Contratos de prestação de serviços executados por organizações de catadoras/es: Configurações de inclusão perversa1.
Contratos de prestação de serviços executados por organizações de catadoras/es: Configurações de inclusão perversa1.
Xxxxxxxxx Xxxxxxx (MNCR; PPGAS - UFRGS) Xxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx (IFRS - GP Ofcine)
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx (GPMSC/UNESC; GDRS/UNEMAT)
As/os catadoras/es de materiais recicláveis são fundamentais para a reciclagem. Realizam 90% do trabalho envolvido na cadeia produtiva da reciclagem, entretanto ficam com apenas 10% das riquezas geradas (MNCR, 2014; Xxxxx; Xxxx, Xxxxxxx, 2013. No Brasil, priorizados pela Política Nacional de Saneamento Básico (PNSB, 2007) e pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, 2010), cooperativas e associações de catadoras/es têm sido contratadas pelos municípios para prestação de serviços. Entretanto, há significativas diferenças, que vão desde obrigações e sanções impostas, até o pagamento ou o não pagamento pela prestação de serviços. Neste trabalho analisaremos dois casos de contratação com organizações de catadoras/es em duas cidades, Cruz Alta e Porto Alegre, ambas no Estado do Rio Grande do Sul. Para isso, serão utilizados os aportes dos estudos em antropologia dos resíduos na perspectiva intersubjetiva pós-humanista, que focam nos temas de descarte e desperdício do trabalho das/os trabalhadoras/es, cujas identidades estão fortemente ligadas aos resíduos (Millar, 2018). A invisibilidade atroz desta categoria de trabalhadoras/es, por meio de reprodução de processos de inclusão perversa, as/os mantêm sujeitos à precarização de suas vidas e de sua atividade produtiva, que influencia na busca e prospecção de materiais recicláveis descartados quando separamos os resíduos sólidos urbanos, nas ruas e avenidas (Xxxxxxx, 2006, 2018). Isso é demonstrado em trabalhos etnográficos realizados em distintos centros urbanos: São Paulo (Rosaldo, 2016, 2022, 2024), Rio de Janeiro (Millar, 2018) e Porto Alegre (Cardoso, 2022), em que a educação ambiental, a coleta seletiva, a triagem e destinação adequada contribuem para a transformação dos resíduos em materiais recicláveis. A catação e reciclagem não são apenas um trabalho, mas uma “forma de vida”, uma forma de ressignificar os resíduos, que é muito mais amplo do que a simples de sobrevivência e geração trabalho e renda (Dias, 2016), mas uma prática ligada intimamente às mudanças climáticas, aos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), a outra forma de fazer economia inclusiva, solidária e uma maneira concreta de inclusão de trabalhadoras/es excluídos socioeconomicamente, garantindo-lhes, para além da sobrevivência, a dignidade enquanto trabalhadoras/es. A metodologia, de caráter qualitativo, será realizada através de uma interpretação comparativa entre os contratos de prestação de serviços manejo de resíduos executados por cooperativas populares de reciclagem em Porto Alegre e Cruz Alta, por meio de análise documental e da modalidade de “pesquisador que vem de dentro” (Cardoso, 2022).
Palavras-chave: Catadoras/es de materiais recicláveis. Contratos de prestação de serviços; Inclusão, Inclusão Perversa
1 Trabalho apresentado na 34ª Reunião Brasileira de Antropologia (Ano: 2024)"
Introdução
Somos autores envolvidos diretamente na causa das/os catadoras/es de materiais recicláveis, moramos na região Sul do Brasil, fomos atingidos indiretamente (pois nossas casas não foram inundadas) pela inundação e diretamente por vários problemas causados por ela. Foram 24 cooperativas alagadas, perdemos 18 caminhões, equipamentos de trabalho, materiais e documentos de escritório, além da perda de 5 mil habitações de catadoras/es. Ficamos na gestão de ações, levantando informações, coordenando reuniões com as cooperativas, com o governo, empresas, organizamos campanhas de entrega de alimentos, roupas, cobertores. Atualmente estamos organizando os projetos de reconstrução, lutando para que sejam elaborados, aprovados e executados. Quando escrevemos a proposta deste trabalho, não imaginávamos que teríamos que enfrentar a inundação, desta forma, nossas ações e reações, voltaram-se para resolver ou amenizar os problemas sofridos pelas/os catadoras/es, pela população gaúcha, em especial as mais atingidas. Assim sendo, nosso tempo de pesquisa, escrita e dedicação a este trabalho foi diretamente afetado. Pois, há uma grande diferença em escrever e pesquisar quando estamos seguros, com infraestrutura, alimentação, e despreocupação em relação ao risco de vida, e quando estamos diretamente ameaçados. Pensamos em desistir, em não escrever, mas a necessidade de contribuir com a RBA, com os debates, com o fortalecimento do conhecimento em resíduos e catadoras/es, para nós é muito importante, por isso, nos fez continuar. Não é tudo que podemos fazer, com certeza faríamos mais, mas nas atuais condições, é o bastante.
O trabalho exercido pelas/os catadoras/es de materiais recicláveis dão suporte a cadeia da reciclagem no Brasil. Estudos e observações do MNCR (2014) e IPEA (2013) sinalizam que 90% do trabalho envolvido na cadeia produtiva da reciclagem é realizado por catadoras/es, mas esta categoria de trabalhadoras/es ficam com apenas 10% das riquezas geradas.
As políticas públicas delineadas no Brasil, na segunda década do século XXI por meio de xxxxxx xxxxxx, como as Políticas Nacionais de Saneamento Básico (PNSB, 2007) e de Resíduos Sólidos (PNRS, 2010), tiveram como foco principal priorizar e favorecer a inclusão socioeconômica produtiva de catadoras/es organizados em cooperativas e associações. Isso implica em estratégias para promover a inclusão socioprodutiva desses trabalhadores, incluindo a regularização da contratação, pela administração pública, das associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis, conforme estipulado pela Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010).
A promulgação da Política Nacional Resíduos Sólidos (PNRS) estabeleceu regulamentos de prestação de serviços de gestão e gerenciamento de resíduos sólidos urbanos como forma de minimizar e mitigar os impactos ambientais em relação disposição ambientalmente inadequada e tem como um dos princípios basilares à inclusão social e a emancipação econômica de catadoras/es de materiais recicláveis (BRASIL, 2010).
Este princípio basilar foi regulamentado e fortalecido com a edição do “Programa Diogo de Sant’Ana Pró-Catadoras e Pró-Catadores para a Reciclagem Popular” ao estabelecer como um dos objetivos “incentivar a contratação remunerada de cooperativas, associações e outras formas de organização popular de catadoras e catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis pelos serviços públicos, municipais, distritais e consorciados, de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos” (BRASIL, 2023).
Em diversos municípios brasileiros há a celebração de contratos administrativos com organizações de catadoras/es de materiais recicláveis, que no entanto carecem de elementos estruturantes para efetivamente propor melhorias nas condições de vida, trabalho e prestação de serviços ambientais (Domingues Junior, 2022).
A inexistência ou incipiente celebração de contratos com cláusulas precárias devido a remuneração insuficiente é uma das razões da baixa viabilidade econômica das organizações de catadoras/es de materiais recicláveis segundo Van Zeeland (2016) no estudo e análise realizado em vinte empreendimentos econômicos solidários de dezessete municípios no Estado do Rio Grande do Sul.
Domingues Junior (2022) propôs elementos estruturantes para os contratos administrativos entre gestores públicos e organizações de catadores de materiais recicláveis no Brasil. Sua análise abrangeu 84 contratos obtidos nas cinco macrorregiões geográficas nacionais, revelando que esses instrumentos contratuais não estão alinhados com os dispositivos e aspectos recomendados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Entre as deficiências identificadas estão a falta de inclusão social, econômica e ambiental dos catadores, a ausência de reconhecimento de seu trabalho e a falta de integração efetiva desses profissionais ao sistema municipal de gestão de resíduos sólidos.
Segundo Domingues Junior (2022) é crucial aumentar o número de contratos entre prefeituras e empreendimentos de catadores, conforme preconizado pela PNRS, visando aprimorar a gestão dos resíduos sólidos urbanos e proporcionar melhores condições aos catadores. Para isso, propõe elementos estruturantes que abordem: cláusulas obrigatórias; melhorias nas condições de vida dos catadores; reestruturação econômica dos empreendimentos; organização coletiva do trabalho; proteção jurídica dos catadores;
reconhecimento da relevância social, ambiental e econômica do trabalho desses profissionais; e, garantia de qualidade na prestação de serviços (eficiência, eficácia e efetividade).
O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) ressalta a necessidade do avanço no controle da cadeia produtiva e na formalização de contratos de prestação de serviços com o setor público. A Coleta Seletiva Solidária (CSS) realizada pelos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) de catadoras/es é reconhecida como uma tecnologia social (Rutkowski; Xxxxxxxxx, 2015) e tem na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) um importante instrumento para pressionar as prefeituras a contratá-las/os.
A lei 12305/2010 atribui a obrigação dos municípios, já durante a elaboração dos Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PMGIRS) a firmarem contratos com cooperativas ou associações de catadores locais, “formadas por pessoas físicas de baixa renda” (BRASIL, 2010a, Art. 18, inciso II, e XI) à implementação da coleta seletiva, garantindo à cooperativa e/ou associação o acesso aos materiais recicláveis.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) incorpora a perspectiva da logística reversa, conforme definido no artigo 3º, inciso III, como um instrumento de desenvolvimento econômico e social. Este conceito envolve um conjunto de ações e procedimentos destinados a viabilizar a coleta e devolução dos resíduos sólidos ao setor empresarial para reaproveitamento em seu ciclo produtivo ou em outros ciclos, ou ainda para outra destinação final ambientalmente adequada (BRASIL, 2010a).
A PNRS propõe o estabelecimento de contratos entre empresas e associações/cooperativas de catadores, visando o recolhimento de materiais recicláveis através da logística reversa.
A construção de mecanismos de inserção social produtiva para os catadores, mediada pela logística reversa e pela responsabilidade compartilhada na coleta seletiva, pode transformar a dinâmica de trabalho desses grupos na cadeia de reciclagem. No entanto, há o risco de que essa integração seja interpretada como um apagamento da identidade dos catadores enquanto trabalhadores autônomos e desorganizados (Guadagnin, 2022).
O êxito da gestão compartilhada dos resíduos sólidos, conforme preconiza a PNRS, requer das prefeituras municipais o comprometimento com a inclusão social dos catadores, a inserção efetiva destes agentes nos programas de coleta seletiva, além do reconhecimento das externalidades sociais e ambientais da atividade de catação. (Xxxxx, Xxxx, Xxxxxxx, 2013, p. 37).
A integração como prestadores de serviços, através da contratação pelo poder público municipal e parcerias com outros atores da sociedade civil para pagamento por serviços ambientais, como coleta, triagem e destinação adequada na cadeia de reciclagem, busca
aumentar a visibilidade e organização dos catadores. Apesar disso, esse processo pode ser visto como uma forma de apagamento político, especialmente se for tratado de maneira assistencialista ou se resultar na apropriação dos recursos públicos pelo setor empresarial (Guadagnin, 2022).
Este tipo de integração restrita pode despojar os catadores de sua identidade como trabalhadores que contribuem significativamente para a economia, permitindo que o Estado e a indústria os vejam apenas como beneficiários de programas de coleta seletiva. Isso os exclui de serem remunerados adequadamente pelos serviços ambientais prestados, de receber uma parte justa dos lucros do setor e de serem apoiados na ascensão na cadeia de valor da reciclagem. Assim, é crucial garantir que qualquer forma de integração não resulte em invisibilidade, despossessão ou marginalização dos catadores como agentes econômicos e sociais essenciais na gestão sustentável dos resíduos sólidos (Guadagnin, 2022).
Muitas/os catadoras/es, organizadas/os ou não em associações e cooperativas, ainda realizam trabalhos de coleta seletiva, separação e triagem e reintrodução de recicláveis de forma adequada na cadeia de reciclagem, sem nenhuma contraprestação do poder público municipal em muitas cidades do país.
O MNCR já em junho de 2001 na “Carta de Brasília” os participantes do 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, apresentaram a sociedade e aos gestores públicos, entre as reivindicações a:
Adoção de políticas de subsídios que permitam aos Catadores de Materiais Recicláveis avançar no processo de reciclagem de resíduos sólidos, possibilitando o aperfeiçoamento tecnológico dos empreendimentos com a compra de máquinas e equipamentos, como balança, prensas etc.
Definição e implantação, em nível nacional, de uma política de coleta seletiva que priorize o modelo de gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos, colocando os mesmos sob a gestão dos empreendimentos dos Catadores de Materiais Recicláveis. (MNCR, 2001).
A catação e reciclagem não são apenas um trabalho, mas uma “forma de vida”, uma forma de ressignificar os resíduos, que é muito mais amplo do que a simples de sobrevivência e geração trabalho e renda (Dias, 2016). Nos estudos realizados por Xxxxxx, Sena e Xxxxxx (2014) junto as/aos catadoras/es associados em duas cooperativas de catadoras/es de Maceió, elas/es percebem a valorização social do trabalho desenvolvido, que além de um meio de sobrevivência, mas como uma estratégia de fazer amizades e como ponte para a sua inclusão social.
O trabalho organizado e colaborativo em organizações de catadoras/es de materiais recicláveis em cooperativas e associações é um caminho pelo qual se forja o Estado a criar
políticas a seu favor, apesar de não significar a quebra da hegemonia da sociedade capitalista, mas redunda em ganhos àqueles que os entendem outra forma de fazer economia inclusiva, solidária e uma maneira concreta de inclusão de trabalhadoras/es excluídos socioeconomicamente, garantindo-lhes, para além da sobrevivência, a dignidade enquanto trabalhadoras/es.
Essa situação foi narrada pelos catadores do Oeste do Paraná, que entendem que o trabalho em cooperativas como possibilidade de consolidar políticas públicas favoráveis às suas causas, embora não resolva questões de submissão e dependência dos intermediários da cadeia da reciclagem, mas ameniza suas condições de trabalhador precário (Xxxxxxx, 2014).
Das lutas aos contratos para prestação de serviços
O contrato de prestação de serviços é essencial para a inclusão das/os catadoras/es de materiais recicláveis no sistema formal de gerenciamento de resíduos nas cidades brasileiras, é por onde institucionalmente, politicamente e legalmente se reconhece as atividades que compõem o trabalho da categoria na reciclagem dos resíduos e ainda estabelecem-se metas, obrigações e a parceria entre os entes, visando os objetivos estabelecidos em comum acordo entre a administração pública municipal e a cooperativa.
O contrato de prestação de serviços é uma das ações mais importante de reconhecimento e valorização que a prefeitura pode ter em relação com as/os catadoras/es, assim sendo, o contrato é uma das principais conquistas que a categoria pode obter no nível municipal com a prefeitura da cidade, além de estar previsto em lei, tendo as organizações de catadoras/es, a priorização e a dispensa de licitação para a contratação.
Para serem contratadas, as organizações de catadoras/es devem estar institucionalmente formadas e legalmente constituídas, devem seguir e cumprir o rito legal de contratação estabelecido pelo arcabouço jurídico de contratações, o qual deve ser avaliado e aprovado pelo jurídico da prefeitura e posteriormente, mês a mês, a cooperativa deve prestar contas, conforme estabelecido no contrato, do cumprimento de sua parte, o qual segue acompanhada pelo tribunal de contas do município, câmara dos vereadores e outros órgãos de fiscalização e controle.
A contratação torna-se impossível quando as organizações estiverem com documentação incompleta, com certidões positivas de dívidas na cidade, estado e união, quando não são formadas exclusivamente por catadoras/es e trabalhadoras/es de baixa renda. Assim sendo, a infra estrutura não é imprescindível para a contratação, pois todo contrato tem como obrigação mínima, pagar pelo custeio operacional da prestação de serviços.
A infraestrutura para o trabalho é um dos requisitos obrigatórios para a contratação, pois a infraestrutura deve ser objeto da contratação, com previsão de valores e pagamentos para compra ou aluguel, como por exemplo: aluguel de galpão e caminhões, compra de esteiras, prensas, balanças, bem como de outras estruturas para coleta, bem como, os equipamentos de proteção individuais: calças, camisetas, jalecos, luvas, protetor solar, botas e outros equipamentos.
Quando a cooperativa possui infraestrutura própria, no contrato deve constar o pagamento de reformas e consertos, bem como depreciação e reposição de equipamentos, entretanto, nem todos os contratos contam com essas provisões ou nem sequer essa importante ação contratual, ficando sobre responsabilidade apenas da organização de catadoras/es, sendo uma das questões de análise que compõem a inclusão perversa de catadoras/es.
Todos os contratos são fruto de muita luta e organização da categoria, a qual deve além de vencer toda a burocracia estabelecida legalmente para a contratação, se organizarem e constituírem-se sobre a forma de personalidade jurídica, principalmente nas condições de trabalho, moradia e outras dificuldades as quais devem superar para se organizar, tem ainda que vencer sua principal batalha, contra o preconceito, base de formação do estado burguês, o qual historicamente serve majoritariamente para interesses privados e empresas privadas, as quais usufruem como se fosse natural, da prestação de serviços, acumulando riquezas, do que para organizações sociais de cidadãs/ãos excluídos economicamente, como as/os catadoras.
A partir da luta das/os catadoras/es pela inclusão no sistema formal de gerenciamento de resíduos, bem como sobre a avaliação sobre quem paga a conta da reciclagem, o MNCR lançou em 2023 uma campanha nacional denominada “A conta tem que fechar já!”. Esta campanha baseia-se na análise dos custos fixos e operacionais, impostos, recursos humanos, e outros, que as cooperativas e associações de catadoras/es são obrigadas a pagarem para funcionarem regularmente, os quais comumente consomem a renda da categoria e eis um dos motivos das/os catadoras/es terem a renda tão baixa, pois acabam pagando para trabalhar.
Análise e estudos de casos: Porto Alegre e Cruz Alta - RS
Analisaremos os contratos das prefeituras de duas cidades gaúchas com cooperativas de catadoras/es: Cruz Alta, localizada no interior do Rio Grande do Sul, e Porto Alegre, a capital do estado, ambas coordenadas por prefeituras do mesmo partido, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), onde após as análises, consideramos um contrato com inclusão, garantindo reconhecimento e valorização da categoria e o outro, de inclusão perversa
(Guadagnin, 2022), que mais repassa as obrigações e sanções para as/os catadores, apoiado na obrigatoriedade vital que as organizações têm para sobreviver, ou seja, trabalhar.
Histórico de Porto Alegre-RS
Porto Alegre foi pioneira, a primeira capital ainda em meados dos anos 1990, a encerrar seus lixões, em implantar coleta seletiva e no apoio e fortalecimento de organizações coletivas e solidárias de catadoras/es de materiais recicláveis, as/os quais passaram a sair dos lixões e ruas e ocuparem estruturar equipadas para o trabalho de triagem dos resíduos recicláveis, em unidades de triagem construídas exclusivamente para este trabalho.
Este pioneirismo, ainda hoje existe no Brasil, visto que, conforme o Observatório dos Lixões, coordenado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM, 2024), mais de 3 mil lixões, sendo que 1431 lixões são declarados e 1579 municípios que não informaram o destino de seus resíduos, temos apenas 2380 aterros sanitários, assim, a maioria dos municípios ainda depositam seus em lixões.
Conforme Xxxxxxx (2022), na década de 1990, foram construídas 12 unidades de triagem, com 700 catadoras/es incluídas/os, as/os quais recebiam em média dois salários mínimos mensais, fruto da comercialização dos materiais recicláveis. O custeio operacional, aquisição e manutenção de equipamentos, pagamento de impostos e outros custos, eram pagos pela prefeitura, sendo que a mesma era responsável e executora do programa de educação ambiental, coleta seletiva e a articulação com grandes geradores (shoppings, hipermercados, lojas, empresas e outros) para a destinação dos resíduos para as/os catadoras, tornando isso, uma condicionante para a liberação do alvará de funcionamento dos estabelecimentos.
No ano de 2006, a prefeitura municipal muda completamente a política de reciclagem, encerrando as atividades de educação ambiental, privatizando a coleta seletiva e mediando a relação com as organizações de catadoras/es através de convênio, repassando apenas R$2.500,00 reais mensais, e todas as obrigatoriedades dos custos de operação para as organizações conveniadas.
Houve forte resistência, até que a prefeitura informou que nem todos os grupos teriam acesso ao convênio e quem não tivesse conveniado, deveriam entregar a unidade de triagem, além de não receberem a coleta seletiva, ocasionando na opção pela sobrevivência das organizações, cedendo uma a uma, a esta perversa modalidade de parceria.
Com a coleta seletiva privatizada, convênio precário, a renda e a quantidade de catadoras/es, bem como o índice de reciclagem na cidade, passa a ser reduzida paulatinamente
mês a mês. Neste mesmo ano, a câmara dos vereadores aprovou a lei de proibição da circulação de carroças e carrinhos, de forma gradual, mas sem mostrar nenhuma alternativa concreta de inclusão social econômica da categoria.
Sempre houve muita luta e resistência por parte das/os catadoras/es na cidade, mas a prefeitura que outrora era parceira, na gestão do Governo Fogaça (2005 a 2010), não houve avanço, nem sequer reunião entre catadoras/es e o prefeito, pois o MNCR, principal organização de catadoras/es na cidade é deixado de lado, e em alternativa, a categoria passa a organizar-se no Fórum das Unidades de Triagem, que inicialmente ocorriam sobre controle e nas dependências da prefeitura, mas que logo tornou-se o Fórum dos Catadores de Porto Alegre (FCPOA), com apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público (MP), sobre a coordenação protagonista das/os catadoras/es.
Com o apoio do MPT e MP, o FCPOA passa a discutir e reivindicar mais recursos no convênio, conquistando só em 2013, o valor de R$3.500,00 mensais, ou seja, depois de 7 anos de luta, conquistou apenas um mil reais a mais no convênio, e mesmo sendo um valor baixo, significava o primeiro avanço real da categoria na cidade nesta década. A negociação, além do valor do convênio, era para que a cidade migrasse de modalidade de convênio para contrato de prestação de serviços, mudando radicalmente o processo de prestação de contas, já que o convênio previa a prestação de contas de cada real investido, bem como exigia orçamentos diferentes, uma burocracia desmedida, que ocupava a coordenação das organizações.
Em 2015, o FCPOA assina parceria com a prefeitura para a realização de um estudo que levaria a ser a base do documento de contrato das cooperativas, que veio a ocorrer em 2016, onde os grupos passaram a receber valores entre R$ 3.000,00 até R$ 6.000,00 reais, de acordo com a quantidade de catadoras/es incluídos, as toneladas de resíduos triadas e a quantidade de rejeitos não aproveitadas no processo de triagem. “Este contrato estabelece cobranças em contrapartida que a categoria realize as atividades previstas, tornando-se uma forma perversa de exploração de excluídos” (Cardoso, 2022, p.29)
Mesmo com valores insignificantes, as exigências da prefeitura foram muitas, desde manter uma quantidade mínima de catadoras/es nos grupos, a aceitar a quantidade de cargas que seriam enviadas pela coleta seletiva, a necessidade de abertura das unidades nos sábados e feriados de meio de semana, além da clássica prestação de contas nota a nota, com três orçamentos para investimentos acima de R$ 800,00. Este requisito burocrático não era exigido para outros contratos que a prefeitura tinha com outras empresas, as quais recebiam valores e tinham que apresentar como prestação de contas, apenas uma nota fiscal da empresa e relatórios dos serviços prestados, uma possível característica do racismo econômico do Estado.
Até o presente momento, meados de 2024, o valor do contrato permanece o mesmo. As associações e cooperativas contratadas, se quiserem continuar a receber este valor irrisório, devem assinar um documento, por exigência da prefeitura, abrindo mão dos reajustes que são obrigatórios por lei, para todos os contratos da prefeitura.
Na tabela 1. apresentam-se os valores referentes ao custeio fixo mensal, em valores aproximados que a cooperativa tem para se manter. Não são considerados impostos, tributos e taxas do município, Estado e União, usando como base a Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada (ASCAT). Para termos ideia sobre essa injustiça econômica contratual, apresentamos os valores. A ASCAT recebeu o repasse do valor de R$ 61.907,37 durante um ano, conforme contrato 41/2019, pelo período de 12 (doze) meses, de 14/02/2022 a 13/02/2023, ou seja, R$ 5.158,94 por mês.
Tabela 1: Despesas operacionais e custos aproximados da ASCAT, Porto Alegre - RS (Julho 2024).
Despesas operacionais | Custo (R$) |
Água | 300,00 |
Energia elétrica | 900,00 |
Internet e telefone | 140,00 |
Contador | 1.450,00 |
INSS (20% da renda de cada cooperada/o) | 4,000,00 |
Assessoria Ambiental | 500,00 |
EPIS (média de 160 reais por cooperada/Mês x 20) | 3.200,00 |
Total | 10.490,00 |
Elaborado pelos autores
Com esses valores e a completa estagnação da política de reciclagem, cada catadora/r incluído é um custo para a cooperativa/associação, conforme Xxxxxxx (p. 29, 2022), atualmente a cidade conta com 24 unidades de triagem, entretanto regredindo na inclusão de catadoras, caindo 34% em relação a década de 1990, de 700 caindo para apenas 492 postos de trabalho.
Além da quantidade de catadoras/es incluídas/os, a renda regrediu consideravelmente. Em 2022, Xxxxxxx apontou que 52,6%, da categoria recebia um salário, 36,8% menos de um salário e apenas 10,5% recebiam acima de um salário mínimo. Atualmente, em pesquisa ainda sendo realizada pelo Centro de Solidariedade, Apoio Mútuo e Meio Ambiente (Centro SAMA), respondida por 16 das 24 associações e/ou cooperativas, a renda da categoria está em apenas R$ 700 reais mensais, menos da metade de um salário mínimo, o que levou a categoria a lutar e conquistar um auxílio do governo municipal de 679 reais.
Histórico de Cruz Alta-RS
Em Cruz Alta, cidade do interior do Rio Grande do Sul, a cerca de 350 quilômetros de distância da capital gaúcha, Porto Alegre, a organização das/os catadoras/es iniciou nos anos 2000, sem o protagonismo da prefeitura. A administração pública local tinha apenas projetos assistenciais vinculados ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), mas sem nenhum reconhecimento e valorização da categoria enquanto trabalhadoras/es. Neste momento ainda não havia a implantação da coleta seletiva. Um contingente grande de catadoras/es viviam nos Bairros: Sol, Funcionários e Jardim Primavera. No Bairro do Sol, encontra-se o núcleo habitacional Santa Bárbara, um complexo de pequenos apartamentos populares onde residem várias/os catadoras/es de materiais recicláveis.
Um desejo por parte de algumas pessoas da cidade, bem como da prefeitura e de catadoras/es deste local, era a criação de uma associação de catadoras/es, pois a maioria já executava a catação de rua e praticavam escambo, trocando os materiais recicláveis por alimentos e/ou itens de limpeza e higiene pessoal. A Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ), desde o início dos anos 2000, realizava diversas ações de extensão universitária, com a participação de professoras, professores e estudantes nestes bairros, aprovando um projeto junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no ano 2006.
Este projeto era especificamente direcionado à organização das/os catadoras/es e formação de uma associação nesta localidade. Desta maneira foi criada a Associação dos Catadores de Cruz Alta - ACCA, contando com apoio da prefeitura que cedeu terreno com um prédio para o trabalho da reciclagem.
Em 2009, através de uma emenda parlamentar do Senador Xxxxx Xxxx, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi construída e equipada a segunda associação, A Associação de Recicladores de Cruz Alta, ARCA, a qual contou com participação e coordenação do projeto
pela UNICRUZ. A prefeitura era governada pelo prefeito Xxxxxx Xxxxxxx (PT), que assegurava o apoio para as organizações e a execução dos projetos.
Em 2010, a UNICRUZ aprova um novo projeto com recursos da PETROBRÁS, o qual além de fortalecer as duas associações existentes, possibilitou a compra de um caminhão e criação outras duas associações: a Associação União das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis de Cruz Alta (ATRECA) no Bairro Progresso; e, a Associação de Recicladores do Bairro Primavera de Cruz (AREPRICA) no Bairro Primavera A implantação da coleta seletiva utilizando containers espalhados pela cidade ficou a cargo da prefeitura.
A coleta seletiva inicia a partir de um contrato com a UNICRUZ, sendo gerida por uma equipe da universidade e com participação das/os catadoras/es, que além de receberem a os resíduos advindos da coleta seletiva, eram contratadas/os para o serviço de coleta - coletoras/es
- e de motorista para o caminhão.
A Coleta Seletiva Solidária foi implantada no município de Cruz Alta em julho de 2012, através do Núcleo de Planejamento Urbano e Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, apenas no centro da cidade, como um projeto piloto para posterior expansão pelo município. Foram dispostos dois contêineres nas ruas centrais do município, sendo um contêiner verde para o resíduo orgânico, e um amarelo para o resíduo reciclável. Após coletado o material dos contêineres específicos, são encaminhados às associações de catadores existentes no município. (Xxxxx; Xxxxxxxx; Xxxxx; Xxxxxxxx; Xxxxx, 2014, p.4)
Com a saída do prefeito Xxxxxx Xxxxxxx (PT) através do pleito de 2011/2012, a entrada do prefeito Xxxxxxx Xxxxx do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) o projeto de coleta seletiva para, até que com novas negociaçõe para iniciar um projeto piloto de coleta seletiva em 3 bairros através de termo de fomento com a UNICRUZ, iniciando com seis meses, passando nos primeiros meses para oito bairros (2013/2014). Nesse momento os prédios das associações estavam todos prontos e em funcionamento com uma média de 25 catadoras/es ao todo, nos 4 grupos, pois a quantidade de material arrecadado e comercializado era pequena, embora todos com equipamentos para trabalho.
Na gestão seguinte, 2016, a prefeitura tem o retorno do prefeito Xxxxxx, que amplia a coleta seletiva para 23 bairros da cidade, fortalecendo o termo de fomento com a UNICRUZ, a qual tem o projeto da Petrobrás renovado, adquirindo mais dois caminhões para a prestação de serviços de coleta seletiva, ampliando a participação das/os catadoras/es no sistema de coleta.
As/os catadoras/es iniciam os processos de formação com o MNCR, com encontros ocorridos em Porto Alegre, onde uma delegação de cada associação, principalmente as coordenações de cada grupo, participavam. A principal discussão era em torno do
protagonismo da categoria, que compreendia a importância da universidade e dos projetos executados, sem os quais poderia não haver organização na cidade, nem mesmo a coleta seletiva, mas que era importante dar o próximo passo, ou seja, a categoria mesmo ser a executora da prestação de serviços, com contrato direto, um projeto de coleta seletiva solidária. No pleito eleitoral de 2019 para administração municipal de 2020/2024, as/os catadoras/es organizaram uma carta compromisso, reivindicando o contrato direto com a categoria para a implantação da coleta seletiva solidária, onde conseguiram reunir com as/os principais candidatas/os, o prefeito Xxxxxx Xxxxxxx (PT) que concorria pela reeleição, sendo que a carta chegou em mãos dele de forma indireta, sem ser pelas mãos das/os catadoras/es, pois não houve tempo para agenda, já a candidata Xxxxx Facco Librelotto (MDB) que acabou vencendo o pleito, marcou agenda com as lideranças e recebeu em mãos, se comprometendo
com a implantação da coleta seletiva solidária.
A UNICRUZ manteve-se realizando a coleta seletiva até o final do prazo estabelecido no termo de fomento no ano de 2022, enquanto que ocorriam reuniões entre as/os catadoras/es e a prefeita, para a organização do novo contrato, de forma direta. Para este contrato, a prefeita Xxxxx solicitou que a categoria se organizasse em apenas uma cooperativa, para haver apenas um contrato Este período serviu de organização e formação das/os catadoras/es e a organização da Cooperativa de Trabalho União das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis de Cruz Alta (Unicca). O contrato de prestação de serviços de coleta seletiva solidária foi assinado entre prefeitura e a cooperativa Unicca no dia 19 de abril de 2022.
Análise de contratações
Os contratos podem até mesmo ser iguais, inclusive suas cláusulas e valores, mas poderão ser completamente diferentes os resultados, pois estes dependem da parceria entre os contratados. A prestação de contas de ambos os contratos, Porto Alegre e Cruz Alta seguem o mesmo rito legal burocrático, ambas têm relatórios, prestação de contas e envio de informações legais. Ambos os contratos são realizados com cooperativas e associações de catadoras/es para a prestação de serviços de coleta (Cruz Alta) e triagem (Porto Alegre), havendo diferenças em valores pagos, serviços e o principal, na relação entre catadoras/es, prefeitura e comunidade, sendo essas as análises que nos propomos a realizar.
Um contrato nunca é só dinheiro, prestação de serviços, cumprimento de cláusulas e acordos contratuais. Ele é uma base, mas não é tudo, sobre a convivência entre os diferentes contratantes e contratados, os quais precisam de boa vontade, disposição e comprometimento
para solucionar os problemas não disponíveis nas cláusulas contratuais, mas que são fundamentais para a manutenção dos acordos. A relação contratual com a prefeitura pode ou não significar uma parceria, onde um se compromete a cuidar do outro, pensam e resolvem problemas que podem minimizar impactos.
Podem haver contratos mas não haver necessariamente a parceria. O contrato pode ser reduzido em apenas um acordo, onde as partes comprometem-se a cumprir, sem relação e comprometimento, sem cuidado, como no caso de Porto Alegre. A administração municipal entende que as/os catadoras/es devem receber apenas os resíduos e que os custos dos serviços, devem ser pagos pela organização de catadoras/es, uma conta que não fecha, vistas que os custos são altíssimos e que a venda dos recicláveis não é controlada pela categoria, que é extremamente explorada pela indústria recicladora, que faz apenas 10% do trabalho da cadeia produtiva, ficando com 90% das riquezas geradas.
O contrato foi uma reivindicação da categoria, o qual recebeu apoio de instituições da cidade como Ministério Público, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública, sendo que a administração municipal não concordou, pois históricamente pagava os custos e depois os repassou para as/os catadoras/es, não querendo retomar, pagando para a categoria. Sem outra saída, a prefeitura foi obrigada a realizar o contrato, portanto este nasce de uma obrigação e não de uma parceria, desta forma, a prefeitura impôs um modelo de contrato sem discussão com a categoria, a mesma não aceitou as propostas, entretanto foram obrigados a assinarem se desejassem estar formalizadas e receberem a coleta seletiva - vital para as organizações.
O contrato de prestação de serviços de triagem de resíduos entre as unidades de triagem e a prefeitura, não está configurando como um avanço no reconhecimento e valorização do trabalho da categoria. Esta que é responsável por 90% do trabalho envolvido na cadeia produtiva da reciclagem. O contrato de prestação de serviços ao contrário, está tornando-se meramente um mecanismo de flexibilização e precarização do trabalho. (Xxxxxxx, x.130. 2022)
Por outro lado, o contrato entre prefeitura de Cruz Alta e a cooperativa de catadoras/es nasceu de uma parceria, onde ambos comprometem-se mutuamente para o sucesso do contrato. Ambas instituições discutiram e aprovaram cláusula a cláusula, bem como as responsabilidades de cada ente e o valor dos serviços. No contrato previu-se o pagamento de uma equipe coordenadora e administrativa dos serviços contratuais, duas pessoas da cooperativa que são as gestoras, além claro, do pagamento de renda das/os catadoras/es coletoras/es, motoristas e ainda, o INSS de cada cooperada/o da cooperativa, entre outros custeios.
Já no contrato de Porto Alegre, o valor total do contrato na média de R$ 5.200,00, sequer paga um administrador, não prevê pagamento de INSS das/os cooperadas/os, o qual, mesmo se
tivesse dinheiro disponível, no contrato é estabelecido a proibição deste pagamento, e cada investimento a ser feito, estes devem ser aprovados antecipadamente pelos gestores públicos do contrato. A prefeitura conta com 19 associações e cooperativas contratadas, apesar do valor ser baixo, a burocracia de prestação de contas é a mesma em relação aos contratos milionários que a prefeitura tem com empresas privadas.
Em Cruz Alta, há uma conversação direta entre a coordenação da cooperativa e os gestores da prefeitura, que combinam pagamentos, problemas no contrato, outras parcerias, de forma direta, seja por telefone ou mesmo pelo aplicativo whatsapp. Logo, quando a prestação de contas chega na prefeitura, ela recebe uma atenção especial, pois a prefeita tem um carinho especial pelo projeto, rapidamente se aprova ou se discute o que precisa de documentação para ser aprovado - tudo de maneira legal constitucionalmente - mas dentro da parceria, e logo, realizam o pagamento, sem nenhum atraso, e pagando inclusive com antecedência.
Já em Porto Alegre, às 19 prestações de contas, uma por grupo, chegam em dias diferentes, conforme a organização de cada grupo, chegam e vão literalmente para uma pilha, onde serão analisados conforme a disponibilidade dos gestores municipais, os quais não tem uma ligação direta com o contrato, os leiam mecanicamente e quando estes têm problemas, voltam para a pilha, até serem formalmente informados para a organização de catadoras/es e obrigatoriamente a prestação de contas tem que ser refeita toda. Logo, é normal o atraso de pagamento, sendo que houve grupos que tiveram atrasos de mais de dois anos.
Quadro 1:
Parâmetros | Porto Alegre | Cruz Alta |
Contrato | Estabelecido de forma obrigatória, sem parceria, construído de cima para baixo, sendo obrigatório a assinatura e o cumprimento das cláusulas. | Estabelecido em comum acordo, formalizando parceria, com as cláusulas contraídas em comum acordo. |
Valores mensais investidos em reais | Total investido: R$ 98,800,00 Média por 19 organizações: R$ 5.200.00 Média por 492 catadora/r: R$ 200,81 | Total investido: R$ 72.246,68 Média por 4 organização: R$ 18.061,67 Média por 51 Catadora/r: R$ 1.416,66 |
Renda mensal por catadora/r em reais | Média de R$ 800,00 | Média de R$ 1.500,00 mais 20%, R$ 300,00 reais em INSS, pagos pelo contrato |
INSS | Cada catadora tem descontado mensalmente 20% de sua renda para pagar o INSS, ou seja, média de R$ 160,00 reais. | O contrato paga 20% sobre a renda de cada catadora/r, média de R$ 300,00 reais |
Elaborado pelos autores
Para além dos investimentos, uma questão essencial para o fortalecimento da reciclagem, é a parceria com geradores grandes, pois os pequenos geradores - nas casas - geram
pequenas quantidades de grande variabilidade de resíduos, os quais são acondicionados em sacolas. Geralmente podemos encontrar plásticos, papéis, metais e até vidros em uma única sacola, o que demanda maior tempo e mais trabalho para as/os catadores separam um a um, já os grandes geradores, geram grandes volumes de resíduos, geralmente separados em poucos tipos e grandes quantidades, majoritariamente papelão e plásticos filmes transparentes, os quais quando destinados às/aos catadoras/es, não necessitam de tempo para separação, indo direto para a prensa e posterior armazenamento e comercialização, pulando a parte de triagem, que demanda maior parte do trabalho da categoria.
Quanto mais se recebe os materiais de pequenos geradores, maior o tempo e esforço de trabalho, principalmente a coleta, em grandes percursos, pois é uma coleta porta a porta, maior tempo de triagem e consequentemente menor é a renda por catadora/or, quanto mais tem-se acesso aos resíduos de grandes geradores, menor é o trabalho de coleta, pois os resíduos estão em grandes volumes e concentrados num único lugar, geralmente não precisa de triagem pois vai direto para a prensa e claro, a renda é maior. A parceria com a prefeitura é fundamental tanto para que se amplie os índices de reciclagem, quanto se diminua o tempo de trabalho e a renda da categoria. Isso depende do acesso aos resíduos de qualidade que os grandes geradores possuem.
Em Cruz Alta, uma a cooperativa UNICCA em parceria com a prefeitura, empresários, criou o Selo Verde, uma premiação entregue para os grandes geradores que destinam os resíduos recicláveis para as/os catadoras/es. Os empresários separam e acondicionam os resíduos, a cooperativa realiza a coleta e a prefeitura apoia com o pagamento do custo do serviço através do contrato. Atualmente, 136 grandes geradores são cadastrados na cooperativa, a qual possui equipe de coleta, caminhão e organiza a logística de coleta, respeitando cada exigência de segurança, horário e outras formas de acordos com as empresas para que a coleta seletiva aconteça.
Em Porto Alegre, a coleta seletiva é privatizada, e não existe parceria entre as cooperativas e a prefeitura, para cada avanço ou retrocesso, ocorrem dentro de grandes tensionamentos, com a prefeitura geralmente ao lado oposto das cooperativas. O contrato, as exigências, o valor estabelecido é o centro de tensões. Pela renda das/os cooperadas/os ser baixa, pelo valor do contrato ser baixo, há uma luta diária para que a cooperativa mantenha-se aberta, ativa, há muita articulação da categoria com parte da sociedade que apoia a reciclagem.
O custo da coleta seletiva é altíssimo, considerando os preços dos materiais, a renda da equipe de coleta, os custos de manutenção do caminhão, principalmente peças, mão de obra e combustível, acaba não cobrindo com o valor da venda dos materiais. Por isso é necessário o
apoio, a parceria da prefeitura, um contrato que pague os custos e os direitos das/os catadoras/es.
Considerações finais
A prefeitura é a principal gestora de resíduos na cidade, a responsável pela aplicação da política de gestão, quando é parceira das cooperativas, a reciclagem tem altos níveis, a renda é alta, e a participação da sociedade, pequenos e grandes geradores é altíssima. Quando a prefeitura não é parceira, geralmente há falta de resíduos recicláveis, às cooperativas custeiam os serviços, a renda da categoria é baixa e o sofrimento é altíssimo. Logo, tanto o contrato quanto a parceria são fundamentais para a reciclagem acontecer. No quadro 2, podemos comparar os índices de reciclagem em Porto Alegre, Cruz Alta e no Brasil.
Local | Índice de reciclagem | Renda |
Cruz Alta | 27% | 1500,00 |
Porto Alegre | 1,92% | 800,00 |
Brasil | 4% | - |
Elaborado pelos autores. Fonte: (Unicca, 2024), (Cardoso, 2022) e (MMA, 2024)
A parceria estabelecida entre organização de catadoras/es e prefeitura, otimiza a construção e participação da categoria em redes solidárias com mediação e participação de gestores públicos como no caso de Cruz Alta, enaltecendo o prestígio da categoria, com ganhos que são além do setor financeiro, mas está no espectro da solidariedade e de identidade com o trabalho ressignificado, são fatores que impactam diretamente os índices de reciclagem e a renda da categoria.
No contexto de Porto Alegre, as contradições e conflitos internos dos grupos em constante reestruturação pela volatilidade da permanência de associadas/os, o contrato de prestação de serviços de coleta realizado por terceiros, sem vínculo com a qualidade efetiva dos resíduos coletados, as condições precárias de instalações, a ausência de repasse efetivo de custos e manutenção dos galpões de triagem, levam a desconstrução do trabalho cooperado e colaborativo, levando a cidade a ter índices pífios de reciclagem, nendo menos da metade do índice nacional. O contrato é obrigatório, a parceria também deveria ser. A Conta tem que fechar já.
Referências
BRASIL (2010). Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Brasília: Diário Oficial da União. 2010a. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/_xxx0000-0000/0000/ lei/l12305.htm. Acesso em 15 mar. 2024.
BRASIL. Lei nº 11.445, de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de
21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei nº no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 5 jan. 2007.
Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/_xxx0000-0000/0000/xxx/x00000.xxx. Acesso em 15 mar. 2024.
BRASIL. Lei Nº 14.133, de 1º de Abril de 2021, Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília: Diário Oficial da União. 01 de abr 2021. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/_Xxx0000-0000/0000/Xxx/X00000.xxx#xxx000 Acesso em 25 jun. 2024.
XXXXXXX, Xxxxxxxxx. O eu catador reciclando humanidades. Editora IFCH. Porto Alegre, 2022.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS - CNM. Observatório dos lixões. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx.xxx.xx/> Acesso em 25 jun. 2024.
XXXX, X. X. (2016). “Waste pickers and cities.” Environment and Urbanization, 28(2), p. 375–390. xxxxx://xxx.xxx/00.0000/0000000000000000
XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Avaliação dos contratos administrativos firmados entre prefeituras municipais e empreendimentos de catadores de resíduos recicláveis no Brasil' 29 set 2022 150 f. Doutorado em Engenharia Urbana Instituição de Ensino: Universidade Federal de São Carlos, São Carlos Biblioteca Depositária: xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxx/xxxxxx/00000
XXXXXXX, X. . Plastic and presentism: the time of disposability. Journal of Contemporary Archaeology 5(1), p. 91-102. 2018. ISSN (print) 2051-3429 (online) 2051-3437 xxxxx://xxx.xxx/00.0000/xxx.00000
XXXXXX, X. Reclaiming the discarded: life and labor on Xxx’x garbage dump. Durham, N.C.: Duke University Press. 2018. 248 p.
MMA. Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. O potencial da reciclagem no Brasil de geração de trabalho e renda. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/000000/x-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxx-xx-xxxxxx-xx- geracao-de-trabalho-e-
renda#:~:text=No%20Brasil%2C%20apenas%204%25%20dos,cadeia%20da%20reciclagem
%20no%20pa%C3%ADs.> Acesso em 09 de jul. 2024
MOVIMENTO NACIONAL DOS CATADORES. MNCR. Carta de Brasília. MNCR:
Brasília, junho de 2001. Disponível em xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxx-x-xxxx/xxxxxxxxxx-x- objetivos/carta-de-brasilia acesso em 02 de jul. 2024
MOVIMENTO NACIONAL DOS CATADORES. MNCR. Reciclagem Popular. São Paulo: MNCR 2014. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxxxxxxx-xxxxxxx> Acesso: 02 mar. 2024
XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Reprodução da (in)justiça ambiental e inclusão perversa de catadores na Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS. 2022. 217 f. Tese (Doutorado) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais, Criciúma, 2022
XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. o trabalho na catação de materiais recicláveis e as disputas territoriais na região oeste do Paraná. In. Anais… 7 Congresso Brasileiro de Geógrafos – CBG. “A AGB e a Geografia brasileira no contexto das lutas sociais frente aos projetos hegemônicos”.Vitória/ES entre 10 e 16 de agosto de 2014, no Campus de Goiabeiras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Disponível em xxxxx://xxx.xxx0000.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/xxxxx/0/0000000000_XXXXXXX_Xxxxxx_XXX.xx f
XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx X. Xxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. A Contribuição do Projeto Profissão Catador Para a Organização dos Catadores de Materiais Recicláveis de Cruz Alta, Tupanciretã, Xxxxx xx Xxxxxxxxx e Salto do Jacuí. Revista: Di@logus, V. 4 nº 1, 2014. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/xxx/00000000000000xx_/xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxx x.php/Revista/article/viewFile/2810/535> Acesso em: 28 jun 2024.
XXXXXXX, X. Dilemmas of Co-production: How Street Waste Pickers Became Excluded from Inclusive Recycling in São Paulo. Latin American Politics and Society, 64(2), 67-92. doi:10.1017/lap.2022.6
XXXXXXX, X. Top-Down and Bottom-Up Formalization: Waste Pickers’ Struggles for Labor Rights in São Paulo and Bogotá. ILR Review Volume 77, Issue 1, January 2024, p. 32-61 xxxxx://xxx.xxx/00.0000/00000000000000000
XXXXXXX, X. Revolution in the Garbage Dump: The Political and Economic Foundations of the Colombian Recycler Movement, 1986-2011 Social Problems, 2016, 63, 351–372 doi: 10.1093/socpro/spw01
XXXXXXXXX, X .E; XXXXXXXXX, X. Expanding worldwide urban solid waste recycling: The Brazilian social technology in waste pickers inclusion. Waste Management & Research, London, v. 33, n. 12, 2015. p. 1084-1093
XXXXX, X. X.; XXXX, F. L.; XXXXXXX, A. R. Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável - Brasil. Brasília: IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 2013 76 p. Disponível em
xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxx/xxxxxxx/XXXx/xxxxxxxx_xxxxxx/000000_xxxxxxxxx_ situacaosocial_mat_reciclavel_brasil.pdf Acesso em 13 fev. 2024
XXX XXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx. Economia solidária e desenvolvimento humano: um estudo da sustentabilidade de empreendimentos econômicos solidários e das condições de vida de catadoras e catadores de materiais recicláveis. 16 Dez 2016. 240 f. Doutorado em Economia, com ênfase em Economia do Desenvolvimento. Porto Alegre: UFRGS Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxx.xxx/00000/000000. Acesso em 26 jun. 2024.
VIRGEM, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx da; SENA, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx de; XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx. O trabalho em cooperativas de reciclagem de lixo: aspectos socioambientais segundo a ótica dos cooperados. Revista Subjetividades., Fortaleza , v. 14, n. 1, p. 42-52, abr. 2014 . Disponível em
<xxxx://xxxxxx.xxxxxxx.xxx/xxxxxx.xxx?xxxxxxxxxx_xxxxxxx&xxxxX0000-00000000000000000&x ng=pt&nrm=iso>. acessos em 25 jun. 2024.
UNICCA. União faz a força e a diferença. Dísponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx- 39/a-uniao-que-faz-a-forca-e-a-diferenca/> Acesso em 09 jul. 2024