A BOA-FÉ OBJETIVA NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
A BOA-FÉ OBJETIVA NA FASE PRÉ-CONTRATUAL
THE GOOD OBJECTIVE FAITH; IN THE PRE-CONTRACTUAL PHASE.
Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx 1 Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx 2 Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx de Cristo
Resumo
O contrato contemporâneo não se distingue do moderno apenas pelo seu novo conteúdo, mas também por seus reflexos serem estendidos ao momento anterior à contratação. A boa-fé objetiva tem um papel importante quanto à mensuração destes efeitos obrigacionais.
Palavras-chave: Boa fé, Contratos, Boa fé objetiva
Abstract/Resumen/Résumé
The contemporary contract is not distinguished from the modern one only by its new content, but also by its reflexes being extended to the moment before the contracting. Objective good faith plays an important role in measuring these binding effects.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Good faith, Contracts, good faith, Objective
1 Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania.
2 Mestre em Direito Empresarial e Cidadania. Advogado.
INTRODUÇÃO
O contrato contemporâneo não se distingue do moderno apenas pelo seu novo conteúdo, mas também por seus reflexos serem estendidos ao momento anterior à contratação. A boa-fé objetiva tem um papel importante quanto à mensuração destes efeitos obrigacionais.
Conforme Xxx Xxxxxxx Xxxxxx e Rui Geraldo Camargo Vianna1:
Conforme o poeta já dizia, o futuro não é mais como era antigamente. O incremento econômico nas trocas sociais contemporâneas enseja responsabilidades para os contraentes tão diversas das obrigações tipicamente modernas, quanto é diverso o ambiente jurídico atual. As profundas alterações movidas no universo econômico altera o formato social das múltiplas relações travadas entre as pessoas físicas e também com as empresas, atraindo responsabilidades jurídicas adicionais para o arcabouço dos cidadãos não apenas contraentes, mas também proponentes ou prospectantes.
De fato, tradicionalmente falava-se da responsabilidade daquele que contrata.
Hoje se fala também da responsabilidade até mesmo daquele que especula.
A fim de delimitar2 o campo de investigação da pré-contratualidade, Enéas Costa Garcia3 informa que a relação tem início com as negociações preliminares e a distingue de proposta e do contrato preliminar.
Antonio Menezes Cordeiro4 as negociações preliminares como sendo a fase de negociações, em que as partes “desenvolvem contactos bilaterais tendentes à formação da vontade contratual, em termos de acordo”. Ainda conforme o autor, essa fase se “estende desde a primeira abordagem entre as partes, com o fito de contratar, até a emissão da proposta contratual”.
1 PARODI, Xxx Xxxxxxx. XXXXXX, Xxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Apontamentos sobre a responsabilidade civil por ruptura das tratativas. Disponível em: xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxxxx/?xx000. Acesso em: 24. Jun. 2013.
2 Sem qualquer pretensão exaustiva.
3 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Responsabilidade pré e pós-contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Editora Xxxxxx xx Xxxxxxxx. 2003, p. 29-32.
4 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Direito das obrigações. Lisboa : Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980, p. 170.
A proposta em si possui natureza jurídica contratual, porque representa a oferta, as bases contratuais sobre as quais, uma vez expressada a aceitação pela outra parte, formada estará a avença entre as partes. Neste sentido, Xxxxx Xxxxxx Diniz5.
O contrato preliminar também se inclui na fase de contratualidade, porque é um pacto celebrado com o escopo de registrar a obrigação jurídica de futura celebração do contrato principal. Neste sentido, Caio Mario da Silva Pereira6 e Enéas Costa Garcia7.
1 A culpa in contrahendo e o tratamento da responsabilidade civil pré-contratual no Direito brasileiro
O marco teórico histórico estrangeiro da responsabilidade pré-contratual tem início com Xxxxxx xxx Xxxxxxx, que no ano de 1861, publicou um artigo intitulado “Culpa in contrahendo ou a indenização por contratos nulos ou não chegados à perfeição”. Em resumo, partindo de um caso concreto, visava identificar a possibilidade de aplicação do regime civilista do tratamento de contratualidade àquele que, por ato culposo, leva a outra parte a se vincular a um contrato inválido. Contratos inválidos não poderiam, a priori, alcançar a eficácia contratual.
De acordo com Antonio Menezes Cordeiro8, “pode considerar-se que, para XXXXXXX, a culpa in contrahendo é um instituto de responsabilidade civil pelo qual, havendo nulidade no contrato, uma das partes, que tenha ou devesse ter conhecimento do óbice, deve indemnizar a outra pelo interesse contratual negativo”. E explica o autor que, em sua opinião, a base conceituar de Xxxxxxx não repousa sobre o fato de que a culpa in contrahendo emergeria do próprio contrato nulo.
Apesar dos desencontros de várias de suas proposições, o conjunto do texto de Xxxxxxx permite, antes, uma derivação a partir da culpa como tal, e um integrar das consequências na responsabilidade contratual, por força das condições especiais em que a referida culpa veio a concretizar. No espírito da obra de
5 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 17ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 68: Afirma a autora: “A oferta, por sua vez, traduz uma vontade definitiva de contratar nas bases oferecidas, não estando mais sujeita a estudos ou discussões, mas dirigindo-se à outra parte para que aceite ou não, sendo, portanto, um negócio jurídico, constituindo- se em elemento da formação contratual”.
6 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil; v. III, 16ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 55.
7 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. Cit. p. 33
8 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina. 2001, p. 531-532.
Xxxxxxx, como hoje é entendido, deve considerar-se que ele não deu, da culpa in contrahendo, uma fundamentação clara e unitária. Fazendo uso de um discurso marcadamente tópico- material, Jhering procurou chamar a atenção da Ciência do Direito para uma necessidade de complementação juspositiva, através da área, pouco explorada, da formação dos contratos. Fazendo-o, Jhering deu, do fenómeno, um pré-entendimento que ainda se mantem.
Para o Brasil, culpa in contrahendo refere-se à culpa na formação dos contratos, sem a necessária investigação da invalidade do contrato. A expressão como originalmente adotada por Xxxxxxx foi dilatada e não pode mais corresponde ipsis literis ao núcleo anunciado por Jhering.
Conforme Enéas Costa Garcia9:
Em síntese, independentemente do fundamento normativo, o fato é que reconhece-se a existência de responsabilidade pré- contratual por parte do contratante que omite informação a respeito de uma circunstancia frustrará o objetivo contratual, seja uma causa de nulidade/anulabilidade, seja uma causa de ineficácia do negócio. A meu ver essa mesma responsabilidade pode ser sustentada no nosso direito. Apesar da inexistência de uma norma especifica como a do artigo 1.338 do Código Civil Italiano, o recurso ao princípio geral da boa-fé contratual já é bastante para fundamentar essa obrigação de informação, da qual o artigo 1.338 do CC italiano é mera concretização.
A respeito da Responsabilidade Civil Pré-Contratual, de acordo com Regis Fichtner Pereira10, era compreensível que o Código Civil Brasileiro de 1916, ora revogado, não tenha estabelecido uma tutela para a pré-contratualidade, uma vez que foi promulgado em torno de cinquenta anos depois da publicação do célebre artigo de Xxxxxxx, que ainda gozava de parca repercussão até aquele xxxxxxx00.
No Codex em vigor, destacam-se os artigos 113, 187 e 422, todos do Código Civil Brasileiro de 2002, já analisados nesta pesquisa anteriormente. Regis Fichtner Pereira12 anota que em comum estas normas possuem justamente o elemento a figura
9 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Responsabilidade pré e pós-contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Editora Xxxxxx xx Xxxxxxxx. 2003, p. 215.
10 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. A responsabilidade civil pré-contratual. Rio de Janeiro: Renovar. 20012, p. 193.
11 Contudo, salienta o autor que àquela altura já haviam sido publicados os relevantes trabalhos de Xxxxxxxx, na Itália, e de Josserand, na França. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Op. Cit. p. 193
12 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Op. Cit. p. 210-211.
jurídica da boa-fé objetiva. E estabelece algumas críticas referentes ao conteúdo legiferado especialmente do artigo 422, notadamente comparando-o ao artigo 198 do Código Civil Grego, que expressamente referência a responsabilidade civil “mesmo se o contrato não for concluído”. Também o artigo 1.337 regulamenta que “as partes no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato devem comportar-se segundo a boa-fé”. Bem ainda, o artigo 227º do Código Civil Português13:
ARTIGO 227º. (Culpa na formação dos contratos). 1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
A crítica do autor reside no fato de que o artigo 422 da legislação brasileira não seria, em sua visão, explícita o suficiente no que diz com a responsabilização obrigatória, os efeitos quanto à violação da boa-fé na pré-contratualidade. Na opinião deste pesquisador, ainda que a crítica mereça prosperar no aspecto da interpretação gramatical, contudo sistemática e teologicamente, a doutrina e a jurisprudência vêm corrigindo qualquer lacuna deixada em aberto pelo codificador. Mas, é certo que sempre é preferível que os compromissos do Estado-Lei, especialmente no aspecto da punição da violação de um dever ético, estejam sempre os mais expressos possível, inclusive pela função pedagógica social.
2 A boa-fé objetiva como base da natureza jurídica da responsabilidade civil pré- contratual
Classicamente, existe diferença estruturada entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, o que poderia interferir diretamente na análise da responsabilidade pré-contratual, em um sensato debate sobre a sua natureza jurídica: onde estaria era alocada, nas tutelas da responsabilidade contratual ou na esfera da extracontratualidade? Estaria a responsabilização pré-contratual ferindo a livre disposição da autonomia privada?
De acordo com os irmãos Mazeaud14, as diferenças entre as ordens de responsabilidade seriam apenas acessórias, e não fundamentais. Contudo, é fato que a
13 CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxx.xx/xxxx/xxxxxxxx.XXX. Acesso em: 16 fev. 2017.
14 XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXX, León; TUNC, Xxxxx. Tratado teórico y practivo de la responsabilidad civil delictual y contractual. Tomo I, vol. I. Buenos Aires: Jurídicas Europa-América, 1977, t.1- v.1-trad
estruturação jurídica do ordenamento pátrio presta tutela diferenciada para cada âmbito de responsabilidade civil, fazendo gerar efeitos que as divergem fundamentalmente. Em 1995, também Anelise Becker15 aliou-se a essa posição científica, dizendo que a responsabilidade teria uma fonte unitária no contrato social e diferenciando-se apenas pela intensidade desse vínculo contratual.
Contudo, como assinala Carlos Roberto Gonçalves16, “na responsabilidade extracontratual, o agente infringe um dever legal e, na contratual, descumpre o avençado”. E isso justamente porque, mesmo com as flexibilizações salutares da nova ordem, onde existe um contrato, existe uma formação de lei entre as partes, existe uma intenção concretizada de se regular os termos de uma relação jurídica entre no mínimo dois polos, sendo justificável que a tutela jurídica acompanhe esse reforço do vínculo que, deliberadamente, foi estabelecido pelas partes, supostamente em igualdade de condições. O mesmo autor, após algumas digressões sobre os impasses em situações de responsabilização de vínculos multíplices (em que coexistem obrigações extra e contratuais), apresenta uma relevante síntese, em apanhado geral, das diversas teorias que surgiram para explicar a natureza jurídica da responsabilidade pré-negocial, as quais vêm
para tentar dirimir os problemas de interpretação dos casos limítrofes.
Até há algumas décadas, a principal produção cientifica acerca da pré- contratualidade remontava a Antonio Chaves17, que à guisa de conclusão, afirmou sobre a natureza jurídica ora investigada:
não ser possível construir uma justificativa da obrigação de reparar danos de ordem pré-contratual sob qualquer ponto de vista unitário. E isso pela simples razão de que a responsabilidade pré- contratual é decorrente de uma situação de fato para a qual concorrem fatores que diversificam caso por caso, não permitindo a subordinação a um único princípio teórico, renitentes como são a qualquer classificação rígida.
No ano de 1995, Récio Eduardo Cappelari18.
Xxxx Xxxxxx-Xxxxxx y Castillo da 5ª ed. francesa. P. 113. In verbis: “no existe diferencia fundamental entre los dos ‘órdenes de responsabilidades. Existen algunas diferencias accesorias”.
15 XXXXXX, Xxxxxxx. Elementos para uma nova teoria unitária da responsabilidade civil. In: Revista Direito do Consumidor. São Paulo, n. 13, p. 43, jan/mar, 1995.
16 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Responsabilidade Civil. 14ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 24.
17 XXXXXX, Xxxxxxx. Responsabilidade pré-contratual. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense. 1997, p. 149-150.
18 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Responsabilidade pré-contratual: aplicabilidade ao direito brasileiro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1995. p. 70.
Contudo, não podemos aceitar essa pretensamente justificada imprecisão de conceitos face à amplitude que se deve cometer ao princípio da boa-fé objetiva, que possui justamente essa característica de ampliação de conceitos ou aumento de deveres, como já referimos, a princípio, o qual, se inserido em uma cláusula geral, aumenta o campo de ação dessa mesma norma jurídica, o que, por sua vez, possibilita o aumento, por via judicial, dos deveres aí inseridos, incluindo os de correição de conduta, ou seja, os decorrentes da boa-fé objetiva que constituem a base da responsabilidade pré-contratual.
Na mesma esteira, Enéas Costa Garcia19 se posiciona favoravelmente ao lado de Cappelari, em prol da boa-fé objetiva, e rechaça a teoria dantes propagada por Xxxxxxx Xxxxxx. Iniciando sua abordagem por este último autor, afirma:
Data venia, não cremos que o tema da responsabilidade pré- contratual seja infenso a uma sistematização, ou melhor: que não haveria a possibilidade de localizar um ponto de unidade do sistema, que pudesse servir de fundamentação para a teoria. Já adiantando a conclusão a que se pretende chegar, queremos crer que a boa-fé objetiva pode servir de fundamento para justificar esse tipo de responsabilidade, dando unidade ao sistema jurídico. Concordamos pois com Récio Xxxxxxx Xxxxxxxxx segundo o qual a cláusula geral de boa-fé pode cumprir o papel de dar unicidade a este sistema, consistindo no fundamento para a responsabilidade pré-contratual [...]
Relevante, ainda, citar Antonio Campos Ribeiro20:
5. Teoria da Boa-fé Objetiva: Entendemos que esta é a melhor fundamentação jurídica para que se imponha a responsabilidade pré-contratual. Observar que lastreamos tal base, na boa-fé objetiva, padrão ético de lealdade, dignidade e hostilidade que devem pontuar todas as relações jurídicas travadas entre os seres humanos. Também entendem desta forma XXXXX XXXXXXX XXXXXXXXX, XXXX XX XXXXX XXXXXXX XXXXXX e X.XXX XXXXXX XXXXX. Assim, como deveres impostos às partes nas tratativas, impõem: a) dever de informação [...] b) deveres de lealdade [...] (grifos originais)
19 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Responsabilidade pré e pós contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Editora Xxxxxx xx Xxxxxxxx, 2003. p. 262-263
20 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Responsabilidade Civil Pré-Contratual. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxx0000/xxxxxxxxxx0000X/xxx_xxxxxxxxxxxxxxxxx
.pdf. Acesso em: 16 fev. 2017.
Xxxxxxxxx, o autor passa a listar deveres que serão tratados neste próximo item, na justa sequência.
De fato, este pesquisador se alia com a posição propagada por Xxxxx Xxxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, entendendo pela relevância da teoria da boa-fé objetiva como essencial para a justificativa da responsabilização civil pré-contratual, no que diz com a sua contextualização da contemporaneidade jurídica e na nova ordem contratual, que valoriza primordialmente o elemento ético como valor jurídico fundante.
3 A boa-fé em diálogo com a relação obrigacional complexa, a violação positiva dos contratos e os deveres laterais de conduta
Xxxxxxx Xxxxxxx Cordeiro21 faz a correlação entre a atual concepção e tratamento jurisprudencial da culpa in contrahendo e a sua materialização nos deveres acessórios: “A ponderação jurisprudencial da culpa in contrahendo revela a sua concretização em deveres de protecção, de informação e de lealdade que, ultrapassando os valores em jogo na contratação, se fundam na boa fé”.
Conforme Xxx Xxxxxxx Xxxxxx e Xxx Xxxxxxx Xxxxxxx Vianna22, a boa-fé objetiva é parte integrante da efetividade da função social das figuras jurídicas, com a imperatividade dos deveres acessórios de conduta para sua concretização:
É justamente pelo fato de que a boa-fé objetiva é uma cláusula geral que emerge de um substrato ético, que há necessidade de fixar ponteiros práticos que apontem para a sua efetividade nas relações jurídicas. Do contrário, restaria eivada de insustentabilidade por falta de viés de prática aplicativa, perdendo-se nos buracos negros dos institutos e das várias leis ‘que não pegam’ no Brasil. Materialização, delimitação de condutas, compreensão do alcance individual e coletivo são palavras de ordem quando se trata de conferir efetividade para a função social de uma figura jurídica. E neste ponto, doutrina, jurisprudência e operadores do direito como um todo precisam se tornar fortalecidos aliados em prol da consubstanciação da sociedade fraterna constitucionalmente projetada, valorizando o solidarismo ético, a dignidade da pessoa humana e a livre iniciativa exercida de maneira ética. E é em nome desses valores fundantes que os deveres laterais de conduta ganham sua robustez.
21 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra : Almedina, 2001, p. 1290.
22 XXXXXX, Xxx Xxxxxxx. XXXXXX, Xxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Apontamentos sobre a responsabilidade civil por ruptura das tratativas. Disponível em: xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxxxx/?xx000. Acesso em: 24. fev. 2017.
Para que possamos situar juridicamente a resposta judicial indenizatória à violação da boa-fé, portanto, passa-se pelos deveres laterais de conduta. E para contextualizá-los é preciso compreender a relação obrigacional como um processo e a violação positiva dos contratos como nova forma de incumprimento, onde justamente estarão situados os deveres acessórios.
De acordo com Judith Martins-Costa23, muitos doutrinadores não acompanharam a evolução do direito das obrigações e ainda insistem em ver a relação jurídica de maneira simplista, seguindo o estrito exemplo romanista, que reputava a obligatio unicamente como um vínculo que sujeitava as partes de maneira estrita. Emergiu, então, a concepção da obrigação bipolar estabelecida entre credor e devedor.
É uma classificação meramente externa porque nada diz sobre a estrutura dos múltiplos deveres, estados, ‘situações’ e poderes que decorrem do vínculo, o que se denomina de aspecto interno, vale dizer, ao que se volta ao exame destes, e da conduta concreta das partes no dinâmico processo de desenvolvimento da relação obrigacional. Na análise externa, estes deveres se encontram como que ‘soltos’ no vínculo, como que atomizados, sem que se possa perceber a existência de uma gradação entre eles.
Segundo Vitor Borges da Silva24 esta nova compreensão do vínculo “obrigacional como totalidade concreta e como processo dá ensanchas à percepção de que ele é vínculo dinâmico e, assim sendo, move-se processualmente em direção a uma finalidade”, que o tornaria polarizado, como seu elemento interno. E sintetiza:
Atribui-se ao jurista alemão Xxxxxxxx Xxxxx a mudança de tal perspectiva estática do vínculo, porquanto a ele coube a defesa e a divulgação da complexidade intraobrigacional. Recuperando uma terminologia outrora empregada por Xxxxxxx, Siber concebeu o vínculo obrigacional como um “organismo”, já que a obrigação albergaria uma “multiplicidade de pretensões, presentes ou possíveis, para o futuro, estando o todo unificado em função do conjunto orgânico formado pela relação global”. Posteriormente, Xxxx Xxxxxx, apartando-se da concepção organicista, vislumbrou a relação jurídica obrigacional por meio
23 Xxxxxxx-Xxxxx, Xxxxxx. A boa-fé no direito privado. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000, p. 383
24 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx da. A complexidade interna da relação jurídica obrigacional e a eficácia “subversiva” da boa-fé objetiva no campo obrigacional. Xxx Xxxxxxxxx, Teresina, ano 17, n. 3342, 25 ago. 2012 . Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/00000>. Acesso em: 17 jun. 2013.
do conceito geral concreto, definindo, desse modo, o vínculo obrigacional como totalidade, como um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas. Tal conjunto, contudo, não representa a mera soma dos elementos que o compõem; ao revés, estes se encontram intimamente relacionados, vale dizer, instrumentalmente conectados por um elemento em comum: a finalidade da obrigação. Em razão disso, o vínculo manter-se-ia como tal ainda que alguns deveres não mais persistissem e alguns direitos não mais subsistissem devido ao seu exercício ou à prescrição. Ou, ainda, caso houvesse alteração dos integrantes da relação jurídica obrigacional ou das cláusulas contratuais, por vontade das partes ou por lei.
A “obrigação como processo”, ou a teoria da relação obrigacional complexa, foi referencialmente trabalhada, no Brasil, por Xxxxxx Xxxxxxxxx do Couto e Silva25:
Com a expressão ‘obrigação como processo’ tenciona-se sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência [...] A obrigação vista como processo, compõe-se, em sentido largo, do conjunto de atividades necessárias à satisfação do interesse do credor.
No que tange à execução do conteúdo avençado, a doutrina tradicional identifica o inadimplemento absoluto e a mora como formas de descumprimento contratual. Contemporaneamente, identifica-se a violação positiva dos contratos, que se refere ao cumprimento defeituoso da prestação, não necessariamente do incumprimento do núcleo obrigacional de cerne da relação jurídica.
De acordo com Jorge Cesa Ferreira da Silva26, para a doutrina alemã “violação positiva do contrato é todo descumprimento da obrigação que não configure impossibilidade ou mora”. E no Brasil, o conceito também pode ser adotado e ainda alargado27: “A violação positiva do contrato, no direito brasileiro, corresponde ao
25 XXXXX X XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky. 1976.
26 XXXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro : Renovar. 2007, p. 266.
27 Uma vez que a doutrina alemã é o principal referencial teórico-doutrinário para o tema, relevante a compilação: “No direito brasileiro, a mesma definição, apesar de passível de ser aceita, pode ser complementada positivamente, tendo em vista a formulação das regras dos vícios – seja no Código Civil, seja no do Consumidor – e a conceituação legal da mora. A maior amplitude das regras dos vícios as faz aplicáveis a uma serie de situações em que, na Alemanha, a violação positiva do contrato é chamada a intervir. Por sua vez, apesar do fato de que o núcleo conceitual da mora também se limite ao fator “tempo”, sua conceituação legal no Código Civil permite, com maior grau de facilidade, a visualização de que, mesmo chamado “mau cumprimento”, pode ser a ela vinculado, desde que viável o cumprimento
inadimplemento decorrente do dever lateral, quando esse dever não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação”.
A violação positiva do contrato refere-se a uma forma de incumprimento e não deve ser confundida com a tutela obrigacional do interesse negativo e positivo que a parte possui diretamente em uma obrigação em concreto. Em suma, o interesse é dito negativo por se referir a uma obrigação de “não fazer”, ou seja, o direito que a parte possui de que a sua boa-fé objetiva e confiança não sejam violadas.
Adentrando agora ao tema dos deveres laterais, ao final do capítulo terceiro desta pesquisa, a sua conceituação e marco teórico foram amplamente tratados, razão pela qual ora evita este pesquisador incorrer em repetições descabidas. Contudo, ainda é mister analisar como a doutrina luso e brasileira têm elencado, listado, estes deveres, delimitando-os.
(de deveres de prestação) posterior.” XXXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro : Renovar. 2007, p. 266.
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