Cláusula de contrato de plano de saúde que estabelece coparticipação no custeio de internações psiquiátricas: análise a partir do Tema Repetitivo n. 1032
Cláusula de contrato de plano de saúde que estabelece coparticipação no custeio de internações psiquiátricas: análise a partir do Tema Repetitivo n. 1032
e da jurisprudência do STJ
Xxxxx xx Xxxxxx XXXXXXXX X XXXXX*
RESUMO: O artigo discute algumas das principais linhas argumentativas envolvidas no debate jurisprudencial acerca da validade das cláusulas de contratos de planos de saúde que estabelecem a coparticipação dos beneficiários no custeio de internações psiquiátricas a partir do 31º dia de internação. A análise tem como ponto de partida a fixação de tese acerca do tema pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, sob o rito dos recursos especiais repetitivos (Tema Repetitivo n. 1032) e tem como nortes as disposições normativas acerca do tema, com ênfase na regulação setorial da saúde suplementar e do Código de Defesa do Consumidor.
PALAVRAS-CHAVE: Contratos de planos de saúde (planos privados de assistência à saúde); internação psiquiátrica; cláusula de coparticipação; Tema Repetitivo n. 1032.
SUMÁRIO: Introdução; – 1. A regulação específica do mecanismo de coparticipação; – 2. Coparticipação, limitação de prazo de internação e limite financeiro; – 3. O desenho constitucional e infraconstitucional da saúde suplementar; – 4. Proteção dos consumidores, equilíbrio econômico e função social dos contratos de planos de saúde; – 5. Síntese conclusiva; – 6. Referências bibliográficas.
TITLE: Clause of health plan contract that establishes co-participation in the cost of psychiatric hospitalizations: analysis based on Repetitive Theme n. 1032 and the jurisprudence of the STJ
ABSTRACT: The article discusses some of the main arguments involved in the jurisprudential debate about the validity of clauses in health plan contracts that establish the copayment of beneficiaries in the cost of psychiatric hospitalizations from the 31st day of hospitalization. The analysis has as its starting point the establishment of a thesis on the subject by the 2nd Chamber of the Superior Court of Justice, under the rite of repetitive special appeals (Repetitive Theme n. 1032) and is guided by the normative provisions on the subject, with emphasis in the sectorial regulation of supplementary health and the Consumer Defense Code.
KEYWORDS: Health plan contracts (healthcare plans); psychiatric hospitalization; copayment clause (coinsurance); Repetitive Theme n. 1032.
CONTENTS: Introduction; – 1. The specific regulation of the copayment mechanism; – 2. Copayment, limitation of hospital stay and financial limit;
– 3. The constitutional and infraconstitutional design of supplementary health; – 4. Consumer protection, economic balance and social function of health insurance contracts; – 5. Conclusive summary; – 6. References.
* Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado. E-mail: xxxxxxxxxxxx@xxxxxxx.xxx.xx.
Introdução
Em1 15.10.2019, o Superior Tribunal de Justiça afetou os recursos especiais n. 1.755.866/SP e n. 1.809.486/SP ao rito dos recursos repetitivos, previsto no artigo 1.036 do Código de Processo Civil. O objetivo da afetação era a fixação de tese acerca da validade de cláusulas de contratos de planos de saúde2 que estabelecem o mecanismo da coparticipação e impõem ao beneficiário contratante o custeio parcial de internações hospitalares para tratamento de transtornos psiquiátricos por períodos superiores a trinta dias.3
Os dois recursos especiais afetados foram interpostos por uma única operadora de planos privados de saúde, em face de dois acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os julgados afirmaram a abusividade de cláusulas de coparticipação nos moldes acima com base na Súmula n. 302 do STJ, segundo a qual “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado” e na Súmula n. 92 do próprio TJSP, que replica o enunciado sumular da Corte Superior.
O REsp n. 1.755.866/SP teve origem em ação na qual beneficiária da operadora de saúde requereu a condenação desta à obrigação de cobrir integralmente os custos de internação psiquiátrica, sem limitação de número de dias de hospitalização ou cobrança adicional de coparticipação. Por sua vez, o REsp n. 1.809.486/SP foi tirado de ação de regresso na qual outra beneficiária da operadora pediu a condenação desta ao ressarcimento de valores dispendidos com o custeio (parcial) de internação psiquiátrica a que fora submetida – pagos justamente em razão de cláusula de coparticipação inserida no contrato celebrado entre as partes.
As duas ações foram julgadas procedentes em primeiro e segundo graus e, por isso, em ambos os casos, a operadora ré interpôs recursos especiais com fundamento no artigo 16, inciso VIII, da Lei n. 9.656/1998; e nos artigos 51, e 54, §§ 3° e 4° do Código de Defesa
1 O autor agradece imensamente a colaboração da Prof.ª Dra. Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxx, com valiosos debates acerca do tema e incentivo à elaboração do trabalho, sem os quais este jamais poderia ter sido concluído.
2 Nada obstante o artigo 1º, inciso I, da Lei n. 9.656/1998 tenha positivado a nomenclatura “plano privado de assistência à saúde”, a prática forense e o linguajar coloquial acabaram por consagrar as expressões “plano de saúde” ou “seguro de saúde” para fazer referência aos contratos que compõem o objeto da análise. Por esse motivo, e por razões estilísticas, ao longo do trabalho será adotada prioritariamente a nomenclatura consagrada pelo uso, fazendo-se alusão a “contratos de plano de saúde”, em vez de “contratos de planos privados de assistência à saúde”.
3 Tema Repetitivo n. 1032/STJ: “Definição da tese alusiva à legalidade ou abusividade de cláusula contratual de plano de saúde que estabelece o pagamento parcial pelo contratante, a título de coparticipação, na hipótese de internação hospitalar superior a 30 dias decorrente de transtornos psiquiátricos” (STJ, ProAfR no REsp 1.809.486/SP e ProAfR no REsp 1.755.866/SP, 2ª S., Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, publ. em 21.10.2019).
do Consumidor. Em apertada síntese, alegou que as cláusulas de coparticipação tinham respaldo na Lei dos Planos e Seguros de Saúde e que as previsões estavam dispostas de forma clara e expressa nos contratos firmados com os consumidores, de modo que não haveria violação ao CDC ou qualquer motivo para afirmação de sua invalidade.
Após a chegada do REsp n. 1.755.866/SP ao STJ, a companhia recorrente peticionou naqueles autos solicitando a afetação do processo ao rito dos recursos especiais repetitivos, para fixação de tese vinculante sobre a validade da cláusula de coparticipação aplicada a internações para tratamento de transtornos psiquiátricos que se prolonga por mais de trinta dias. O pedido da operadora foi acolhido, inicialmente, com a indicação do recurso como representativo de controvérsia pelo Ministro Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxxxx, Presidente da Comissão Gestora de Precedentes da Corte e, após, com a afetação do tema ao rito dos repetitivos pela 2ª Seção, na esteira do voto condutor proferido pelo relator Ministro Xxxxx Xxxxx, tendo como paradigmas exatamente o REsp n. 1.755.866/SP e o REsp n. 1.809.486/SP.
Em 09.12.2020, a 2ª Seção julgou o mérito do tema de forma unânime, tendo fixado a seguinte tese:
Nos contratos de plano de saúde não é abusiva a cláusula de coparticipação expressamente ajustada e informada ao consumidor, à razão máxima de 50% (cinquenta por cento) do valor das despesas, nos casos de internação superior a 30 (trinta) dias por ano, decorrente de transtornos psiquiátricos, preservada a manutenção do equilíbrio financeiro.
(STJ, 2ª S., REsp 1.809.486/SP e REsp 1.755.866/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, publ. em 16.12.2020)4
Nessa linha, a partir do julgamento do Tema Repetitivo n. 1032 pelo STJ, pretende-se analisar alguns dos principais caminhos argumentativos trilhados pela jurisprudência brasileira no debate sobre a validade, em abstrato, de cláusulas de contratos de planos de saúde que instituem a coparticipação do beneficiário no custeio de internações psiquiátricas superiores a trinta dias. A análise leva em conta as disposições do ordenamento sobre o tema, sem descuidar das razões de políticas públicas por trás da
4 Anote-se que, enquanto o acórdão do REsp 1.755.866/SP não foi objeto de recurso e teve seu trânsito em julgado certificado em 09.03.2021, o acórdão do REsp 1.809.486/SP foi objeto de oposição de embargos de declaração. Os embargos declaratórios foram acolhidos parcialmente e sem efeitos modificativos, apenas para sanar erro material constante da fundamentação do julgado, que mencionava súmula revogada do STJ (Súmula n. 469/STJ) em vez da súmula atualmente vigente no tribunal acerca da aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor aos contratos de planos de saúde (Súmula n. 608/STJ). (STJ, EDcl no REsp 1.809.486/SP, 2ª S., Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, publ. em 09.09.2021). Após, em 10.11.2021, certificou-se o trânsito em julgado do REsp 1.809.486/SP.
previsão de tal fator de moderação, tendo como principal foro de estudo as decisões do próprio Superior Tribunal de Justiça na matéria.
Desde logo, apesar de os julgados refratários à cláusula de copayment e à aplicação desta usarem os termos “cláusulas abusivas” ou “práticas abusivas” – escorados na terminologia do Código de Defesa do Consumidor –, vale dizer que o cerne da discussão não reside na aferição de eventual “abuso” (de direito), mas em análise de validade das disposições contratuais que estabelecem o pagamento da coparticipação. Isso porque o conceito de abuso remete a um juízo de valor negativo que repele certas formas de exercício de um determinado direito que não se coadunam com a função intrínseca que o ordenamento lhe atribui.5 De outro lado, o objeto do estudo não trata propriamente de exercício disfuncional de um direito, mas de controle valorativo da conformidade de cláusulas contratuais (disposições de negócios jurídicos) e de seus efeitos6 com os princípios e regras do ordenamento, ou seja, de controle de validade.7
Isto posto, em síntese, o que se investiga, a partir de análise jurisprudencial, é se a cláusula de coparticipação incidente a partir do 31º dia de internação psiquiátrica é compatível em seus efeitos com as disposições do ordenamento brasileiro ou se, ao contrário, tal ordenamento a repudia, considerando-a inválida.
1. A regulação específica do mecanismo de coparticipação
A coparticipação (copayment) consiste em mecanismo que atribui ao beneficiário o ônus de arcar com o custeio parcial de serviço (tratamento) inserido na cobertura assistencial prevista nos contratos de planos de saúde. Costumeiramente, o mecanismo é operacionalizado via pagamento adicional à mensalidade fixa (prêmio) que serve de contraprestação à operadora do plano contratado – que arcará com o restante do encargo financeiro atrelado ao serviço. Em linhas gerais, a ferramenta serve para desestimular a utilização desenfreada de coberturas previstas nos contratos de assistência privada à
5 Sobre o tema, confira-se: XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx de. Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral De Direito Civil, v. 50, p. 35-91, 2012.
6 “Em outros termos, chega-se à conclusão de que certo ato é inválido porque, ao se analisarem os efeitos que decorreriam dele, não se pode afirmar que tais efeitos sejam conformes ao ordenamento. A preocupação central do direito privado, como se afirmou supra, corresponde à determinação do espaço de liberdade que se pode tutelar juridicamente ao particular, para que crie efeitos (também juridicamente) exigíveis com o poder de sua vontade” (XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx de. Teoria geral das invalidades do negócio: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Xxxxxxxx, 0000, p. 51).
7 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 2.
saúde, que acarretaria abalo no equilíbrio econômico-atuarial dos contratos,8 e usos que se mostrem contrários a políticas públicas definidas pelo Estado.
Com efeito, para compreender a lógica do mecanismo de coparticipação, é preciso ter em mente que os contratos de planos e seguros de saúde se alinham à lógica do mutualismo típico dos modelos securitários.9 Os contratos de planos privados de assistência à saúde têm natureza de contrato bilateral, “cujo objeto é a prestação de serviço de gestão de custos, integrado a um sistema mutual, fortemente impactado pelo equilíbrio da equação econômico-financeira dos contratos individuais”.10
Segundo tal lógica, como já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça, a diluição dos custos com os tratamentos médicos por todo fundo mutual leva à redução dos preços dos planos e é fundamental para a sustentabilidade de todos os contratos a ele associados. Afinal, é nessa reunião de recursos do grupo de segurados que será gerada toda soma de “receita por meio do pagamento individual da mensalidade, sendo o valor total arrecadado usado para pagar as despesas decorrentes do atendimento à saúde de integrantes desse grupo”.11
Por essa razão, desestimula-se o uso descuidado das coberturas contratuais, que além de caracterizar exercício disfuncional (abuso) de direitos atribuídos pelo contrato, acarretaria aumento nos custos suportados por toda cadeia de consumidores do fundo mutual. Por sua vez, esse aumento de custos implicaria aumento das mensalidades pagas
8 TERRA, Xxxxxx Xxxxxxx; REIS, Xxxxxx xx Xxxxxx. A ponderação judicial nos litígios coletivos sobre saúde suplementar: exame da cobertura dos procedimentos de internação domiciliar (home care). Revista do Advogado, v. 146, 2020, p. 168.
9 “O contrato de plano de saúde, assim como acontece com o seguro, baseia-se no mutualismo, na divisão da sinistralidade, que aqui se traduz no equilíbrio entre a contribuição agregada e a utilização de procedimentos médicos/hospitalares por toda a comunidade de associados. A mensalidade do plano de saúde está para o prêmio pago no contrato de seguro, assim como a empresa operadora está para o segurador, assim como o associado para o segurado, assim como os procedimentos previstos na cobertura estão para o risco” (XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. A cláusula de reajuste por sinistralidade no contrato de plano de saúde coletivo. Revista dos Tribunais, vol. 944. São Paulo: Revista dos Tribunais, jun./2014).
10 TERRA, Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Planos privados de assistência à saúde e boa-fé objetiva: natureza do rol de doenças estabelecido pela Agência Nacional de Saúde para fins de cobertura contratual obrigatória. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 23, jan./mar. 2020, p. 190. No mesmo sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal: “A ressaltar essa óptica, rememorem a natureza do negócio jurídico, no que assegura ao contratante a eventual prestação de serviço médico. Não há o fornecimento do serviço em si, mas, tão somente, a garantia conferida pelo operador de que, quando o atendimento se fizer necessário, será proporcionado pela própria rede credenciada, ou ressarcido em proveito do usuário. Está-se diante de contrato a garantir cobertura de eventuais despesas, no qual o contratante do plano substitui, mediante o pagamento de mensalidade à operadora, o risco individual por espécie de risco coletivo.” (STF, Pleno, ADI 1.931/DF, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, publ. em 08.06.2018).
11 STJ, 4ª T., REsp 1.733.013/SP, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, publ. em 20.02.2020. Ainda, conforme conceito previsto na Resolução n. 02/2014 do Instituto Brasileiro de Atuária – IBA, “O mutualismo, por definição, é a associação entre membros de um grupo no qual suas contribuições são utilizadas para propor e garantir benefícios aos seus participantes, portanto está relacionado à união de esforços de muitos em favor aleatório de alguns elementos do grupo”.
como contraprestação aos serviços das operadoras de saúde privada. Em última instância, os prejudicados seriam não só os segurados que integram o fundo, mas todos os demais consumidores,12 haja vista que a elevação das mensalidades dificultaria o acesso aos serviços de assistência privada à saúde – sobretudo para os mais pobres.
Além disso, não se pode esquecer que os contratos de planos e seguros privados de saúde são intensamente regulados pela Constituição, por normas infraconstitucionais e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. A regulação leva em conta a essencialidade dos serviços de assistência médica e, por esse motivo, busca prevenir condutas que inviabilizem economicamente a atividade das operadoras e seguradoras. Assim, as normas setoriais autorizam o uso de fatores de moderação como a coparticipação, para garantia do equilíbrio dos contratos, da higidez financeira dos atores do mercado e de valores caros ao ordenamento, como a livre iniciativa, a autonomia contratual e, mais importante, a continuidade de serviços instrumentais à dignidade humana e à saúde dos usuários da assistência médica privada.13
Mais do que isso, as normas regulatórias visam à realização de objetivos e estimulam comportamentos almejados por políticas públicas14 que levam em conta aspectos técnicos da medicina e a realidade prática do setor regulado. No caso da coparticipação psiquiátrica, por exemplo, o fator de moderação atende a objetivos de políticas públicas que desestimulam as hospitalizações infindáveis a que são submetidos muitos pacientes com transtornos psiquiátricos. Alguns deles acabam sendo abandonados nas instituições de saúde, por períodos infinitamente superiores aos tempos médios de hospitalização preconizados pelos estudos médicos15 – em estado de coisas conflitante com as diretrizes da Lei 10.216/01, que promoveu a chamada “Reforma Psiquiátrica” e acolheu reivindicações do movimento conhecido como “Luta Antimanicomial”.16
12 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Planos privados de assistência à saúde e a função social do contrato: um estudo de casos recentes. In: TERRA, Xxxxx Xx Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx (coord.). Princípios contratuais aplicados: boa-fé, função social e equilíbrio contratual à luz da jurisprudência. São Paulo: Editora Foco, 2019, p. 237.
13 Sobre o tema, v.: XXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Dignidade da pessoa humana e contratos de saúde privada no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 26, n. 110, p. 139-159, mar./abr. 2017.
14 XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. A economia comportamental como instrumento de otimização institucional. In: XXXXXXX, Xxxxxx et al. Teoria institucional e constitucionalismo contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 472.
15 Acerca do ponto, v.: XXXXX, Rogério Lessa et al. Hospitalizações psiquiátricas no Rio Grande do Sul de 2000 a 2011. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 18, p. 918-929, out-dez., 2015; XXXXX, Xxxx Xxxxxx et al. Tempo médio de hospitalização e categorias diagnósticas em hospital psiquiátrico. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 57, p. 112-116. Rio de Janeiro, URFJ: 2008.
16 Veja-se, sobre o ponto: XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx. A interface entre os saberes jurídico e psiquiátrico acerca da internação compulsória de usuários de crack no Rio de Janeiro e região metropolitana entre 2010 e 2015. Tese de Doutorado em Saúde Pública e Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Xxxxxx Xxxxxx, Fundação Xxxxxxx Xxxx, 2018, p. 47.
Foi em meio a esse quadro que o Superior Tribunal de Justiça se situou frente à controvérsia que pôs à prova as cláusulas de contratos de planos e seguros de saúde que instituem a coparticipação por parte dos beneficiários de planos de saúde no custeio de despesas com hospitalizações psiquiátricas, a partir do 31º dia de internação.17 Por meio dessas cláusulas, ainda que não haja restrição do tempo máximo de institucionalização, as avenças preveem que os custos com os trinta primeiros dias de tratamento serão inteiramente suportados pela operadora ou segurador, ao passo que, a contar do trigésimo primeiro dia, poderá haver coparticipação, isto é, custeio de parte do valor dos serviços de internação pelo próprio beneficiário – ou por terceiro que eventualmente tenha se responsabilizado pelo pagamento de tais somas.18
Nessa esteira, segundo definição da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, a coparticipação é um “mecanismo de regulação financeira” cujo principal efeito é estabelecer a “participação do beneficiário na despesa assistencial a ser paga diretamente à operadora, em caso de plano individual e familiar, ou à pessoa jurídica contratante, em caso de plano coletivo”.19
Há quem afirme que “a coparticipação pode ser definida como um gênero de que a franquia e os limites financeiros das coberturas seriam espécies”.20 Todavia, como se verá adiante, a coparticipação não se confunde com a limitação financeira de coberturas assistenciais. Além disso, mais parece que a coparticipação e a franquia são espécies
17 Em verdade, a questão não era estranha ao próprio STJ, que há muito possui jurisprudência consolidada no sentido da validade da cláusula de coparticipação. Dentre outros julgados que comprovam a afirmação, veja-se: STJ, 2ª S., EAREsp 793.323/RJ, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, publ. em 15.10.2018; STJ, 4ª T., AgInt. no REsp 1730534/DF, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, publ. em 08.10.2018; STJ, 3ª T., AgInt no REsp
1.760.077 / SP, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, publ. em 21.03.2019.
Por outro lado, não é difícil encontrar decisões de outros tribunais que afirmam a “abusividade” de tal cláusula, v.g.: TJRJ, 22ª C.C., Ap. Cív. 0018326-82.2013.8.19.0087, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxxx x Xxxxx, j. em 05.11.2019; XXXX, 4ª C.C., Ap. Cív. 0019037-41.2015.8.19.0209, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, j. em 14.08.2019; TJSP, 5ª C. D. Priv., Ap. Cív. 1052849-67.2016.8.26.0002, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxxx, x. em 13.03.2018; e TJSP, 10ª C. D. Priv., EDcl. Cív. 4002962-71.2013.8.26.0001, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxx, x. xx
11.04.2019.
18 É o caso dos contratos de planos de saúde coletivos empresariais ou por adesão (artigos 5º e 9º da Resolução Normativa n. 195/2009 da ANS), nos quais a pessoa jurídica estipulante do plano atue não apenas como mero intermediário entre o beneficiário e a operadora, mas também se responsabilize pelo custeio integral das mensalidades (prêmio) e, ainda, de eventuais somas devidas a título de coparticipação.
19 BRASIL. Glossário Temático da Saúde Suplementar. “Coparticipação”. ANS. Disponível em: xxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/xxxxxxxxx/?xxxxxxxxxx&xxx000&xxxxxx. Acesso em 25 nov. 2021. Veja-se ainda o art. 3º, inciso II, da Resolução n. 08/1998 do Conselho Nacional de Saúde Suplementar - CONSU, que conceitua a coparticipação como “a parte efetivamente paga pelo consumidor à operadora de plano ou seguro privado de assistência à saúde e/ou operadora de plano odontológico, referente a realização de procedimento”.
20 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Lei dos planos e seguros de saúde comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 157. Semelhantemente: XXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx; NORÕES, Xxxxxxx Xxxxx; XXXXXXXX XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx. Análises de decisões do Superior Tribunal de Justiça a partir das características do negócio jurídico de assistência privada à saúde. Revista de Direito do Consumidor, vol. 118/2018, RT Online, nº 4.3.
substancialmente distintas do gênero dos chamados “mecanismos de regulação”,21 empregados como fatores moderadores da utilização dos serviços de saúde privada pelos consumidores. Entretanto, ambas são igualmente chanceladas pelo artigo 16, inciso VIII da Lei n. 9.656/1998, pelo artigo 1º, §1º, alínea “d” dessa mesma lei e pelo artigo 4º, incisos VII e XXVIII da Lei n. 9.961/2000.
Aliás, antes mesmo da vigência da Lei n. 9.656/1998 e da criação da ANS, o Conselho de Saúde Suplementar – CONSU editou a Resolução n. 08/1998, que trazia normas gerais sobre os mecanismos de franquia e de coparticipação. A normativa do CONSU impôs requisitos para o copagamento em seus artigos 1º, parágrafo 2º; 2º, inciso VII; 3º, inciso II e parágrafo único; e 4º, inciso I, alínea “a”. Décadas depois, ao regulamento da Resolução n. 08/1998 do CONSU foi sobreposta a disciplina da Resolução Normativa n. 433/2018 da ANS, que igualmente trouxe normas gerais para esses institutos.
Paralelamente, foram editadas normas das autoridades de saúde suplementar que autorizavam expressamente alguns regimes específicos de coparticipação. Dentre eles, destaque para aquele que é objeto do presente estudo: a coparticipação no custeio de internações psiquiátricas a partir do 31º dia de internação, contemplada pelos artigos 2º, inciso II, alínea “a” e 3º, caput e parágrafo único da Resolução n. 11/1998 do CONSU.
Desde a Resolução Normativa n. 211/2010 da ANS, o copagamento aplicado a internações psiquiátricas consta expressamente de todas as resoluções normativas da agência que atualizaram o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que define a cobertura obrigatória mínima dos contratos de planos de saúde,22 sendo mencionado no
21 Com efeito, mais parece que a franquia consiste em mecanismo que atua a partir de perspectiva oposta – ou espelhada – à da coparticipação. Enquanto esta última pressupõe o custeio do tratamento pela operadora para, após, instituir o pagamento parcial pelo segurado, a franquia tem como ponto de partida a inexistência de obrigação da operadora do plano em custear tratamentos até determinado valor. Nesse sentido, o sítio eletrônico da ANS define franquia como “mecanismo de regulação financeira que consiste no estabelecimento de valor até o qual a operadora não tem responsabilidade de cobertura, quer nos casos de reembolso ao beneficiário do plano privado de assistência à saúde ou nos casos de pagamento à rede credenciada ou referenciada” (BRASIL. Glossário Temático da Saúde Suplementar. “Coparticipação”. ANS, cit.).
22 Registre-se a existência de controvérsia acerca da natureza taxativa ou exemplificativa do referido rol, para fins de definição da amplitude das coberturas assistenciais obrigatórias dos contratos de planos de saúde. Em 2019, a 4ª Turma do STJ promoveu overruling acerca do tema, assentando que “o rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui relevante garantia do consumidor para propiciar direito à saúde, com preços acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, em revisitação ao exame detido e aprofundado do tema, conclui-se que é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas”. (STJ, 4ª T., REsp 1.733.013/PR, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, publ. em 20.02.2020). Para análise detida da matéria, confira-se: XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. ANS: taxatividade do rol de procedimentos. Revista Jurídica de Seguros, Rio de Janeiro, v. 00, x. 00-00, xxx. 2021; XXXXXXXXX, Xxxxxxx. O rol de procedimentos da ANS e seu caráter taxativo. Revista Consultor Jurídico, 09.09.2021.; e TERRA, Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Planos privados de assistência à saúde e boa-fé objetiva, cit.
artigo 19, inciso II, da Resolução Normativa n. 465/2021, que promoveu a última atualização do referido rol.
Em 3 de setembro de 2018 a Resolução Normativa n. 434/2018 da ANS revogou a Resolução Normativa n. 433/2018. Entretanto, aquela resolução não revogou os dispositivos das Resoluções CONSU nº 08/1998 e 11/1998 e de outras resoluções normativas da ANS que permitiam – e, na esteira da Resolução Normativa n. 465/2021, seguem permitindo – explicitamente a coparticipação a partir do 31º dia de internação psiquiátrica, desde que garantido o custeio integral dos 30 primeiros dias de tratamento pela operadora. Segundo tais enunciados normativos, o regime de copagamento precisa estar previsto de forma clara nos instrumentos contratuais, observando-se, ainda, limite máximo de 50% para o montante que o beneficiário poderá suportar, no que diz respeito ao valor do tratamento pactuado entre a operadora do plano e o respectivo prestador do serviço de saúde.23
Todos esses dispositivos, com maior ou menor generalidade, indicam que a previsibilidade é uma constante na disciplina da coparticipação. Para aplicação concreta dessa ferramenta, é exigida previsão contratual do regime de copagamento para cada situação fática específica, ou seja, para cada serviço de assistência à saúde cujo custeio será compartilhado. Não à toa, em razão da minúcia da regulação setorial, as próprias cláusulas contratuais que preveem a coparticipação acabam sendo espelhos fiéis das normas dos órgãos reguladores.24
23 Na mesma linha, o Anexo I da Instrução Normativa nº 23/2009 da Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos (DIPRO) da ANS estabelece os termos que deverão constar expressamente das cláusulas dos contratos e regulamentos de planos de saúde que prevejam a coparticipação baseada nos atos normativos do CONSU e da ANS mencionados acima.
2. Coparticipação, limitação de prazo de internação e limite financeiro
Em seu artigo 12, a Lei n. 9.656/1998 lista as diversas segmentações de serviços que podem ser incluídos na cobertura dos planos de assistência privada à saúde, atendidas as condições do plano-referência disciplinado pelo artigo 10 da mesma lei e pelo Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS. Dentre as segmentações listadas, o inciso II do referido artigo prevê em suas alíneas “a” e “b” a cobertura de internações hospitalares em geral e de internações em centros de terapia intensiva ou similares, sendo, em todos os casos “vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade”.
Em razão desse enunciado normativo, os contratos de planos e seguros de saúde que incluem em sua segmentação o custeio de internações hospitalares não podem limitar o tempo máximo de hospitalização dos beneficiários. Tampouco podem restringir o valor abstrato da cobertura de internações ou a quantidade de internações a que podem ser submetidos os usuários do plano contratado.
Há quem afirme que toda e qualquer cláusula limitadora do tempo de internação seria inválida, por representar limitação da responsabilidade da operadora ou seguradora de saúde pelos efeitos de uma das obrigações essenciais que assumiu no contrato,25 qual seja: o dever de custeio dos procedimentos de internação inseridos na cobertura assistencial do plano avençado.26 Nesse sentido, em 2004, o STJ editou o enunciado da Súmula de n. 302, nos seguintes termos: “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”.27
25 Nesse aspecto, vale ressaltar o entendimento segundo o qual “a cláusula de não indenizar não pode ser estipulada para afastar ou transferir obrigações essenciais do contratante” (WALD, Xxxxxxx. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. Vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul.-set./2015, nº 27.).
26 “Se a doença tem cobertura contratual, outra cláusula não pode limitar os dias de internação; isso não importa mera limitação do risco, vale dizer, limitação da obrigação, mas limitação da própria responsabilidade do segurador, e, por via de conseqüência, restrição de obrigação fundamental inerente ao contrato. Uma coisa é a doença não ter cobertura, caso em que o segurador não assumiu nenhuma obrigação a seu respeito (não assumiu o seu risco), e outra coisa, bem diferente, é a doença ter cobertura e, a partir de um determinado momento, deixar de tê-la. Na realidade, afigura-se abusivo impor tempo de cura para uma doença coberta pelo seguro. Complicações de todos os tipos podem surgir, pré e pós-operatórias, inclusive por infecção hospitalar, ampliando compulsoriamente o tempo de internação. Pretender livrar-se o segurador dessas consequências não é limitar o seu risco, porque o risco foi assumido quando se deu cobertura para a doença, e o sinistro até já ocorreu. O que se pretende, na realidade, com essa cláusula, é limitar a responsabilidade do segurador decorrente de uma obrigação regularmente assumida, e isso a toma inválida” (CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 331).
27 O teor do enunciado foi integralmente incorporado à Súmula no 92 do TJSP. Confira-se, ainda, a Súmula no 357 do TJRJ, segundo a qual “é nula cláusula inserida em contrato de plano ou de seguro-saúde, que limita o tempo de cobertura de internação, inclusive para tratamento psiquiátrico ou dependência química” (grifou-se).
Por isso, para que se conclua pela validade das cláusulas de coparticipação, é preciso primeiro diferenciá-las de eventuais disposições limitadoras do tempo de internação. Tal lógica é de grande importância, pois as previsões do artigo 12, inciso II, “a” e “b” da Lei
n. 9.656/1998, ao lado da Súmula n. 302 do STJ aparentam ser o argumento mais empregado pelos julgados que entendem pela invalidade da cláusula de coparticipação em internações psiquiátricas.28 Afirma-se que a imposição de coparticipação configuraria “forma indireta de limitação do período de cobertura”29 e, por conseguinte, a disposição contratual que traz tal imposição seria inválida, por contrariar a vedação à restrição temporal da duração de internações hospitalares.
Contudo, se a aplicação enviesada dos citados dispositivos da Lei dos Planos e Seguros de Saúde e da Súmula n. 302 do STJ é lugar-comum na defesa da invalidade da cláusula de coparticipação, na prática, essa linha argumentativa tem sido rechaçada com frequência pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. De forma reiterada, a Corte Superior tem decidido que os efeitos da mencionada cláusula não traduzem restrição de prazo às internações, com distinguishing entre a fattispecie do aludido enunciado sumular e hipótese de incidência da cláusula de copagamento. A propósito, confira-se recente julgado, de relatoria do Ministro Xxxxx Xxxxxxx, anterior à fixação da tese do Tema Repetitivo n. 1032, em que já se ressaltava o entendimento consolidado do STJ:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA. PREVISÃO DE COPARTICIPAÇÃO. ADMISSIBILIDADE. ACÓRDÃO ESTADUAL EM CONSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO DO STJ. DECISÃO MANTIDA. MULTA DO ART. 1.021, § 4º, DO NCPC. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO, COM
IMPOSIÇÃO DE MULTA. (...) 2. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.511.640-DF, decidiu que a coparticipação prevista para as internações psiquiátricas superiores a 30 (trinta) dias é hipótese sensivelmente distinta daquela em que há cláusulas de restrição absoluta de cobertura de internações que extrapolam o prazo contratado. Precedentes.
(STJ, 3ª T., AgInt no REsp 1.795.544/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, publ. em 03.10.2019)
28 Nessa direção, em doutrina, confira-se: XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 190. Em sede jurisprudencial, além dos acórdãos do TJSP que levaram à interposição dos recursos afetados ao Tema Repetitivo n. 1032, veja-se, exemplificativamente, os seguintes julgados: TJPA, 1ª T.D.Priv., Ag. Inst. 0013490-69.2016.8.14.0000, Rel. Des. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, publ. em 08.08.2017; TJSP, 8ª C.D.Priv., Apl. 1005521- 17.2019.8.26.0268, Rel. Des. Xxxxxxxxx Xxxxxx, julg. em 20.07.2020; TJRJ, 3ª C.C., Apl. 0015954- 92.2016.8.19.0205, Rel. Des. Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, publ. em 05.11.2019; TJAL, 3ª C.C., Apl. 0000201- 75.2011.8.02.0001, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, publ. em 13.10.2016; TJBA, 4ª C.C., Apl. 0556461-24.2017.8.05.0001, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, publ. em 30.10.2018; TJDFT, 2ª T.C., Apl. 0019793-10.2015.8.07.0007, Rel. Des. Xxxxx-Xxx Xxxxxxx, publ. em 18.05.2016.
29 A expressão consta da ementa do acórdão do TJSP que deu azo à interposição do REsp 1.755.866/SP, um dos recursos afetados ao rito dos repetitivos pelo STJ no Tema Repetitivo n. 1032 (TJSP, 10ª C.D.Priv., Ap. Cív. 1025219-83.2015.8.26.0224, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxx, julg. em 30.05.2017).
Realmente não merece censura a diferenciação feita pelo STJ e pelos demais tribunais que a seguem.30 Não se deve mesmo confundir a instituição da coparticipação com a limitação contratual do tempo máximo da hospitalização. A primeira representa fator que impõe, a partir de certo momento, a divisão das despesas do tratamento entre a operadora e o beneficiário ou responsável financeiro – com vistas a desestimular hospitalizações ad aeternum e a manter o equilíbrio financeiro do contrato. A segunda impõe restrição absoluta do direito à cobertura contratual da internação, com ponto final à cobertura pela operadora que, a partir de determinado momento, se exime totalmente do dever de custear ou colocar à disposição do usuário o fornecimento do tratamento.
De um lado, a limitação do tempo de internação restringe quantitativa e peremptoriamente o tratamento fornecido (ou custeado) pela operadora em favor do beneficiário. Assim, incide diretamente sobre a extensão da cobertura assistencial do contrato. De outro, a coparticipação não põe termo à cobertura assistencial, tampouco restringe quantitativamente o tempo de tratamento, que poderá durar período menor ou maior do que o previsto para início do fator de moderação. Ao contrário: o mecanismo incide apenas sobre a forma de custeio dos serviços, ou seja, sobre aspecto exclusivamente financeiro – “não assistencial”.
Eventual cláusula que limitasse o prazo de internação também se distinguiria daquela que impõe a coparticipação a partir do 31º dia de hospitalização sob outra perspectiva. A primeira teria seus efeitos restritos ao espectro de obrigações da operadora do plano ou seguro de saúde, delimitando-as temporalmente, no que tange ao oferecimento do tratamento de internação. Como visto, esse tipo de cláusula encerra e afasta inteiramente obrigação que cabe à operadora. Já a coparticipação incide, sobretudo, na esfera de obrigações do beneficiário (ou do responsável pelo pagamento do prêmio), tendo por efeito acréscimo à prestação que lhe cabe – ainda que também acabe por atenuar as obrigações de custeio a cargo da operadora.
30 Na esteira do entendimento do STJ, confiram-se os seguintes julgados de outros tribunais do país que igualmente afastaram a aplicação da Súmula nº 302 do STJ – e, consequentemente, o argumento ligado à vedação de limite temporal à internação – ao reconhecerem a licitude da cláusula de coparticipação em exame: TJSP, 5ª C.D.Priv., Ap. Cív. 1003530-21.2019.8.26.0554, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxx; julg. em 12.02.2020; TJRJ, 3ª C.C., Ap. Cív. 0008044-86.2017.8.19.0008, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, julg. em 29.10.2019, publ. em 05.11.2019; TJDFT, 1ª T.C., Ap. Cív. 0705970-38.2018.8.07.0001, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxx, julg. em 30.01.2019, publ. em 18.02.2019; TJMG, 10ª C.C., Ap. Cív. 1.0024.14.194419-9/002, Rel.
Des. Xxxxxx xxx Xxxx Xxxxxx, julg. em 11.07.2018, publ. em 20.07.2018; TJRS, 6ª C.C., Ap. Cív. 00.000.000.000, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx, julg. em 10.10.2019, publ. em 18.10.2019; e TJMS, 1ª C.C., Ap. Cív. 0800456-46.2015.8.12.0012, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, julg. em 21.02.2019, publ. em 25.02.2019.
Seguindo adiante, imprescindível ressaltar também que a fixação de percentual de coparticipação pelos contratos de saúde privada não tem por objeto a estipulação de teto para o valor dos procedimentos de internação. Dado que inserida no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS e na cobertura assistencial contratada, a hospitalização psiquiátrica deverá ser inteiramente custeada pela operadora, ao menos nos 30 primeiros dias – observadas as definições de segmentação e a rede credenciada em cada avença. A partir do 31º dia de internação, havendo previsão contratual nesse sentido, poderá ser instituído percentual de coparticipação que, da mesma forma, tampouco implicará em alteração do valor de custo do procedimento.
Também aqui se deve evitar a confusão entre duas cláusulas estrutural e funcionalmente distintas das quais se poderia cogitar. A cláusula de coparticipação prevê mecanismo de regulação financeira instituidor de rateio dos custos com determinados procedimentos. Esse mecanismo independe do valor do serviço e é implantado via percentual a ser suportado pelo usuário, em complementação à parte suportada pela operadora. Eventual cláusula de limite financeiro, por sua vez, preveria limites monetários previamente fixados para os valores dos procedimentos que serão fornecidos ou custeados pela operadora do plano de saúde, excluindo da cobertura contratual quaisquer procedimentos que ultrapassassem tais limites – e sem estabelecer rateio proporcional entre operadora e usuário, muito menos percentual máximo a ser suportado por este.
Esta última modalidade de cláusula, ao contrário da cláusula de coparticipação, é vedada pela Lei n. 9.656/1998 por ao menos duas perspectivas. Em primeiro lugar, de forma cristalina, tais disposições afrontam o já mencionado art. 12, inciso II, alíneas “a” e “b” da Lei dos Planos de Saúde, porquanto estabelecem limitação de “valor máximo” para a cobertura das hospitalizações. Em segundo lugar, essas mesmas previsões contratuais contrariam a lógica de inexistência de restrições financeiras à cobertura dos planos de saúde. Tal lógica foi positivada pelo artigo 1º, inciso I da Lei n. 9.656/1998 que definiu os chamados planos privados de assistência saúde de modo a prever expressamente que não deveria haver limitações monetárias prévias à cobertura assistencial. Nesse ponto os contratos de planos e seguros de saúde se diferenciam de outros contratos securitários que definem limite máximo do montante que poderá ser pago pela seguradora em caso de ocorrência de sinistro que dê ensejo ao pagamento da garantia.
Não à toa, o Superior Tribunal de Justiça já assentou a nulidade de estipulações que representem limitação do valor de cobertura dos tratamentos que deveriam ser
financiados pela operadora de plano de saúde, ou que importem, mesmo de modo reflexo, a imposição de limitação financeira à cobertura do contrato.31
Dessa forma, é possível perceber que, tanto em seus efeitos, quanto em sua estrutura, a cláusula de coparticipação no custeio de internações psiquiátricas se mostra substancialmente distinta de disposições contratuais que impõem limitações de prazo ou de valor máximo ao custeio de internações.
Assim, não havendo identidade entre essas modalidades de cláusulas, não se mostra correto o entendimento que estende à previsão de coparticipação as vedações impostas pela Lei n. 9.656/1998 para estipulações que trazem indevidas limitações temporais e financeiras ao próprio objeto do contrato de assistência privada à saúde.
3. O desenho constitucional e infraconstitucional da saúde suplementar
Ao lado das proibições a limitações de tempo e valor de internações contidas na Lei n. 9.656/1998, existe ao menos mais uma linha argumentativa usada para cogitar da invalidade da cláusula de coparticipação após o trigésimo dia de internação psiquiátrica. Essa visão tem como fundamentos a concepção dos contratos de planos e seguros de saúde como ferramentas de realização imediata do direito constitucional à saúde dos consumidores desses produtos e, ainda, no próprio sistema de defesa do consumidor – que encontra sua principal projeção infraconstitucional no Código de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC.
A abordagem desse aspecto tem como principal foco as previsões do CDC que instituem o que se tem denominado como sistema de proteção contra cláusulas ou práticas ilegais (“abusivas”).32 A esses dispositivos são associadas normas de caráter aberto, como a proteção da vida e saúde do consumidor, tanto com base na cartilha de direitos do próprio CDC (artigo 6º, inciso I), quanto na tutela constitucional dos direitos
31 Confira-se, nesse particular: STJ, 4ª T., REsp 735.750/SP, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx, publ. em 16.02.2012.
32 Notadamente, sobressaem na análise do tema os dispositivos do CDC que protegem os consumidores contra cláusulas e práticas que: condicionem o fornecimento de serviços a limites quantitativos indevidos (artigo 39, inciso I); exijam do consumidor vantagem manifestamente excessiva ou lhe imponham desvantagem exagerada, abalando o equilíbrio econômico do contrato (art. 39, inciso V e artigo 51, inciso IV); e (ou) impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor de forma injustificada ou, ainda, impliquem em renúncia do consumidor a direitos inerentes à natureza do contrato (art. 51, inciso I).
fundamentais à vida e à saúde (artigos 5º e 6º da Constituição), além da presunção de vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art. 4º, inciso I, do CDC).33
O raciocínio calcado nos fundamentos acima pode ser sintetizado na seguinte ideia: enquanto formas de realização do direito à saúde dos consumidores, os planos de saúde deveriam assegurar cobertura e custeio integral de todo e qualquer serviço prescrito para as patologias que possam acometer os usuários.34 Por isso, não seria dado às operadoras inserir em seus contratos previsões que atenuem essa obrigação – mesmo com chancela das normas legais e infralegais de regência do setor. Levando ao extremo essa concepção, seriam inválidas quaisquer cláusulas contratuais que representem condicionamentos à cobertura securitária – mesmo que esses condicionamentos provoquem a diminuição dos prêmios pagos pelos consumidores.
De fato, não se nega o consenso sobre a aplicabilidade do CDC às relações contratuais mantidas entre os planos de saúde e seus beneficiários,35 que levou à edição da Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça.36 Entretanto, essa constatação não é suficiente para que se possa desconsiderar as particularidades do papel constitucionalmente atribuído ao setor de saúde suplementar e, igualmente, a prevalência das normas de regência do setor em razão de sua especificidade e do alto grau de especialização técnica que caracteriza os enunciados normativos dos órgãos reguladores.37
33 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. A intervenção judicial nos contratos de plano de saúde: uma análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. Revista de Direito Sanitário, v. 19, n. 3, nov./fev. 2018, p. 284.
34 Nesse sentido, confira-se trecho de manifestação da Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON nos autos do REsp 1.809.486/SP, afetado para debate do Tema Repetitivo 1032/STJ: “Do mesmo modo, ao contratar um plano de saúde que dê direito a internação, o usuário possui uma expectativa de cobertura integral desse tipo de serviço. Não vislumbra, desse modo, uma excepcionalidade para internação decorrente de problemas psiquiátricos, mesmo que cláusula nesse sentido esteja expressa em contrato. Reforça-se que a ausência da cobertura frustra a expectativa dos usuários desses planos, que esperam contar com a prestação do serviço em caso de prescrição médica”. Posicionamento semelhante também foi encontrado em acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: “É abusiva a cláusula que impõe coparticipação do consumidor em internação psiquiátrica superior a trinta dias, pois é contrária a própria natureza do contrato e às expectativas do consumidor quando celebra esse tipo de avença” (TJDFT, 7ª T., Apl. 20160910149565, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxxxx, publ. em 03/07/2017).
35 Nesse sentido, dentre outros, veja-se: XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Lei dos planos de saúde. Xxxxxxxx: JusPodivm, 2020, p. 350; XXXXXXX, Xxxxxxxxxx Xxxx. O regime jurídico dos contratos de plano de saúde e a proteção do sujeito mais fraco das relações de consumo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010,
p. 255-260; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor, cit.; e XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx xx Xxxx. Consumidores de seguros e planos de saúde. In: Saúde e responsabilidade: seguros e planos de assistência privada à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 27.
36 O enunciado sumular ressalva a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos planos de saúde administrados por entidades de autogestão, isto é, aquelas que operam planos de saúde com a exclusiva finalidade de atender empregados ativos ou inativos de uma ou mais entidades específicas ou a integrantes de determinada categoria, sem comercialização de produtos de assistência privada ao público em geral. Súmula 608/STJ: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
37 BARROSO. Direito intertemporal, competências funcionais e regime jurídico dos planos e seguros de saúde (Parecer). São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2010, p. 61-62.
Como sabido, a saúde é direito de todos e o Estado tem o dever constitucional de garanti- la à população. Nesse caminho, a Constituição da República instituiu o Sistema Único de Saúde – SUS como rede de integração de todas as ações e serviços de saúde levadas a cabo pela Administração Pública (artigos 196 a 198 da CRFB/1988). A princípio, seria possível inferir que, por meio do SUS, caberia ao Poder Público o atendimento amplo e irrestrito de toda e qualquer demanda de seus cidadãos por tratamentos de saúde, aqui incluídos, por exemplo, o fornecimento de toda sorte de medicamentos e a realização de quaisquer procedimentos prescritos a cada um dos cidadãos. Entretanto, a conclusão acima não é inteiramente verdadeira.
Conforme a orientação mais atual da jurisprudência brasileira, não é sempre que o Estado terá a obrigação de prover o insumo ou serviço de saúde pleiteado pelo administrado. Não (só) porque os recursos estatais são finitos e limitados, mas por razões de segurança sanitária dos próprios cidadãos e por imperativos de segurança jurídica. A título de exemplo, com essa percepção, o Supremo Tribunal Federal fixou em tese com repercussão geral que, salvo em hipóteses excepcionais, “o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais” e que “a ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial”.38
Mesmo que se admitisse que ao Estado coubesse de forma incondicional realizar todas as prestações de serviços de saúde prescritos à população, não se poderia exigir isso dos agentes da iniciativa privada. Afinal, o papel dado pelo constituinte e pelo legislador ordinário à iniciativa privada na assistência à saúde é suplementar (e complementar) ao múnus central atribuído ao Poder Público, sem prejuízo da relevância pública atribuída pela Constituição (artigo 197) às ações e serviços de saúde executadas pelos entes privados. Nesse sentido, o texto constitucional deixa nítido o papel complementar das instituições privadas mesmo quando sua atuação se dá por meio de convênios para prestação de serviços por meio do SUS (artigo 199, §1º). Significa dizer que, ao lado das ações públicas de saúde promovidas pelo Estado, o desenho constitucional chancelou abertamente a já existente atuação de operadoras privadas de assistência à saúde. Porém, à diferença do Poder Público, que tem o dever universalizar o acesso aos serviços de saúde, essas operadoras atuam escoradas na lógica mercadológica, em exercício de livre
38 STF, Tribunal Pleno, AgR no RE 657.718, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, Rel. p/ acórdão Min. Xxxxxxx Xxxxxxx, publ. em 24.10.2019.
iniciativa assegurada pela Constituição (artigo 1º, inciso IV; artigo 170 e artigo 199,
caput).39
Ainda assim, as Leis n. 9.656/1998 e 9.961/2000 deixam claro que o mercado da saúde suplementar é objeto de intensa regulação também no plano infraconstitucional, inicialmente levada a cabo principalmente pelo CONSU e, depois, pela ANS.40
A partir desse desenho, não é leviano afirmar que, à diferença do Poder Público, a atuação das instituições privadas de assistência à saúde está restrita às condições pactuadas entre as partes e às rígidas exigências da lei e da regulação da Agência Nacional de Suplementar. E foi exatamente isso o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai da fundamentação do acórdão que julgou os recursos especiais afetados ao Tema Repetitivo n. 1032:
Inegavelmente, ao contratar um plano de saúde e despender mensalmente relevantes valores na sua manutenção, o consumidor busca garantir, por conta própria, acesso a um direito fundamental que, a rigor, deveria ser prestado pelo Estado de modo amplo, adequado, universal e irrestrito. Ocorre que, se a universalização da cobertura - apesar de garantida pelo constituinte originário no artigo 198 da Constituição Federal e considerada um dos princípios basilares das ações e serviços públicos de saúde nos termos do artigo 7º da Lei 8.080/90 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências - não é viabilizada pelo Estado no tempo e modo necessários para fazer frente às adversidades de saúde que acometem os cidadãos, tampouco pode ser imposta de modo completo e sem limites ao setor privado, porquanto, nos termos do artigo 199 da Constituição Federal e 4º, § 1º, da Lei 8.080/90, a assistência à saúde de iniciativa privada é exercida em caráter complementar.
39 “A Constituição trata dos serviços de saúde prestados pelo Estado como ‘serviços públicos de saúde’ (art. 198), mas se vale de nomenclatura distinta — ‘serviços de relevância pública’ — quando deseja abranger os casos em que tais serviços sejam igualmente prestados pela iniciativa privada (art. 197, CF). Em outras palavras, a Constituição os considera serviços públicos quando prestados pelo Estado, e serviços de relevância pública quando explorados por particulares, mantido, nesse caso, o regime jurídico privado e as regras da livre iniciativa, sem prejuízo, naturalmente, em alguns casos (principalmente saúde e educação), da forte regulação sobre elas incidente, inclusive mediante a sujeição a autorizações administrativas prévias e operativas, constituindo-as como atividades econômicas privadas de interesse público. Note-se que a saúde é um direito de todos e um dever apenas do Estado. Portanto, o sujeito passivo daquele direito é o Estado. Os eventuais direitos de indivíduos perante empresas privadas prestadoras de serviços de saúde, que não estejam atuando como terceirizadas do SUS, mas por livre iniciativa privada, não têm matriz diretamente constitucional, mas meramente contratual. É o contrato a fonte dos seus direitos e é, consequentemente, nos seus termos que esses direitos devem ser exercidos, observadas, naturalmente, as normas de dirigismo estatal sobre ele incidentes” (XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso e reajustes por faixa etária em planos de saúde contratados antes da sua vigência. Interesse Público – IP, ano 13, n. 68. Belo Horizonte: Fórum, jul./ago. 2011).
40 Na forma dessas leis, estão incluídas dentre as atribuições da ANS: (a) a proposição das políticas e diretrizes da regulação do setor de saúde suplementar; (b) a definição das características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras; (c) a elaboração do rol de procedimentos e eventos em saúde que define a amplitude da cobertura assistencial obrigatória dos contratos de planos de saúde; (d) a edição de normas relativas à adoção e utilização, pelas operadoras de planos de assistência à saúde, de mecanismos de regulação do uso dos serviços de saúde e a avaliação de sua utilização pelas operadoras; além, é claro, (e) da fiscalização da atuação das operadoras de modo abrangente.
(STJ, 2ª S., REsp 1.809.486/SP e REsp 1.755.866/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, publ. em 16.12.2020)
Em outras palavras, é a legislação de regência do setor, composta pela Lei n. 9.656/1998 e pelos atos normativos editados pela ANS, que define a extensão das obrigações de cobertura das operadoras e seguradoras de saúde, em conjunto com eventuais adições e restrições estabelecidas nos contratos assinados pelas partes. Mesmo estas restrições igualmente precisam observar a normativa setorial, sendo, noutro giro, questionável a legitimidade de eventual “expectativa” alimentada quanto à obrigatoriedade de cobertura de procedimentos e eventos expressamente excluídos por tais instrumentos legislativos e contratuais.41
Essa lógica se faz presente na sistemática da coparticipação aplicada ao custeio de internações psiquiátricas. Como já se disse, a Lei n. 9.656/1998 expressamente autorizou a previsão da coparticipação como mecanismo de regulação financeira aplicável aos contratos de assistência privada à saúde, ao lado da franquia (art. 16, inciso VIII). De modo mais específico, diversos atos infralegais do CONSU e da ANS regulamentaram pormenorizadamente os termos que devem constar de tais previsões contratuais, inclusive no que toca ao copagamento em internações psiquiátricas.
Isso não significa que a aplicação da normativa específica da saúde suplementar simplesmente “afaste” a incidência do Código de Defesa do Consumidor – mesmo porque não seria verdadeiro afirmá-lo. Entretanto, não se pode ignorar a prevalência das disposições específicas da Lei n. 9.656/1998, que detalham situações fáticas peculiares aos planos de saúde, sobre as disposições genéricas do CDC, mesmo porque os dois diplomas possuem o mesmo grau de hierarquia, enquanto leis ordinárias.42 Aliás, o critério de especialidade consagrado como princípio hermenêutico para resolução de
41 “Nesse sentido, se afigura legítimo perquirir se o contratante que adere a alguma espécie de contrato de assistência privada à saúde, já obrigatoriamente amparado e estribado pelas resoluções ampliativas de serviços e procedimentos exaradas da ANS, não está ofendendo o princípio da boa-fé objetiva, quando surpreende a empresa contratada, ao pleitear objeto não previsto nem no pacto adesivo e nem nessas normas da agência reguladora. [...] Não frustra o princípio da confiança e da boa-fé objetiva quem vai muito além de qualquer expectativa contratual – mesmo, repita-se, em se admitindo a intervenção estatal empreendida pela ANS –, desejando realizar exames, tratamentos experimentais, ou até mesmo obter medicamentos não previstos nesses instrumentos?” (XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. Tutelas provisórias individuais nos contratos de plano de saúde. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 2021, p. 71-72). Em direção contrária, confronte- se: AFFONSO, Xxxxxx Xxxx Xxxxx. A limitação genérica de cobertura nos contratos de seguro saúde: uma análise da jurisprudência do TJRJ a partir do princípio do equilíbrio econômico. In: TERRA, Xxxxx Xx Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx (coord.). Princípios contratuais aplicados: boa-fé, função social e equilíbrio contratual à luz da jurisprudência. São Paulo: Foco, 2019. p. 318.
42 Em sentido contrário, defendendo a superioridade hierárquica do CDC: MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 548.
antinomias43 foi expressamente considerado pela Lei n. 9.656/1998, que em seu artigo 35-G previu que deverá ser subsidiária a aplicação CDC aos contratos de planos de planos privados de assistência à saúde.44
Em adição, lançando mão da lógica inserida no artigo 2º, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), tampouco pareceria incorreto considerar que, por terem regulado inteiramente a possibilidade da coparticipação nos contratos de saúde privada, as normas específicas sobre saúde suplementar (Lei n. 9.656/1998 e Lei n. 9.961/2000) deveriam prevalecer sobre as normas gerais do CDC nesse particular. Para além do critério de especialidade das leis ordinárias que regulam a saúde suplementar e a atuação da ANS, milita em seu favor também o conhecido critério cronológico aplicado à resolução de antinomias. Segundo tal critério, as disposições de lei posterior se sobrepõem àquelas de lei anterior de mesma hierarquia que havia disciplinado a matéria, em caso de conflito (lex posterior derogat legi priori)45
– sendo plenamente possível a aplicação concreta das duas normas no que não se contradizem.46
Por essa ordem de ideias, a propalada invalidade das cláusulas de coparticipação no custeio de internações psiquiátricas, invocada com base na promoção do direito fundamental à saúde e nas garantias consumeristas, ao que parece, acaba por desconsiderar o desenho constitucional e infraconstitucional do setor de saúde suplementar e, mais diretamente, as peculiaridades das normas que regulam as minúcias deste setor. Entretanto, essa conclusão não implica na negativa dos valores e princípios que inspiram as mencionadas disposições constitucionais e, menos ainda, de objetivos igualmente perseguidos pelo Código de Defesa do Consumidor.
4. Proteção dos consumidores, equilíbrio econômico e função social dos contratos de planos de saúde.
43 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 40.
44 Não à toa, o STJ já se manifestou sobre o ponto em relevante precedente sobre a taxatividade do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS como parâmetro de cobertura obrigatória dos planos de saúde. No julgado já mencionado, a Quarta Turma daquela corte afirmou que “não caberia a aplicação insulada do CDC alheia às normas específicas inerentes à relação contratual, como, aliás, estabelece o art. 35-G da Lei dos Planos e Seguros de Saúde” (STJ, 4ª T., REsp 1.733.013/SP, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, j. em 10.12.2019).
45 XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 212.
46 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; KOZAN, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Judicialização em planos de saúde coletivos: os efeitos da opção regulatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar nos conflitos entre consumidores e operadoras. Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v.19, n.1, mar./jun. 2018, p. 173.
A vulnerabilidade (ou hipossuficiência) é um dado presumido pelo CDC com relação a todos os consumidores, sem distinção, na forma de seu artigo 4º, inciso I. Com base na percepção dessa hipossuficiência intrínseca, o sistema de proteção ao consumidor objetiva contrabalancear a situação de vulnerabilidade deste último, que efetivamente acaba sendo constatada na realidade fática.47
Contudo, as diretrizes do CDC e os direitos básicos que o Código assegura não buscam dar privilégios ao consumidor, muito menos inviabilizar as atividades econômicas dos fornecedores com a concessão de benesses desnecessárias e assistencialistas.48 Ao contrário, o Código pretende proteger o consumidor contra práticas abusivas, no intuito de reequilibrar a balança de forças que naturalmente pende em seu desfavor, na exata medida do que se mostrar necessário para solucionar os problemas causados pelo desequilíbrio intrínseco entre fornecedores e consumidores. Tudo isso sem desrespeitar a autonomia privada dos agentes que atuam no mercado de consumo, ainda que em relações não paritárias – mesmo porque o reconhecimento de vulnerabilidades não deve se confundir com autorização genérica ao paternalismo ou com a eliminação de esferas de autonomia.49
Nesse cenário, o CDC busca expressamente o equilíbrio nas relações contratuais entre consumidores e fornecedores e a harmonização dos interesses desses atores (artigo 4º, inciso III). Entretanto, a exemplo de outros tantos princípios, a alusão ao equilíbrio contratual pelos aplicadores do direito costuma ser feita apenas para fins de retórica e persuasão, como mero reforço de raciocínios jurídicos que, no fundo, estão pautados em outras premissas que guiam as decisões judiciais.50 Todavia, essa abordagem enfraquece a normatividade do princípio51 e desconsidera as funções que basearam sua incorporação à ordem jurídica.
47 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto: direito material e processo coletivo: volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2019. E- book, p. 157.
48 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Ob. cit., p. 244.
49 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx. A tutela das vulnerabilidades na legalidade constitucional. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx (Coord.). Da dogmática à efetividade do Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional – IV Congresso do IBDCIVIL. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 39.
50 TERRA, Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx. Boa-fé, função social e equilíbrio contratual: reflexões a partir de alguns dados empíricos. In: Princípios contratuais aplicados, cit., p. 21-22.
51 Sobre o tema, veja-se: XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx dos. O equilíbrio contratual nas locações em shopping center: controle de cláusulas abusivas e a promessa de loja âncora. Scientia Iuris. Londrina, v. 20, n. 3, p.176-200, nov. 2016
É preciso ter em mente que todos os institutos jurídicos foram concebidos pra concretizar funções específicas, eleitas como determinantes pelo ordenamento. Conforme lição de Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, as situações e fatos jurídicos apresentam dois perfis de análise: o perfil estrutural e o perfil funcional. Segundo o autor, primeiro perfil denota “como é” a caracterização estática daquele instituto, a denotar a maneira como o ordenamento estrutura as prerrogativas que a ele se associam. Por sua vez, o perfil funcional revela “para que serve” aquela estrutura jurídica, identificando a síntese de seus efeitos essenciais e os objetivos (interesses) que busca concretizar.52
Nessa esteira, pode-se dizer que o equilíbrio contratual se alinha a imperativos de justiça social e à concretização, na seara contratual, da igualdade substancial tutelada pelo artigo 5º da Constituição. Para tanto, o princípio chancela o uso de ferramentas de reequilíbrio dos encargos contratuais. Assim, costuma agir sobretudo em favor da parte contratante mais vulnerável,53 mas também previne e remedia desequilíbrios que afetem a distribuição original de riscos, direitos e obrigações aventada pelos contratantes, ainda que atinjam a parte menos vulnerável da relação contratual.54 E essa última perspectiva não foi desconsiderada pelo CDC, que pugna pela harmonização dos interesses de todos os participantes da relação de consumo.
Com efeito, no CDC o equilíbrio contratual tem uma de suas principais expressões no artigo 6º, inciso V, que garante ao consumidor a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão, em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Vale notar que o diploma consumerista não exige que os fatos que tornem as cláusulas contratuais excessivamente onerosas para o consumidor sejam imprevisíveis. Xxxxxxxx exige que a oneração excessiva do consumidor tenha como reflexo a prova de que houve vantagem para a contraparte – ou seja, para o fornecedor. Ao revés, o fornecedor terá tarefa bem mais complexa para poder se valer dos mecanismos tradicionais de reequilíbrio contratual, isto é, da revisão ou resolução por onerosidade excessiva. Isso porque, em lhe sendo aplicável o regime geral do Código Civil (artigo 478), terá de comprovar não só que houve excesso de ônus em seu desfavor, mas que este foi causado por circunstâncias
52 XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Perfis do direito civil. Tradução de Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. 3ª ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 94. Especificamente no âmbito do CDC, confira-se a lição do Min. Xxxx Xxxxxxx Xxxx, ressaltando a necessidade de interpretação teleológica que leve em conta os fins almejados pelas normas do diploma legal, em: GRAU, Xxxx Xxxxxxx. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor. Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor, vol. 1, abr. 2011, p. 161-166. RT Online.
53 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 157.
54 XXXX, Xxxxx. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil.
Doutrinas essenciais: obrigações e contratos, vol. 3, jun. 2011, p. 829-840. RT Online.
supervenientes imprevisíveis e, ainda, que essas circunstâncias resultaram em extrema vantagem para o consumidor que figura no outro polo da relação contratual.
Diante dessa complexidade é que se justificam mecanismos que se antecipam a possíveis desequilíbrios na relação contratual, no intuito de preservá-la sem a necessidade de recurso ao Judiciário – especialmente quando o desequilíbrio dos riscos originalmente pactuados representar ameaça à sustentação financeira do contrato. É precisamente esse o caso da coparticipação: o mecanismo de regulação chancelado pela lei e pela ANS reequilibra encargos financeiros, para ajustar os ônus supervenientes à distribuição de riscos considerada pela projeção atuarial empregada na formação do contrato – igualmente chancelada pela agência reguladora, que aprova previamente o arranjo atuarial de cada plano de saúde ofertado pelas operadoras no mercado. Xxxxx, o fato de haver ou não previsão de coparticipação influencia na precificação dos contratos de plano de saúde justamente por isso: o copagamento possibilita a atenuação dos ônus financeiros que poderão advir à operadora no custeio dos tratamentos específicos para os quais foi avençada. De outro lado, a ausência desse mecanismo – ou de qualquer outro que sirva a essa função – poderia levar ao aumento dos preços das mensalidades dos produtos de saúde privada, uma vez que a contraprestação paga pelo consumidor precisará ser estipulada em patamar elevado o suficiente para se coadunar às previsões de risco mais onerosas à operadora, vez que não haverá mecanismo de regulação que atenue esse ônus e reequilibre a relação contratual.
Em suma, a previsão da coparticipação (ou a ausência dela) é considerada na precificação do contrato do plano de assistência privada à saúde, possibilitando a atenuação dos preços das mensalidades e maior acesso da população a esse tipo de serviço. Esse entendimento, reforçado na tese fixada no Tema Repetitivo n. 1032, tem sido adotado pelo STJ ao menos desde 2015, conforme se extrai de trecho de acórdão relatado pelo Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx:
Nota-se, portanto, que, a fim de viabilizar o equilíbrio sinalagmático intrínseco aos contratos de plano de saúde, houve por bem o legislador autorizar, desde que claramente contratada, a possibilidade de formatação de alternativas contratuais, nas quais o consumidor assume o pagamento de coparticipação em despesas médicas, hospitalares e odontológicas. Por regra de mercado, essa absorção de parcela dos custos de utilização da rede conveniada pelo plano de saúde tem reflexo direto no valor da contraprestação, mantendo, frisa-se, o sinalagma contratual. É de conhecimento notório a diversidade de formatação contratual disponibilizada no mercado, ora impondo a coparticipação em todo e qualquer atendimento, ora impondo a coparticipação em determinados atendimentos, ora cobrindo a operadora, exclusivamente, todo e qualquer custo em razão dos riscos contratados. Assim, tendo em vista a admissão de planos de saúde em que há coparticipação em todo e qualquer
atendimento, não vejo qualquer abusividade em cláusula expressa e de interpretação indiscutível pela qual se imponha a coparticipação em situações específicas, como na hipótese dos autos.
(STJ, 3ª T., REsp 1511640/SP, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, publ. em 02.06.2015)
Há que se ter em mente que os contratos de planos de saúde envolvem distribuição de riscos entre as partes, na formação do chamado sinalagma contratual.55 Dentre outros aspectos, a repartição de riscos repercute na extensão das obrigações que poderão ser impostas a cada contratante e, principalmente, no valor atribuído às prestações que lhe cabem. Tal consideração é essencial sobretudo em razão da natureza securitária dos contratos de planos de saúde,56 nos quais a predeterminação dos riscos cobertos é o principal fator considerado no cálculo das mensalidades pagas pelos usuários. É a alocação de riscos acordada pelas partes que serve como parâmetro de equilíbrio do contrato, valendo relembrar que os contratos de assistência privada à saúde atendem a critérios de distribuição de riscos chancelados pela legislação setorial.57
Outro aspecto é digno de nota: ao auxiliar no reequilíbrio da relação contratual entre cada beneficiário e operadora, o mecanismo de coparticipação serve igualmente ao propósito de assegurar o equilíbrio financeiro e atuarial dos planos e seguros de saúde em geral, ou, quando menos, dos planos incluídos na carteira daquela operadora específica. Trata-se de uma das ferramentas que previne incrementos exacerbados nos custos dos planos e seguros de saúde. Esses incrementos de custos não só poderiam tornar pouco atrativos o empreendimento das operadoras e a adesão dos consumidores, como poderiam, em casos extremados, causar a quebra das companhias de saúde privada
55 Para análise da compreensão do sinalagma como um nexo funcional entre as contraprestações do contrato, qualitativamente mais específico do que a mera reciprocidade entre elas, cf., em perspectiva civil- constitucional, a fundamental lição de XXXXX XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. O procedimento de qualificação dos contratos e a dupla configuração do mútuo no direito civil brasileiro. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 309, jan-mar. 1990, p. 40; e, na doutrina mais recente, também o estudo sobre a bilateralidade contratual empreendido por XXXXX, Xxxxxxx xx Xxxx. Novas perspectivas da exceção de contrato não cumprido: repercussões da boa-fé objetiva sobre o sinalagma contratual. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 78, jun-2017, item 3. Sobre o caráter sinalagmático dos contratos de seguro em geral, cf. XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 505.
56 XXXXX, Xxxx Xxxx Xxxx da. Manual de Direito da Saúde Suplementar: a iniciativa privada e os planos de saúde. São Paulo: X.X.Xxxxxx Editora, 2005, p. 83; MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Conflitos de leis no tempo e direito adquirido dos consumidores de planos e seguros de saúde. In: Saúde e responsabilidade: seguros e planos de assistência privada à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 124-125.
57 “Daí afirmar-se que o conceito de risco contratual relaciona-se diretamente com o de equilíbrio, tendo em conta que as partes estabelecem negocialmente a repartição dos riscos como forma de definir o equilíbrio do ajuste. Ao se perquirir a alocação de riscos estabelecida pelos contratantes, segundo a vontade declarada, o intérprete deverá atentar para o tipo contratual escolhido e para a causa concreta do negócio. Cada tipo contratual possui critérios de repartição do risco previamente estabelecidos em lei. Entretanto, as partes poderão modelar a alocação de riscos do negócio, inserindo na sua causa repartição de riscos específica e incomum a certa espécie negocial” (BANDEIRA, Xxxxx Xxxxx. O contrato como instrumento de gestão de riscos e o princípio do equilíbrio contratual. Revista de Direito Privado, vol. 65. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. RT Online, nº 1)
e inviabilizar o essencial serviço que por elas é prestado com xxxxxx no papel constitucionalmente atribuído à saúde suplementar.
De fato, a preservação de todo o sistema de saúde suplementar é objetivo que o ordenamento não deixou de lado. É o que se extrai, por exemplo, das menções da Lei n. 9.656/1998 à busca da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de planos privados de saúde (artigos 24 e 35-A). Por isso, ao lado das garantias financeiras exigidas pela legislação do setor, há outros mecanismos que zelam por sua sustentabilidade econômica, como a própria coparticipação. Também o estabelecimento do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS tem nítida preocupação com o equilíbrio econômico dos contratos e das redes contratuais, no intuito de evitar rupturas que teriam como principais prejudicados os próprios beneficiários que por elas são assistidos.58
Historicamente, a jurisprudência do STJ não tem descuidado dessa orientação. Na esteira da tese fixada no Tema Repetitivo n. 1032, a Corte tem reconhecido a validade das cláusulas de coparticipação com deferência à finalidade de reequilíbrio que por elas é promovida – em prol da sustentabilidade econômica de todo o setor de saúde privada.
Apesar disso, o próprio STJ impõe parâmetros que devem ser casuisticamente aferidos na análise de validade dessas disposições. Segundo a Corte, a alíquota do percentual de coparticipação não poderá ser excessiva a ponto de importar em restrição severa aos serviços cobertos pelo contrato ou, muito menos, caracterizar o financiamento integral do procedimento por parte do usuário. Tais parâmetros constam expressamente do art. 2º, inciso VII da Resolução n. 08/1998 do CONSU e são aplicáveis a todos os casos que envolvem a aplicação do mecanismo regulatório.59 Significa dizer, portanto, que a parcela suportada pelo beneficiário, ainda que possa aumentar gradualmente conforme o tempo de internação, jamais poderá levar ao custeio total do procedimento – exonerando a
58 “A ANS, ao contrário do médico-assistente, analisa os procedimento e eventos sob perspectiva coletiva, tendo em mira a universalização do serviço, de modo a viabilizar o atendimento do maior número possível de usuários. A rápida evolução da medicina e o desenvolvimento de equipamentos médicos cada vez mais modernos, graças ao galopante avanço tecnológico, torna o cálculo atuarial sempre mais sofisticado, a conduzir à maior complexidade também da gestão dos fundos mutualísticos. A elaboração precisa e cuidadosa de um rol taxativo de coberturas obrigatórias pelo plano-referência é imprescindível para a sobrevivência do sistema. Fosse o rol exemplificativo, a todo momento poder-se-ia demandar a cobertura de novo procedimento ou evento, o que impediria o conhecimento, pela operadora, dos riscos a serem suportados e, consequentemente, a fixação prévia do preço a ser cobrado dos usuários, a gerar insuportável insegurança jurídica, senão a própria inviabilidade do setor” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Planos privados de assistência à saúde e boa-fé objetiva, cit., p. 188).
59 Nessa linha: STJ, 3ª T., AgInt no REsp 1656269/DF, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, publ. em 06.09.2017; STJ, 3ª T., REsp 1566062/RS, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, publ. em 01.07.2016; STJ, 4ª T., AgInt no AREsp 1067523/DF, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxxxx, publ. em 02.10.2018; e STJ, 3ª T., AgInt no REsp 1812435/RS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, publ. em 27.11.2019.
operadora de qualquer custo com o procedimento. Ademais, o montante a ser financiado pelo usuário tampouco poderá alcançar patamar que represente restrição excessivamente severa ao tratamento custeado parcialmente pelo segurado.60
O propósito desses parâmetros é evidente: atender os comandos do artigo 39, inciso V e do artigo 51, inciso IV e §1º, todos do CDC, para proteger o consumidor contra cláusulas e práticas que lhe imponham desvantagem exagerada e proporcionem vantagem excessiva à operadora – que se exoneraria total ou substancialmente de suas obrigações, em grau acima do necessário à preservação do equilíbrio contratual e à consecução das razões públicas que justificam a coparticipação.
Além disso, como não poderia ser diferente, no julgamento do Tema Repetitivo n. 1032 o STJ reafirmou a orientação segundo a qual a previsão da coparticipação em qualquer caso deve constar de forma expressa e nítida dos contratos de plano de saúde, para que seja respeitado o direito básico dos consumidores à informação adequada e clara sobre os serviços contratados (art. 6º, inciso III do CDC).
Por sinal, a exigência de destaque e clareza para as cláusulas que preveem a coparticipação – incluídas as que estabelecem esse regime no custeio de tratamentos psiquiátricos – decorre diretamente do art. 54, §§ 3º e 4º do CDC, visto que a redistribuição do ônus financeiro pode ser equiparada à limitação de direito dos consumidores. Para não deixar dúvidas sobre o assunto, também o art. 3º, parágrafo único da Resolução n. 11/1998 do CONSU dispôs que a coparticipação deverá estar claramente definida no contrato. Além disso, o percentual de copagamento também deverá constar de forma clara e expressa do contrato, na forma do art. 16, inciso VIII da Lei n. 9.656/1998, sob pena de não produzir efeitos a cláusula de coparticipação.61
Conforme lição de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, o direito à informação também serve ao propósito de reequilibrar a desigual relação entre fornecedor e consumidor. Para tanto, impõe ao primeiro um dever ligado à boa-fé, de colocar de forma clara o que o consumidor precisa saber sobre o produto ou serviço contratado, suprindo o déficit informacional que traduz uma das facetas mais claras da vulnerabilidade dos
60 A aplicação desses critérios levou a 4ª Turma do STJ a reduzir o percentual de coparticipação no custeio de tratamento psiquiátrico do montante de 90% para o percentual 50%, observando a imposição desse percentual como fração máxima a ser custeada pelo usuário do plano na forma do (então vigente) artigo 22, inciso I, alínea “b” da Resolução ANS 428/2017 (STJ, 4ª T., REsp 1551031/DF, Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, Rel. p/ acórdão Min. Xxxx Xxxxxx, publ. em 07/02/2017).
61 Nesse sentido: STJ, 3ª T., REsp 1671827/RS, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, publ. em 20.03.2018.
consumidores.62 Tudo isso serve para que, munido das informações de que necessita, o consumidor tenha o máximo de liberdade de escolha (art. 6º, inciso II do CDC) quanto aos produtos e serviços que deseja (ou não) contratar.
Realmente, também a garantia da máxima liberdade de escolha reafirma, indiretamente, a compatibilidade da coparticipação com o regramento do CDC. Afinal, passando-se a admitir tanto a existência de contratos de assistência privada à saúde que não prevejam mecanismos de regulação, quanto de contratos que se valham de tais ferramentas, restam ampliadas as opções à disposição dos consumidores. E ao contrário do que poderia parecer, a previsão de coparticipação pode ser benéfica aos consumidores, tendo em vista que a possível divisão dos ônus com o custeio de determinados tratamentos também é considerada pelas operadoras – e pela ANS – na fixação dos preços dos planos e seguros de saúde. Em palavras claras, pode ser preferível a contratação de plano com previsão de coparticipação e com mensalidades mais baratas, do que de plano que não estipule a aplicação do mecanismo, mas que possua mensalidades mais elevadas justamente pela projeção atuarial dos riscos calculada pela operadora levar em conta o encargo do custeio integral de todos os tratamentos cobertos pelo contrato. Ao mercado, com a fiscalização da agência reguladora, cabe a tarefa de buscar ampliar a margem de escolha do consumidor, oferecendo produtos diversificados.63
Esse mesmo viés ligado à redução de custos e democratização do acesso à saúde privada reforça a compatibilidade do mecanismo de coparticipação, em geral, com a função social dos contratos de plano de saúde.
Como se sabe, a função social dos contratos não tem como objetivo específico a proteção dos interesses dos contratantes envolvidos na avença individualmente considerada. Ao revés, o instituto consagrado pelo art. 421 do Código Civil busca proteger interesses extracontratuais64 socialmente relevantes, eleitos pelo ordenamento como dignos de proteção, mesmo – e principalmente – quando se colocam em oposição aos interesses
62 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Comentários ao artigo 6º. In: Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. RT Online.
64 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Para além da “principialização” da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 13, jul./set. 2017, p. 59.
dos signatários do contrato em exame. Isso quer dizer que “a função social pretende impor deveres aos contratantes e não, ao contrário, servir para ampliar os instrumentos de proteção contratual”.65
Nessa trilha, para identificar o principal interesse social ao qual devem ser funcionalizados os contratos de plano de saúde basta pensar novamente no papel que a Constituição atribuiu à saúde suplementar. Definitivamente não foi atribuído às operadoras de saúde privada o múnus de universalizar o acesso a ações e serviços de saúde – que cabe ao Estado.66 Entretanto, ao facultar à iniciativa privada a atuação na assistência à saúde, conclui-se que o constituinte quis instituir sistema que abrandaria o ônus do Poder Público ao assimilar boa parte da demanda nessa seara. De tal maneira, quanto mais disseminado for o acesso da população aos produtos de saúde privada, menor será o impacto aos cofres públicos com a necessidade de ações no âmbito do SUS. Afinal, ao menos como regra, os planos e seguros de saúde garantirão aos seus consumidores assistência nos limites das segmentações contratuais, diminuindo consideravelmente o gasto estatal e possibilitando a reversão de recursos públicos para outras finalidades igualmente relevantes.67
A despeito do que poderia parecer, a função social dos contratos de planos e seguros de saúde não está atrelada à expectativa de que as entidades privadas promovam a universalização dos serviços de saúde em moldes comparáveis aos das políticas assistenciais estatais.68 Em verdade, a função social desses pactos está diretamente ligada à pulverização dos custos com serviços médicos e correlatos, que leva à diminuição de preços e à possibilidade de acesso da população a esses mesmos serviços, por intermédio dos agentes de saúde privada, suplementando e atenuando, assim, o múnus que compete ao Estado. Não à toa, a estrutura dos contratos de plano de saúde se
65 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas sobre a função social dos contratos. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx. Temas de direito civil. t. III. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 148.
66 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. Curso de direito de saúde suplementar: manual jurídico de planos e
seguros de saúde. São Paulo: Academia Brasileira de Direito; MP Ed., 2006. p. 119
67 Isso não significa que o estímulo ao crescimento do setor privado de assistência à saúde deva ser a principal política pública estatal voltada à expansão do acesso a serviços de saúde. Nesse sentido, em tom crítico às opções político-legislativas que privilegiaram o incremento do sistema privado de saúde nos últimos anos, confira-se: BAHIA, Lígia. O sistema de saúde brasileiro entre normas e fatos: universalização mitigada e estratificação subsidiada. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14(3), 2009, p. 756; e XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx. Obstáculos à universalização do SUS: gastos tributários, demandas sindicais e subsídio estatal de planos privados. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26(6), p. 2323-2333, 2021.
68 Nessa linha: “Há que se resistir à tentação, sempre insidiosa e mesmo inerente à natureza humana, de se buscar ‘justiça’ a qualquer custo no caso concreto, diante dos complexos dramas pessoais que se colocam diuturnamente perante o Poder Judiciário. Atribuir uma pretensa ‘função assistencial’ ao contrato, além de ir de encontro ao dado normativo, conduz a uma série de graves problemas, a exemplo da quebra do mutualismo inerente ao sistema de planos privados de assistência à saúde, a colocar em xeque a própria sobrevivência da atividade econômica”. (TERRA, Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Planos privados de assistência à saúde e boa-fé, cit., p. 189-190).
encontra inteiramente projetada em prol dessa função de diminuir e pulverizar os custos de saúde.69 Como já se viu, a lógica do mutualismo que rege os planos e seguros de saúde tem como pressuposto a divisão dos custos entre os beneficiários que contribuem para o fundo mutual. Assim ocorre, inclusive, para tornar menos onerosas as contribuições daqueles beneficiários que seriam afastados desses produtos por razões de seleção adversa, como os idosos – já que, sem essa diluição de custos, os valores que precisariam desembolsar para ter acesso à cobertura contratual seriam muito elevados.
O raciocínio se aplica perfeitamente ao mecanismo de coparticipação. Na medida em que a inserção da coparticipação na estrutura dos contratos de planos e seguros de saúde permite o oferecimento de preços mais acessíveis, um contingente maior de usuários poderá contratar os serviços da saúde suplementar. Assim, contribui-se para a função social que o ordenamento atribuiu a esses contratos que, como visto, alinha-se ao papel conferido pelo constituinte à saúde suplementar, responsável por suavizar os ruidosos impactos que a universalização dos serviços de saúde impõe ao erário.
5. Síntese conclusiva
Consoante dito, a discussão acerca da validade de cláusulas de contratos de planos de saúde que estipulam pagamento a título de coparticipação não é novidade na jurisprudência brasileira. Semelhantemente, a aplicação da coparticipação e de outros mecanismos regulatórios não é uma realidade desconhecida dos consumidores e operadoras dos serviços da saúde suplementar. Ao revés, o emprego de tais mecanismos é cada vez mais frequente nos contratos desse setor, com especial destaque para cláusulas que preveem o copagamento para custeio de internações psiquiátricas prolongadas. De igual modo, a regulação dessa modalidade de cláusulas pela legislação setorial e sua consonância com outros relevantes preceitos do ordenamento tem sido chancelada, ao longo do tempo, em diversos precedentes do STJ e de outros tribunais brasileiros, que têm se mostrado atentos a esses parâmetros normativos.
A despeito disso, as controvérsias sobre o tema ainda surgem com indesejável frequência
69 “Embora nem sempre seja bem compreendida, a finalidade do serviço prestado pelas operadoras de planos de saúde consiste, a rigor, na redução dos custos dos serviços médicos, de modo que o consumidor não tenha que pagar diretamente pela consulta ou venha a ser dela reembolsado. O objeto da avença cinge-se à gestão de custos. A prestação de serviços assim descrita se distingue, a toda evidência, da prestação de serviços médicos em si considerada, tendo em vista que a atividade das operadoras se consubstancia simplesmente na administração dos custos, com o objetivo de constituir rede (credenciada, referenciada ou contratada) à qual possa o consumidor recorrer no momento em que necessite” (XXXXXXXX, Xxxxxxx. Sociedades operadoras de plano de saúde e responsabilidade civil. Soluções práticas de direito. São Paulo: Ed. XX, 0000. vol. 1, p. 377).
em âmbito judicial, sobretudo na esfera de tribunais estaduais resistentes a seguir a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça.
Em boa hora, a 2ª Seção do STJ fixou tese acerca do tema sob o rito dos recursos repetitivos, que, espera-se, tenha potencial para dirimir – ou ao menos atenuar – eventuais desentendimentos na matéria que ainda persistam em surgir, a fim de que na formação das normativas de cada caso concreto sejam prestigiadas as soluções mais coerentes com a aplicação unitária do ordenamento.
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Como citar: XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx x. Cláusula de contrato de plano de saúde que estabelece coparticipação no custeio de internações psiquiátricas: análise a partir do Tema Repetitivo n. 1032 e da jurisprudência do STJ. Xxxxxxxxxxx.xxx. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021. Disponível em:
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