EMPRÉSTIMO CONSIGNADO: CARACTERÍSTICAS, ACESSO E USO1
CARACTERÍSTICAS, ACESSO E USO1
O empréstimo consignado é uma modalidade de crédito em que o desconto da prestação é feito diretamente na folha de pagamento ou de benefício previdenciário do contratante.2 Essa característica leva a uma redução do risco de inadimplência, já que o colateral do empréstimo é parte do salário, o que permite ao emprestador uma redução na taxa de juros cobrada. De fato, estudos apontam que a modalidade crédito consignado teve papel importante na expansão do crédito para consumo e para redução do custo do crédito pessoal desde sua implementação.3
Embora seja de uso livre e não ligado a um bem específico que garanta a operação, a sistemática de ter as prestações descontadas do salário aumenta a credibilidade da operação e reduz seu custo, como mostra o Gráfico 1. O crédito consignado é a modalidade de empréstimo livre para pessoa física que, no Brasil, tem o menor custo. Em outubro de 2017, as taxas de juros dos empréstimos não consignados foram em média cinco vezes maiores do que as dos consignados. No período analisado, a menor razão foi a de março de 2011, ao ficar em 2,5 vezes.4
1 Este texto foi elaborado pelo Departamento de Promoção da Cidadania Financeira (Depef), do Banco Central do Brasil, com contribuições de Xxxxxxx Xxxxx, professora da UFRJ e diretora do Instituto de Economia Real.
2 Para mais informações, ver <xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxx/xx_xxxxxx/xxxx/xxxxxxxxxxx.xxx>.
3 XXXXXX, Xxxxxxxxxx X.; XXXXX, Xxxx X. X. xx; XXXXXXX, Xxxxx. The Brazilian Payroll Lending Experience, The Review of Economics and Statistics. November 2012, 94(4): 925–934.
4 Séries de dados sobre crédito – assim como outros indicadores – podem ser obtidas no Sistema de Séries Temporais do Banco Central, disponível em: <xxxxx://xxx0.xxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxXxxxxx.xx?xxxxxxxxxxxxxxxXxxxXxxxxxxxxXxxxxx>.
Gráfico 1 – Taxa média de juros das operações de crédito com recursos livres – Pessoas físicas
% a.a. 350
280
210
140
70
mar/11
ago/11 jan/12 jun/12 nov/12 abr/13 set/13 fev/14 jul/14 dez/14 mai/15 out/15 mar/16 ago/16 jan/17 jun/17 nov/17 abr/18 set/18
0
Cheque especial Cartão de crédito parcelado
Não consignado Financiamento veículos
Consignado - total Selic
O Banco Central do Brasil (BCB) divulga, desde 2011, dados sobre os empréstimos consignados em três segmentos distintos: os destinados aos funcionários públicos; aos aposentados e beneficiários do INSS; e aos funcionários do setor privado, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).5
Como regra geral, a regulamentação existente6 limita o comprometimento com consignado a 35% da renda disponível de uma pessoa, sendo 5% destinados ao pagamento de cartão de crédito. Dessa forma, o mutuário pode contratar mais de uma operação, desde que os limites acima mencionados sejam respeitados.
No triênio 2015-2017, os funcionários públicos possuíam em média 2,5 contratos de empréstimos consignados. Os aposentados e beneficiários do INSS, 2,8 operações; e os celetistas, 1,3 operação.
Já no tocante ao tíquete, os contratos com funcionários públicos alcançaram, no período analisado, o valor médio de R$10,8 mil, contra R$3,3 mil do grupo dos aposentados e beneficiários, e R$5,6 mil, dos celetistas. Esses números refletem as diferenças médias de renda de cada um desses grupos.7
5 A regulamentação dessa modalidade de crédito é diferente para os diversos grupos de potenciais tomadores. Para os funcionários regidos pela CLT, é disciplinado pela Lei 10.820, de 2003. Para os aposentados do INSS, o artigo 6º da referida lei autorizou esse órgão a regulamentar o assunto e foi publicada a Instrução Normativa INSS/PRES nº 28, de 16.5.2008, estabelecendo os critérios e procedimentos operacionais relativos à consignação de descontos para pagamento de empréstimos e cartão de crédito, contraídos nos benefícios da Previdência Social. Para os servidores públicos federais, a regulamentação se dá pela Lei 8.112, de 1990, e pelo Decreto 8.690, de 2016. Por fim, para os servidores públicos estaduais e municipais existem as leis específicas para cada caso.
6 Órgãos militares, do Legislativo e do Judiciário têm regulamentações próprias.
7 Para referência, os rendimentos médios mensais no 4º trimestre de 2017 ficaram em R$ 3.363,00, R$ 1.220,00 e R$ 2.110,00 respectivamente (valores apurados pelo IBGE e pela Previdência).
Gráfico 2 – Valor médio por operação – consignado
R$ mil 15
12
Público INSS Privado Público INSS Privado Público INSS Privado
2015
2016
2017
9
6
3
0
O Gráfico 3 apresenta os custos de empréstimos consignados. A título de comparação, foram inseridos também os custos para o financiamento de veículos, historicamente uma das linhas de financiamento com menores taxas de juros. Verifica-se que a curva referente aos empréstimos para os funcionários públicos é mais baixa, seguida pela curva dos aposentados e beneficiários do INSS e a mais alta a dos funcionários regidos pela CLT, em função do maior risco que representam para as instituições financeiras, já que podem perder seus empregos.8 Ressalta-se que, em alguns meses, o custo do consignado para funcionários públicos chegou a ser inferior ao do financiamento de veículos, o que mostra como a consignação de parte do salário consegue reduzir o custo do crédito.
8 Ressalta-se que, entre os celetistas, incluem-se também os empregados públicos.
Gráfico 3 – Taxa média de juros dos empréstimos consignados – Pessoas físicas
% a.a.
50
40
30
20
10
mar/11
ago/11 jan/12 jun/12 nov/12 abr/13 set/13 fev/14 jul/14 dez/14 mai/15 out/15 mar/16 ago/16 jan/17 jun/17 nov/17 abr/18 set/18
0
Trabalhadores CLT INSS
Funcionários públicos Financiamento veículos
O fato de os juros do INSS serem maiores que os dos servidores públicos não está ligado à inadimplência das operações. Ao contrário do que se poderia esperar, a inadimplência é maior para os servidores públicos do que para o INSS, como se observa no Gráfico 4, que mostra os percentuais médios de inadimplência (barras escuras) e atraso de 15 a 90 dias (barras claras) dos três setores do crédito consignado, em dezembro de cada ano.9 Cabe destaque o recuo na soma desses dois percentuais para os funcionários celetistas, que caiu de 10,16%, em 2015, para 7,21%, em 2017. Esse movimento pode estar ligado à igual tendência de queda no número de mutuários no mesmo período, de 3,6 milhões para 2,2 milhões, como será visto no Gráfico 8.
Uma possível explicação para os juros do INSS serem mais altos seria o fato de os funcionários públicos, como dito anteriormente, contratarem empréstimos, em média, mais altos dos que os aposentados do INSS. Como o custo fixo da contratação de um empréstimo é diluído em operação maior, consequentemente cai a cobrança de juros. Outra possível explicação para os aposentados e pensionistas pagarem juros mais altos do que os funcionários públicos pode ser a diferença em termos de educação financeira entre os dois grupos, o que pode levar, por exemplo, o grupo de funcionários públicos a pesquisar e negociar taxas melhores em diferentes bancos.
9 Apesar do desconto em folha de pagamento, a inadimplência pode ocorrer, no caso dos funcionários públicos e aposentados, pela redução de benefícios, em função, por exemplo, de perda de comissão ou descontos no salário e de morte e, no caso dos celetistas, também pela perda do emprego.
Gráfico 4 – Atraso e inadimplência – consignado
% da carteira 15
12
Público INSS Privado Público INSS Privado Público INSS Privado
2015
2016
2017
9
6
3
0
Desde o início, os empréstimos consignados, dado seu baixo custo e maior facilidade de acesso para aposentados e funcionários públicos, apresentaram grande expansão. Como mostra o Gráfico 5, a evolução desse crédito foi notável, saindo de R$53,7 bilhões para R$323,8 bilhões, em pouco mais de onze anos. A média anual de crescimento ficou em 17,2%, calculando com valores históricos, ou 10,7% a.a., em termos reais. Para comparar, o saldo total das carteiras de crédito no Brasil subiu, em igual período, de R$762,4 bilhões para R$3.130,1 bilhões, crescimento a uma taxa de 10,4% a.a., em valores históricos, e 5,7% a.a., em termos reais. Um aspecto que vale a pena ressaltar é a maior resiliência dessa modalidade ao ciclo econômico. Mesmo em um período de fragilidade da economia brasileira, o crédito consignado manteve trajetória de expansão, em contraste com o recuo verificado na carteira total ativa.
Gráfico 5 – Carteira de crédito total e consignado
R$ bi 3.500
R$ bi 350
3.000 300
2.500 250
2.000 200
1.500 150
1.000 100
500 50
mar/07
out/07 mai/08 dez/08 jul/09 fev/10 set/10 abr/11 nov/11 jun/12 jan/13 ago/13 mar/14 out/14 mai/15 dez/15 jul/16 fev/17 set/17 abr/18
0 0
← Carteira de Crédito Consignado →
Analisando-se apenas o crédito pessoal, o Gráfico 6 mostra que o saldo do crédito consignado respondia, em junho de 2018, por 75% do total. A parte destinada aos funcionários públicos alcançava 42%; a dos beneficiários do INSS, 29%; e a dos celetistas, 4%. Desde o início da série histórica, em março de 2007, o crédito consignado sempre representou pelo menos 60% do saldo de crédito pessoal.
Gráfico 6 – Empréstimo pessoal com recursos livres
Junho 2018
29%
25%
4%
42%
Não consignado Consignado – Privado Consignado – Público
Consignado – INSS
Gráfico 7 – Evolução do crédito pessoal com recursos livres
R$ milhões
200.000
160.000
120.000
80.000
40.000
mar/07
out/07 mai/08 dez/08 jul/09 fev/10 set/10 abr/11 nov/11 jun/12 jan/13 ago/13 mar/14 out/14 mai/15 dez/15 jul/16 fev/17 set/17 abr/18
0
Consignado – Público Não consignado
Consignado – INSS Consignado – Privado
Enquanto o volume de crédito contratado pelos trabalhadores do setor público e aposentados e pensionistas do INSS apresenta taxa de crescimento positiva durante todo o período analisado, percebe-se, pelo Gráfico 7, que o volume de consignado contratado pelos celetistas apresentou leve contração entre maio de 2015 e maio de 2017, período de retração da atividade econômica, quando o saldo da carteira recuou de R$20,5 bilhões, maior valor da série histórica, para R$18,1 bilhões. A partir de então, retomou uma trajetória de alta, alcançando R$18,3 bilhões em junho de 2018.
Do que foi exposto até aqui sobre o crédito consignado, verifica-se nítida distinção de acesso entre, de um lado, os grupos de tomadores funcionários públicos e beneficiários do INSS e, do outro, aquele formado pelos funcionários celetistas. Em dezembro de 2017, havia, segundo o IBGE, 33,3 milhões de empregados com carteira assinada, número próximo ao de aposentados (34,5 milhões) e bem acima do número de funcionários públicos, que somam 11,5 milhões nos três níveis de administração. Observando-se o percentual de pessoas de cada setor com acesso ao crédito consignado – funcionários públicos, 54,5%; INSS, 32,6%; e celetistas, 6,7% –, nota-se a menor oferta desse tipo de crédito aos empregados celetistas já que, pela possibilidade de perda do emprego, apresentam maior risco de inadimplência.
Gráfico 8 – Número de mutuários por setor – consignado
Milhões 15
12
9
Público INSS Privado 2015 | Público INSS Privado 2016 | Público INSS Privado 2017 |
6
3
0
Para mudar esse quadro e facilitar o acesso dos trabalhadores celetistas a essa modalidade de crédito, em julho de 2016 o governo autorizou, por meio da Lei 13.313, de 14 de julho de 2016, o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para garantir os empréstimos consignados dos celetistas. Em abril do ano seguinte, a Caixa Econômica Federal, agente desse fundo, liberou o uso dessa garantia. O intuito foi o de aumentar a confiança desse crédito, ao permitir que até 10% do saldo do FGTS sirva de lastro para o empréstimo. A lei definiu também que, caso o mutuário venha a ser demitido sem justa causa, até 100% do valor da multa – equivalente a 40% do saldo do devedor no FGTS – possa ser repassado à instituição financeira para a quitação da dívida.
Mesmo com o reforço na garantia do empréstimo, até junho de 2018 ainda não se observou grande aumento no número de mutuários celetistas desse tipo de crédito. Isso sugere a existência de outros fatores ligados à baixa oferta desse crédito com garantia do FGTS pelas instituições financeiras. Uma hipótese é que o custo de operacionalizar esse crédito não seja baixo e acabe não compensando às instituições financeiras, já que é necessário que façam acordos individuais com cada empresa.10 Adicionalmente, a intensificação das incertezas no mercado de trabalho no período de aprovação da lei, quando a economia enfrentou um cenário de redução do PIB e de aperto nas condições do mercado de trabalho, pode também ter tido algum papel nesse resultado.
10 A legislação que rege os contratos consignados para os celetistas prevê que o empregador tem que fazer um contrato com uma ou mais instituições financeiras, para que o empregado possa pedir um empréstimo consignado junto à instituição conveniada.
O CPF NEM SEMPRE CONTA TODA A HISTÓRIA...
Um dado que chama atenção no crédito consignado é sua penetração entre os idosos: 61% dos tomadores têm mais de 55 anos, sendo responsáveis por 57% da carteira nessa modalidade. Esse indicador contradiz a teoria econômica da suavização do consumo, segundo a qual os indivíduos tendem a estabilizar o padrão de consumo na velhice, tendo, em geral, menor necessidade de crédito.
É possível que, para avaliar esse quadro, seja preciso considerar alguns fatores na análise dos dados sobre crédito e endividamento. Os números dizem respeito a indivíduos e aos contratos que estabeleceram com instituições financeiras. Eles não permitem ver, porém, dimensões bastante relevantes das transações que envolvem crédito e dívida.
Pesquisas qualitativas* mostram que é muito comum que pessoas tomem empréstimos em seu próprio nome, mas em benefício real de outras, especialmente de familiares. O crédito consignado, com taxas de juros mais baixas que outras modalidades de crédito, torna-se especialmente atrativo para esse tipo de arranjo financeiro familiar.
Os contratos formais e os dados sobre eles são a parte visível do crédito e da dívida, mas, por vezes, apenas estes registros não nos permitem acessar fenômenos mais complexos – cuja lógica deve ser investigada para desenvolvermos compreensão mais ampla do uso do crédito ou dos processos de endividamento. As estratégias, as expectativas e até os rendimentos monetários nos quais os tomadores de crédito apoiam suas decisões e escolhas não dizem respeito apenas a eles como indivíduos, mas a coletividades: comumente às suas famílias e mais fortemente ainda aos núcleos familiares que compartilham os espaços domésticos.
Considerando as mudanças demográficas e o envelhecimento da população, o tema da gestão de recursos e do uso de serviços financeiros pelas pessoas mais velhas vem ganhando relevância ao redor do mundo, tendo sido, inclusive, escolhido como prioritário pela Parceria Global para Inclusão Financeira do G20 (Global Partnership for Financial Inclusion – GPFI) para a agenda de trabalho de 2019. No contexto do Brasil, o uso do crédito consignado e suas implicações em termos de endividamento para a terceira idade é um dos pontos que merecem ser melhor estudados.
* XXXXXXXXX, Xxxxxxx. “Jovens universitários e cartões de crédito: uma pesquisa sobre os usos”. In: Xxxxxxx Xxxxxxx (Org).
Consumo Popular. Rio de Janeiro: Editora Mundo do Marketing, 2015.
XXXXX, Xxxxxxx. 2014, Money from nothing: indebtedness and aspiration in South Africa. Stanford, Stanford University Press; MOTTA, Eugênia. 2014, “Houses and economy in the favela”. Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v. 11, n. 1. pp.118-158.
» Conclusão
Em resumo, os empréstimos com consignação em folha de pagamento têm tido papel importante nos últimos anos no crescimento do crédito, com esta modalidade sendo uma das mais utilizadas pelos tomadores, dada a facilidade de obtenção e os custos reduzidos.
A penetração desse tipo de crédito, mesmo entre os beneficiários do INSS que têm renda média relativamente mais baixa, indica a importância do estabelecimento de garantias, como o desconto em folha de pagamento, para assegurar uma oferta de crédito a custos mais baixos, em especial para tomadores de menor renda.
Por outro lado, a facilidade de contratação do crédito consignado pode apresentar riscos. A garantia representada pelo desconto direto do salário, ou do benefício, e as taxas de juros relativamente baixas podem levar a práticas de crédito não responsáveis, tanto pelo lado das instituições financeiras, que podem adotar práticas inadequadas de oferta e renovação do crédito, quanto pelo lado dos consumidores, pela tomada de crédito sem o devido planejamento, o que pode levar ao endividamento excessivo.
Em um cenário de maior incerteza econômica, tanto as condições de oferta quanto as de demanda por crédito podem ser afetadas adversamente. Pelo lado da oferta, as instituições financeiras, em um ambiente de aumento do desemprego, têm mais dificuldades em precificar o risco de inadimplência, o que cria desincentivos para empréstimos nessa modalidade para trabalhadores do setor privado. Pelo lado da demanda, pode tornar estes trabalhadores mais avessos ao endividamento devido ao receio de perder o emprego. Sendo assim, aumentar o acesso dos demais trabalhadores a esta modalidade de crédito, assim como reduzir os riscos envolvidos, permanece um desafio. Isso passa por maior responsabilidade na oferta e na tomada de crédito, inclusive por meio do desenvolvimento de soluções para a redução da assimetria de informações entre credores e tomadores.