui, entre outras atividades, a arrecadação das terras da Flona Saracá-Taquera e Rebio Rio Trombetas; o controle do uso da terra, conforme os termos do CCDRU firmado pelo ICMBio com as associações quilombolas até que o título de propriedade possa ser emitido; a revisão do Plano de Manejo da Flona Saracá-Taquera; e o acordo sobre a solução a ser adotada para a regularização da porção dos territórios quilombolas incidente na Rebio Trombetas. O Termo de Compromisso, assim como o estudo para a definição da melhor destinação para a área de sobreposição com a Rebio, notadamente a região do Erepecu, deve ser construído de modo participativo, atentando e dando vazão para as demandas históricas das comunidades de AT1 e AT2.
Embora o ICMBio afirme que a recategorização de uma unidade de
conservação só pode ser feita por lei específica, cuja aprovação depende do Congresso
Nacional, considerando o disposto no art. 225 da Constituição Federal e no Art. 22 da Lei do 9.985/2000 e respectivos parágrafos, não encontramos base para essa interpretação, já que recategorização é um processo distinto de supressão, redução e desafetação de unidade de conservação, e, desse modo, poderia ser efetivada por meio de diploma jurídico infralegal.
REFERÊNCIAS
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