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2. Referencial da indústria de seguros na França
2.1 Seguros: fundamentos e classificação
O seguro surgiu como uma solução diante da incerteza do futuro a fim de precaver qualquer infortúnio. O segurado, pessoa ou entidade que contrata um seguro, confia no segurador (em geral uma companhia de seguros) em caso de ocorrência de fato danoso à vida, à saúde, aos direitos ou ao patrimônio do segurado. O segurador tem por objetivo repor total ou parcialmente os danos causados aos beneficiários do seguro. O surgimento do seguro foi uma das grandes soluções quanto à incerteza do futuro.
O seguro se baseia nos fundamentos de previdência, incerteza e mutualismo (FUNENSEG). A característica de previdência representa a prevenção, logo, proteção contra danos e perdas. A incerteza abrange dois aspectos: a ocorrência (vai acontecer?) e a época (quando acontecerá?) de um eventual dano à pessoa ou a um bem. O mutualismo se caracteriza pela repartição do risco entre um grupo de pessoas com interesses seguráveis comuns formando uma massa econômica com a finalidade de suprir em determinado momento necessidades eventuais de algumas daquelas pessoas.
Logo, os contratos de seguros são, por definição, contratos regidos pelo princípio da boa-fé entre o segurado e a entidade seguradora. O contrato de seguro é firmado por uma apólice ou bilhete de seguro, emitido pela seguradora ao segurado, indicando os riscos assumidos, o valor segurado, o objeto do seguro, o valor do prêmio a ser pago pelo segurado e o prazo de vigência.
Os seguros se classificam por categorias (Larramendi, I.H. , Xxxxx J.A., Castelo J., s.d.). A idéia de proteção e da prática do seguro se desenvolveu à medida que a vida e a existência
do ser humano, seja como indivíduo, seja como membro de uma comunidade ou de uma empresa, foram se tornando cada vez mais complexas e mais expostas às múltiplas modalidades de riscos de toda sorte. Diante dessa realidade, criaram-se categorias de seguros as mais diversificadas, a fim de poder dar uma resposta e um atendimento satisfatórios a esses novos desafios e demandas.
Primeiramente, conforme o período de duração, os seguros podem ser temporários, como, por exemplo, uma viagem ou a realização de um evento qualquer, ou anuais, estes últimos podendo ser prorrogados ou não de acordo com a vontade do segurado em combinação com a entidade seguradora.
Outro tipo de classificação é por ramo de seguros. De maneira muito sintética, pode-se dizer que os seguros podem ser pessoais ou patrimoniais (mais conhecidos como bens ou ramos elementares).
Nos seguros de pessoa, como a própria denominação o sugere, referem-se aos riscos que a pessoa humana pode ou deve enfrentar na sua existência. Dentre os seguros pessoais, podem ser lembrados os seguros de saúde, de vida, de acidentes pessoais e de trabalho, de enfermidade e funeral.
Quanto aos seguros patrimoniais, estes se relacionam com as perdas sofridas pelo proprietário de um patrimônio ou de bens materiais. Os seguros patrimoniais também são chamados seguros de bens ou ramos elementares. São, por exemplo, seguros contra incêndio, contra roubo, transportes, automóveis e outros manufaturados, bem como seguros agrícolas, destinados a cobrir as perdas sofridas na exploração agrícola, pecuária ou florestal.
Outro segmento de seguro importante é o chamado seguro de responsabilidade civil. Dada a gama de papéis e funções que cada um de nós pode ou deve desempenhar simultaneamente na atual estrutura da nossa sociedade, como pai de família, empresário, motorista, profissionais de todo tipo, empregado, dono de um animal e tantas outras funções ou
atividades, que podem causar danos a outras pessoas, o seguro de responsabilidade civil contribui para cobrir os danos causados. Pelo exposto, vê-se que a responsabilidade civil é diferente da responsabilidade administrativa. Esta impõe ao administrador a obrigação de assumir ou de ser responsável por todos os atos que execute ou ordene, excerdendo os poderes administrativos que lhe foram conferidos. A responsabilidade civil, por sua vez, é usada em distinção à responsabilidade criminal ou penal e, como foi visto, designa a obrigação de reparar um dano causado a outrem. No campo jurídico, é denominada reparação civil.
Ainda nas classes de seguro, figura a distribuição por número de segurados, constituindo assim o seguro individual, quando a apólice corresponde a um só risco ou a um número limitado de riscos, e o seguro em grupo ou coletivo que, como a própria denominação exprime, consta de uma só apólice feita pelo contratante, beneficiando simultaneamente um número de pessoas sujeitas ao mesmo risco, como, por exemplo, um colégio, os funcionários de uma empresa ou de qualquer outra organização.
2.2 Surgimento do seguro ao longo da história da humanidade
Uma breve resenha histórica da origem e evolução da concepção de seguros objetiva contribuir para um melhor entendimento desse ramo de atividade. Desde a Antiguidade, apareceu a idéia de seguro sob modalidades as mais diversas que vieram surgindo ao longo da história da humanidade até a institucionalização das companhias de seguros e a indústria de seguros.
Baseado no trabalho de Xxxxxxxxxx, I.H. , Xxxxx J.A., Castelo J. (s.d.), vale a pena lembrar algumas formas, que vieram surgindo ao longo dos tempos.
Os chineses, por exemplo, ao transportarem suas mercadorias em frágeis embarcações, distribuíam-nas de tal forma que cada barco contivesse apenas uma parte de cada comerciante. E os comerciantes árabes, ao cruzarem os desertos e lugares inóspitos, distribuíam seus bens em várias caravanas e, dentro da mesma caravana, entre diversos camelos.
Na Babilônia, ficou famoso o Código de Hammurabi (rei da Babilônia,1793-1750 a.C.). Este rei promoveu, entre outras iniciativas, a criação de uma associação encarregada de dar um novo barco aos comerciantes que perdiam os seus devido a uma tempestade, e um novo burro ao comerciante que tivesse perdido o seu.
Todavia, talvez tenham sido os atenienses e os romanos que criaram verdadeiros sistemas de seguros através de diversas modalidades. Na Idade Média foram muito importantes as associações de ajuda mútua. Nos Tempos Modernos, com a realização das grandes viagens marítimas descobrindo novos continentes, a necessidade de se efetuar um seguro marítimo tornou-se uma prática corrente, assim como o seguro de vida.
No entanto, será com o advento e os progressos da Revolução Industrial que a idéia e a prática de seguros assumem uma complexidade crescente nos mais variados setores da vida das pessoas, das empresas e das instituições de toda sorte, e isso em nível nacional e internacional. Assim, tornou-se hoje quase que uma necessidade vital. A consciência da imensa gama de riscos a que estão sujeitas, cada vez mais, as pessoas individualmente e as empresas de qualquer natureza, tem contribuído para uma verdadeira generalização do seguro e do resseguro. Com isso, surge a indústria de seguros com as companhias de seguros, de resseguros, Lloyds de Londres, etc.
2.3 A importância da indústria de seguros na França
A indústria de seguros mundial representava no ano 2000, 2.443,5 bilhões de dólares em volume de negócios. A França ocupava a quinta posição no ranking mundial, com uma participação de 5% ou 122 bilhões de dólares. A indústria de seguros é bastante concentrada nos países industrializados e os 10 maiores mercados representam 86% do mercado mundial de seguros ou 2.093 bilhões de dólares. (Borderie e Xxxxxxx, 2004).
A tabela abaixo descreve os 10 maiores mercados.
Tabela 2.1 - Os 10 maiores mercados mundiais em seguros em bilhões de dólares no ano 2000
Total | Part. mundial em % | Seguros de Pessoas | Ramos Elementares | |
Estados Unidos | 865 | 35,4 | 442 | 423 |
Japão | 504 | 20,6 | 401 | 103 |
Reino-Unido | 237 | 9,7 | 180 | 57 |
Alemanha | 124 | 5,1 | 56 | 68 |
França | 122 | 5 | 85 | 37 |
Itália | 63 | 2,6 | 37 | 26 |
Coréia do Sul | 58 | 2,4 | 44 | 14 |
Canadá | 46 | 1,9 | 23 | 23 |
Espanha | 38 | 1,5 | 22 | 16 |
Holanda | 36 | 1,5 | 21 | 15 |
Fonte: Borderie e Xxxxxxx (2004)
Como foi mencionado acima, a França representava no ano 2000, o 5º maior mercado de seguros, sendo também o 4º maior em seguro de pessoas (o 2º europeu) e o 5º maior em ramos elementares (o 3º europeu).
Em 2003, o volume de negócios chegou a 186 bilhões de dólares: 135,4 bilhões de dólares em seguro de pessoas e 50,6 bilhões de dólares em ramos elementares. O montante dos valores sob gestão atingiu 1.371,5 bilhões de dólares (FFSA, 2004). Logo, os seguros de pessoas representam 73% de todo volume de seguros vendidos e os de ramos elementares, 27% conforme tabela abaixo.
Na tabela abaixo, são apresentadas as principais famílias de produtos no mercado francês.
Tabela 2.2 – Repartição em volume e percentual dos tipos de seguros na França em 2003
Ramo de seguros Volume total de seguros Volume total de seguros vendidos (bilhões US$) vendidos em relação ao total de prêmios | ||
Assurance-vie | 117,7 | 63,3% |
Automóvel | 22,5 | 12,1% |
Bens | 15,4 | 8,3% |
Vida – Morte e Invalidez | 14,7 | 7,9% |
Diversos | 4,3 | 2,3% |
Responsabilidade Civil | 3,3 | 1,8% |
Capitalização | 2,9 | 1,6% |
Construção | 2 | 1,1% |
Transportes | 1,5 | 0,8% |
Catástrofes Naturais | 1,5 | 0,8% |
Fonte: FFSA – Fédération Française des Sociétés d’Assurances (2004)
Logo, o produto predominante é o assurance-vie, uma ferramenta de investimento e um dos principais meios de poupança com uma roupagem de seguro de vida conforme já explicado na introdução do trabalho. Esse produto respondeu sozinho por cerca de 63% de todos prêmios emitidos em 2003 ou o equivalente a 117,6 bilhões de dólares (FFSA, 2004).
Faz-se mister ainda ressaltar que o produto também é o principal meio de investimento financeiro dos franceses. Em 2003, o produto assurance-vie representava 38% do patrimônio financeiro. Do total de 3.589 bilhões de dólares de patrimônio financeiro dos franceses, 1.371,5 bilhões de dólares estava alocado no produto assurance-vie. Se comparado com o patrimônio total dos franceses, somando o patrimônio não financeiro (que atinge 5.234.8 bilhões de dólares) e o patrimônio financeiro (que chega a 3.589 bilhões de dólares), obtém-se o patrimônio total de 8.823,8 bilhões de dólares. Portanto, os produtos de assurance-vie atingem 16% de todo patrimônio dos franceses (Banque de France, INSEE, 2004).
Conforme foi mencionado anteriormente, será mantido, na seqüência de todo este trabalho, o termo em francês do produto, por não haver nenhum conceito equivalente no Brasil.
O segundo produto mais difundido é o seguro de automóvel com cerca de 22,4 bilhões de dólares em volume de prêmios em 2003 ou 12,1% de todos os prêmios emitidos no mercado.
A indústria de seguros na França é relativamente concentrada entre alguns grupos: seguradoras tradicionais e bancos que detêm seguradoras para oferecerem seguros aos seus clientes. Entre as companhias de seguros tradicionais ou também denominadas de independente, existem duas categorias. Uma primeira é formada por seguradoras com acionistas que exigem determinado retorno sobre o investimento. A segunda constitui as denominadas mutuelles que se originaram de cooperativas ou entidades de classe e, logo, não têm as mesmas exigências de retorno sobre o capital. Podem ser inclusos nesta categoria os institutos e caixas de previdência também. Os grupos atuais se formaram a partir das fusões ocorridas nas últimas duas décadas até o final dos anos 90. No entanto, se
comparado com outras indústrias ou com outros países, a indústria francesa de seguros é menos concentrada.
Os cinco maiores atores na indústria de seguros na França detêm 45% do mercado francês de seguros. São eles: a seguradora AXA, CNP (distribui seus produtos através de bancos públicos ou de capital misto), a seguradora AGF, a seguradora do tipo mutuelle, Groupama e as seguradoras do banco Crédit Agricole. Os dez maiores atores detêm 65% do mercado e as outras cinco maiores companhias são: As duas seguradoras do Banco BNP Paribas (Natio e Cardif), a seguradora Generali, as seguradoras do banco Crédit Mutuel e as seguradoras do banco Société Générale.
2.4 Principais características e evolução recente da indústria de seguros na França
A indústria de seguros na França sofreu uma grande mudança no meio da década de 80 com a chegada significativa de um novo tipo de entrante - os bancos através de suas próprias companhias de seguros. Eles passaram a ser concorrentes das seguradoras tradicionais. Os bancos conseguiram se tornar atores importantes e se consolidaram a tal ponto que hoje inclusive aparecem como líderes em alguns segmentos e famílias de produtos na segunda parte da década de 90. O exemplo mais notório se encontra na família de seguros de pessoas, em particular no segmento de pessoa física, notadamente nos seguros de assurance-vie, responsável em volume por dois terços das vendas de seguros. Os bancos passaram em 1993 a deter mais participação de mercado do que todos os outros atores, quando atingiram 51% do volume total de prêmios (Solving, 2002).
Na França, ao contrário do Brasil, existe ainda hoje uma grande rivalidade entre as grandes seguradoras tradicionais e os grandes bancos. No Brasil, a grande maioria dos grupos financeiros possui um grande banco e uma grande seguradora que comercializa seus
produtos não somente nas agências bancárias, mas também através de corretores independentes, como é o caso por exemplo dos bancos Bradesco, Itaú, Unibanco e HSBC.
Já na França, a situação é diferente: uma grande seguradora como a AXA, Generali ou a AGF comercializam seus produtos principalmente através de uma rede de agentes de seguros (intermediários de seguros que oferecem exclusivamente produtos de uma determinada seguradora em um ponto de venda controlado por este agente) ou através de corretores independentes (como no Brasil). Do outro lado, geralmente os grandes bancos como Crédit Agricole/Crédit Lyonnais e Crédit Mutuel comercializam seus produtos através de sua rede de agências bancárias (Borderie, A., Xxxxxxx, M., 2004).
Logo, quando os bancos criaram suas companhias de seguros, o mercado era dominado pelas seguradoras tradicionais que tinham uma ampla rede de pontos de vendas através de seus agentes de seguros e de corretores independentes. Deve-se ressaltar esse ponto, pois ainda hoje uma grande distribuição geográfica de pontos de vendas é um dos fatores chave de sucesso nessa indústria. A internet e a venda por call centers são ainda muito pequenas, mesmo se nos últimos anos esse canal de distribuição esteja obtendo crescimento superior à média do mercado (EFMAG, 2004).
Por outro lado, na década de 80, a sociedade francesa mudou em diversos aspectos, e os bancos procuraram tirar proveito da situação.
Nessa época, emergiu a geração baby boom que tinha vivido os períodos conhecidos na França por Trente Glorieuses (anos de 1945 a 1975) caracterizada pelo forte crescimento econômico e pelo fato de ter capital poupado, ao contrário da geração anterior que havia perdido tudo durante a segunda guerra mundial e ainda tinha que viver a destruição do pós- guerra. Esta nova geração também era muito populosa, sendo economicamente importante também.
Em paralelo, aconteceram os dois choques do petróleo e pela primeira vez surgiu a incerteza e a preocupação de poupar para o futuro. Anteriormente, o Estado provia tudo a
todos, então não havia necessidade de poupar. Este mesmo período foi marcado pelo surgimento do desemprego e da inflação. Foi um fenômeno econômico e psicológico que se instaurou na década de 80.
Os anos 80 foram o marco de novas mudanças na França com o consumo de massa, a mídia e a tv livre através das privatizações e a chegada ao poder dessa nova geração.
A população francesa começou também um processo de envelhecimento com os ativos se concentrando nas mãos dos mais velhos. A população francesa tem o hábito de poupar, contudo, a forte tributação limitava os ganhos. Então, pode-se constatar que investimentos seguros e com vantagens fiscais são uma verdadeira oportunidade (Horizons bancaires, 2004).
Na década de 80, a França observa também a chegada de uma aliança de centro-esquerda liderada pelo partido socialista no poder. O novo governo decide tributar mais fortemente as grandes fortunas, assim como a população de renda mais elevada.
Por outro lado, na mesma década, o governo vê sua dívida aumentar, e para financiá-la transforma alguns produtos, entre eles o assurance-vie, em um produto ainda mais atrativo com mais incentivos tributários, a fim de contribuir com o financiamento do governo. As seguradoras compram os títulos do governo para fazer face as suas obrigações de remuneração garantida aos segurados e financiando assim as despesas do Estado.
O assurance-vie passa a ser uma ferramenta ainda mais importante de poupança e se torna principalmente a ferramenta mais interessante para a classe média e a classe alta por ser um investimento seguro e interessante do ponto de vista tributário. Ele ainda tem a vantagem na transmissão de heranças, de ser um produto que permite benefícios fiscais e liberdade de escolha dos beneficiários, o que é outro ganho para a população mais idosa. Logo, o assurance-vie passa a ser cada vez mais um instrumento de investimento para longo prazo (Borderie, A., Xxxxxxx, M., 2004).
Os bancos ensaiavam em paralelo seus primeiros passos com produtos de capitalização. Em seguida, passaram a oferecer o assurance-vie, pois parecia ser natural ter este produto no portfólio como mais uma solução de investimentos para o cliente. Os bancos eram naturalmente uma referência para produtos de investimento, principalmente para o cliente comum da agência. Logo, oferecer assurance-vie era uma extensão dos seus serviços.
Os bancos precisavam lidar com um mercado maduro no final dos anos 70, e a diversificação era a chave para buscar novas fontes de receita além da necessidade de atrair o cliente.
Ademais, o cliente tinha mais contato com seu banco (caixa do banco, serviços de conta corrente, cartão de crédito, investimentos) do que com sua seguradora (renovação de apólices e resolução de sinistros) o que permitia aos bancos terem mais possibilidade de contato com o mesmo cliente. Outro ponto importante é a natureza da relação com o banco e com a seguradora. O banco possui mais informações sobre o cliente do que o segurador. O cliente também se sente mais à vontade para fornecer dados extras ao seu banco, no caso de abrir um crédito. O banco também participa dos principais eventos da vida do cliente, como, por exemplo, na compra de uma casa ou de um carro, quando ele necessita de crédito. Essa é uma oportunidade para o banco oferecer produtos complementares como, por exemplo, seguros do tipo prestamista, residencial e de automóvel (Horizons bancaires, 2004).
Em paralelo, na mesma época, as seguradoras passaram a oferecer um novo produto chamado de universal life, que oferecia cobertura de seguro de vida, e também era uma ferramenta de poupança. Esse produto arranhou a imagem das seguradoras tradicionais, pois o produto foi mal vendido (clientes não entendiam que pagavam um prêmio para o seguro de vida e mais uma contribuição para a poupança que se formava) e os produtos pagavam comissões muito altas para os intermediários que o ofereciam, o que tornou o produto pouco atrativo ao longo do tempo.
Na década de 80, quando os bancos começaram a obter sucesso, principalmente com os produtos da família assurance-vie, eles não esperavam tal resultado. Foi prosperando que eles decidiram investir e perceberam a verdadeira oportunidade que lhes era oferecida.
As seguradoras foram inovadoras lançando, por exemplo, os contratos assurance-vie, MSP (multi support) que possibilitavam ao cliente investir um percentual das contribuições em vários tipos de fundo dentro do contrato assurance-vie como fundo de ações e de renda fixa. A outra parte da contribuição iria para o fond en euro que teria uma garantia de retorno parcialmente estabelecida. Contudo, os bancos souberam difundir mais rapidamente as novidades e aproveitaram nesse caso as suas áreas de Asset Management internas.
Recentemente, outro ponto que contribuiu como fator diferenciador para os bancos, foi a adoção de ferramentas de sistemas de informação do cliente mais desenvolvidas como, por exemplo, o CRM.
Em contra partida, as seguradoras detinham uma rede de pontos de vendas treinada e especializada em seguros. A atividade seguradora também é considerada como a atividade principal das seguradoras tradicionais enquanto que para os bancos é uma extensão dos seus negócios. As seguradoras também possuíam todos os prêmios acumulados, facilitando a diluição dos seus gastos através da constituição de ganhos de escala.
2.5 Os novos atores: bancassurance
2.5.1 O conceito bancassurance
Segundo Borderie e Xxxxxxx (2004), bancassurance pode ter várias definições. Uma primeira interpretação restrita afirmando que bancassurance seria a distribuição de seguros na rede bancária. Outras definições são propostas mencionando que bancassurance seria a distribuição de produtos de seguros na rede de agências bancárias e também em outros tipos de estabelecimento através de suas filiais, como companhias de seguros. A definição poderia ser ainda mais estendida dizendo que bancassurance seria a criação de conglomerados financeiros associando organismos bancários e de seguros para a venda de produtos bancários e de seguros nas respectivas redes de distribuição.
2.5.2 Bancassurance na Europa e no mundo
Nos Estados Unidos, o conceito de bancassurance é relativamente recente e data de 1999 quando da promulgação do Financial Services Modernization Act revogando as interdições existentes no Glass Steagall Act de 1933 (EFMAG, 2004). Por isso, ainda são pouco desenvolvidas as parcerias entre bancos e seguradoras com exceção dos seguros prestamistas e de alguns produtos de vida e de previdência como fixed and variable annuities (produtos de renda vitalícia).
Na América Latina, os bancos desenvolveram estratégias no México, no Brasil, na Argentina e no Chile, aproveitando as novas regulamentações que permitiam a venda de seguros nas redes bancárias.
Na Ásia, a legislação também vem flexibilizando a venda de seguros na rede de agências. Na Tailândia, as companhias de seguros podem pagar comissões a bancos. Algumas entidades firmaram empresas em comum ou troca de ações. No Japão, a bancassurance não
é mais proibida desde o meio dos anos 90. Os bancos distribuem seguros prestamistas e desde 2002, contratos de renda vitalícia. Na Coréia do Sul, a bancassurance está autorizada desde agosto de 2003. Na China, as autoridades estão permitindo às seguradoras estrangeiras negociar licenças de comercialização de produtos de seguro de pessoas e de ramos elementares com companhias nacionais e regionais, mas lá não existem bancassureurs.
Contudo, a Europa é a região onde a bancassurance mais se desenvolveu e onde aconteceram muitas experiências significativas nas últimas décadas. A maior parte das iniciativas veio dos bancos procurando oferecer seguros. Contudo houve outras iniciativas como seguradoras adquirindo o controle de bancos e parcerias em que os dois tipos de instituição tinham o mesmo peso.
De qualquer forma, o modelo bancassurance obteve sucesso principalmente na Europa do Sul e nas famílias de produtos de seguro de pessoas, conforme pode ser observado nas duas tabelas abaixo.
Tabela 2.3 – Participação de mercado por canal de distribuição - seguros de pessoas (2000)
Pais | Bancassurance | Outros |
França | 62% | 38% |
Portugal | 81% | 19% |
Espanha | 72% | 18% |
Itália | 64% | 36% |
Alemanha | 17% | 83% |
Finlândia | 45% | 55% |
Bélgica | 56% | 44% |
Reino-Unido | 12% | 88% |
Fonte : Scor (2004)
Tabela 2.4 – Participação de mercado bancassurance em vários países da Europa (2000)
Pais | Seguro de pessoas | Seguro ramos elementares |
Espanha | 72% | 3% |
França | 62% | 8% |
Itália | 64% | 1% |
Alemanha | 17% | 2% |
Reino-Unido | 12% | 8% |
Holanda | 0% | 8% |
Fonte : Scor (2004)
2.5.3 A importância dos bancassureurs na França
Os primeiros bancos criaram suas seguradoras na década de 70. Contudo, foi na década de
80 que a maioria criou sua seguradora e realmente vislumbrou uma oportunidade, sobretudo nos seguros de pessoas. Na França, como em vários outros países, deve-se criar duas entidades separadas, uma seguradora para seguros de pessoas e outra, para ramos elementares. Nos seguros de ramos elementares os bancos geralmente investiram posteriormente, de modo particular na década de 90.
Para criar suas próprias seguradoras, os bancos usaram diferentes estratégias. Na criação de sua seguradora interna para seguros de pessoas, os bancos privilegiaram a criação de uma entidade interna 100% controlada pelo banco. Na criação da seguradora de ramos elementares, a situação foi diferente, e várias vezes os bancos criaram junto com uma seguradora tradicional no mercado uma companhia de seguros interna sob forma de joint- venture, em que os dois detinham participações. A tabela abaixo resume as diversas operações realizadas.
Tabela 2.5 – Composição societária dos bancos em suas companhias de seguros
Grupo Financeiro | Participação na companhia de seguro de pessoas | Participação na companhia de seguro de R.E. |
Société Générale | 100% | 65% |
BNP Paribas | 100% | 50% |
Crédit Lyonnais | 100% | 5% |
Crédit Agricole | 100% | 100% |
Crédit Mutuel | 100% | 95% |
CIC | 100% | 100% |
Banques Populaires | 100% | 49% |
Caisses d’Epargne | 50% | 55% |
HSBC CCF | 49,9% | 49,9% |
Fonte: Standard & Poor’s (março 2004)
Os bancos também foram responsáveis pelo forte crescimento do volume de prêmios em seguro de pessoas, principalmente nos produtos de assurance-vie e do desenvolvimento do produto, conforme o ilustram as duas tabelas abaixo.
Figura 2.1 – Evolução do volume de prêmios em assurance-vie em bilhões de euros
Fonte: Borderie e Xxxxxxx (2004)
Figura 2.2 : Evolução em assurance-vie da participação de mercado dos bancassureurs em percentual e evolução dos prêmios de bancassureurs comparado ao conjunto do mercado segurador em bilhões de euros.
Fonte: Borderie e Xxxxxxx (2004)
Nos outros seguros de pessoas, principalmente os de vida, prestamista e saúde, os bancos detinham 18,5% do mercado no ano 2000, o que equivale a 2,25 bilhões de dólares em prêmios. Nos produtos de ramos elementares, a participação de mercado dos bancos chega a 8%, o que equivale em 2003 a 50,3 bilhões de dólares em prêmios.
Para explicar o avanço dos bancos, diversos fatores podem ser evocados. Contudo, dois pontos são de suma importância e alguns elementos estratégicos que os bancos transformaram em eixos de desenvolvimento. O primeiro foi a grande rede de agências bancárias. Somando-se a rede de agência dos bancos, dos correios (podem vender seguros através de sua instituição financeira), das caixas econômicas e do tesouro público, chega-se a 46.200 pontos de vendas contra um total de 37.000 pontos de vendas dos canais de distribuição tradicionais das seguradoras (agentes e corretoras independentes).
Os bancos também obtiveram êxito em transformar suas equipes em vendedores de seguros, e assim puderam ser mais ativos quando do lançamento de novos produtos, principalmente seguros simplificados. Isto foi demonstrado recentemente nos lançamentos dos produtos GAV (Garanties des Accidents de la Vie, um tipo de seguro para acidentes pessoais) e PERP (um novo produto de previdência com renda vitalícia), no qual os bancos foram responsáveis pela maior parte da venda de contratos com mais de 75% de participação de mercado nesses produtos.
Segundo Borderie e Laffite (2004), os principais eixos estratégicos para os bancos foram a proximidade entre a atividade bancária e a atividade de seguros, a complementaridade dos produtos, o custo reduzido para os bancos na introdução de novos produtos, o peso e a especificidade dos pontos de vendas.
A proximidade entre a atividade bancária e os produtos ligados à previdência e à assurance-vie foram fundamentais para que os bancos conseguissem obter tais avanços nessas famílias de produtos. Os bancos conseguiram arbitrar entre todos tipos de possibilidade de investimento e poupança.
Os produtos de seguros são complementares à atividade bancária de forma geral. Não somente porque vários tipos de seguros podem ser vendidos junto com um produto bancário, mas também devido ao ciclo de exploração que é invertido. Se de um lado, os produtos de seguros permitem uma remuneração desde o início de vigência do contrato, os produtos de crédito remuneram ao longo do tempo quando o banco recebe a devolução do montante emprestado. Logo, um produto complementa o outro no tempo da geração de receitas.
Outro ponto importante é a redução dos gastos de intermediação uma vez que os seguros, principalmente para os produtos mais simples, utilizam a estrutura logística e tecnológica já disponíveis, tendo assim um custo reduzido.
Ademais, como mencionado anteriormente, os bancos detêm uma quantidade maior e mais bem distribuída de pontos de vendas. Toda cidade pequena tem, por exemplo, uma agência bancária ou um ponto dos correios. A natureza dos pontos de vendas é diferente. Os bancos são proprietários de suas redes de agência e assim podem estabelecer um determinado padrão, garantindo uma homogeneização dos seus pontos de venda. Contudo, as seguradoras tradicionais precisam gerenciar diversos tipos de pontos de vendas. Elas têm agentes (as seguradoras não são proprietárias dos pontos de vendas mesmo que esses comercializem apenas produtos da própria seguradora), corretores independentes (que comercializam produtos de diversas seguradoras) de diversos tamanhos (pequenos corretores, corretores de grande porte internacional) e profissionais assalariados (funcionários das seguradoras que vendem diretamente ao cliente). Assim sendo, as seguradoras tradicionais precisam operar com elevados custos de intermediação (comissões) para garantir que seus pontos de vendas forneçam seus produtos.
O fato de os bancos privilegiarem o ramo de seguro de pessoas se explica pela proximidade de determinados produtos com a lógica bancaria. Logo, as seguradoras dos bancos preferiam oferecer assurance-vie (próximo dos produtos de investimento) e o seguro prestamista (junto à venda do crédito). Gradativamente, os bancos se aventuraram em outros ramos como os outros tipos de seguros de pessoas, os seguros de automóvel e residencial e em seguida outros segmentos como os seguros (principalmente previdência) para pequenas e médias empresas. Assim, os bancos procuraram se especializar paulatinamente (Horizons bancaires, 2004).
Os bancos puderam aproveitar seu conhecimento do patrimônio do cliente, a proximidade com o mesmo e suas relações regulares e o aspecto consultor do gerente de relacionamento da agência bancária. Isso tudo, atrelado a uma oferta global de produtos (agência bancária como solução total das necessidades financeiras do cliente), um marketing agressivo, produtos simples, um mínimo de serviço e uma política de preços remuneradora para o banco (ao contrário do dumping praticado em particular pelas seguradoras tradicionais do tipo mutuelles, organismos de cooperados).
Os bancos também aproveitaram sua base de clientes já existente e a transformaram em uma lista de prospecção de clientes para seguros.
2.6 As novas problemáticas e a reação das seguradoras tradicionais
Uma das preocupações que têm vindo à tona é a questão da aposentadoria para os franceses. O Estado não poderá mais garantir sozinho a aposentadoria e um complemento far-se-á necessário. Com isso, o governo vem colocando cada vez mais dispositivos suplementares geridos pela iniciativa privada através de contratos individuais ou coletivos para fazer face a tais preocupações e necessidades. Esse é um terreno em que os bancos e as seguradoras estão procurando se posicionar mesmo se os montantes em jogo ainda não são representativos (EFMAG, 2004).
Outra problemática vem sendo todas as medidas prudentes, tais como os acordos da Xxxxxxxx XX (e Solvency II), assim como as novas normas contábeis IAS. Isso pode exigir mudanças consideráveis no capital próprio de várias instituições como necessidade de novos aportes de capitais. Por outro lado, isso pode ser uma vantagem para os bancos por possuírem diversos tipos de risco (crédito, seguro, etc). Contudo, novas estruturas administrativas necessárias para acompanhar todas essas alterações também podem resultar em um aumento de custos.
Outro fenômeno foi a resposta das principais seguradoras à invasão dos bancos. Elas criaram seus próprios bancos como forma de conter o avanço dos mesmos. AGF, AXA e Groupama seguiram essa linha. Os resultados estão aquém do esperado neste primeiro momento devido à falta de preparo dos agentes das seguradoras, assim como a natureza da relação com uma seguradora que dificulta a proximidade com o cliente e assim a criação de uma relação bancária. Contudo, essas assurbanques estão sendo importantes para dar mais
transparência à relação bancária (pacote de serviços e tarifas mais claros para os clientes) (Borderie, A., Xxxxxxx, M., 2004).
Por outro lado, as seguradoras estão procurando aprender sobre a atividade bancária. Estes novos entrantes serão benéficos para os clientes, oferecendo produtos mais competitivos versus os produtos do cartel dos bancos tradicionais. A médio e longo prazo, com a aquisição de conhecimento, as seguradoras tradicionais poderão começar a mudar o mapa bancário francês.
Porém, em curto prazo, as seguradoras estão investindo também fortemente em criar um diferencial perante os concorrentes em qualidade e tecnologia, por exemplo. A evolução tecnológica está sendo um verdadeiro canteiro de obras e muitas seguradoras poderão obter ganhos significativos operacionais em médio prazo e transformar a tecnologia em vantagem competitiva perante os bancos.
Por outro lado, o principal negócio para as seguradoras independentes é a atividade seguradora. Logo, todos os esforços destes atores estão concentrados em oferecer as melhores soluções para seus clientes o que não ocorre com os bancos que possuem diferentes tipos de produtos e seguros concorrem internamente com outras ofertas bancárias (EFMAG, 2004).
Uma questão que se coloca é onde estão os limites do modelo bancassurance na França. Até onde os bancos conseguirão evoluir. No produto assurance-vie, apesar das melhores performances dos contratos vendidos pelas seguradoras tradicionais, os bancos conseguiram não somente conquistar uma parcela importante do mercado, mas também se tornarem líderes.
Novos fatores ambientais estão surgindo. Estes terão impacto certamente. Contudo, a dificuldade está em saber como se dará esta evoluição. O primeiro ponto é a grande transformação demográfica porque passa a sociedade francesa com o envelhecimento da geração “baby boom”. Com isto o sistema de previdência está sendo revisto. O governo
iniciou uma reforma da previdência limitando os benefícios para futuros aposentados e estimulando produtos de previdência complementar através da iniciativa privada com o lançamento de novos mecanismos. Sabe-se que isto é só um começo pois o governo terá que intervir novamente sobre esta questão nos próximos anos. A internet também vem promovendo uma mudança no hábito de compra e prestação do serviço junto ao cliente. Mas, como será o impacto na distribuição de produtos de seguros e que tipos de atores serão beneficiados ? Será que novos canais de distribuição surgirão ? A pergunta continua em aberto.
Diversas mutuelles e caixas de previdência estão passando por um processo de fusão e este processo deve continuar criando atores ainda mais significativos. Estes organismos estão se modernizando e oferecendo uma gama cada vez mais ampla de seguros. Até onde eles evoluirão ? Na parte de produtos ligados a previdência e saúde eles já possuem vantagem competitiva por serem muitas vezes os fornecedores oficiais para alguns produtos.
Quanto ao futuro, Xxxxxxxx e Xxxxxxx (2004) destacam alguns pontos que podem beneficiar os bancos e outros que podem limitá-los na venda de seguros.
Os pontos que limitam a progressão da importância dos bancos como canal de vendas estão na saturação das agências bancárias em termos de quantidade de produtos vendidos, na dificuldade em evoluir mais ainda a relação com o cliente, no fato de seguros fazerem parte de uma estratégia de diversificação dos bancos e não sua atividade principal e no desejo do cliente de cada vez mais obter uma solução única para alguns seguros. Se de um lado, os bancos obtiveram vantagem ao oferecer o seguro automóvel junto ao crédito, as concessionárias estão vendendo carros e ao mesmo tempo já oferecendo o crédito e o seguro de automóvel, por exemplo.
Por outro lado, o índice de penetração dos bancos ainda pode progredir em seguros. Os bancos acreditam que podem dobrar em média até 2010 os seus percentuais nos clientes pessoas físicas (incluindo os profissionais liberais) assim como nas pequenas empresas. A reforma da previdência e a reforma da saúde (essa ainda em evolução) também representam
nichos de mercado para a previdência e saúde complementar. Os bancos estão também adotando uma abordagem mais especializada, colocando especialistas na venda de determinados produtos, por exemplo.