A MORTE E SEUS EFEITOS SOBRE O MANDATO EM PORTUGAL E NO BRASIL
A MORTE E SEUS EFEITOS SOBRE O MANDATO EM PORTUGAL E NO BRASIL
* Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Assumpção
Sumário Introdução
1 O contrato de mandato e o interesse do representante ou de terceiro
2 A jurisprudência de Portugal sobre a não extinção do mandato pela morte se houver interesse do mandatário ou de terceiro
3 O mandato pode ter efeito após o falecimento do outorgante também no Brasil 4 Interpretar a lei para viabilizar o seu objetivo
Conclusão Referências
Palavras-chave: Mandato; falecimento; outorgante; extinção; interesse do representante ou de terceiros; negócios anteriores.
Introdução
No presente trabalho será analisado o conceito de mandato em Portugal, bem como seus elementos essenciais. Será verificado como, na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objeto da gestão pertence ao mandante, que é o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a atividade do mandatário1. Será esclarecido que, por outro lado, não é essencial ao conceito de representação que os poderes representativos sejam conferidos no interesse do representado, podendo sê-lo no interesse do representante ou de terceiro, hipótese em que o mandato não se extingue por mero ato de vontade do mandante ou mesmo pela sua morte. Assim, será demonstrado que há hipóteses nas quais o mandato prevalece, podendo a procuração vinculada a esse mandato ser utilizada para a concretização do negócio mesmo após a morte do mandante, o que é essencial nos casos de mandatos cujo objeto é a transferência de um imóvel. É o que demonstra a jurisprudência de Portugal, que será analisada.
Será examinado como, também no Brasil, a lei admite que a procuração seja utilizada após o falecimento do mandante nos casos em que sirva para concretizar um negócio realizado em vida. E o fundamento para tanto, como se provará, é o mesmo que embasa a lei de Portugal: a extinção do mandato pela morte somente se aplica quando ele for conferido exclusivamente no interesse do mandante. Será examinada a jurisprudência do Brasil, para demonstrar que não há decisões uniformes nos diversos estados da federação.
Por fim, será demonstrado como, nos casos em que mandato tem como objeto interesse do mandatário ou de terceiro, a tese de que não ocorre a sua extinção pela morte é a que melhor está de acordo com a interpretação jurídica, segundo a qual conclusões absurdas não serão aceitas. Deve haver razoabilidade na argumentação jurídica, sendo vedados o absurdo e a irracionalidade 2 . Não é possível recusar uma vontade livremente manifestada pela pessoa, capaz e em pleno gozo de suas faculdades mentais, no
1 XXXXXXX, Xxxxxxxx xxxxx. – Xxxxxxx do Tribunal da Relação de Coimbra com o número 1006/10.7TBCVL.C1, de 25/10/2011. [Em linha]. [Consult. 29 ago. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx.
2 XXXXX, Xxxxxx. A theory of legal argumentation: the theory of rational discourse as theory of legal justification. New York: Oxford University, 1989, p. 283.
interesse do outorgado ou de terceiro, apenas em razão da posterior ocorrência morte, trazendo ônus indevidos para aquele que seria beneficiado pela procuração unicamente para ver, ao final, concretizada aquela vontade, que já havia sido demonstrada de foram inequívoca.
1 O contrato de mandato e o interesse do representante ou de terceiro
O mandato civil é uma das mais antigas formas de cooperação, constituindo o contrato pelo qual uma das partes se obriga, gratuitamente ou mediante retribuição, a praticar atos jurídicos por conta da outra, que não quer ou não pode praticá-los pessoalmente. É, portanto, elemento essencial do mandato que o mandatário esteja obrigado a praticar um ou mais atos jurídicos, sendo, da mesma forma, elemento essencial do mandato que o mandatário atue por conta do mandante.
Praticar um negócio jurídico por conta de outrem significa que os efeitos do negócio ou parte deles devem se projetar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio, ou seja, tem o sentido de que os atos a praticar pelo mandatário se destinam à esfera do mandante. Na configuração mais típica do mandato, o assunto ou negócio que é objeto da gestão pertence ao mandante, sendo este o titular da necessidade a cuja satisfação se dirige a atividade do mandatário3, mas nem sempre é assim: o mandato pode ter o objetivo de garantir a concretização de um direito do mandatário ou de terceiro.
Esclarece Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx0 que o mandato pode ser extinto por caducidade, estando as causas referidas no art. 1174.º do Código Civil de Portugal, quais sejam: a) morte ou interdição do mandante ou do mandatário; b) inabilitação do mandante, se o mandato tiver por objeto atos que não possam ser praticados sem intervenção do curador. Informa ainda o doutrinador que se compreende a caducidade nos referidos casos, posto que o mandato é um contrato intuitu personae, não sendo
3 XXXXXXX, Xxxxxxxx xxxxx. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra com o número 1006/10.7TBCVL.C1, de 25/10/2011. [Em linha]. [Consult. 29 ago. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx.
4 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx - Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial. 12a. Ed. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. ISBN 978-972-40-7559-4, p. 466-467.
transmissível por morte de qualquer das partes. Mas importante ressalva é feita por Xxxxxxx Xxxxxx, ao elucidar sobre o regime especial a que está sujeita a caducidade do mandato conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Nessa hipótese, o art. 1175.º do Código Civil determina que: "A morte, interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro [...]".
De fato, conforme art. 1170.º, n.º 2, que encontra correspondência no art. 265.º, n.º 3, ambos do Código Civil de Portugal, o mandato no interesse do mandatário ou de terceiro não pode ser revogado pelo mandante, sem o consentimento do interessado, salvo ocorrendo juta causa. Para a doutrina francesa e para Xxxxxx Xxxxxxxx, "esta figura não constitui um verdadeiro mandato, mas antes um contrato misto, em que ao mandato se associa outra convenção."5 Como ensina Xxxxxxx Xxxxxx, o Código Civil de Portugal recepcionou a doutrina de Xxxxx Xxxxxxxxx que já defendia, considerando o art. 1364 do Código anterior, que a revogabilidade ad nutum por parte do mandatário somente poderia ser aplicada nos casos em que o mandato fosse conferido exclusivamente no interesse do mandante6.
Também Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx afirma que não existe um princípio da livre revogabilidade da procuração, pois a referida revogabilidade resulta da relação fundamental, sendo, pois, dependente “da teia de interesses para cuja satisfação a procuração seja outorgada e os respectivos poderes devam ser exercidos” 7 . Para o mencionado doutrinador, é um função disso que o n.º 3 do artigo 265.º do Código Civil de Portugal estatui que não pode ser revogada sem justa causa ou sem o acordo do interessado a procuração conferida no interesse do procurador ou de terceiro.
5 DUTILLEUL/DELEBECQUE, XXXXXXXX, XXXXXX XXXXXXXX, apud LEITÃO, Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx - Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial. 12.ª ed. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. ISBN 978-972-40-7559-4, p. 466-467 e p. 468.
6 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx - Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial.
12.ª ed. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. ISBN 978-972-40-7559-4, p. 466-467, p. 468.
7 VASCONCELOS, Xxxxx Xxxxxx Xxxx de - Teoria Geral do Direito. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. 3.ª ed., p. 716. ISBN 972-40- 2482-2.
Portanto, em Portugal, quando a procuração resulta do interesse primário do procurador ou de terceiro, interesse que pode ser exclusivo ou concorrente com o do mandante, a procuração apenas poderá ser revogada com o consentimento de todos os titulares dos interesses fundamentais e quando ocorra justa causa de revogação. Nesse sentido, Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx ensina que o interesse do terceiro deve ser procurado no conjunto formado pela procuração e pela relação subjacente8. E vai além o tratadista, informando que a fundamentação da irrevogabilidade da procuração “reside no princípio segundo o qual os poderes atribuídos no interesse de uma pessoa só podem ser revogados por essa mesma pessoa”9.
Para Pires de Xxxx e Xxxxxxx Xxxxxx, ao conceito de representação não é essencial que os poderes representativos sejam conferidos no interesse do representado, pois poderão sê-lo também no interesse do representante ou de terceiro10. O mandato conferido no interesse do representante ou de terceiro não se extingue por mero ato de vontade do mandante ou mesmo pela sua morte, pois o mandato, nesse caso, está relacionado a uma outra convenção, servindo para garantir o direito desse representante ou desse terceiro.
Xxxxxxxx Xxxxx ensina, sobre a revogação do mandato, que o critério para aferir o interesse relevante do mandatário ou de terceiro precisa assentar no direito próprio que estes pretendem fazer valer e que está em conexão com o próprio encargo. Além disso, é necessário que o mandato seja a condição, a consequência, ou o modo de execução do direito que pertence ao mandatário ou a terceiro, ou ainda que represente para o mandatário uma garantia do próprio direito. Portanto, é necessário identificar uma outra relação normalmente de tipo contratual entre as partes, “que conforma ou determina o contrato de mandato”.11
8 VASCONCELOS, Xxxxx Xxxxxx Xxxx de - A Procuração Irrevogável. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, p. 111. ISBN 9724016846.
9 Idem, p. 117.
10 XXXXX XX XXXX, Xxxx xx Xxxxx e XXXXXXX XXXXXX, João - Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., ISBN 9789723200379, p. 240.
11 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx – Em tema de revogação do mandato civil. Coimbra: Almedina, 1989. ISBN 972-40-0567-4, p. 148-150
Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx00 afirma que um dos casos mais característicos de representação no interesse do representante ou de terceiro é o de datio pro solvendo ou da autorização ao credor para se pagar pelo resultado obtido com alienação de bem imóvel realizada por meio da utilização de uma procuração concedida com o fim de o credor proceder à venda dos bens do devedor.
Ainda Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx00 afirma que a representação no interesse do representante, ou de terceiro, “envolve também um interesse do representado e não provoca qualquer alteração de natureza dos poderes de representação nem sequer uma desfuncionalização dos mesmos”. Para o doutrinador é certo que o representado, à luz do direito de Portugal, pode conservar sempre a disponibilidade para, pessoalmente, dispor dos objetos ou praticar ele próprio os atos aos quais se refere a procuração irrevogável, sendo que a única diferença entre uma procuração no interesse exclusivo do representado e outra, também, no interesse do procurador ou de terceiro reside na circunstância de ser a primeira livremente revogável enquanto a segunda é irrevogável no caso de ter se mantido a relação jurídica subjacente. Conclui o doutrinador que se trata de uma consequência da causalidade e dependência da habilitação representativa relativamente à relação-base.
Verifica-se, pois, que, apesar de a lei de Portugal não esclarece o que seja o interesse do procurador ou de terceiro que seja relevante para afastar o princípio geral da caducidade do mandato por morte do mandante, a doutrina já vem esclarecendo que tem que haver uma relação basilar da qual resulte a existência de um interesse conferido no interesse do mandatário ou de terceiro, que incorpore um direito subjetivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado. A jurisprudência de Portugal também já vem analisando profundamente a questão e, pela sua importância, será ela examinada no próximo tópico.
12 XXXXXXXXXXX, Xxxxx de - A Representação Voluntária em Direito Civil. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. ISBN 9789724022383, p. 985.
13 Idem, p. 989.
2 A jurisprudência de Portugal sobre a não extinção do mandato pela morte se houver interesse do mandatário ou de terceiro
O primeiro caso a ser analisado a fim de demonstrar a jurisprudência de Portugal relacionada à não extinção do mandato pela morte é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o número 67/1999.E1.S1, de 13/07/201014. O mencionado caso envolveu uma procuração na qual o mandante concedia poderes para que fossem doados bens para sua nora e seus netos15. A procuração somente foi utilizada após a morte do mandante, quando foi lavrada a escritura de doação. A doação foi questionada porque alguns dos bens que foram objeto da doação tinham sido anteriormente legados em testamento a empregados do falecido. Os referidos empregados intentaram ação declarativa de condenação com processo ordinário contra a xxxx e o neto do falecido, pedindo a declaração de nulidade do mandato e da correspondente procuração, bem como da doação dos prédios que tinham sido legados em testamento. Xxxxxxx, ainda, que fossem declarados válidos os testamentos outorgados, em que eram deixados os aludidos prédios aos Autores.
A sentença julgou improcedente a ação, sendo mantida pelo tribunal, sob os seguintes fundamentos: os autores não lograram provar que tivesse ocorrido vício ou erro da vontade do declarante na emissão da procuração, pelo que essa procuração deve ser considerada válida e, sendo irrevogável, porque conferida no interesse de mandante e também do mandatário, é igualmente válida a doação outorgada com base nela.
Houve recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido apresentadas diversas alegações pelos recorrentes, entre elas que: a) a escritura de doação outorgada foi levada a efeito já depois da morte do outorgante; b) para a escritura foi utilizada a procuração que conferia, entre outros, poderes para vender ou doar, poderes gerais de administração de todos os bens imóveis, nela se indicando que era irrevogável; c) na indicada escritura vem referido que o doador é já falecido; d) a exceção à regra de livre revogabilidade só poderia ser aplicada se não contrariasse outras disposições legais de caráter imperativo;
14 FONSECA RAMOS, António José Pinto da relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o número 67/1999.E1.S1, de 13/07/2010. [Em linha]. [Consult. 29 ago. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx.
15 Idem.
e) a aceitação da doação teria de ocorrer em vida do doador, face ao disposto no art. 945.°/l do Código Civil; f) a aceitação somente se daria com a celebração do contrato de doação, o que no caso ocorreu após o óbito; g) não tendo sido aceite a doação em vida do doador, a procuração como ato unilateral caducou com o óbito do mandante; h) dispondo o art. 969.°/l do Código Civil que enquanto não for aceite a doação, o doador pode livremente revogar a sua declaração negocial, é intrínseco à natureza da proposta de doação a sua livre revogabilidade, sendo, assim, nula e de nenhum efeito, quanto aos poderes para doar, a cláusula de irrevogabilidade aposta na procuração; i) ainda que uma procuração possa ser irrevogável, tal não é incompatível com a caducidade da mesma; j) além de a procuração não se poder considerar irrevogável e, ainda que o fosse, teria caducado por óbito do mandante e pela não aceitação em vida do proponente doador; l) carecia a recorrida de poderes para representar o mandante em face da ineficácia da declaração de irrevogabilidade e da caducidade do mandato por procuração; m) os bens do falecido adquiridos pelo recorrido por meio daquela escritura tinham já passado para a esfera patrimonial dos legatários; n) encontrando-se os recorrentes na posse dos bens objeto do legado, e sendo do conhecimento dos recorridos o falecimento do mandante, devendo os herdeiros, que não têm a qualidade de terceiros, cumprir com os legados, não poderia ter sido feito uso da procuração; o) a doação teria sido feita, assim, de bens alheios; p) os vícios invocados afastariam a necessidade de questionar se a procuração foi ou não no interesse comum e se na sua base existia relação subjacente, mas, sempre se dirá que não se pode concluir pela sua irrevogabilidade, porque não há como saber se a procuração estava ligada a algum contrato e que tipo de contrato; q) deve a escritura ser declarada nula e de nenhum efeito, cancelando-se o respectivo registro.
O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que não houve caducidade do mandato em virtude da morte do mandante, pois a procuração tinha sido conferida no interesse do procurador ou de terceiro, de modo que somente poderia ser derrogada se houvesse a concordância do procurador ou de terceiro, a menos que existisse justa causa, conforme determinação do art. 265.º, n.º 3, do Código Civil de Portugal.
Ainda conforme a referida decisão, o donatário é terceiro com interesse, em razão da relação basilar do mandante de dispor dos seus bens em favor dele, devendo ser entendido que a doação é como se celebrada em vida pelo mandante, não havendo
caducidade em razão da morte do outorgante. Concluiu, pois, o Tribunal que a vontade do mandante foi que a procuração tivesse validade antes e também após a sua morte, razão pela qual seus efeitos começaram ainda enquanto o representado vivia e sobreviveram à sua morte. Pela importância da conclusão, é a mesma abaixo reproduzida:
“A procuração em causa não é uma procuração post mortem destinada a produzir efeitos após o decesso do dominus; do que se trata, no caso, é da eficácia dos actos após a morte do dominus, já que por vontade dele a procuração irrevogável foi querida para xxxxx e ter eficácia antes e após a sua morte – os efeitos começaram em vida do representado e sobrevivem à sua morte”16.
Foi declarado pelo Supremo Tribunal de Justiça, portanto, que, sendo a procuração irrevogável, e tendo sido estabelecida também no interesse do representante, não caduca com a morte do representado. A escritura de doação podia, assim, ter sido celebrada, com base na procuração e no contrato de mandato, mesmo após a morte do mandante.
O segundo caso a ser examinado é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o número 3083/11.4TBFARE.E1.S117, de 18/02/2014, no qual um irmão e único herdeiro de falecido questionou procuração por este outorgada e que somente foi utilizada após a sua morte, sob as alegações de que: 1. a procuração não era irrevogável, de modo que o mandato caducou com a morte do mandante; 2. não foi transmitida para os réus a propriedade do prédio; 3. a escritura pública outorgada em decorrência da procuração é nula por terem caducado, com a morte do mandante, os poderes conferidos na procuração.
Na contestação no referido caso, os réus alegaram que o autor já tinha sido por eles informado da existência da procuração. Disseram, ainda, que, durante mais de sete anos trataram de diversos assuntos do falecido e prestaram-lhe cuidados de saúde e alimentação, bem como o ajudaram em assuntos do dia-a-dia, inclusive bancários, razão
16 Idem.
17 FONSECA RAMOS, António José Pinto da relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o número 3083/11.4TBFARE.E1.S1, de 18/02/2014. [Em linha]. [Consult. 06 set. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx.
pela qual, pouco tempo antes do óbito, passou-lhes procuração que foi utilizada pelos réus para formalizar a vontade do falecido.
O caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, que definiu que existia uma relação basilar ou fundamental que justificava a celebração de contrato de mandato entre o falecido e a Ré, que, no exercício profissional da sua atividade de solicitadora, teria prestado serviços profissionais ao falecido, sendo que a atividade integrava um contrato de mandato, já que implicava a prática de atos jurídicos no interesse e por conta do mandante. Xxxxxxxx, ainda, que, além dessa relação profissional, estabeleceu-se entre o falecido e a Ré uma amizade, criando sentimentos de gratidão que ele quis recompensar, o que não invalida que se considere que, por isso, inexiste uma obrigação em sentido estrito, revestida de coercibilidade. Apesar de não ter sido provado que, expressamente, mandante e mandatário tivessem convencionado um preço que aquele pagaria a esta como remuneração pelo exercício do mandato e pela atividade gestória por ele autorizada à Ré, sendo o contrato presumidamente oneroso, presunção que não foi ilidida pelo Autor, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça ser certo que o falecido Xxxxxxx quis remunerar a Ré, pelos serviços prestados desde 1994. Assim, na procuração emitida pelo falecido, em 25.2002, quando constitui sua procuradora a Ré, conferiu-lhe poderes “somente referente ao prédio (misto)” identificado, para o vender, inclusive a si própria e pelo preço e condições que entendesse convenientes, podendo a mandatária ser a compradora. Não estando direta e expressamente determinado o preço pela prestação de serviço, essa determinação fez-se com remissão para a quantia que seria o preço da alienação de um concreto prédio que o mandante quis identificar com precisão. Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça ser manifesto que o falecido estava ciente de ser devedor dos honorários pelos serviços prestados profissionalmente pela Ré e quis remunerá-la, conferindo-lhe o direito de vender a si mesma o prédio em causa.
Entendeu ainda o Supremo Tribunal de Justiça que não só por gratidão, mas também como forma de pagamento dos serviços prestados o falecido “quis entregar o prédio” razão pela qual outorgou a procuração, o que demonstra que o mandante reconheceu a existência de um direito próprio e exigível da mandatária, que seria exercido por meio de um contrato de mandato e da procuração passada também no interesse dela.
O Xxxxxxx mencionou ainda como precedente o Acórdão do próprio Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2003, Processo n.º 00X000000, no qual restou assentado que:
“O critério de aferição do interesse relevante do mandatário ou de terceiro tem de assentar no direito próprio que estes pretendem fazer valer conexionado com o próprio encargo e ainda que o mandato seja condição ou a consequência, ou modo de execução, do direito que lhe pertence ou represente para o mandatário uma garantia do próprio direito. Assim, é necessário identificar uma outra relação normalmente de tipo contratual entre as partes, que conforma ou determina o contrato de mandato (Xxxxxxxx Xxxxx, in “Em Tema de Revogação do Mandato”, pág. 148-150).”
Desta forma, é imprescindível a existência de uma relação basilar, na origem da decisão do outorgante, “patenteando um interesse do mandatário e representante, ou de terceiro, que incorpora um direito subjectivo que transcende o mero interesse do mandante ou do representado” 19 . No caso aqui analisado, a Xx teria direito a exigir do falecido o pagamento dos serviços que ao longo dos anos lhe prestou.
3 O mandato pode ter efeito após o falecimento do outorgante também no Brasil
Em trabalho anterior, nós apresentamos questão tormentosa que costuma se apresentar nos tabelionatos de notas do Brasil: o pedido de lavratura de escritura em relação a negócios já realizados e quitados há muitos anos, sendo apresentada procuração para transferência do imóvel para o nome do promitente comprador, havendo, no entanto, notícia de que o mandante já faleceu20.
No Brasil, o Código Civil, em seu art. 682 estabelece dentre as causas para extinção do mandato, no inciso II, a morte ou interdição de uma das partes. Apesar do disposto no mencionado artigo, a doutrina explica que a regra da causa extintiva que decorre da morte do mandante é atenuada em virtude das disposições do art. 674 do Código Civil,
18 XXXXXX, Xxxxx relat. – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com o número 03B3634, de 11/12/2003. [Em linha]. [Consult. 07 set. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xx.
19 Idem.
20 ASSUMPÇÃO, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx - A PROCURAÇÃO PARA A LAVRATURA DE ESCRITURA DE ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS PODE TER EFICÁCIA MESMO APÓS O FALECIMENTO DO MANDANTE. [sl]. 23 mai. 2017. [Consult. 7 set. 208]. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/0000/00/00.
com fundamento no princípio do periculum in mora. Havendo risco de dano potencial, envolvendo o objeto do mandato, deverá o mandatário concluir negócio já iniciado, mesmo ciente da morte do mandante, de modo a prevenir eventuais prejuízos aos sucessores do mandante ou aos terceiros com quem o mandatário transacionar.
De fato, XXXXXXXX XXXXXX00 ensina que o mandatário deve concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora, pressupondo-se o mandato já em execução, quando se verifica a extinção dele por qualquer das causas apontadas. Para o doutrinador, se ocorre uma urgência tal que não possa o mandato ser abandonado, a não ser com graves prejuízos para os interesses do mandante, ou de seus sucessores, o Código Civil autoriza que prossiga o procurador a execução do mandato, sem aguardar novas ordens, nova procuração ou seu substituto. A condição exigida é que haja perigo na demora. É dever do mandatário, verificado o falecimento ou a interdição do outorgante, concluir o negócio já começado.
Não há dúvida de que existe perigo da demora pela simples necessidade de os promissários compradores terem que ingressar em juízo para obter a escritura definitiva, o que poderá acarretar danos aos sucessores do mandante e ao próprio mandatário, como o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, além de outros danos que possam ocorrer.
Além do disposto no art. 674 do Código Civil Brasileiro, também o art. 689 determina que “são válidos, a respeito dos contratantes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção do mandato, por qualquer outra causa”.
Os argumentos acima foram examinados no nosso trabalho anterior22, mas não são apenas esses os argumentos. Também no Brasil, assim, como em Portugal, o fundamento para a validade do mandato após a morte é idêntico: ter sido o mandato outorgado no interesse do mandatário ou de terceiro, tendo em vista um negócio
21 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxx Xxxxxx xx - CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO INTERPRETADO,
Vol. XVIII, 12.a edição, Rio de Janeiro: Editora Xxxxxxx Xxxxxx, 1986, p. 274/275.
22 ASSUMPÇÃO, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx - A PROCURAÇÃO PARA A LAVRATURA DE ESCRITURA DE ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS PODE TER EFICÁCIA MESMO APÓS O FALECIMENTO DO MANDANTE. [sl]. 23 mai. 2017. [Consult. 7 set. 208]. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/0000/00/00.
jurídico basilar que deu causa ao mandato. É o que está previsto no art. 684, do Código Civil Brasileiro, que estabelece: “Quando a cláusula de irrevogabilidade for condição de um negócio bilateral, ou tiver sido estipulada no exclusivo interesse do mandatário, a revogação do mandato será ineficaz”. Já o parágrafo único do art. 686, do Código Civil Brasileiro é ainda mais específico ao tratar de mandato vinculado a negócios encetados: “É irrevogável o mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado”.
O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo já definiu que o mandato, quando se tratar de contrato acessório de promessa de compra e venda imobiliária já quitada, com a específica finalidade de viabilizar a lavratura da escritura e o registro da transferência do bem, na dicção do art. 686, parágrafo único, do Código Civil, é irrevogável, mesmo tendo ocorrido a morte do outorgante. Dentre os Acórdãos do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, dois serão examinados abaixo, por sua clareza e por esclarecerem de forma precisa o tema sob exame.
O Acórdão a ser estudado é o proferido na Apelação nº 1004286-05.2017.8.26.010023, no qual foi dado provimento ao recurso, para julgar improcedente a dúvida suscitada pelo 4.º Oficial de Registro de Imóveis da Capital. Os apelantes sustentaram no recurso que, no caso concreto examinado, o mandato era contrato acessório de compromisso de compra e venda já quitado, razão pela qual a morte da outorgante não o extinguiria. Defenderam a validade da procuração e da escritura pública, que comportaria registro.
Decidiu o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo que, conforme o art. 682, inciso II, do Código Civil, a morte do mandante faz cessar o mandato. No entanto, o referido Conselho esclareceu que, no caso concreto examinado, o mandato se revestia de características peculiares por se tratar, em verdade, de contrato acessório de promessa de compra e venda imobiliária já quitada, sendo que a procuração tinha a específica finalidade de viabilizar a lavratura da escritura pública e o registro da transferência do bem. Reconheceu o Conselho que se aplica o art. 686, parágrafo único, do Código Civil, que rege o mandato com poderes de cumprimento ou confirmação de
23 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx relat. – Acórdão do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo na Apelação nº 1004286-05.2017.8.26.0100, voto nº 37.316, de 16/03/2018. [Em linha]. [Consult. 07 set. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.00xxxxx.xxx.xx/xxxx/?xx00000.
negócio anteriormente entabulado ao qual está vinculado, sendo a procuração irrevogável24.
Assim é que a morte do mandante, ainda que conhecida pelo mandatário, não faz cessar o mandato em questão, não se aplicando o disposto no art. 682, inciso II, do Código Civil. Para o Conselho da Magistratura de São Paulo, é irrelevante que o texto do art. 686, parágrafo único, do Código Civil mencione “revogação” e não, “extinção” do mandato, pois “a intelecção da norma é obstar o fim do mandato, impedindo a concretização do contrato do qual é acessório, mormente se já quitado”25.
O Acórdão acima está de acordo com os ensinamentos do Desembargador Xxxxxxx Xxxx Xxxxx de Xxxxx, segundo o qual há três hipóteses no Código Civil Brasileiro para a não extinção da procuração em virtude do falecimento do mandante: 1) o mandato em causa própria (art. 685); b) o mandato estabelecido no interesse do mandatário (art. 684); c) o mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado, já tendo o mandatário quitado todas as suas obrigações perante o mandante antes do falecimento deste (art. 686, parágrafo único).
“De modo excepcional, não se extinguirá pela morte do mandante o mandato em causa própria (art. 685) e aquele estabelecido no interesse comum, portanto também do mandatário. Outra hipótese é a de o mandante já ter quitado o mandatário de todas as suas obrigações antes do falecimento”.26 (sem grifos no original)
Sobre a hipótese prevista no parágrafo único do art. 686 referido, explica o Desembargador Xxxxxxx Xxxx Xxxxx xx Xxxxx:
“É, por exemplo, o mandato conferido para pagamento de débitos, enfim para a execução de contratos, inclusive preliminares. São, no dizer de Xxxx Xxxxx, mandatos acessórios de outro contrato, ou mesmo cláusula dele constante (Instituições de Direito Civil, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, vol. III, p. 265)”27
24 Idem.
25 Idem.
26 XXXXX, Xxxxxxx Xxxx Xxxxx de - Código Civil Comentado. São Paulo: Manole, 2016, 10ª ed., p. 681.
27 Idem, p. 686.
O teor do Xxxxxxx também está em conformidade com que orienta Xxxxx Xxxxxx Xxxxx sobre o tema: “Prevalecerão, apesar do óbito do mandante, a procuração em causa própria (RT 502:66; CC art. 685, 2ª parte) e o mandato outorgado para dar escritura de venda de imóvel cujo preço já tenha sido recebido (AJ 100:149, 96:59, 97:71; RF 134:442). (“Curso de Direito Civil Brasileiro”, 28ª ed., vol. XXX, Saraiva, 2012, p. 424).”
Assim, está sedimentada orientação do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo no sentido de que permanece vigente o mandato e viável a lavratura da escritura e o registro, mesmo com a morte do mandante. O Acórdão aqui estudado28 traz os seguintes precedentes para demonstrar a uniformidade no entendimento do referido Conselho:
“Registro de imóveis dúvida – escritura de compra e venda – alienantes representados por mandatário – falecimento de dois dos vendedores mandantes mandato não extinto – aplicação do art. 686 do código civil – possibilidade de registro – recurso provido.” (APELAÇÃO CÍVEL nº 3000355-45.2013.8.26.0408, rel. DES. XXXXXX XXXX, DJ 30/4/15).
“Registro de imóveis dúvida julgada procedente – recusa de ingresso de escritura de venda e compra com cessão de direitos
– vendedores, representados por procurador, falecidos na época da lavratura do ato – afirmação de invalidade do ato pela cessação dos poderes outorgados – exame que extrapola os limites da qualificação do título, restrita aos aspectos formais – recurso provido.” (APELAÇÃO CÍVEL n.º 3000311- 26.2013.8.26.0408, REL. DES. XXXXXX XXXX, 30/4/15).
“Registro de imóveis – escritura de compra e venda – provável falecimento de outorgante vendedora representada por procurador e conseqüente extinção do mandato, que não autoriza a recusa do título – qualificação registrária limitada ao juízo cognitivo formal – recurso provido.” (APELAÇÃO CÍVEL 562- 6/6, REL. DES. XXXXXXXX XXXXXX, x. 30/11/06).
A jurisprudência de outros estados da federação, como Rio de Janeiro e Paraná 29, também tem atenuado os efeitos do art. 682 do Código Civil no que se refere à extinção do mandato pela morte do mandante. No caso de mandato para fins de lavratura de escritura de compra e venda, o entendimento tem sido de que o mandato não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante.
No entanto, em Minas Gerais somente no caso de procuração em causa própria tem sido admitida a não extinção pela morte do mandato. As demais hipóteses existentes não têm sido aceitas pela jurisprudência, razão pela qual uma análise científica e fundamentada da lei e a busca por soluções já encontradas para o mesmo assunto em Portugal é essencial para garantir a concretização, por meio de escritura pública e do registro, dos direitos do adquirente sobre imóvel que já havia sido objeto de pagamento quando ainda vivia o vendedor.
Para ilustrar a posição do Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o tema, trazemos o Acórdão proferido na Apelação Cível n.º 1.0431.05.022803-7/001 30 , no qual foi decidido que a procuração em causa própria equivale à definitiva transmissão de direitos, sendo impossível admiti-la por mera dedução, devendo ficar cabalmente comprovada pelos elementos inscritos no instrumento de mandato. No Xxxxxxx, foi declarado que, se não configurada a procuração em causa própria, mas apenas a procuração "ad negotia", os poderes do mandatário se extinguem com o falecimento do mandante, de modo que os atos posteriores praticados em seu nome são nulos.
Para o Tribunal de Minas Gerais, a procuração em causa própria, ao contrário do que ocorre no mandato ordinário, é outorgada para atender o exclusivo interesse do mandatário, e os poderes e direitos ali referidos lhe são definitivamente cedidos. Obviamente, tratando-se de ato de alienação, inoperante é a revogação do mandato, e/ou a morte do mandante, porque a transferência dos direitos ali referidos já se operou, não
29 No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: Apelação Cível n.º 9.329 – RDI n. 6, Apelação Cível n.º
19.007 - XXX 00, Apelação Cível n.º 2882/91 - RJ RDI 33. No Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível n.º 1.052/85 TJPR - RDI n. 17/18 e Apelação Cível n.º 1.052/85 - RDI 17-18/123-124.
30 COSTA, Xxxxxxxx Xxxxxxx relat. – Acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais na Apelação nº 1.0431.05.022803-7/001, de 07/06/2011. [Em linha]. [Consult. 07 set. 2018]. Disponível em xxxx://xxx0.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx.
havendo mais interesse ou legitimidade para se desfazer o negócio 31 .
Portanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao contrário do que vem ocorrendo em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, não tem admitido que, além do mandato em causa própria (art. 685), existem duas outras hipóteses no Código Civil Brasileiro para a não extinção do mandato em virtude do falecimento do mandante. De fato, não se encontram nos julgados do Tribunal mineiro referência à hipótese do mandato estabelecido no interesse do mandatário (art. 684) ou ao mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado, já tendo o mandatário quitado todas as suas obrigações perante o mandante antes do falecimento deste (art. 686, parágrafo único).
É preciso que a doutrina venha esclarecer essas questões relativas à não extinção do mandato pela morte, pois a alternativa, no caso de procuração cujo objeto é a transferência de imóvel para o outorgado ou para terceiro, e ocorrendo o falecimento do outorgante, seria exigir que o comprador se utilizasse da usucapião para garantir o seu direito de propriedade, o que é um absurdo. De fato, mesmo após a criação no Brasil do procedimento extrajudicial para fins de usucapião, continua sendo um meio muito mais oneroso e lento do que a compra e venda, que resolveria facilmente o problema, sem prejudicar a segurança jurídica, se a lei fosse interpretada de modo uniforme no Brasil, como vem ocorrendo em Portugal.
4 Interpretar a lei para viabilizar o seu objetivo
Interpretar a lei é identificar de forma clara e exata a norma, aplicando-a ao caso concreto. A interpretação consiste em aplicar regras. O intérprete faz a adequação da norma à realidade que se pretende disciplinar. Na interpretação são úteis os brocardos jurídicos, que “constituem um pensamento sintetizado em uma única sentença, que expressa uma conclusão reconhecida como verdade consolidada”32, representando uma
31 Idem.
32 FREITAS, Xxxxxxxx Xxxxxx – Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos. [SL]. 24 mar. 2013. [Em linha]. [Consult. 12 set. 2018]. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx- 24/segunda-leitura-conhecidos-lembrados-brocardos-juridicos.
“condensação tradicional de princípios gerais”33. Um brocardo jurídico assim orienta: "Interpretatio in dubio, ea sempre servanda est, quae valitatem actus inducat", ou seja, quando houver dúvida, deve ser aceita a interpretação que dê validade ao ato e não aquela que o anule.34 Outro importante brocardo sobre a interpretação das leis é o que estatui: “commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat”, logo, prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade35.
A maioria dos teóricos do direito da tradição continental europeia entende que o fundamento "argumentandum ad absurdum" exclui a possibilidade de ser aceita uma interpretação claramente irracional de uma norma, porque o legislador deve ser considerado como razoável 36 . Assim, a proibição de absurdo na interpretação e a exigência da racionalidade pelo intérprete desempenham função semelhante na argumentação jurídica: ambas repelem interpretações inaceitáveis de uma lei.
Para Xxxxxxxx00, absurdo é aquilo que é contrário ao conceito básico de razoabilidade, sendo que essa ideia indispensável funciona como uma norma para a interpretação correta do direito. Para ele, não se pode saber o que é razoável sem determinar o que é absurdo, pois, onde quer que um esteja presente, o outro estará ausente.
Xxxxx demonstra que os oficiais do direito constroem uma pretensão de correção - que inclui a pretensão de razoabilidade e a proibição de absurdo e irracionalidade - quando enunciam os atos que estabelecem normas, sendo que essa demonstração é também útil
33 XXXXX, Xxxxxxx apud FREITAS, Xxxxxxxx Xxxxxx – Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos. [SL]. 24 mar. 2013. [Em linha]. [Consult. 12 set. 2018]. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxx.
34 XXXXX, Gisele - Apontamentos iniciais sobre a interpretação das leis. [SL]. 28 jul. 2012. [Em linha]. [Consult. 11 ago. 2018]. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xxxx.xx.
35 FREITAS, Xxxxxxxx Xxxxxx – Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos. [SL]. 24 mar. 2013. [Em linha]. [Consult. 12 set. 2018]. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx- 24/segunda-leitura-conhecidos-lembrados-brocardos-juridicos.
36 XXXXXXXXXX, Xxxxxx - X argumento ad absurdum na interpretação do direito: seus usos e significado normativo. [SL]. out. 2012. [Em linha]. [Consult. 11 set. 2018]. Disponível em:
<xxxxx://xxx0.xxxxxx.xxx.xx>, p. 13.
37 XXXXXXXX, Chaïm - Le raisonnable et le déraisonnable en droit. Archives de Philosophie du Droit. Paris, v. 23, 1978, p. 41.
para fornecer o fundamento da exigência de razoabilidade na argumentação jurídica. As seguintes regras para interpretação vinculam juristas de diferentes tradições jurídicas: 1- deve-se rejeitar qualquer interpretação que possa comprometer a autoridade do sistema jurídico; 2- nenhuma norma jurídica deve ser interpretada de modo que traga injustiça insuportável para o sistema jurídico; 3- nenhuma norma jurídica deve ser interpretada de modo que possa levar à conclusão de que o legislador explícita ou implicitamente desdenha da ideia de justiça; 4- nenhuma regra jurídica deve ser interpretada em sentido que entre em conflito com outra norma do sistema; 5- na interpretação, deve-se construir a norma de modo tal que os meios adotados pelo legislador sejam adequados para os fins que a norma pretende alcançar; 6- o intérprete deve construir a norma de modo que nenhuma ação impossível ou asserção fática que pode ser facilmente falsificada pela evidência empírica possa decorrer de tal norma.38
A interpretação que vem sendo dada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG, ao examinar apenas o disposto o art. 682, inciso II, do Código Civil, nega vigência ao art. 686, parágrafo único, do mesmo Código, que rege o mandato com poderes de cumprimento ou confirmação de negócio anteriormente entabulado ao qual está vinculado, ferindo, pois, as regras de interpretação jurídica. Não se pode admitir interpretação fundamentada exclusivamente em um artigo de lei, deixando de considerar o que está determinado em outro artigo da mesma lei. Isso ofende o que determinam as regras de interpretação. Além disso, tem sido utilizada uma interpretação que anula ou ato, em lugar de outra, melhor, que ao ato daria validade, inviabilizando, pois, o objetivo do texto legal, o que também está contrário ao que determinam as regras de interpretação.
Entendemos que é necessário uniformizar no Brasil a jurisprudência sobre a validade da procuração após o falecimento do outorgante, tendo em vista que não é possível recusar uma vontade manifestada pela pessoa, de forma livre e inequívoca, no interesse do outorgado ou de terceiro, apenas em razão da posterior ocorrência da sua morte. Não se pode admitir, por ser absurdo, que mesmo havendo uma procuração cujo objeto seja a transferência de um imóvel para o outorgado ou para terceiro, seja ela considerada
38 XXXXXXXXXX, Xxxxxx - X argumento ad absurdum na interpretação do direito: seus usos e significado normativo. [SL]. out. 2012. [Em linha]. [Consult. 11 set. 2018]. Disponível em:
<xxxxx://xxx0.xxxxxx.xxx.xx>, p. 24.
extinta em razão da morte do outorgante, obrigando o beneficiário a buscar meios onerosos para garantir o seu direito, como, por exemplo, a usucapião.
Conclusão
No presente trabalho foi estudado o conceito de mandato em Portugal, bem como seus elementos essenciais, constatando que, na sua configuração mais típica, o assunto ou negócio que é objeto da gestão pertence ao mandante. Foi esclarecido que não é essencial ao conceito de representação que os poderes representativos tenham sido conferidos no interesse do representado, podendo haver mandato que tenha por objeto um interesse do representante ou de terceiro e, nesse último caso, o mandato não se extingue por mero ato de vontade do mandante ou mesmo pela sua morte. Há situações, pois, em que a procuração pode ser utilizada para a concretização do negócio mesmo após a morte do mandante, o que é essencial nos casos de mandatos cujo objeto é a transferência de um imóvel.
Foi investigada a jurisprudência de Portugal, que vem refletindo exatamente essa conclusão: não há caducidade do mandato por morte do mandante se a procuração tiver sido conferida no interesse do procurador ou de terceiro, pois somente poderia ser derrogada se houvesse a concordância do procurador ou do terceiro, a menos que existisse justa causa, conforme art. 265.º, n.º 3, do Código Civil de Portugal. Além disso, deve ser considerada a vontade do mandante de que a procuração tenha validade antes e também após a sua morte.
Foi examinado como no Brasil, a lei também admite que a procuração seja utilizada após o falecimento do mandante nos casos em que sirva para concretizar um negócio realizado em vida, sendo o fundamento o mesmo que existe em Portugal, ou seja: a extinção do mandato pela morte somente se aplica quando ele for conferido exclusivamente no interesse do mandante. Foi examinada a jurisprudência do Brasil, para demonstrar que apesar de existirem decisões reconhecendo a validade da procuração após a morte do mandante, em Minas Gerais tal entendimento não vem sendo acolhido.
Foram apresentadas as razões pelas quais a melhor interpretação da lei é aquela que não admite conclusões absurdas, devendo haver razoabilidade na argumentação jurídica, sendo vedados o absurdo e a irracionalidade. Foi argumentado não ser possível recusar uma vontade livremente manifestada pela pessoa, capaz e em pleno gozo de suas faculdades mentais, no interesse do outorgado ou de terceiro, somente por ter ocorrido a morte. Considerar caduca a procuração em razão do falecimento do outorgante traz ônus indevidos para aquele que seria beneficiado pela procuração.
Em razão do acima exposto, entendemos que, mesmo após o falecimento do mandante, o mandatário, agindo de boa-fé e respeitando os estreitos limites do mandato que lhe fora outorgado, poderá lavrar a escritura, conforme os poderes outorgados na procuração. No caso de escritura de compra e venda, concordamos com o entendimento de que deve ser demonstrado ao tabelião que o negócio foi realizado quando o outorgante ainda vivia. O mandatário não poderá estabelecer novas cláusulas ou alterar o estipulado pelo mandante, devendo a escritura observar rigorosamente o que fora negociado pelo mandante.
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*Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Assumpção – Graduada em Direito pela UFMG, pós- graduada, mestre e doutoranda em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Professora e co-coordenadora da Pós- Graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – Centro de Direito e Negócios. Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.