UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO CONTRATO AMBIO-SOCIAL
A UMA ANTROPOLOGIA DA ESPERANÇA: CIDADANIA E SUSTENTABILIDADE
NA ERA DA CRISE AMBIENTAL
Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Rego
DOUTORAMENTO EM FILOSOFIA DA NATUREZA E DO AMBIENTE
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
DO CONTRATO AMBIO-SOCIAL
A UMA ANTROPOLOGIA DA ESPERANÇA: CIDADANIA E SUSTENTABILIDADE
NA ERA DA CRISE AMBIENTAL
Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Rego
Tese orientada pelo Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxxxx-Xxxxxxx e co- orientada pelo Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, especialmente para a obtenção do grau de doutor em Filosofia da Natureza e do Ambiente
Esta Dissertação é dedicada à geração de 1960, às suas utopias e à sua inquietude,
que nos legou a subversiva ideia de que um outro mundo é possível e à memória do Professor Xxxxxx Xxxx (1944-2015),
com quem partilhei algumas horas num dia frio de Munique, que dedicou a sua vida a desbravar outros mundos possíveis.
Resumo
Esta Dissertação insere-se nas áreas de Filosofia da Natureza e do Ambiente e Filosofia Política e pretende pensar a cidadania e a sustentabilidade do ponto de vista da complexidade da crise ambiental contemporânea. Num primeiro momento, pretende-se argumentar que, no que concerne à complexidade das questões envolvidas na crise ambiental global, a noção de cidadania ecológica desenvolvida recentemente por alguns autores revela-se extremamente redutora face à perspectiva redutora dos seus argumentos.
Num segundo momento, partindo da crise global do ambiente como eixo axial de uma profunda crise civilizacional contemporânea, pretende-se construir uma noção mais ampla de cidadania ambiental do que as noções formuladas até este momento.
Trata-se de, em face da complexidade da crise ambiental contemporânea, tomar o conceito de ambiente como categoria ontológica fundamental para a nossa sobrevivência no planeta e também para a sobrevivência das formas de vida não humanas, e repensar as bases do contratualismo moderno através da possibilidade de ampliação do contrato social a um Contrato Ambio-Social que contemple as condições do mundo e dos recursos naturais, do equilíbrio ecológico dos ecossistemas planetários ameaçados pelas acções tecnocientíficas antropogénicas e a preocupação para com as gerações futuras nos limites de um realismo antropocêntrico moderado e responsável.
Delimitadas as fronteiras teóricas da cidadania ambiental, pretende-se depois, através das mesmas, determinar a possibilidade de enriquecer o clássico triângulo conceptual do conceito de sustentabilidade (social, económico e ambiental), enfocando-o numa perspectiva mais lata como um possível mito de mobilização da sociedade civil face aos desafios ambientais contemporâneos na perspectiva de uma antropologia da esperança e de uma utopia concreta, cujas ferramentas de pensamento crítico aos paradigmas estabelecidos nos permitam o exigente e estimulante exercício de divisar futuros modelos sociopolíticos alternativos, equitativos e sustentáveis.
Abstract
This Dissertation was made in the disciplines of Natural and Environmental Philosophy and Political Philosophy, and aims to think of citizenship and sustainability from the complex perspective of the contemporary environmental crisis.
In a first moment it is argued that, in face of the complexity involved in the global environmental crisis issues, the notion of ecological citizenship recently developed by some authors is in itself too narrow due to the lack of a larger scope of its arguments.
In a second moment, taking the global environmental crisis as the main axis of a deeper contemporary civilizational crisis, it is intended to focus on a wider theoretical notion of environmental citizenship than its previous approaches.
This notion of environmental citizenship intends to forge a new approach on the contractualist theory by taking the environment as the primary condition of possibility regarding the existence of the human condition and of the non-human forms of life as well. With this approach, it will be argued that our social contract becomes, thus, an Enviro-Social Contract in which environmental issues play a vital role to the planetary human and non-human forms of life, and also to the future generations in the limits of a restrained and responsible anthropocentrism.
From the emerging notion of environmental citizenship it will be researched the possibility of enriching sustainability’s classic conceptual triangle (social, economic and environmental) and of a new and larger focus on it. Sustainability will be considered in the light of a possible myth of engagement of civil society in environmental issues, as an anthropology of hope, and as a concrete utopia whose tools of critical thinking to the established paradigms will allow the stimulating and demanding effort of design alternative, equitable and sustainable future sociopolitical models.
CONCEITOS - CHAVE
Cidadania Ambiente Sustentabilidade Esperança Utopia
KEY CONCEPTS
Citizenship Environment Sustainability Hope
Utopia
Índice Geral
Resumo ….. 3
Conceitos-chave ….. 4 Índice Geral 5
Introdução – Cidadania, sustentabilidade e crise global do ambiente: o estado da arte
….. 11
1. Apresentação do tema da Dissertação, objectivos e estado da arte ….. 11
2. Estrutura temática dos capítulos ….. 14
3. A natureza interdisciplinar da Dissertação ….. 16
Capítulo 1 – Anatomia Sociopolítica de um Conceito I: cidadania na Grécia Antiga ….. 18
1.1. Algumas considerações prévias em torno da história da cidadania ….. 18
1.2. Cidadania: anatomia sociopolítica de um conceito. A Grécia Antiga dos séculos IX e VIII a.C 21
1.3. Esparta nos séculos VII e VI a.C.: a participação pública num Estado oligárquico
….. 25
1.4. Atenas no século V a.C.: A democracia 28
1.4.1. Xxxxxxxx: o elogio da democracia 30
1.4.2. Algumas vicissitudes da democracia grega 32
Capítulo 2 – Anatomia Sociopolítica de um Conceito II: A Era das Revoluções - Da “Gloriosa Revolução” à Revolução Francesa 35
2.1. Para uma génese histórica da(s) revolução(es): os alvores da modernidade 35
2.2 A “Gloriosa Revolução” Inglesa de 1688: a solução conciliadora 37
2.3. A Revolução Americana de 1776: a emergência de um cívico “admirável mundo novo” 41
2.4. A Revolução Francesa de 1789: a “Mãe” de todas as Revoluções ….. 48
Capítulo 3 – Cidadania na Contemporaneidade: de T.H. Xxxxxxxx à Participação 2.0 na Era da Informação - Um olhar panorâmico ….. 55
3.1. T. H. Xxxxxxxx e o regresso da cidadania ao debate político contemporâneo ….. 55
3.2. Cidadania digital e ciberdemocracia: novas ferramentas de participação cívica no mundo global ….. 61
3.2.1. Xxxxxx Xxxxxxxx e A Era da Informação ….. 61
3.2.2. Cidadania digital ….. 62
3.2.3. Cidadania Digital e Redes Sociais: participação 2.0 ….. 64
3.2.4. Cidadania digital e o futuro ….. 66
Capítulo 4 – Cidadania ecológica: um conceito insuficiente perante os desafios da crise ambiental …. 68
4.1. A busca de novos horizontes teóricos para a cidadania em face da crise do ambiente
….. 68
4.2. A cidadania ecológica segundo Xxxxxx Xxxxxx ….. 73
4.3. A cidadania ecológica à luz da crise global do ambiente: algumas das fragilidades da concepção de Xxxxxx ….. 82
Capítulo 5 – A natureza na sociedade e na história como premissas fundamentais da cidadania ambiental e do Contrato Ambio-Social ….. 87
5.1. A singularidade da crise ambiental I: A “fusão” entre natureza e sociedade sob o signo da incerteza no caos da modernidade. Esboço de uma Sociedade de Risco ….. 87
5.2. A singularidade da crise ambiental II: A natureza na história. O ambiente como momento histórico decisivo para a condição humana ….. 94
Capítulo 6 – A crise ambiental como possibilidade de revisão do contratualismo moderno. A génese da cidadania ambiental e do Contrato Ambio-Social ….. 99
6.1. A cidadania ambiental como expressão de um Contrato Ambio-Social ….. 99
6.2. As montanhas não pensam nem assinam contractos naturais: a inviabilidade de um ecocentrismo avant la lettre - A patologia distópica da Ecologia Profunda ….. 108
Capítulo 7 – Da religião moderna do progresso à tentação contemporânea do pós- humano: a tecnociência com um aroma de abismo ….. 117
7.1. Sob o signo do progresso: para uma genealogia da tecnociência e da sua relação com a natureza ….. 117
7.1.1. Ciência e Natureza na Antiguidade e Idade Média ….. 118
7.1.2. A instrumentalização da natureza: a génese do projecto tecnocientífico da modernidade ….. 120
7.1.2.1. A emergência de um novo paradigma e de um novo triângulo de alianças: homem/ciência/técnica e natureza/poder/utilidade ….. 120
7.1.2.2. Xxxx xxxxx Xxxxxxxxx - Oratio de Hominis Dignitate (1486): a liberdade como destino e o homem no centro do universo ….. 122
7.1.2.3. Xxxxxxx Xxxxx, Xxxxxxxxx e Leibniz - New Atlantis (1624), Discours de la Methode (1637) e Hypothesis Physica Nova (1671): a ciência como a grande conquista da humanidade ….. 123
7.1.2.4. Xxxxxxx Xxxxx - Xxxx des Travaux Scientifiques (1822): a fé ilimitada na ciência e a utopia do Progresso ….. 125
7.2. Progresso infinito, Singularidade e Pós-Humanismo: a tecnologia é A SALVAÇÃO! – Ciborgues e Gnosticismo Tecnológico ….. 127
Capítulo 8 – A ciência e o progresso nos limites planetários: Contrato Ambio-Social e tecnociência ….. 132
8.1. Xxxxxx Xxxx e a falência da racionalidade tecnocientífica na contemporaneidade ….. 132
8.2. A unidimensionalidade da tecnociência e o cepticismo climático: para uma exposição e crítica da racionalidade tecnocientífica e das relações perversas entre ciência e economia ….. 137
8.2.1. A unidimensionalidade da tecnociência e a paralisia crítica do indivíduo na sociedade industrial: uma reflexão sobre o paradigma tecnocientífico na perspectiva de Xxxxxx Xxxxxxx ….. 138
8.2.2. Cepticismo climático made in USA: o exemplo de uma relação perversa entre ciência e os interesses dominantes da economia ….. 140
8.2.2.1. O cepticismo no seio da comunidade científica ….. 141
8.2.2.2. Lobbies: o cepticismo climático na sua vertente económica ….. 142
8.3. A esfera tecnocientífica dentro dos limites planetários: para um novo contrato social para a ciência ….. 146
8.3.1 Algumas considerações sobre o estado actual da ciência ….. 146
8.3.2. Ciência Pós-Normal e Limites Planetários: a ciência sob a perspectiva do Contrato Ambio-Social ….. 148
Capítulo 9 – Para além do PIB: indicadores para uma economia mais humana. Contrato Ambio-Social e equidade social ….. 156
9.1. A crise financeira de 2008 e os limites do modelo económico actual ….. 156
9.2. A natureza como valor: ética ambiental para uma economia mais humana - A perspectiva de Xxxxxx Xxxxxxx XXX ….. 161
9.3. O efémero na sociedade espectáculo e a era do vazio: economia e hiperconsumo
….. 164
9.4. A economia nos limites da sustentabilidade: posições alternativas ao paradigma dominante I ….. 167
9.4.1. Xxxxxxx Xxxxxxxx e a nave espacial Terra ….. 167
9.4.2. A perspectiva da sustentabilidade de Xxxxxx Xxxx ….. 168
9.5. Para além do PIB: economia e equidade social - Posições alternativas ao paradigma dominante II ….. 172
9.5.1. Xxxxxxx Xxx: as capacidades humanas como um indicador fundamental para o desenvolvimento económico ….. 172
9.5.1.1. A análise das capacidades ….. 175
9.5.2. A transição para uma economia sustentável: Xxx Xxxxxxx e a redefinição do conceito de prosperidade ….. 178
9.6. Contrato Ambio-Social e equidade social: os novos horizontes da justiça em demanda da sustentabilidade e os desafios do futuro ….. 181
Capítulo 10 – Desafios e perspectivas da crise ambiental e da sustentabilidade: do fim da história ao temor como entropia da cidadania ambiental ….. 187
10.1. Desafios da crise ambiental contemporânea. Alguns dos cenários para o século XXI …. 187
10.1.1. Alterações climáticas: um desafio do século XXI 187
10.1.2. A questão energética 189
10.1.3. Crescimento da população e segurança alimentar: como alimentar o mundo em 2050? 190
10.1.4. As megacidades 191
10.1.5. A escassez mundial de água e segurança ambiental 192
10.1.6. Refugiados ambientais 192
10.2. Crise ambiental, presente e futuro: um perfume de fim de mundo. Decadência civilizacional e fim da história? A perspectiva de Xxxxxx Xxxxxxxx 193
10.3. Crise Ambiental e Responsabilidade – Xxxx Xxxxx, a entropia da cidadania e a possibilidade de uma distopia 197
Capítulo 11 – Do Contrato Ambio-Social a uma Antropologia da Esperança: a sustentabilidade como mito mobilizador e utopia concreta do século XXI 205
11.1. Sustentabilidade ou Desenvolvimento Sustentável? Contradições e indefinições de um conceito 205
11.1.1. Origem e história do conceito 205
11.1.2. Indefinições e insuficiência conceptual do desenvolvimento sustentável 207
11.1.3. A política como pilar da sustentabilidade 209
11.1.4. A cultura como pilar da sustentabilidade ….. 210
11.2. Notas para uma antropologia da esperança: a sustentabilidade como utopia concreta e possível mito mobilizador do futuro ….. 213
Capítulo 12 – Refundar 1968: o movimento ambiental na óptica da sustentabilidade como Antropologia da Esperança ….. 227
12.1. Contra a primavera silenciosa dos paradigmas da modernidade: a ascensão do movimento ambiental no espaço público ….. 227
12.1.1. As raízes do movimento ambiental (1850-1945): tendências conservacionistas
….. 227
12.1.2. O movimento ambiental global nas décadas de 1960 e 1970: consciência e sensibilização face à gravidade dos problemas ambientais ….. 229
12.2. Os riscos tecnológicos e ambientais como alargamento do espaço público: Xxxxxx Xxxx e a ascensão do movimento ambiental na contemporaneidade ….. 232
12.3. Refundar 1968: algumas reflexões sobre a cidadania e o movimento ambiental na óptica da sustentabilidade como antropologia da esperança ….. 237
Conclusão – Um novo contrato social ou um Contrato Ambio-Social? Alguns tópicos inconclusivos sobre a ideia de Europa numa perspectiva cosmopolita ….. 243
Bibliografia ….. 256
Introdução – Cidadania, sustentabilidade e crise global do ambiente: o estado da arte
1. Apresentação do tema da Dissertação, objectivos e estado da arte
As implicações globais da crise ambiental contemporânea na esfera social e na esfera política nas últimas três décadas trouxeram novos desafios conceptuais às ciências sociais e humanas em geral e, nesse sentido, também à filosofia política.
Dada a relevância que assumem as questões ambientais nas agendas políticas locais, nacionais e internacionais, uma das grandes tarefas da filosofia do ambiente e da filosofia política e, num panorama mais geral, da ciência política do nosso tempo, no que diz respeito a uma teoria da cidadania, é a procura e elaboração de um território conceptual que tenha em conta a relação entre cidadania, ambiente e sustentabilidade ou como afirma Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx, um dos autores pioneiros neste campo, determinar a possibilidade de encontrar um equilíbrio entre a reivindicação de direitos ambientais e a ideia de responsabilidade colectiva1.
Apesar de a relação entre cidadania, ambiente e sustentabilidade sensu stricto ser uma área de investigação relativamente recente, iniciada, sobretudo, pela teoria social e pela ciência política anglo-saxónica na década de 1990 no seguimento do ressurgir do interesse pelo estudo das questões da cidadania em geral, podemos elencar algumas das contribuições para o tema em dois ângulos distintos de teorização:
- Uma perspectiva que, partindo do breve, mas clássico e influente, texto do sociólogo britânico, T. H. Xxxxxxxx, sobre a cidadania, “Citizenship and Social Class” (1950), centra-se na elaboração conceptual da relação entre cidadania e ambiente privilegiando, sobretudo, um enfoque na esfera dos direitos cívicos, à semelhança da posição adoptada por Xxxxxxxx. É este o caso de autores como Xxxx Xxx Xxxxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx, cujas aportações ao tema teremos oportunidade de analisar;
- Uma outra perspectiva que se demarca da elaboração histórica das etapas da cidadania efectuada por Xxxxxxxx e apresenta a relação entre cidadania e ambiente dando um enfâse especial à esfera dos deveres ecológicos e da responsabilidade para com as
1 Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx, “Ciudadania Ecologica: una noción subversiva dentro de una política global” in
M. Alcantara (ed.): Política en América Latina. I Congreso Americano de Ciencia Política, p. 281.
gerações futuras e com formas de vida não humanas, como são os casos de Xxxx Xxxxx, Xxxx Xxxxxxxxx e Xxxx Xxxxx, aos quais também devotaremos a merecida atenção.
Não obstante o mérito que estas primeiras contribuições tiveram no desbravar de um território intelectual até então nada trilhado e de contribuírem para a ampliação do debate em torno das questões ambientais em conexão com a cidadania, devemos, no entanto, ao cientista político britânico, Xxxxxx Xxxxxx, a mais original e completa teorização no que diz respeito à construção de um conceito cidadania ecológica, nomeadamente em trabalhos como o artigo “Ecological Citizenship: A Disruptive Influence” (2000), mas, sobretudo, a obra Citizenship and the Environment (2003), espaço que Xxxxxx dedica plenamente ao desenvolvimento dos seus argumentos nesta matéria com mais acuidade e detalhe.
Filiando-se indubitavelmente, na perspectiva da segunda vaga de autores que referimos acima, o panorama que Xxxxxx nos oferece em termos da relação entre cidadania, ambiente e sustentabilidade encontra-se, infelizmente, reduzido a uma espécie de narrativa materialista de produção, consumo e troca de recursos naturais.
Sem querermos adiantar muito neste momento, até porque a concepção de Xxxxxx será alvo de uma detalhada análise ao longo desta Dissertação, podemos, no entanto, afirmar que a sua noção de cidadania ecológica defende uma abordagem cívica essencialmente centrada na esfera dos deveres ou, como o próprio afirma, em comunidades de obrigação, sendo a cidadania ecológica na sua óptica construída com base num processo não recíproco entre o hemisfério norte e o emergente hemisfério sul do globo.
Nesta Dissertação pretendemos ir mais além da perspectiva dos autores já citados e propomo-nos a pensar a cidadania não apenas sob o hipotético prisma de conflito entre direitos e deveres - até porque a noção de cidadania ambiental que procuraremos desenvolver postula uma relação de equilíbrio entre ambos - e dos limites disciplinares da ciência e da teoria política, mas sim abordar o tema sob um ângulo conceptual incomparavelmente mais amplo.
O principal objectivo desta Dissertação é pensar a cidadania e a sustentabilidade do ponto de vista da complexidade da crise ambiental contemporânea, algo que, estamos em crer, não foi logrado pelos autores que mencionámos e que é essencial para compreender a relação entre cidadania e ambiente.
Assim, num primeiro momento, pretendemos argumentar que, em face da complexidade das questões envolvidas na crise ambiental global, a noção de cidadania ecológica desenvolvida nomeadamente por Xxxxxx e também por outros autores, assume um carácter extremamente redutor devido à ausência de uma perspectiva mais ampla dos seus argumentos no que diz respeito a questões-chave da relação entre cidadania, ambiente e sustentabilidade.
Num segundo momento, partimos da crise ambiental contemporânea como eixo axial de uma profunda crise civilizacional na contemporaneidade e pretendemos construir as coordenadas territoriais teóricas de uma noção mais ampla de cidadania ambiental do que até aqui tem sido feito: como possibilidade de construir um novo enquadramento cívico regulador da relação entre o ser humano e o meio natural.
Não pretendemos substituir uma perspectiva antropocêntrica por um enfoque ecocêntrico na relação homem/natureza, como fazem alguns autores e correntes de pensamento da ética ambiental, nem formular uma visão contratualista ecocêntrica de um hipotético contrato natural para substituir o nosso modelo de contrato social na linha de alguns dos argumentos sustentados, sobretudo, pela ecologia profunda.
Trata-se de, em face da complexidade da crise ambiental contemporânea, tomar o conceito de ambiente como categoria ontológica fundamental não só para a nossa sobrevivência no planeta, mas também para a sobrevivência das formas de vida não humanas, e repensar as bases do contratualismo moderno através da possibilidade de ampliação do contrato social, enquanto metáfora para a génese das relações sociais e políticas humanas, a um Contrato Ambio-Social que contemple as condições do mundo e dos recursos naturais, do equilíbrio ecológico dos ecossistemas planetários ameaçados pelas acções tecnocientíficas antropogénicas e a preocupação para com as gerações futuras nos limites de um realismo antropocêntrico moderado e responsável.
Por outras palavras, esta Dissertação pretende levar a cabo a tarefa de pensar uma noção de cidadania ambiental de cariz antropocêntrico, isto é, na perspectiva dos direitos ambientais como extensão dos direitos humanos encarados como deveres para com as gerações futuras e para com o mundo natural, alargando nesse sentido as bases do contratualismo moderno à realidade planetária contemporânea.
Recusando a tónica dos discursos quase apocalípticos ou de pedagogias do temor que muitas vezes surgem associados aos cenários dos impactos futuros dos problemas ambientais (nomeadamente no que diz respeito às alterações climáticas) e que, além de constituírem uma possível parálise da acção cívica, como o tentaremos demonstrar, podem tornar-se ineficazes no intento de comprometer de forma efectiva o indivíduo como uma parte activa e indispensável na resolução das questões ligadas ao ambiente, pretendemos sublinhar igualmente o momento histórico único que representa a crise ambiental contemporânea e os titânicos desafios que coloca à cidadania e à sustentabilidade:
- O de nos incitar a procurar uma noção de cidadania ambiental que, tendo o ambiente como condição ontológica da nossa sobrevivência, promova a revisão do nosso contrato social com base na reivindicação de modelos políticos baseados na equidade social e de paradigmas económicos e tecnocientíficos operando dentro das fronteiras da sustentabilidade planetária, bem como que reflicta a responsabilidade cívica perante a preservação do mundo natural e o cuidado com as gerações futuras e formas de vida não-humanas;
- A possibilidade de enriquecer o clássico triângulo conceptual da sustentabilidade (social, económico e ambiental), enfocando-a numa perspectiva mais lata como um possível mito de mobilização da sociedade civil face aos desafios ambientais contemporâneos na perspectiva de uma antropologia da esperança e de uma utopia concreta, cujas ferramentas de pensamento crítico aos paradigmas estabelecidos nos permitam o árduo, exigente e, igualmente, estimulante exercício de divisar futuros modelos sociopolíticos alternativos, equitativos e sustentáveis. Este argumento constitui o terceiro momento fundamental desta Dissertação.
2. Estrutura temática dos capítulos
Feita que está a apresentação geral das principais linhas temáticas da nossa investigação, consideremos agora mais em detalhe o itinerário que vamos percorrer ao longo dos próximos doze capítulos.
Antes de nos acercarmos à relação entre cidadania e sustentabilidade à luz da crise ambiental contemporânea, começamos por fazer uma incursão histórica, na qual pretendemos surpreender as etapas mais marcantes do percurso empreendido pelo
conceito de cidadania. É esse o objectivo dos capítulos 1 e 2, onde pretendemos dar conta dos momentos-chave históricos cruciais para o desenvolvimento do conceito: Esparta e a Atenas do século V a.C., na Grécia Antiga, e as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa dos séculos XVII e XVIII.
O capítulo 3 aborda a cidadania na contemporaneidade e pretende oferecer uma visão panorâmica dos seus principais problemas: desde o “renascimento” académico da cidadania no pós-guerra através do clássico texto de Xxxxxxxx e dos principais autores que tratam o tema desde a década de 1990, até à complexidade que representa a interacção da cidadania com as novas ferramentas de comunicação digital neste início de século.
Com o capítulo 4 entramos propriamente nos temas de fundo desta Dissertação, ao analisarmos com detalhe a concepção de cidadania ecológica de Xxxxxx Xxxxxx e de outros autores e aos expormos as suas insuficiências teóricas face à representação da complexidade da crise global do ambiente.
O repensar das bases do contratualismo moderno é feito nos capítulos 5 e 6, partindo da natureza na sociedade e na história como premissas fundamentais para a possibilidade da sua ampliação a um Contrato Ambio-Social e para a elaboração da nossa concepção de cidadania ambiental, pensada do ponto de vista da crise ambiental global.
A procura de novos paradigmas económicos e tecnocientíficos operando dentro das fronteiras da sustentabilidade planetária como reivindicação do Contrato Ambio-Social e da cidadania ambiental é o tema dos capítulos 7, 8 e 9, nos quais abordamos detalhadamente algumas propostas alternativas aos modelos tecnocientífico e económicos dominantes.
O capítulo 10 confronta-se com os grandes desafios presentes e futuros que a crise do ambiente impôs à nossa contemporaneidade e pretende sustentar que, do ponto de vista da cidadania ambiental, o temor como apresentado por Xxxx Xxxxx em o Princípio de Responsabilidade assim como a transição argumentativa da sua ética ambiental para um plano de prática política, pode representar uma parálise cívica no que diz respeito à tarefa de comprometer os indivíduos nas tarefas da sustentabilidade.
O capítulo 11 pretende pensar a sustentabilidade na óptica do Contrato Ambio-Social e do conceito de cidadania ambiental estabelecido nos capítulos anteriores e alargar o seu
eixo conceptual a um pilar cultural e antropológico. Formulamos a sustentabilidade na acepção do que designamos como uma antropologia da esperança, isto é, como possível mito mobilizador da sociedade civil neste século, o qual não será concretizável sem algumas das ferramentas de pensamento crítico que nos são oferecidas pelo pensamento utópico.
O capítulo 12 que encerra a nossa investigação aborda os movimentos ambientais e sociais na óptica da sustentabilidade como antropologia da esperança e termina por concluir que a primeira só poderá constituir um efectivo mito mobilizador da sociedade civil na perspectiva da cidadania ambiental se for recuperado para os movimentos sociais na contemporaneidade o que designamos como o “espírito de 68”, certas características que nos foram legadas pelo activismo da década de 1960, ou seja, a ideia de que um outro mundo é possível, de que existem outras alternativas sociopolíticas e socioeconómicas capazes de se oporem aos paradigmas dominantes e insustentáveis.
3. A natureza interdisciplinar da Dissertação
Antes de encerrarmos esta Introdução devemos ainda tecer algumas considerações sobre outro aspecto importante desta Dissertação. A tarefa a que nos propusemos, isto é, pensar a cidadania e a sustentabilidade do ponto de vista da complexidade da crise ambiental, longe de constituir a derradeira palavra sobre o tema ou de o esgotar, pretende sublinhar a natureza específica da cidadania ambiental e, sobretudo, chamar à atenção para a sua complexidade.
Daí, ao longo das páginas que se seguem, insistirmos com uma certa frequência na falta de amplitude analítica com que os autores que nos precedem abordaram o tema. Contrariamente a outros domínios teóricos da cidadania, uma concepção de cidadania que pretenda partir da crise global do ambiente para o seu horizonte de reflexão será, ela própria, igualmente complexa e terá de enfrentar problemas que nunca lhe foram colocados anteriormente.
Mas não só. Além de complexa, a cidadania ambiental não se pode eximir ao diálogo interdisciplinar, característico de quem se dedica às questões ambientais. Mais do que qualquer outro domínio ou área de saber, o ambiente e a sustentabilidade, independentemente do seu prisma de análise, convocam a um diálogo aberto e riquíssimo (embora nem sempre frutífero por força da compartimentação quase
hermética ainda existente entre áreas de saber), em que a diversidade de perspectivas presentes é fulcral para a obtenção de uma visão de conjunto.
É, sobretudo, para esse aspecto interdisciplinar que pretendemos alertar. Mais do que uma investigação especializada e encerrada nos limites de uma dada área de conhecimento, esta Dissertação, através do rumo temático que procurou empreender, constitui uma visão de conjunto e um diálogo cruzado, por vezes panorâmico, de diversas disciplinas, de diversos autores e de diversas leituras.
A isto não é também alheio a própria natureza interdisciplinar do Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, cuja frequência da parte curricular no ano lectivo de 2010/2011 possibilitou e influenciou, de alguma forma, as páginas que se seguem.
Assim são múltiplas as Ariadnes que nos guiaram por este labirinto e que nos ajudaram a sair dele. Estando cientes de que uma linha de análise tão abrangente quanto possível pode comportar diversos riscos, eventualmente alguma perda de profundidade analítica em determinados aspectos, cremos, no entanto, que só desta forma poderíamos concluir com êxito, pelo menos assim o esperamos, a tarefa que pretendemos levar a cabo. Caso contrário, a não fazê-lo, teríamos incorrido no erro que apontámos a outros autores que se debruçaram sobre o tema.
A este respeito, e para terminar, reclamamos como inteiramente nossas as palavras de Xxxxx Xxxxxxx em a História das Utopias, que resumem de forma brilhante a intenção, o método e os objectivos que convergiram nesta Dissertação:
“Xxxxxxx renunciado às recompensas, embora não ao labor, do especialista, tinha-me lançado conscientemente na minha carreira de «generalista», ou seja, alguém que se interessa mais por combinar fragmentos num padrão ordenado e com significado do que por uma investigação minuciosa dos diversos componentes – (…)”2.
Dito isto, é tempo de partirmos em busca da génese histórica do conceito de cidadania.
2 Xxxxx Xxxxxxx, História das Utopias, p. 13.
Capítulo 1 – Anatomia Sociopolítica de um Conceito I: cidadania na Grécia Antiga
1.1. Algumas considerações prévias em torno da história da cidadania
Ao procurarmos aferir com um certo rigor a origem histórica do exercício da cidadania não deverá constituir motivo de admiração se afirmarmos que, à semelhança de muitas das conquistas intelectuais logradas pelo género humano, é no solo da Grécia Antiga que se testemunha pela primeira vez, tanto quanto a tradição histórica nos permite conhecer, a concretização daquilo que poderemos denominar como um dos primeiros momentos de maturidade política da história da humanidade.
Porém, antes de indagarmos as origens históricas da cidadania, teçamos algumas considerações prévias no que diz respeito aos nossos objectivos neste ponto. Além de fragmentária, por não podermos dar conta aqui de forma detalhada das diversas etapas que constituem o desenvolvimento histórico da ideia e da prática da cidadania1, a nossa intenção é, sobretudo, captar as suas manifestações essenciais no plano da história e que constitui um dos pressupostos da noção de cidadania ambiental que iremos procurar desenvolver como hipótese de trabalho em páginas mais avançadas da nossa investigação.
Neste esboço histórico, mais do que uma pura descrição cronológica, pretendemos evidenciar uma ideia: surpreender na história as condições sociais e políticas em que a cidadania representou um desbravar, obviamente não concretizado à luz de uma marcha progressiva como a própria história testemunha, do caminho para a democracia2. Como teremos oportunidade de observar quando abordamos a construção teórica de uma noção de cidadania ambiental, defendemos que a democracia é um requisito indispensável para o pleno exercício da condição cívica.
1 Para esse efeito recomendamos os estudos de Xxxx Xxxxxxxx, Citizenship, The History of an Idea (2005), de Xxxxx Xxxxxx, A Brief History of Citizenship (2004) e também de Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx, História da Cidadania (2003).
2 O argumento que subjaz ao longo das páginas desta tentativa de apreensão histórica do nosso objecto de investigação é de que, apenas numa estrutura política de cariz democrático – não obstante as suas imensas lacunas e fragilidades -, através da participação no espaço público, o homem é capaz de se expressar plenamente como ser político.
Importa-nos, por isso, esclarecer que neste regresso às origens do conceito de cidadania, à semelhança de Xxxxxxxxxxx,
“(…) a nossa definição de cidadão é, sobretudo, a do cidadão num regime democrático”3.
Já o afirmámos. É naquele que é considerado o berço espiritual do pensamento ocidental que a construção da ideia de cidadania, o seu exercício e a ideia de participação política não só se vão forjando paulatinamente, bem como começam a adquirir algumas das suas características fundamentais, algumas das quais permaneceram até à contemporaneidade, num quadro de referência política desenvolvido em algumas cidades-Estado da Grécia clássica, mas que teve o seu expoente máximo na Atenas do século V a.C.
Ao indagarmos as origens históricas do conceito de cidadania, aflora-se-nos uma questão essencial e que, obviamente, não poderia deixar de ser colocada:
- O que contribuiu decisivamente para que a génese da ideia de cidadania como a entendemos hoje, assim como o seu exercício, se tenha desenvolvido no mundo antigo na Grécia e não em qualquer outro lugar?
Apesar de a resposta ser complexa e exigir um estudo aprofundado e comparado da história política da antiguidade que aqui não podemos realizar a não ser de forma muito sucinta, podemos adiantar que a cidadania, entendida como concretização de certas potencialidades sociais e políticas do ser humano, isto é, como o vínculo a uma comunidade política em que se é detentor de direitos e deveres para com a mesma4, só poderia surgir numa fase já adiantada de consolidação do processo civilizacional no longo caminho intelectual percorrido pela humanidade desde os seus primórdios.
3 Xxxxxxxxxxx, Política, Xxxxx XXX, 1275b5.
4 Xxxxxxx e X’Xxxxxxxx, na Encyclopédie (1753), no verbete dedicado a cidadão, definem-no como “(…) celui qui est membre d'une société libre de plusieurs familles, qui partage les droits de cette société, et qui jouit de ses franchises”.
Isto porque, como afirma Xxxxx Xxxxxx:
“A cidadania (…) exige a capacidade para uma certa abstracção e sofisticação de pensamento. Um cidadão tem de compreender que o seu papel implica estatuto, um sentido de lealdade, o cumprimento de deveres e a posse de direitos primeiramente não em relação a outro ser humano, mas em relação a um
conceito abstracto, o Estado”5.
Aqui reside, quanto a nós, uma das peças essenciais que nos permite discernir com um pouco mais de clareza este complexo enigma6 que continua a ser até hoje o conceito de cidadania:
- São precisamente a capacidade de abstracção e a sofisticação de pensamento inerentes ao espírito cultural helénico que fecundam e desenvolvem de um modo intelectualmente refinado na antiguidade ideias que encontraram nos últimos três séculos solo sagrado para a sua plena expressão: a ideia de democracia, a participação no espaço público, a soberania popular e a liberdade individual.
Depois destas primeiras breves considerações introdutórias, foquemos a nossa atenção mais detalhadamente nas condições sociais e políticas que permitiram a génese histórica do conceito de cidadania no mundo antigo.
5 “Citizenship (…) requires the capacity for a certain abstraction and sophistication of thought. A citizen needs to understand that his role entails status, a sense of loyalty, the discharge of duties and the enjoyment of rights not primarily in relation to another human being, but in relation to an abstract concept, the state”. Xxxxx Xxxxxx, Citizenship – The Civic Ideal in World History, Politics and Education,
p. 2. A tradução das citações ao longo de toda a Dissertação é da nossa autoria, excepto onde indicado.
6 Apesar de conseguirmos abarcar de forma algo clara o que representa a cidadania para um grego clássico, convém referir que o tema se encontra longe de estar esgotado. É o que sustenta Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, no artigo intitulado, “Citizenship in Ancient Greece – Athens and Sparta: Terms and Sources”,
p. 25: “The notion and problem of citizenship in ancient Greece is very complex and it continues, in different contexts, to be the object of scientific research even very recently (…)”.
1.2. Cidadania: anatomia sociopolítica de um conceito. A Grécia Antiga dos séculos IX e VIII a.C.
Apesar de a ideia de cidadania, bem como a de democracia, serem nativas dilectas do labor teórico do horizonte intelectual grego clássico não as podemos pensar, nem sequer viver, na contemporaneidade como foram pensadas e vividas pelos gregos7.
Começamos por afirmar isto precisamente para tentar tornar mais claro algo que ainda subsiste profundamente enraizado quando se procuram estabelecer analogias entre a democracia grega e a democracia contemporânea, tentando evidenciar um certo padrão de continuidade entre ambas. O que pretendemos é, como tentaremos demonstrar nas páginas que se seguem, o contrário: demarcar as características da cidadania grega clássica e enfatizar o seu carácter de singularidade.
Onde começa esta singularidade que cria irremediavelmente uma barreira de significado histórico entre nós e os nossos antepassados gregos?
A primeira diferença, e também a mais significativa, está no modo de organização social e político legitimamente adoptado pelos gregos como sendo o que mais se adequava às suas necessidades: a pólis, isto é, a cidade-Estado. É absolutamente fundamental compreender a emergência da mesma no contexto histórico para podermos surpreender com mais clareza a génese do conceito de cidadania, dado que ambos estão intrinsecamente associados8.
Além de ser impossível reproduzir de forma absolutamente fiel o que terá sido a cidade- Estado9 ou representar com exactidão a relação de um grego para com a mesma10, por
7 É a tese que sustenta Xxxxxxxx X. Xxxxxxxxxx, no artigo intitulado “Cidades-Estado na Antiguidade Clássica” em Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Orgs.), História da Cidadania: “A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenómeno único na História. Não podemos falar de continuidade no mundo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo”. Cf. op. cit., p. 29.
8 Embora nem todas as regiões da Grécia tenham adoptado a pólis, optando antes por estruturas políticas de modelo federalista. Disso dá conta o artigo de Xxxxxx XxXxxxxx, “Polis and koinon: Federal Government in Greece” in Xxxx Xxxx (Ed.), A Companion to Ancient Greek Government, pp. 466-479.
9 “(…) é tão difícil oferecer uma definição cabal da cidade-Estado como é (…) definir Estado nacional”. Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 30. Também H.D.F. Xxxxx, eminente historiador da Grécia Antiga, sustenta o mesmo ponto de vista: “Sem uma noção clara do que era a pólis, e do que ela significa para os Gregos, é
só conseguirmos de forma indirecta conhecer a época histórica a que nos referimos, é a sua dimensão territorial e a sua densidade populacional que nos chamam de imediato a atenção para o abismo que se interpõe entre a nossa condição contemporânea e a Grécia clássica.
Para além de se caracterizarem por uma predominância mormente rural11, a maior parte das cidades-Estado não ultrapassava os cerca de cinco mil habitantes, algumas de maior dimensão tendo vinte mil habitantes, exceptuando, por exemplo, Atenas, grande entreposto comercial, ou Esparta, cidade-Estado de cariz essencialmente militar, que albergavam cem mil habitantes12.
Outra característica que deve ser salientada sobre a estrutura das cidades-Estado é a sua
diversidade e fragmentação política, social e cultural:
“(…) sob o termo cidade-Estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com os seus próprios costumes, hábitos quotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais (…)”13.
Localizadas, sobretudo, nas margens do Mediterrâneo14, as cidades-Estado emergem numa época de francas transformações históricas15 a nível social e económico em território grego, caracterizada por um período de crescentes migrações populacionais e trocas comerciais16 em que o aparecimento da moeda importada da Lídia a partir de
impossível compreender devidamente a História Grega, o espírito grego, ou as realizações gregas”. Kitto,
Os Gregos, p. 107.
10 A este respeito recomendamos a obra citada de H.D.F. Kitto, capítulo 5, e o excelente estudo de Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, Livro Terceiro.
11 Guarinello esclarece que: “O termo ‘cidade-Estado’ não se refere ao que hoje entendemos por ‘cidade’, mas a um território agrícola composto por uma ou mais planícies de variada extensão, ocupado e explorado por populações essencialmente camponesas (…)”. Op. cit., p. 32. Veja-se também a este respeito Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, Estudo de História da Cultura Clássica: Volume I – Cultura Grega, p. 173 e ss.
12 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 30.
13 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 30.
14 “A história das cidades-Estado é, em primeiro lugar, geograficamente localizada e circunscrita. Não é parte da história universal, como a entendemos hoje, mas de uma região específica do planeta: as margens do mar Mediterrâneo”. Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 31. Cf. igualmente os artigos de A. J. Xxxxxx, “The colonial expansion of Greece” e “The western Greeks” in Cambridge Ancient History 3.3. –The Expansion of the Greek World Eight to Sixth Centuries B.C., pp. 83-162 e 163-195.
15 Entre os séculos IX e VIII a.C. Cf. X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 174.
16 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 31. Como afirma M.H. Xxxxx Xxxxxxx: “A criação de colónias contribui poderosamente para desenvolver o comércio marítimo e a indústria, à qual se abriram novos escoadouros”. Op. cit., p. 176. Registe-se que o estabelecimento de colónias se dá entre cerca de 775 a.C. e 560 a.C., período que os historiadores da Grécia designam como período arcaico. Cf. X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., pp. 174 e 175.
625 a.C.17, e o posterior estabelecimento de colónias no norte de África, sul de Espanha, Mar Negro e Itália por parte de gregos e fenícios18, permite, paulatinamente, uma difusão do modelo grego de cidade-Estado nos territórios colonizados, o que provocará ao longo dos três séculos seguintes uma profunda alteração no tecido social e político dos mesmos.
As metamorfoses, contudo, são lentas. A introdução da propriedade privada prova ser fundamental nesta transformação. As cidades-Estado começam por ser comunidades agrárias, “associações de proprietários privados de terra”19. A partir deste momento acentua-se uma tendência que ganhará eco nos séculos seguintes e que constituirá um traço decisivo da vivência cívica grega, até mesmo no esplendor do século de Péricles: a exclusão.
O acesso às terras é direito exclusivo dos membros da comunidade, estando vedado aos que não fazem parte dela20, ou seja, os estrangeiros. Vão-se assim consolidando progressivamente as estruturas das primeiras cidades-Estado.
A defesa comum das propriedades agrícolas contra agressões externas, assim como a arbitragem de disputas entre proprietários de terras cada vez mais agudizadas, demandam a necessidade de criação de mecanismos públicos e colectivos para o efeito. Preconiza-se o espaço público, que se constituía nos lugares comuns como os templos ou os mercados, como cenário de mediação de conflitos sob o denominador de uma lei comum que, segundo Guarniello
“(…) obrigava a todos e que se impôs como norma escrita, fixa, publicizada e colectiva”21.
Poder-se-á afirmar, em consonância com Xxxxx X. Xxxxxx, que mediante um processo de transformações sociais e económicas moroso, gradual e que não decorreu seguramente
17 X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 176.
18 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 31.
19 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 32.
20 Guarinello, op. cit., p. 32.
21 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 33. Mantemos a ortografia do português brasileiro do texto.
com a fluidez cronológica como o apresentamos nestas páginas, que os gregos inventaram a política22?
A identidade comunitária constrói-se através da participação no espaço público. É através deste que a relação dos indivíduos, muitas vezes sem qualquer unidade étnica ou de qualquer outra índole23, com a comunidade adquire vínculos fortes e assim se vai solidificando o exercício da vivência cívica.
Como afirma Xxxxxxxxxx,
“Pertencer à comunidade era participar de todo um ciclo próprio da vida quotidiana, com os seus ritos, costumes, regras, festividades24, crenças e relações pessoais”25.
Nesta passagem encontramos já delineados alguns dos traços principais daquilo que constitui a vida numa cidade-Estado. Abordemos agora os dois modelos clássicos de cidades-Estado que a antiguidade nos legou: o de Esparta e o de Atenas. Comecemos por aquela que ficou conhecida como a República da Lacedemónia.
22 Xxxxxx, em Poltics in the Ancient World, afirma que a política “(…) is an invention made separately by the Greeks and the Etruscans”. Cf. op. cit., p. 89. Na mesma ordem de ideias, a este respeito, Xxxxxxxxxx considera que “Aqui reside a origem mais remota da política, como instrumento de tomada de decisões colectivas e de resolução de conflitos (…)”. Cf. op. cit., p. 33.
23 Para lá da ausência de um denominador comum, Xxxxxxxxxx afirma que a identidade comunitária foi “(…) criada e recriada, reforçada e mantida por mecanismos que produziram o cidadão ao mesmo tempo que faziam nascer cultos comuns, moeda cívica, língua, leis, costumes colectivos (…)”. Op. cit., p. 34.
24 Nomeadamente, as festividades religiosas onde os cidadãos prestavam culto às divindades de cada cidade-Estado. Os cultos eram comuns e estavam, na sua larga maioria, sob a organização da própria comunidade. Para uma análise mais profunda sobre o fenómeno religioso na antiguidade clássica veja-se a obra de Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Xxxx e Religião na Grécia Antiga que constitui uma excelente introdução a este tema.
25 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 35.
1.3. Esparta nos séculos VII e VI a.C.: a participação pública num Estado oligárquico
Segundo Xxxxxx Xxxxxx,
“A criação mais característica de Esparta é o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira vez, uma força educadora no mais vasto sentido da palavra”26.
A criação do Estado espartano, bem como a sua constituição (conhecida como a Grande Retra), está associada a uma figura de contornos lendários: Licurgo, legislador espartano que terá vivido no século IX a.C. e que, segundo Xxxxxxxx00, biógrafo e ensaísta do século I d.C., reformou o sistema político, as leis e a forma de governo na sua cidade-Estado à semelhança das leis que vigoravam em Creta28.
Sem podermos, contudo, aferir da sua originalidade, de acordo com W.G. Forrest,
“Licurgo adaptou tanto quanto criou e muito do que ele produziu tinha sido alterado ou substituído muito antes dos estudiosos dos séculos V e IV a.C. começarem a estudar a sua «Esparta Licúrgia» contemporânea”29.
Além da constituição espartana, Xxxxxxx teria estabelecido as bases políticas e administrativas da cidade-Estado, criando novas instituições30 e um modelo social que não é, de todo, semelhante às características que enumerámos na génese das cidades-
26 Xxxxxx Xxxxxx, Paideia – A formação do homem grego, p. 109.
27 Saliente-se que não existem fontes históricas fidedignas que nos permitam conhecer plenamente a vida de Xxxxxxx. Um dos seus biógrafos mais conhecidos na antiguidade é Xxxxxxxx que inicia a sua obra, Licurgo – Reformador de Esparta, dizendo que “Nada se pode afirmar com segurança do legislador Xxxxxxx. A sua origem, as suas viagens, a sua morte, finalmente as suas próprias leis e a forma de governo que estabeleceu são relatadas diferentemente pelos historiadores; (…)”. Cf. igualmente W.G. Xxxxxxx, A History of Sparta: 950/192 BC, p. 40 “Xxxxxxxxx himself is a shadowy, possibly even a mythical figure (..)”.
28 Na sua obra, Xxxxxxxx afirma que Xxxxxxx viajou para Creta: “(…) onde observou cuidadosamente o governo e teve frequentes conferências com os homens de maior reputação. Concordou plenamente com algumas das suas leis e coligiu-as para as aplicar quando regressasse a Esparta; outras houve que rejeitou”. Xxxxxxxx, op. cit., p. 18.
29 “Xxxxxxxxx adapted as much as he created and much of what he produced had been altered or even superseded long before fifth-or- fourth-century scholars began to study their contemporary «Lykourgan Sparta»”. W.G. Xxxxxxx, op. cit., p. 40.
30 Para uma descrição detalhada das instituições espartanas e das funções desempenhadas por cada uma delas veja-se W.G. Xxxxxxx, op. cit., pp. 40-50.
Estado. Isto porque o Estado espartano é um Estado essencialmente militar onde até as refeições são comunitárias.
Numa sociedade de governo oligárquico31 fechada ao comércio e à entrada de estrangeiros, e cuja educação é ministrada pelo Estado com o objectivo fundamental de dotar os seus cidadãos de qualidades militares32 através de um rigoroso regime de preparação física desde os sete anos de idade visando o adestramento bélico e a defesa da cidade, a participação dos cidadãos na administração pública é considerada uma homologação de virtude cívica33, imprescindível até para a manutenção do exercício de direito político.
É aos homoioi34, cidadãos espartanos de pleno direito, que cabe a administração pública da cidade. Permaneciam-lhe adstritos de modo permanente quer para o exercício de cargos políticos, quer para a participação na guerra, sendo impossibilitados por lei de se dedicarem a outro tipo de actividade que não as actividades bélica ou política.
Considerados como iguais perante o Estado e possuindo todos os cidadãos espartanos parcelas de terra pública em exacto número (outra das reformas que teria sido introduzida por Licurgo35), é este princípio de igualdade que lhes garante um vínculo de pertença territorial bem como um estatuto social.
Segundo W.G. Xxxxxxx:
“Se não a criou, Licurgo difundiu amplamente entre os espartanos a noção de ser cidadão e um elemento essencial nesta noção era a igualdade de todos os cidadãos, não como humanos, mas como cidadãos. Como cidadãos, os espartanos possuíam um lote de terra (kleros) semelhante que significava a vários níveis um modo de vida padrão, eram vistos como iguais perante a lei (…)”36.
31 O governo espartano era composto por dois reis e a sucessão era hereditária.
32 As três grandes virtudes criadas por Xxxxxxx, na opinião de Xxxxxxx, eram: a habilidade e a eficiência militares e a austeridade. Cf. op. cit., p. 50
33 Xxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 11.
34 Termo que em grego significa iguais. Cf. Xxxxxxx, op. cit., p. 50.
35 Cf. Xxxxxxx, op. cit., p. 51.
36 “Lykourgos vastly enlarged, if he did not create, for Spartans the idea of being a citizen and an essential element in this idea was the equality of all citizens, not as human beings but as citizens. As a citizen the Spartan had an equal kleros form which he supported what was in many respects a standard way of life, he had an equal standing in the eyes of the law (…)”. Xxxxxxxxx, op. cit., p. 51.
Apesar de ser um regime político de cariz oligárquico, conseguimos já percepcionar com mais clareza o que representa o exercício da cidadania para um grego da época clássica: além de constituir um modo de vida, é algo que penetra todas as esferas do homem.
De acordo com Xxxx Xxxxxxxx:
“A cidadania definia todos os âmbitos da vida dos cidadãos. Os antigos não distinguiam entre o que viria a ser denominado como esfera pública e esfera privada”37.
Mas isto não é tudo. Uma outra característica da vivência cívica espartana, e que é inerente à esfera política de outras cidades-Estado na Grécia da época, é o que os gregos designavam por atimia, ou seja, o não cumprimento dos deveres cívicos que acarretava a perda do estatuto de cidadão38. A exclusão da actividade cívica a que, como iremos ver mais adiante, estavam sujeitos todos aqueles que não possuíam direitos de cidadania
– e que representavam uma grande leque da população – alargava-se aos que se demitiam, voluntaria ou involuntariamente, de tal tarefa.
Apesar de amplamente louvada na antiguidade como modelo de cidade-Estado39, seria em Atenas, território que testemunhou a primeira experiência democrática da história humana de forma sistemática, que a vivência cívica se associa à noção de soberania popular.
37 “Citizenship defined all aspects of citizen’s lives. The ancients made no distinction between what would come to be called public and private spheres”. Xxxx Xxxxxxxx, Citizenship, The History of an Idea,
p. 7.
38 Cf. Xxxxx Xxxxxx, A brief history of citizenship, p. 11.
39 Por exemplo a cidade ideal que Xxxxxx procura construir na República é claramente influenciada por Esparta.
1.4. Atenas no século V a.C.: A democracia
A primeira referência à palavra democracia que se conhece surge pela primeira vez com Xxxxxxxx00, historiador grego, cerca de 450 a.C. Neste ponto em particular, como afirma
X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, estamos perante
“(…) uma das muitas conquistas gregas de que a cultura ocidental continua a viver (…)”41.
Existirão, provavelmente, poucas passagens que resumam de forma tão brilhante o porquê de o regime democrático ateniense ter permanecido vivo na memória intelectual do Ocidente como os três seguintes trechos da Política de Xxxxxxxxxxx e que, em nosso entender, demarcam-no de forma crucial da estrutura política de outras cidades-Estado, precisamente no âmbito mais caro à nossa investigação: o exercício da cidadania. Sigamos a lucidez analítica do Estagirita.
Referindo-se principalmente a Atenas, Xxxxxxxxxxx é da opinião de que
“(…) não há melhor critério para definir o que é o cidadão em sentido estrito, do que entender a cidadania como capacidade de participação na administração da justiça e no governo”42,
ao passo que num outro tipo de regime político,
“(…) nalgumas cidades, o povo não tem funções: não se instituem assembleias regulares mas apenas se convocam pontualmente conselhos, sendo as decisões judiciais atribuídas a juízes específicos”43.
A terceira passagem é a que depõe mais claramente a favor do regime ateniense:
“Chamamos cidadão àquele que tem o direito de participar nos cargos deliberativos e judiciais da cidade. Consideramos cidade, em resumo, o conjunto de cidadãos suficiente para viver em autarquia”44.
40 No Livro IX das suas Histórias. Cf. Xxxxxxxx, op. cit., p. 10, bem como M. Xxxxxx, Xxxxx and the Beginnings of the Athenian Democracy, p. 120.
41 M. H. Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 180.
42 Política, Xxxxx XXX, 1275a20.
43 Política, Livro III, 1275b5.
44 Política, Xxxxx XXX, 1275a20. O bold é nosso. Informe-se a este respeito que, para Xxxxxx, a cidade ideal não poderia exceder o número aproximado de 5000 habitantes. Cf. Leis, 5 737e-738ª e 771a-772d. Não
A palavra autarquia, que devém do grego αuταρχία e que significa o comando de si mesmo, é a pedra de toque que explica o motivo da Atenas do século V a.C., tanto na antiguidade como no decurso da história posterior, ter sido considerada um modelo de governo exercido pelos próprios cidadãos de forma autónoma.
Esse trabalho de aperfeiçoamento do sistema político ateniense é, sobretudo, obra de um homem: Xxxxxxxx (495 – 429 a.C.). Mas isto não é tudo. Antes de nos determos na sua figura convém recuar um pouco no desenrolar da história sociopolítica de Atenas para compreendermos melhor a acção deste fulgurante estadista.
A democracia ateniense não emerge por pura gestação espontânea no século V, ancorando antes as suas raízes nas reformas de dois legisladores anteriores a Xxxxxxxx, de seu nome, respectivamente, Xxxxx (638 - 558 a.C.) e Xxxxxxxxx (570 – 507 a.C.).
O século VI, de um modo geral, é marcado por um declínio da hegemonia da aristocracia que, à excepção de Esparta45, baseava a sua forma de governo primordialmente em regimes tirânicos predominantes em muitas das cidades-Estado gregas face a novos modelos de organização política e social. A perda de privilégios por parte da aristocracia permitiu uma ampliação do espaço público a outras classes sociais, o que permitiu um fortalecimento da coesão das próprias comunidades46.
Em consonância com o declínio da aristocracia surgem as primeiras figuras importantes na construção da democracia ateniense. A primeira delas é Sólon, a partir de 594 a.C., através das suas reformas a nível económico e social - a abolição da escravatura por dívidas, a criação de medidas de protecção à agricultura, à indústria e ao comércio, bem como a criação de um sistema monetário próprio47 -, abre espaço para reformas de teor político – a criação de quatro classes de cidadãos, a instituição do tribunal de Helieia, ao qual todos os cidadãos podiam apelar face às sentenças dos magistrados48.
adiantando números, Xxxxxxxxxxx, em Ética a Xxxxxxxx, afirma o seguinte: “Nem dez homens constituem uma pólis, nem com cem mil existe já pólis”. Cf. Ética a Nicómaco, 9, 1170b 31-32.
45 X. X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 178.
46 Xxxxxxxxxx, op. cit., p. 39.
47 X. X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 189.
48 X. X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 189.
Xxxxxxxxx, na senda de Sólon, ainda em pleno século VI, altera a distribuição do poder, criando as dez tribos de Atenas, as quais dota de administração própria passando assim o poder a estar equilibrado entre a esfera local e a esfera da cidade-Estado e, mais do que tudo, instaura definitivamente a liberdade de falar em público49.
Até que chegamos a Xxxxxxxx e ao apogeu da ideia de democracia na antiguidade.
1.4.1. Xxxxxxxx: o elogio da democracia
Além de o período temporal em que decorreu a existência de Xxxxxxxx (495 – 429) representar o apogeu da cultura grega clássica50, o estadista ateniense edificou, pelo menos em teoria, as bases do que representa a democracia (não do que ela é mas do que deveria ser) e a sua defesa face a regimes tirânicos.
Não tendo legado qualquer obra escrita, a sua apologia da democracia encontra-se exposta no Discurso de homenagem aos mortos da Guerra do Peloponeso, reproduzido integralmente pelo historiador grego Xxxxxxxxx00. Por limitações inerentes ao espaço de que dispomos, deixamos em esboço apenas os pontos fundamentais do Discurso em que Xxxxxxxx se revela importante para a história da democracia.
Xxxxxxxx começa por elogiar a Constituição ateniense52 face a outros regimes e, pelo facto de ela ser democrática, garante um princípio essencial para o exercício da cidadania: a soberania popular. Por esse facto, a administração do Estado é feita com base no interesse do povo e não de uma minoria53.
49 X. X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 190.
50 Cf. X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., pp. 386-388 para uma descrição sumária, mas elucidativa, do que representou a figura de Xxxxxxxx na História da Grécia.
51 Em História da Guerra do Peloponeso, Livro II, §§ 37 a 42.
52 “Tenemos um régimen de gobierno que no envidia las leyes de otras ciudades, sino mas que somos ejemplo para otros que imitadores de los demás”. Xxxxxxxxx, História de la Guerra del Peloponeso, II,
§37, p. 90.
53 “(…) por no depender el gobierno de pocos, sino de numero mayor (...)”.Xxxxxxxxx, op. cit., p. 90.
Além de administrado de acordo com os interesses soberanos da maioria, o governo rege-se pelo primado das liberdades: da liberdade de expressão e de pensamento de todos os cidadãos (isegoria)54.
Xxxxxxxx estabelece o princípio de igualdade entre todos os cidadãos independentemente da sua classe social55, a igual submissão de todos às leis do Estado (isonomia que para os gregos assume um significado semelhante ao de democracia), bem como a possibilidade de participação em cargos públicos mediante o mérito e não a classe social a que se pertence. Face às características que acabámos de deixar patentes, Xxxxxxxx não tem pejo em afirmar que Atenas é “a escola da Grécia”56.
Além de delineados de forma magistral por Xxxxxxxx os princípios fundamentais para o exercício da cidadania numa sociedade aberta e democrática, é possível constatar pelas suas palavras o percurso percorrido pelo espírito grego ao longo de cerca dos quatro a cinco séculos de que aqui tentámos apreender os pontos fundamentais.
Não obstante não conseguirmos compreender na totalidade a forma como um grego viveu a plenitude da sua condição cívica dentro da cidade-Estado, a importância que decorre do Discurso é também, a sua profunda actualidade. É impossível não reconhecer na contemporaneidade o modo como Xxxxxxxx caracteriza os princípios da democracia: estes continuam a ser ainda marcos de referência política incontornáveis.
Como afirma Xxxxx Xxxxxxx do Amaral em relação ao legado do estadista ateniense:
“Este discurso de Xxxxxxxx (…) marcou para sempre a história da civilização ocidental: democracia, liberdade, igualdade, participação cívica, dignidade de todos (…) – eis o grande programa político que, há quase 25 séculos, Xxxxxxxx apontou a toda a humanidade”57.
54 “Y nos regimos libremente no solo en lo relativo a los negocios públicos, sino también en lo que se refiere a las sospechas recíprocas sobre la vida diária, no tomando a mal al prójimo que obre según su gusto, ni poniendo rostros llenos de reproche, que no son un castigo, pero sí penosos de ver”. Xxxxxxxxx, op. cit., p. 90.
55“De acuerdo com nuestras leyes, cada cual está xx xxxxxxxxx xx xxxxxxxx xx xxxxxxxx xx xxx xxxxxxxxxxx xxxxxxxx (…); y no tanto por la clase social a que pertence como por su mérito, ni tampoco, en caso de pobreza, si uno puede hacer cualquier beneficio a la ciudad, se le impide por la oscuridad de su fama”. Xxxxxxxxx, op. cit., p. 90. O que, como já iremos ver, na Grécia não significa um princípio de igualdade natural.
56 “En resumen, afirmo que la ciudad entera es la escuela de Grécia”. Xxxxxxxxx, op. cit., II, §41, p. 92.
57 Xxxxx Xxxxxxx do Amaral, História do Pensamento Político Ocidental, p. 30.
Mais do que a verdadeira aplicação prática, o que ressoa, em Péricles, é uma ideia de democracia na sua forma ideal. Que não se reflecte inteiramente no quotidiano da Atenas do século V a.C.
1.4.2. Algumas vicissitudes da democracia grega
Apesar dos princípios defendidos por Xxxxxxxx, a democracia grega prima pela singularidade em determinados aspectos que a demarcam profundamente do sistema democrático actual, além de se encontrar enredada em algumas contradições sob o prisma do nosso olhar contemporâneo.
Comecemos por abordar a sua principal característica: o governo directo. Os gregos desconhecem em absoluto a noção de representatividade que é a base das democracias actuais. À luz do modo de pensar grego da época, tanto quanto nos é possível aproximarmo-nos dele a uma distância temporal de 2500 anos, o conceito de representatividade choca profundamente com um dos conceitos fundamentais da cultura helénica: o conceito de autonomia.
Como afirma Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx em a Grécia Antiga,
“(…) os gregos não concebiam tal tipo de governo [representativo] que se lhes afigurava coartactador da liberdade e da autonomia”58.
A autonomia, bem como a liberdade, são inerentes ao ADN social, político e cultural grego:
“Para o grego ser livre era exercer ele próprio, pessoalmente, os seus direitos civis, sem os delegar a outros”59.
Convém aqui recordar a célebre definição de Xxxxxxxxxxx como animal político (Zoon Politikon). E é isso que define essencialmente o homem grego: para ele não existe outro
58 Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, “A Polis Grega – Sistema de Vida e Mestra do Homem” in A Grécia Antiga, p. 32.
59 Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 34.
modo de vida que não o de participar directamente na administração dos assuntos do Estado.
Estado esse que, contrariamente ao entendimento moderno do conceito, não detém qualquer personalidade jurídica na época clássica. Para os gregos, o Estado ou a Pólis, é o conjunto total de cidadãos60, delimitador de todas as esferas da sua vida. Escapou ao pensamento político helénico a distinção entre esfera pública e esfera privada61.
Evidentemente que a democracia directa dos gregos resultou por duas razões de índole diferente. A primeira de ordem demográfica. Apesar de não podermos apresentar números que garantam exactidão, o número de habitantes de Atenas na época Péricles deveria rondar os cerca de 300 000 habitantes62, dos quais apenas 10%, isto é, cerca de 30 000 detinham o estatuto de cidadania63, o que nos remete para a segunda razão do êxito da democracia grega, mas que permite também questionar até que ponto poderemos falar dela como sendo efectivamente democrática64: o seu carácter de exclusão.
Além de ser hereditária65, o exercício da cidadania em Atenas estava absolutamente vedado a mulheres e crianças, escravos, estrangeiros e habitantes das zonas rurais66. Qualquer destes extractos da população grega não tinha nenhuma possibilidade de participar activamente na vida política de Atenas, nem beneficiava do tão proclamado princípio de igualdade introduzido por Xxxxxxxx como vimos anteriormente.
60 X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 181.
61 Xxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 7.
62M.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 182. Os números que aí são apresentados são meramente conjecturais.
63 X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 182.
64 Alguns autores contestam a atribuição do termo democracia ao regime político grego pelo facto de apenas uma pequena percentagem da população dispor de facto dos direitos de cidadania. Entre eles, encontra-se o historiador Xxxxxx Xxxxxxxxx, autor da obra The Greek State. Cf. op. cit., p. 50.
65 Data de 451 a. C, aprovada por Xxxxxxxx, uma lei que restringe a concessão da cidadania ateniense, acentuando o seu carácter hereditário. Contradições de um grande homem de Estado. Cf. Heater, op. cit.,
p. 4.
66 Heater, op. cit., p. 4.
O princípio de igualdade natural entre todos os seres humanos é desconhecido na Grécia do século V67. A igualdade é apenas de natureza social e política entre cidadãos. Teremos que aguardar até ao século XVIII para que todos os homens nasçam livres e iguais em direitos e isso seja um direito consagrado em constituição.
67 Refira-se que ele foi proposto pela primeira vez no século IV a.C. por um sofista, de seu nome Xxxxxxxxxxx, antecipando em vinte e um séculos a essência dos princípios das revoluções francesa e americana. Cf. X.X. xx Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 185.
Capítulo 2 – Anatomia Sociopolítica de um Conceito II: A Era das Revoluções - Da “Gloriosa Revolução” à Revolução Francesa
2.1. Para uma génese histórica da(s) revolução(es): os alvores da modernidade
Consagrada na história como um evento ímpar quando comparada com outros regimes políticos posteriores1, a democracia ateniense do século V a. C. e os direitos de cidadania que ela fecundou, não encontraram paralelo na história política do Ocidente no milénio seguinte. Apesar dos desenvolvimentos registados, nomeadamente, na época romana2 e no Renascimento, em Florença e Salamanca3, seria preciso aguardar até ao século XVII para que a história da cidadania registasse um novo impulso profícuo e um novo momento renovador.
A “Gloriosa Revolução” de 1688, ocorrida em Inglaterra, prenuncia já alguns ventos de mudança, mas uma profunda renovação do impulso cívico e democrático só ocorreria no século XVIII em que o conceito de revolução, vivenciado nos EUA (1776) e em França (1789), anunciaria uma aurora de transformação radical da condição humana.
Antes de nos acercarmos mais de perto das três revoluções – Inglesa, Americana e Francesa -, é necessário apreender em traços essenciais as grandes coordenadas que norteiam o clima intelectual e histórico do início da modernidade, pois foi nele que se começaram a desenhar as condições para as revoluções do século XVIII.
O advento da Idade Moderna representa, na sua formulação mais radical, uma ruptura com a visão tradicionalista e teológica pela qual se pautou a medievalidade. De forma progressiva, Deus, conceito central das indagações filosóficas da Idade Média, cede o lugar ao Homem, como paradigma essencial. O humano passa a ser o centro do universo em detrimento do plano divino.
1 Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, no artigo “Cidadania Moderna e o Legado Romano”, afirma: “Para muitos estudiosos do século XX, a República romana foi encarada como uma oligarquia corrupta, uma aristocracia endinheirada, comparada negativamente com a Atenas democrática do século V a.C.”. Cf. Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Orgs.), História da Cidadania, p. 76.
2 Cf. o artigo de Xxxxxx citado na nota anterior, “Cidadania Moderna e o Legado Romano”, em Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Orgs.), op. cit., pp. 49-81, para uma melhor compreensão da cidadania na época romana, bem como as seguintes obras: Xxxxx X. Xxxxxx, Política no Mundo Antigo e Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Being a Roman Citizen.
3 Cf. o artigo de Xxxxxx Xxxxx, “A cidadania em Florença e Salamanca” em Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Orgs.),
op. cit., pp. 97-113.
A liberdade renascentista e moderna permite a emancipação humana do jugo teológico/medieval. Sem querermos incorrer numa simplificação redutora, o homem seculariza-se, individualiza-se, racionaliza-se e autonomiza-se dos paradigmas fundamentais da Idade Média.
Como afirma Xxxxx Xxxxxxxx:
“O homem passou não apenas a traçar o seu destino mas também a ter a total capacidade para explicá- lo”4.
Outros factores fundamentais que contribuíram para a emancipação humana registada no início da modernidade são os seguintes:
- O advento da ciência moderna de Xxxxxxx (1564-1642), Kepler (1571-1630) e Newton (1643-1727). Já em 1543, o astrónomo polaco, Xxxxxxx Xxxxxxxxx (1473-1583) em De revolutionibus orbium coelestium5, sustentava a teoria heliocêntrica que punha em causa a teoria geocêntrica de origem ptolemaica;
- Os descobrimentos marítimos iniciados por Portugal e Espanha, no século XV, e que, além de representarem o primeiro processo de globalização, ampliaram o conhecimento geográfico e os horizontes do mundo até então conhecido;
- A crítica interna religiosa exercida pela Reforma protestante iniciada por Xxxxxx em 1517 que conduziu a Europa nos dois séculos seguintes a um clima de intolerância religiosa e a sua importância para as reivindicações cívicas posteriores6.
O processo de secularização introduz igualmente transformações no campo social, conduzindo à paulatina, dissolução das estruturas assentes na hierarquia da servidão do regime feudal. Os acontecimentos de 1789, em França, ditariam o definitivo dobre a finados do feudalismo na Europa. Tornar-se-ia uma das petições de princípio do ideário da revolução. Porém, as estruturas feudalistas sofreram o seu primeiro revés, ainda no século XVII. A Inglaterra foi o primeiro palco de algumas dessas transformações.
4 Xxxxx Xxxxxxxx, “Revolução Inglesa – O Respeito aos Direitos dos Indivíduos” in Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Org.), História da Cidadania, p. 115.
5 A palavra revolução, antes penetrar no âmbito político, estava confinada à astronomia.
6 No que concerne a este tema, V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, no artigo “Religião e Cidadania – Da luta pela tolerância religiosa à afirmação dos direitos humanos” na obra A Era da Cidadania, afirma que: “Os actuais direitos fundamentais do homem e do cidadão (…) foram o desenvolvimento e o esclarecimento de um direito fundamental que funcionou como um autêntico embrião de todos os outros: o direito à liberdade religiosa, ao livre e público exercício do culto de profissões de fé minoritárias, sem a perda de quaisquer direitos civis (…)”. Cf. op. cit., p. 78. O bold é do autor.
2.2. A “Gloriosa Revolução” Inglesa de 1688: a solução conciliadora
A Revolução Inglesa, além de ser marcada pela sólida implementação de uma nova classe social, a burguesia7, segundo Xxxxx Xxxxxxxx,
“(…) é um modelo de transição ao capitalismo industrial”8.
Para esse efeito, o mesmo autor enumera três transformações fundamentais levadas a cabo na estrutura da economia inglesa, a saber:
1) A produção industrial toma o lugar da agricultura como principal meio de produção;
2) A construção de uma fiável rede de transportes;
3) A superprodução e a baixa de preços substituem-se a crises de subsistência durante a época feudalista9.
A ascensão da burguesia seria preponderante para o processo de transformação da sociedade inglesa da época e também para o papel incontornável que a Revolução de 1688 desempenhou na história da cidadania. Vejamos porquê.
Além de romper com os ditames do feudalismo, a burguesia inglesa propõe uma nova ética, de pendor protestante10, assente no trabalho que se contrapõe ao ócio praticado pela aristocracia latifundiária11, classe que, ademais de se caracterizar por um certo parasitismo, detém a maior percentagem de riqueza e de direitos12.
O que está em causa a nível económico e social, e dois séculos antes do pensamento de Xxxx Xxxx sobre o tema, é a oposição de classes sociais com visões diametralmente antagónicas: monarquia e aristocracia, classes sociais proprietárias de terras e ancoradas à herança secular de uma tradição feudal que não pretendiam abrir mão dos seus
7 Principalmente da gentry, a baixa nobreza agrária constituída por agricultores capitalistas, como explica um dos mais eminentes estudiosos da Revolução Inglesa, o historiador Xxxxxxxxxxx Xxxx. Veja-se a sua obra, O Mundo de Ponta-Cabeça (The World turned upside down), nota da p. 29 para uma definição mais ampla de gentry.
8 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 120.
9 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 119.
10 A relação entre a ética protestante e o capitalismo seria explorada pelo sociólogo alemão, Xxx Xxxxx, em a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
11 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 120.
12 O reinado de Xxxxxx X (1600-1649) primou pelo cenário que descrevemos acima. Proclamado rei em 1626, governaria autocraticamente entre 1629 e 1640, seguindo-se depois um período de guerra civil até que a Câmara dos Comuns, em 1649, o depôs e o condenou à morte por decapitação no mesmo ano. Seria o primeiro monarca na História da Inglaterra a ser condenado à pena capital. Cf. Xxxxxxxxxxx Xxxx, “A Revolução Inglesa de 1640” in Fundo Político da Revolução Inglesa, pp. 49-77.
privilégios e fazer concessões a um novo sujeito social pujante e dinâmico, a burguesia mercantil e comercial, agrária e urbana, tendo em vista a criação de um sistema económico de mercado livre.
Como afirma Xxxxxxx:
“Um sistema que pressupunha um mercado local e estático (…) não poderia mais ser tolerado tendo em vista a força implacável de uma concepção de mercado sem limites de toda e qualquer ordem”13.
A nível político, aquele que mais interessa à nossa investigação, o regime predominante na Inglaterra do século XVII, apesar de ter sido o primeiro país europeu a frear as tendências despóticas da monarquia de poder absoluto através da Magna Carta14, é uma monarquia absolutista de direito divino15, na senda do que pensadores como Xxxx Xxxxx ou Xxxxxxx Xxxxxxx teorizaram respectivamente em Os Seis Livros da República (1576) e A Política tirada da Sagrada Escritura (1709).
Face a este estado de coisas, a concepção do direito divino dos monarcas era um conceito obsoleto face às aspirações da burguesia emergente. A Petição de Direitos de 1628 tentava já obstaculizar a natureza absolutista do regime de Xxxxxx X. Mas isto não é tudo.
A modernidade trouxera consigo uma aura de renovação ao pensamento político através de uma das suas figuras mais proeminentes, Xxxxxx Xxxxxx (1588-1679), com a publicação da sua obra principal, o Leviathan (1651).
Sendo um defensor acérrimo do absolutismo, Xxxxxx introduz porém uma novidade essencial: o Estado absoluto não deriva já de um monarca instituído pelo poder divino, mas sim do consentimento dos indivíduos que, ao renunciarem a certos aspectos da sua liberdade pessoal, passam do estado de natureza, caracterizada pela guerra de todos contra todos e dirigida pelas pulsões egoístas do ser humano, ao estado de
13 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 124.
14 Documento assinado em 1215 por Xxxx, o Papa, que limitou o exercício de poder dos monarcas ingleses. Segundo a Magna Carta, o rei devia renunciar a certos direitos e respeitar certos procedimentos legais.
15 Teoria que defende que o poder dos reis vinha de Deus. Os monarcas ingleses do século XVII – Xxxxxx X, Xxxxxx XX e Xxxxx XX – eram todos partidários da monarquia absolutista. A excepção foi o Protectorado de Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx, entre 1649 e 1660, que se caracterizou por um cariz republicano e depois por uma ditadura, devido à instabilidade civil dos primeiros anos do seu governo.
sociedade, onde predomina o bem comum16. No século seguinte, Xxxxxxxx denominará este consentimento de contrato social.
Segundo Xxxxxxxx,
“Estavam abertas as portas para a ofensiva de uma tradição que se pautasse pela defesa da liberdade do indivíduo, limitando politicamente os poderes estatais”17.
A autoria do desbravar intelectual desse caminho que conduzia à defesa do liberalismo e dos direitos civis esteve a cargo de Xxxx Xxxxx (1632-1704). No Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1689), o filósofo inglês defende veementemente que o homem possui naturalmente direitos fundamentais – o direito à vida, à liberdade e à propriedade -, conferindo ao povo o direito de revolta contra qualquer governo que não respeitasse esses direitos18.
Se, em Hobbes, a relação entre Estado absolutista e indivíduos era um acto de submissão, Xxxxx nega por completo esta tese e, com isso, desvenda a clareira das revoluções do século seguinte.
Para ele o político
“(…) tem a sua origem unicamente num pacto ou convenção, e no consentimento mútuo daqueles que constituem a sociedade”19.
Eis um dos trechos fundamentais para a história da cidadania moderna.
A “Gloriosa Revolução” iria, em parte, realizar o que Xxxxx defendeu. A destituição de Xxxxx XX, em 1688, representou o fim do absolutismo e a criação da primeira monarquia constitucional da história. Baseada numa solução de compromisso, depois das tumultuosas décadas anteriores, a Inglaterra conheceria doravante
“(…) a estabilidade política sob a nova direcção de uma classe burguesa que toma para si o poder estatal (...)"20.
16 Cf. Leviathan, I, 13 e 14 e II, 17 e 18 para uma leitura das teses fundamentais do pensamento hobbesiano nesta matéria.
17 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 129.
18 Cf. Segundo Tratado sobre o Governo Civil, II, 6 e 8.
19 Xxxxx, op. cit., XV, 171. O bold é nosso.
20 Xxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 120.
Os 13 pontos da Bill of Rights de 168921 expressam a solução de consenso encontrada pelos ingleses para limitar o poder absoluto do monarca assente na “(…) soberania parlamentar, monarquia limitada (…)22.
Trata-se do corolário dos acontecimentos de quase cinco décadas tumultuosas e, acima de tudo, representa uma certa continuidade em relação a outros documentos políticos elaborados anteriormente, como os já citados Magna Carta, Petição de Direitos de 1628 ou o Habeas Corpus Act (1679)23.
Mais do que uma revolução propriamente dita, uma vez que não conduziu à alteração radical de uma forma de governo por outra24, a Revolução Inglesa, nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxxxx-Xxxxxxx
“(…) trata-se antes do termo do contrato entre o povo e o seu monarca (…)”25.
Contudo, despertou uma centelha emancipatória e o seu rastilho propagou-se às colónias britânicas nos EUA que, no século seguinte, iriam acrescentar uma outra dimensão - nova, inédita e absolutamente radical - à palavra revolução.
21 Pode ser lida na tradução que V. Soromenho-Marques efectuou da mesma na obra Direitos e Revolução. Cf. pp. 90-92 da mesma.
22 Xxxxxxxxxxx Xxxx, O Mundo de Ponta-Cabeça, p. 31.
23 V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, op. cit., p. 89.
24 A este respeito evocaremos Xxxxxx Xxxxxx quando abordarmos a revolução francesa.
25 V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, op. cit., p. 89.
2.3. A Revolução Americana de 1776: a emergência de um cívico “admirável mundo novo”
Momento ímpar na história do século XVIII, a Revolução Americana, que culminou na separação das treze colónias dos EUA da coroa inglesa, abre um novo capítulo no domínio da democracia e da luta pela liberdade.
Uma revolução que inicialmente não era para o ser26 e que autonomizaria territórios povoados apenas 150 anos antes27 por indivíduos que aportavam ao Novo Mundo buscando sobretudo tolerância religiosa para a sua profissão de fé e a melhoria das suas condições materiais de vida.
A questão fundamental que se deve colocar é a seguinte: como é que no espaço de cerca de 150 anos, um território para onde foram enviados elementos indesejáveis em solo britânico28 produziu homens da estatura intelectual de um Xxxxxx Xxxxxxxxx, de um Xxxxxx Xxxxxxxxxx ou de um Xxxxxxxx Xxxxxxxx, apenas para citar alguns dos Founding Fathers, e se constituiu numa experiência única no contexto político da história da humanidade?
A resposta à mesma deve-se a uma variação de comportamento da coroa britânica face às suas possessões coloniais em matéria de direitos e de liberdade. No século XVII, e também na primeira metade do século XVIII, com a Inglaterra envolvida nas disputas internas que levariam à deposição e exílio de Xxxxx XX em 1689, as colónias americanas vivem sob um clima de quase total liberdade.
26 Num panfleto intitulado A Summary View of the Rights of British America, Xxxxxx Xxxxxxxxx apela à justiça do monarca britânico para com os seus súbditos nas colónias americanas. O hiato que medeia entre esta petição, escrita em Julho de 1774, e a Declaração da Independência, adoptada a 4 de Julho de 1776, é de apenas dois anos. A gestação revolucionária em solo americano, personificada em Jefferson, consumou-se de forma breve. Cf. V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, “Cidadania no Novo Mundo – Xxxxxx Xxxxxxxxx e a Revolução Americana” in A Era da Cidadania, p. 168.
27 Os primeiros colonos desembarcaram definitivamente em solo americano apenas em 1620. Até então a coroa inglesa nunca tivera um plano bem definido para a colonização do território norte-americano. Para uma antevisão do processo de formação do território americano, veja-se o breve, mas excelente, ensaio de Xxxxxxx Xxxxxx, Estados Unidos – A Formação da Nação e também a obra de Xxxxxx X. Boorstin, Os Americanos – A Experiência Colonial.
28 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., pp. 35-36.
Como afirma Xxxxxxx Xxxxxx:
“Tanto para os colonos do Massachusetts como para os colonos da Virgínia, a tradição de liberdade foi reforçada ao longo de todo o século XVII pela quase ausência total da Inglaterra”29.
Sem a supervisão e a “tutoria” das autoridades britânicas, o processo de “crescimento” da identidade das colónias foi feito quase de forma autónoma. Ainda antes da independência, as colónias americanas edificaram a concretização da liberdade em vários domínios: do religioso30 à liberdade de comércio31.
Porém, a partir da segunda metade do século XVIII, registou-se uma mudança de atitude da coroa britânica face às possessões americanas. Fruto principalmente de dois motivos:
1) Dos encargos gerados para a Inglaterra pela sua participação na French and Indian War32;
2) Das exigências económicas suscitadas pela Revolução Industrial que estava a dar os seus primeiros passos em solo britânico33.
A alteração de comportamento traduz-se num conjunto de medidas políticas, inicialmente de carácter económico34, que limitam a soberania económica das colónias americanas suscitando uma onda de descontentamento cada vez maior dos súbditos contra a coroa britânica e a afirmação de um sentimento de identidade nacional que culminaria na independência.
No período crítico de 1763 a 1776, a insurgência dos colonos e o completo autismo da Inglaterra face aos interesses e direitos norte-americanos culminaria em diversas petições e na eclosão de conflitos armados no início da década de 1770.
Que direitos reivindicavam os súbditos americanos a Xxxxx XXX, monarca inglês?
29 Xxxxxxx Xxxxxx, “Revolução Americana – Estados Unidos, Liberdade e Democracia” in Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Org.), História da Cidadania, p. 138.
30 A este respeito leia-se a primeira parte da obra citada de Xxxxxxxx.
31 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 138.
32 Conflito que opôs britânicos e franceses entre 1754 e 1763 em solo norte-americano.
33 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 138.
34 Entre elas encontram-se os Navigation Acts, Writs of Assistance ou o Stamp Act. Todas elas limitavam a liberdade dos colonos americanos face à colonização britânica. Com o decorrer da década de 1760 e início da de 1770, as imposições britânicas fizeram recrudescer a tolerância dos colonos americanos face à metrópole. Para uma descrição mais detalhada destas medidas, cf. V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, op. cit., p. 167.
Em primeiro lugar, o mesmo grau de igualdade que possuíam todos os outros súbditos da coroa britânica. Os colonos insurgem-se contra a prepotência manifestada pela metrópole na sucessão das medidas adoptadas entre 1763 e 1774 e a ausência de representantes no Parlamento de Londres35. Segundo o que foi expressado no Segundo Congresso Continental de Filadélfia, em 1774, o que estava em causa era nada mais nada menos que a violação dos direitos básicos da liberdade36.
É através desta mesma liberdade, gravemente usurpada pela intolerância britânica, que as treze colónias irão forjar o sentimento de identidade para a construção de uma nova nação. Ela irá ser o denominador que agregará as colónias americanas na constituição dos independentes Estados Unidos da América.
Segundo Karnal,
“Só a construção de um determinado conceito de liberdade poderia unir fazendeiros escravocratas da Virgínia, comerciantes e manufactureiros da Nova Inglaterra, puritanos de Boston, católicos do Maryland, quacres da Pensilvânia, moradores de cidades como Nova York e muitos alemães das colónias centrais. A liberdade passou a ser constituída como factor de integração nacional e de invenção de um novo Estado”37.
É ela que vai inspirar a luta de homens como Xxxxxxxxx, Washington e Xxxxxxxx ou as ardentes elocuções de Xxxxxx Xxxxx nos seus escritos panfletários e que conduzirá, por exemplo, Xxxxxx Xxxxx, político da Virgínia, a exultar em 1776, na Declaração de Direitos da Virgínia38
“Que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, e têm certos direitos que lhe são inerentes (…)”39.
No entanto, o que a posteridade histórica registaria não seria este, mas sim um outro documento ratificado semanas mais tarde pelo Congresso. A Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, fruto do génio literário e filosófico ímpar de Xxxxxx Xxxxxxxxx, consagra, a 4 de Julho de 1776, uma janela descerrando um novo mundo na luta pelos direitos de cidadania e da conquista da liberdade:
35 V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, op. cit., p. 166.
36 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 138
37 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 141.
38 Adoptada a 12 de Junho de 1776 e precede a Declaração de Independência.
39 Ponto 1 da Declaração de Direitos da Virgínia (1776). Tradução de Xxxxxxx Xxxxxxxxx-Xxxxxxx em
Direitos Humanos e Revolução, p. 93.
“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo
[…]”40.
Para os Founding Fathers, em 1776, não se tratava já apenas da separação da coroa inglesa.
Como afirma Xxxxxxx Xxxxxx,
“Não havia apenas uma luta para enfrentar, havia uma memória e uma identidade a construir”41.
Os ditames intelectuais dessa identidade expressa no texto da Declaração assentam no conteúdo da Bill of Rights inglesa de 1688, mas ecoam, sobretudo, fiel e profundamente, a herança de Xxxx Xxxxx00, exaustivamente lido nas universidades norte-americanas e os princípios fundamentais do Segundo Tratado sobre o Governo Civil: o governo como um acto de consentimento pela vontade do povo, os direitos naturais inalienáveis, um governo criado para preservar os direitos naturais dos indivíduos e o direito a depor um governo que atentasse contra os direitos fundamentais.
Subscrevemos inteiramente esta afirmação de Karnal:
“Raras vezes na história um autor teve uma influência tão clara em um texto elaborado em outro país”43.
A constituição da identidade norte-americana na pós-independência tem, quanto a nós, o seu marco de referência no modo como se procedeu à construção da arquitectónica institucional da democracia nos Estados Unidos nos anos subsequentes à revolução. Reconhecida a independência por parte da Inglaterra, em 1783 através do Tratado de
40“We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.
— That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed, — That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it (…)”. Declaration of Independence.
41 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 138.
42 Não sendo a única influência, é, pelo menos, a mais notória e directa. Xxxxxxx Xxxxxxxx, autor de American Revolution 1763-1783, identifica, entre outros, Beccaria, Burlamaqui, Xxxxxxxxxx, Xxxxxxxx e Xxxxxxx. Cf. Karnal, op. cit., p. 154, nota 17.
43 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 141.
Paris, urgia agora criar e consolidar a sustentabilidade das estruturas políticas americanas de forma a harmonizar a convivência entre os treze Estados.
Envolto na atmosfera e no espírito das ideias iluministas, melhor dizendo, concretizando o desígnio das Luzes, o debate político que se gerou nesses anos e que levou à ratificação da Constituição na Convenção de Filadélfia, em 1787, dos quais os Federalist Papers de Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxx e Xxxx Xxx nos dão conta, constitui um edificante exemplo de maturidade cívica e política dos norte-americanos, raras vezes ao alcance na história dos povos.
Os vestígios coloniais haviam sido removidos na sua totalidade: a Constituição Americana de 1787 inicia-se com “We, the People of United States”. Ainda que quando elaborou o pequeno opusculo Resposta à pergunta: Que é o iluminismo? (1784), Xxxx não tivesse como destinatário directo o povo norte-americano pode não ser de todo injustificado afirmar que os debates em torno da aprovação da Constituição norte- americana representam uma conquista e um amadurecimento do homem no sentido da sua emergência da menoridade política.
Mas a arquitectónica democrática não se quedou por aqui. Como forma de preservar a garantia das liberdades individuais, e em adenda à Constituição, os Estados aprovaram, em Dezembro de 1791, os dez aditamentos constitucionais da Declaração de Direitos e Garantias da Constituição Federal Norte-Americana que, entre outros, consagrava a liberdade de petição, a liberdade de expressão, a necessidade de julgamentos com júri e a proibição de torturas e penas cruéis.
Para além de aniquilar qualquer precedência da experiência colonial inglesa, tratava-se de garantir a proeminência do indivíduo sobre o Estado, contra o qual já autores como Xxxxxx Xxxxx, em Common Sense, haviam manifestado a sua inteira desconfiança.
De forma loquaz, Xxxxx, o publicista por natureza da Revolução Americana e que ainda antes da Declaração da Independência já se mostrava a favor de uma ruptura com o jugo britânico, declara em relação ao Estado, distinguindo-o da sociedade:
“A sociedade é produzida pelas nossas necessidades e o Governo pela nossa maldade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente unificando os nossos afectos, o último negativamente restringindo os nossos vícios. Uma encoraja as relações, o outro cria distinções”44.
De vocação universal e emancipatória da humanidade45,
“(…) os Estados Unidos da América tinham criado a mais ampla possibilidade democrática do planeta na época da sua independência. Poderes equilibrados como desejava Xxxxxxxxxxx, presidentes eleitos regularmente, uma Constituição escrita com princípios de liberdade muito sólidos e reforçada pelas emendas da Bill of Rights”46.
Motivo de admiração e curiosidade por parte de europeus como o francês Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx (1809-1854), autor do monumental Da Democracia na América (1835-40) e partidário do liberalismo inglês que verificou de perto o sistema democrático americano em 1831 e 1832, referia-se nestes termos à realidade dos EUA:
“A América apresenta, em suma, na sua situação actual, o mais estranho fenómeno: os homens surgem nela mais iguais pela sua fortuna pela sua inteligência (…), do que em qualquer outro país do mundo, ou em qualquer século da história que nos seja conhecida”47.
Apesar de que nos EUA, seguindo Tocqueville
“(…) todos amam, com um amor eterno, a igualdade (…)”48,
no contexto de uma cidadania de matriz liberal49 como a que inspirou a democracia americana, essa igualdade não foi efectivamente extensível a todos.
Além de pactuar com uma realidade que, sob o olhar retrospectivo de um observador do século XXI, prima pela repugnância moral como é o caso da escravatura50, a
44 Tradução de V. Soromenho-Marques em “Cidadania no Novo Mundo – Xxxxxx Xxxxxxxxx e a Revolução Americana” in A Era da Cidadania, p. 176.
45 Xxxx Xxxxx, segundo Presidente dos EUA, ao falar sobre a experiência norte-americana, considera-a nestes termos: “Eu sempre considerei a colonização da América com grande reverência e admiração, como a abertura de uma grande vista e desígnio da Providência para o esclarecimento e emancipação da parte ignorante e escravizada da humanidade em toda a Terra”. Cf. V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, A Revolução Federal – Filosofia política e debate constitucional na fundação dos E.U.A., p. 12. Tradução do autor.
46 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 143.
47 Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx, Da Democracia na América, p. 92.
48 Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx, op. cit., p. 92.
49 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 144.
50 Que só seria abolida definitivamente nos EUA com o fim da Guerra de Secessão, em 1865.
democracia americana não conferia, à época, o direito de voto às mulheres e aos indivíduos pobres de raça branca51.
Os direitos de cidadania e de liberdade também não seriam aplicados às populações indígenas, eles sim os nativos originais do território norte-americano. Com o decorrer das décadas do século XIX centenas de milhares de nativos foram expulsos dos seus territórios ocupados desde tempos imemoriais, brutalmente dizimados e encarcerados em reservas, fruto da expansão da população americana para Oeste sedenta de novos territórios e inebriada pela ideia e missão de um Destino Manifesto expresso por Xxxxxx Xxxxxxx (1767-1845), sétimo Presidente dos EUA, como uma aurora de grandeza e conquista.
Uma última palavra cabe à comunidade afroamericana que, mesmo após a abolição da escravatura e sobretudo no sul dos Estados Unidos, teve de perseverar e suportar arduamente décadas e décadas de injustiça social e de um odioso sistema de segregação racial, reclamando para si uma igualdade consagrada na Constituição que só lhe foi conferida, de facto, após uma longa luta levada a cabo pelo Movimento dos Direitos Civis durante as décadas de 1950 e 1960 do século XX, liderada pelo sonho de Xxxxxx Xxxxxx Xxxx Xx. e que teria o seu culminar no Civil Rights Act de 1964.
Não obstante as contradições imputáveis à experiência democrática americana nos seus dois séculos de existência, e das quais devemos isentar os Founding Fathers por uma questão de honestidade intelectual e histórica, o eco da liberdade, dos direitos naturais e da soberania popular americanas atravessaria o oceano Atlântico poucos anos depois de 1776.
O palco seria a França, aliada dos EUA na Guerra da Independência contra a Inglaterra. Artífices do país das Luzes, os franceses conduzirão a experiência da Revolução por caminhos mais radicais e tortuosos que os americanos e, nem sempre, de todo consensuais na influência que legou à posteridade.
51 Xxxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 143. O direito de voto independentemente da sua raça, cor, condição social só foi garantido com a 15ª Emenda Constitucional em 1870. O Estado do Wyoming foi o pioneiro do voto feminino nos EUA, em 1869. Tardariam cinquenta anos, até 1920, até que o voto feminino fosse alargado a todos os EUA pela 19ª Emenda Constitucional.
2.4. A Revolução Francesa de 1789: a “Mãe” de todas as Revoluções
Mais do que qualquer outra data na história moderna, somos ainda herdeiros dos acontecimentos ocorridos no dia 14 de Julho de 178952, data em que a Bastilha foi tomada, dando início à Revolução Francesa.
Inspirados pela Revolução Americana uma década antes, os franceses impuseram um fim às políticas absolutistas de Xxxx XXX e elevaram os princípios proclamados por Xxxxxxxx de liberdade, igualdade e fraternidade a uma nova narrativa: a narrativa dos Direitos do Homem.
Contudo, a Revolução Francesa não se esgota nessa narrativa. Há mais do que isso em jogo. Apesar não ser absolutamente claro para os mentores dos acontecimentos em França, o conceito de revolução remete-nos para a criação de um momento inicial no decurso histórico da modernidade.
Reside aí a especificidade que o demarca de outras revoltas e rebeliões anteriores e posteriores, especificidade da qual se apercebeu brilhantemente Xxxxxx Xxxxxx:
“O conceito moderno de revolução inextricavelmente ligado à noção de que o curso da história começa de novo, de que uma história totalmente nova, uma história nunca antes conhecida ou narrada, está para se desenrolar era desconhecido antes das duas grandes revoluções no final do século XVIII”53.
Reafirma Arendt que
“É crucial, portanto, para a compreensão das revoluções da Idade Moderna, que a ideia de liberdade e a experiência de um novo começo sejam coincidentes”54.
Coincide também a atmosfera intelectual com o momento histórico. O século XVIII vê nascer o Iluminismo como projecto de total emancipação de uma humanidade liberta dos dogmas religiosos sob o auspício do progresso científico e industrial (a terceira
52 Embora seja esta a data simbólica consagrada pela historiografia para o início da Revolução Francesa não podemos aqui deixar de evocar Xxxxxxxx Xxxx, que identifica o momento decisivo da Revolução com a transformação dos Estados Gerais em Assembleia Nacional, a 20 de Junho de 1789, e não com a tomada da Bastilha, ocorrida a 14 de Julho do mesmo ano. Cf. V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, Razão e Progresso na Filosofia de Xxxx, pp. 490-491.
53 “The modern concept of revolution, inextricably bound up with the notion that the course of history suddenly begins anew, that an entirely new story, a story never known or told before, is about to unfold, was unknown prior to the two great revolutions at the end of the eighteenth century”. Xxxxxx Xxxxxx, On Revolution, p. 18.
54 “Crucial, then, to any understanding of revolutions in the modern age is that the idea of freedom and experience of a new beginning should coincide” Xxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 19.
grande revolução seria precisamente a Revolução Industrial) numa sociedade mais culta, mais alfabetizada, mais justa e aspirando à felicidade como meta colectiva.
Homens ilustres como Xxxxxxxxxxx (1689-1755), Xxxxxxxx (1694-1778), Xxxxxxx (1713-
1784), X’Xxxxxxxx (1717-1783), Xxxxxxxx (1712-1778), Helvetius (1715-1771), citando apenas os mais importantes, apesar de não testemunharem pessoalmente a Revolução, forjam, mediante o fruto do seu labor intelectual e das ideias que promovem, o projecto do homem novo.
O perfil do homem novo não se coaduna já com o súbdito de uma França onde o absolutismo foi elevado ao expoente máximo com Xxxx XXX (1638-1715), mas sim o cidadão da liberdade e dos direitos naturais, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
É também no século XVIII, mais precisamente a partir da década 1760, que a expressão direitos do homem faz a sua entrada em cena no mundo intelectual francês55 com direito a ser tema de debate.
Em 1764, o jurista italiano Xxxxxx Xxxxxxxx (1738-1794) faz publicar a obra Dos delitos e das penas, onde se insurge contra a pena de morte, a crueldade das torturas utilizadas para obter confissões de culpa56 e as prisões arbitrárias. Xxxxxxxx encontra xxx e as suas ideias passam a ser discutidas e debatidas nos grandes círculos intelectuais europeus. Xxxxxxxx, principalmente, encarregar-se-á em França de brandir a sua pena pela abolição da tortura, principalmente a partir do caso Xxxxx em 176257.
Consideremos agora outra ordem de razões que tiveram influência no desfecho dos acontecimentos de 1789, ou seja, o lado social da revolução.
O Antigo Regime prevalecia em França há mais de 500 anos e a sociedade encontrava- se tradicionalmente em três ordens sociais: clero, nobreza e povo com a monarquia absolutista no topo da pirâmide social.
55 Para se conhecer melhor esta temática, consulte-se a obra escrita em 2007 por Xxxx Xxxx, A invenção dos direitos humanos – Uma História, pp. 20-21 e ss.
56 Este aspecto já havia sido criticado por Xxxxxxxxxxx em O Espírito das Leis, em 1748. Cf. Xxxx, op. cit., p. 29.
57 Xxxx Xxxx, op. cit., p. 73. Para uma descrição do caso Xxxxx, consulte-se Hunt, op. cit., p. 70 e ss.
Nas palavras de um dos maiores historiadores sobre a Revolução Francesa, Xxxxxx Xxxxxx:
“No final do século XVIII, a estrutura social da França permanecia essencialmente aristocrática: conservava o carácter da sua ordem, da época em que a terra constituía a única forma de riqueza social e conferia àqueles que a possuíam poder sobre os que a cultivavam”58.
Para além da sujeição que era imposta aos camponeses através dos direitos senhoriais59, a burguesia, à semelhança do que se passava em Inglaterra, era uma classe em franca e notória ascensão e
“(…) estava à cabeça das finanças, do comércio, da indústria e fornecia à monarquia os quadros administrativos, assim como os recursos necessários à marcha do Estado”60.
A sua importância no decorrer da revolução será vital. Em detrimento de uma aristocracia que permanecia arredada dos destinos da governação, e gozando os seus privilégios em futilidades palacianas no séquito de Xxxx XXX, em Versalhes, com encargos pesados e onerosos para as finanças francesas, a burguesia afirmava-se em consonância com os ideais de progresso das Luzes, criava uma clara consciência de classe e era objecto de admiração por parte das classes populares, pobres e iletradas61.
O luxo da corte de Xxxx XXX e a participação na Guerra dos Sete Anos tinham depauperado terrivelmente as finanças do Estado francês e o descontentamento intensificou-se ao longo dos anos anteriores à revolução. Já em 1787, o monarca convocara o clero e a nobreza para propor um aumento de impostos no sentido de resolver a crise financeira francesa, aumento esse recusado pela Assembleia dos Notáveis, o que forçou Xxxx XXX a convocar os Estados Gerais pela primeira vez em 175 anos62.
Iniciados a 5 de Maio de 1789, os Estados Gerais aglomeram as diversas classes sociais que exigem uma reforma do Estado e a supressão de muitos dos privilégios
58 Xxxxxx Xxxxxx, Revolução Francesa, p. 8
59 Xxxxxx, op.cit., p. 8.
60 Soboul, op.cit., p. 9.
61 Xxxxxx, op. cit., p. 9.
62 A sugestão da convocação dos Estados Gerais foi feita por Xxxxxxx Xxxxxx, Ministro das Finanças de Xxxx XXX.
monárquicos através dos cahiers de dolences. Xxxx XXX, avesso a qualquer mudança, afirma que o motivo da reunião é apenas a votação do orçamento do Estado63.
Ainda não politizadas, as massas populares ganham protagonismo como Terceiro Estado. Já em Janeiro de 1789, o Abade de Sieyès, no seu panfleto intitulado O que é o Terceiro Estado?, colocava nestes termos a questão que seria o manifesto da revolução:
“O plano deste escrito é muito simples. Temos três questões a colocar. 1º - O que é o Terceiro Estado? – TUDO; 2º - O que é ele foi até ao presente na ordem política? NADA; 3º - O que é que ele pede? SER ALGUMA COISA”64.
Tal como afirma Xxxxxx,
“O ódio à aristocracia, a oposição irredutível aos «grandes» e aos ricos foram os fermentos da unidade das massas laboriosas”65.
Enquanto os deputados do clero, da nobreza e do povo não se conseguiam entender quanto ao sistema de voto e o Terceiro Estado, por sugestão do famigerado Sieyès, se transforma em Assembleia Constituinte, a cidade de Paris é tomada de assalto por tumultos generalizados, mercê da miséria e da fome reinantes entre os mais desfavorecidos. Daí à tomada da Bastilha, a 14 de Julho, foi um pequeno passo que constituiu o início do fervor revolucionário.
Como afirma Xxxx Xxxxxx,
“É o momento em que a população faminta e miserável busca tomar em suas mãos o poder político, impondo novas regras e normas legais, que traduziam as suas esperanças de criação de um novo Estado”66.
Pouco depois, a 26 de Agosto de 1789, surge o legado fundamental que a Revolução Francesa deixou à humanidade: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. À semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos, com a Declaração da Independência de 1776, também este texto jurídico, que teve a sua elaboração por parte de
63 Xxxx Xxxxxx, “Revolução Francesa – A Liberdade como meta colectiva” in Xxxxx e Xxxxx Xxxxxx (Org.),
História da Cidadania, p. 165.
64 “Le plan de cet écrit est assez simple. Nous avons trois questions à nous faire. 1° Qu’est-ce que le Tiers état? — TOUT. 2° Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans l’ordre politique? — RIEN. 3° Que demande-t-il? — À ÊTRE QUELQUE CHOSE”. E. J. Sieyes, Qu’ est-ce que le Tiers état?, p. 1.
65 Xxxxxx, op. cit., p. 22.
00 Xxxx Xxxxxx, op. cit., p. 165.
personalidades tão insignes como Xxxxxx, Xx Xxxxxxx ou Mirabeau67, anunciava no seu Artigo Primeiro que
“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais apenas podem ser fundadas sobre a utilidade comum”68.
A vocação universal69 das ideias iluministas ganhava assim direito de permanência na história como expressão consagrada juridicamente e eleva-se a um altar supremo no imaginário dos que lutaram pelos direitos do homem e pela democracia. Em nome deste Artigo Primeiro, o século XIX será varrido por diversas rebeliões e revoluções no continente europeu e no continente americano, todas elas inspiradas na Revolução de 1789.
O período revolucionário em França conheceria vários episódios e sofreria várias metamorfoses: sob uma frágil monarquia constitucional, articulada em premissas liberais, em que Xxxx XXX é obrigado a juramentar a nova Constituição (14 de Setembro de 1791) até à sua execução a 21 de Janeiro de 1793, passando pelas atrocidades cometidas durante o Terror liderado por Xxxxxxxxxxx no período da Convenção (1792- 1795).
Acossada pelo perigo de invasões contra-revolucionárias de países estrangeiros numa tentativa de restaurar o absolutismo real, agitada por uma larga franja da população em desordem que, além de liberdade e direitos, exigia pão70 e por uma aplicação demasiado literal dos princípios de Xxxxxxxx por parte de Xxxxxxxxxxx00 no período de 1793-1794, a Revolução não cumpriria por completo os desígnios na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
No que diz respeito ao exercício cívico, à semelhança do que passou em Inglaterra e nos EUA, também em França, com a promulgação da Constituição de 1791, a participação na vida política circunscreviam-se aos cidadãos que pagavam impostos ou possuíam
67 V. Soromenho-Marques, Direitos humanos e Revolução, p. 101.
68 V. Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, op. cit., p. 102.
00Xxxx Xxxx, op. cit., p. 14.
70 A este respeito não podemos deixar de recordar o que Xxxxxx Xxxxxxxxx, durante a sua estadia em Paris como embaixador dos EUA em França, de 1784 a 1789, afirmou. Citado por Xxxxxx Xxxxxx em On Revolution, o Pai Fundador da Revolução Americana retracta a sociedade francesa desta forma: “De vinte milhões de pessoas (…) existem dezanove milhões que são mais miseráveis, mais desgraçados em todas as circunstâncias da existência humana do que o indivíduo mais manifestamente miserável de todos os Estados Unidos”. Cf. Xxxxxx, op. cit., p. 57.
71 H. Xxxxxx, op. cit., p. 66.
terras. Os franceses foram divididos em cidadãos activos e passivos, estando estes últimos impedidos de participarem na esfera pública e nos assuntos do Estado.
Apesar de vilipendiada por conservadores72, e mesmo não cumprindo por inteiro as expectativas que por ela foram geradas em matéria de cidadania, a Revolução Francesa foi registada para a posteridade histórica como o ideal de revolução e da luta dos povos pela liberdade e pela emancipação política.
Mais do que a própria Revolução Americana, esta sim que se constituiu num verdadeiro exercício e exemplo de maturidade democrática transmitida ao mundo, são os acontecimentos de 1789 que nos acorrem mais facilmente à memória quando falamos de revolução. Foi com ela que, definitivamente, o feudalismo foi encerrado e o capitalismo emergiu, acelerando o desenvolvimento da modernidade de forma irreversível e com as consequências ambientais que conhecemos hoje.
A sua herança em termos ideais permaneceu. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 é a filha dilecta da Declaração de 1789. E, não obstante as atrocidades cometidas nos anos que se lhe seguiram, permanece também aquela que, em nosso entender, constitui a sua fundamental lição no que diz respeito às tarefas da cidadania e que tem implicações na época contemporânea: a de que a cidadania é um processo de construção permanente que se encontra, mesmo no nosso complexo início de século XXI, muito longe de ter esgotado inteiramente as suas possibilidades.
Como nos lembra acertadamente Xxxx Xxxxxx:
“Quando falamos, escrevemos ou pensamos sobre a cidadania, jamais podemos olvidar que ela é uma lenta construção que se vem fazendo a partir da Revolução Inglesa, no século XVII, passando pela Revolução Americana e Francesa (…)”73
Chegados ao final desta breve exposição histórica do conceito de cidadania, meditemos precisamente nesse aspecto nem sempre recordado: de que a história da cidadania sempre foi caracterizada por um processo de lenta e permanente construção.
Iremos ver, em capítulos subsequentes da nossa investigação, como a emergência da crise ambiental global poderá representar um novo enfoque que poderá enriquecer o
72 Xxxxxx Xxxxx, autor de Reflections on the Revolution in France (1790), diria: “Não somos os convertidos por Xxxxxxxx”. A resposta não se faria esperar por parte de Xxxxxx Xxxxx que, em The Rights of Man (1791), polemizaria de forma contundente contra Xxxxx. Cf. Xxxx Xxxx, op. cit., p. 15.
00 Xxxx Xxxxxx, op. cit., p. 168.
conceito de cidadania que xxxxxxxx das três grandes revoluções da modernidade e que, por esse motivo, partilha com elas um certo grau de afinidade.
Antes disso, porém, pretendemos dar conta dos novos desafios que se impõem à cidadania neste século, desafios esses que não se apresentaram aos grandes actores dos palcos revolucionários dos idos de 1776 e 1789.
Capítulo 3 – Cidadania na Contemporaneidade: de T.H. Xxxxxxxx à Participação 2.0 na Era da Informação - Um olhar panorâmico
3.1. T. H. Xxxxxxxx e o regresso da cidadania ao debate político contemporâneo
Ausente durante várias décadas do horizonte académico, o tema da cidadania constitui actualmente um tópico profícuo da reflexão política contemporânea. Nas próximas páginas, pretendemos fornecer uma panorâmica das questões mais importantes que marcam o debate sobre a cidadania no final do século XX e no início do século XXI.
Foi na década de 1990 que o debate em torno da cidadania ganhou novo alento tanto no campo da teoria social como da ciência política1. O redespertar do interesse em torno do estudo da cidadania e dos subtemas que lhe estão associados foi suscitado, sobretudo, devido à ocorrência de acontecimentos fracturantes tanto social como politicamente nas últimas décadas.
Entre eles, de acordo com Xxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxxx, autores de um dos mais interessantes artigos académicos sobre o tema da cidadania das duas últimas décadas, registamos os principais acontecimentos:
1) O colapso do Estado-providência durante o governo de Xxxxxxxx Xxxxxxxx, Primeira- Ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990;
2) O ressurgimento dos movimentos nacionalistas na Europa de Leste, ocorridos nomeadamente após o colapso e o desmembramento da União Soviética (1991);
3) As questões suscitadas por temas tão complexos como o fenómeno da multiculturalidade e os fluxos migratórios surgidos com o advento da globalização económica das duas últimas décadas2.
Por seu lado, Xxxxx Xxxxxx, outro dos principais autores contemporâneos das questões ligadas à cidadania, aduz um outro motivo para o ressurgir do interesse no conceito: os progressos das biociências, nomeadamente, os desenvolvimentos da engenharia
1 Kymlicka and Xxxxxx, “The Return of the Citizen” (1994), p. 352.
2 Kymlicka and Xxxxxx, op .cit., p. 352.
genética3 que representam uma das questões fundamentais da esfera política das sociedades contemporâneas.
Em resumo, e seguindo aqui o artigo de Xxxxxx, podemos afirmar que o redespertar da cidadania se deve fundamentalmente a dois factores:
- À inoperância do Estado-nação face às múltiplas mudanças introduzidas nas três últimas décadas pelo processo de globalização económica que acarreta uma perda de parte da sua soberania;
- Uma distribuição de recursos económicos, sociais, materiais e naturais que continua a ser marcada por um nível cada vez maior de desigualdade entre classes, regiões e hemisférios a nível global4.
Não obstante a relevância contemporânea que constituem os temas supramencionados para o debate académico sobre a cidadania, o texto que inaugurou o mesmo é um ensaio redigido após a Segunda Guerra Mundial pelo sociólogo britânico, T.H. Xxxxxxxx (1883-1981), intitulado “Citizenship and Social Class”.
Embora tenha sido escrito em 1950, só a partir da década de 1980 é que se tornou alvo de maior debate por parte do mundo académico, nomeadamente por autores que contestam e se posicionam contra o enquadramento teórico do desenvolvimento histórico da cidadania construído por Xxxxxxxx no seu texto clássico5.
Por se tratar de um “fresco” numa época em que o tema da cidadania não despertava grande interesse no seio da comunidade intelectual e, não obstante as limitações que lhe apontam os seus críticos e as quais subscrevemos, pelo facto do seu conteúdo assumir uma certa importância quando abordarmos a construção teórica do conceito de cidadania ambiental, o texto de Xxxxxxxx merece toda a nossa atenção.
3 Xxxxxx, “Contemporary Problems in the Theory of Citizenship” (1993), p. 1. Para uma visão de conjunto sobre os desafios colocados à reflexão sobre a cidadania na contemporaneidade tanto o artigo de Xxxxxx como o de Kymlicka e Xxxxxx citado na nota anterior constituem uma boa introdução que poderá ser complementada com a leitura dos capítulos 7 a 12 da segunda parte do Manual de Filosofia Política (2013), organizado por Xxxx Xxxxxxx Xxxxx e pelo estudo de Xxxxxx Xxxxxxx, Citizenship in a Global Age (2002).
4 Xxxxxx, op. cit., p. 2.
5 Entre outros devemos citar Xxxxx Xxxxxx no seu artigo “Outline of a Theory of Citizenship”, Xxxxxxx
M. Xxxx em “T. H. Xxxxxxxx and the progress of citizenship” ou Xxxxxxx Xxxxxxx em “T.H. Xxxxxxxx, the State and Democracy”. Estes dois últimos artigos encontram-se na colectânea de textos dedicada a Xxxxxxxx em 1996 intitulada Citizenship Today: the contemporary relevance of X.X.Xxxxxxxx.
Xxxxxxx então mais de perto os seus argumentos no que concerne ao desenvolvimento da cidadania. Xxxxxxxx pretende dividir a cidadania em três elementos de acordo com a sua ocorrência histórica: cívica, política e social.
O elemento civil é composto pelos elementos necessários à liberdade individual: liberdade da pessoa, liberdade de expressão, de pensamento e religiosa, direito à propriedade e direito à justiça.
Pelo elemento político, Xxxxxxxx entende o direito do indivíduo de participar no exercício do poder político como membro de um corpo político – parlamento ou cargos de administração pública - e também o direito de voto.
Por último, o elemento social, designa o direito à segurança social e o direito a participar dos benefícios de uma sociedade civilizada e viver de acordo com os padrões instituídos nesta – ou seja, poder beneficiar de um sistema educacional e de serviços de segurança social6.
O objectivo de Xxxxxxxx é, principalmente, traçar o desenvolvimento histórico da cidadania em Inglaterra no fim do século XIX. Segundo ele, o elemento civil da cidadania foi o primeiro a surgir, tendo-se seguido o elemento político, consagrando-se apenas como princípio universal de cidadania a partir de 19187.
Os direitos sociais, como definidos acima por Xxxxxxxx, estão ausentes no século XVIII e na primeira metade do século XIX. O desenvolvimento da instrução pública básica fê- los surgir, mas só no século XX é que o elemento social foi colocado no mesmo patamar que os elementos cívico e político8.
Considerado obviamente uma referência incontornável para quem se dedica ao estudo do tema da cidadania precisamente por ter sido Xxxxxxxx o primeiro autor a imprimir alguma renovação no debate sobre o tema nas últimas décadas, não obstante “Citizenship and Social Class” foi, como já ressalvámos, alvo de bastante polémica e de diversas críticas, nomeadamente a partir do momento em que a cidadania ganhou estatuto de renovado interesse académico.
6 Xxxxxxxx, “Citizenship and Social Class”, p. 149. Seguimos aqui a edição do texto publicada em
Inequality and Society, editada por Xxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx, em 2009.
7 Xxxxxxxx, op. cit., p. 149.
8 Xxxxxxxx, op. cit., p. 149
O já citado Xxxxx Xxxxxx, por exemplo, afirma que Xxxxxxxx, além de apresentar o desenvolvimento da cidadania como um processo evolutivo e irreversível, aplica a sua teoria, confinável apenas à história britânica, a toda a sociedade ocidental9.
Referindo-se à elaboração efectuada por Xxxxxxxx, Xxxxxx afirma que ele nunca forneceu uma explicação causal sobre como a cidadania é ampliada, limitando-se apenas a elaborar uma descrição histórica da evolução social dos direitos em Inglaterra, nunca explicitando, contudo, o papel que as classes sociais, os novos movimentos sociais ou os conflitos sociais desempenharam nesse processo. O seu modelo, sustenta Xxxxxx, sugere uma evolução gradual e pacífica da cidadania ao longo dos últimos três séculos10.
A mesma linha de argumentação segue Xxxxxxx Xxxxxxx, um dos mais destacados sociólogos contemporâneos, que acusa o autor de “Citizenship and Social Class” de menosprezar o papel que os conflitos sociais dos séculos precedentes detiveram na conquista dos direitos de cidadania, dado que estes foram obtidos, como o faz notar e bem Xxxxxxx, através de lutas sociais11.
Também Xxxxxxx X. Xxxx não deixa de evidenciar, sobretudo, o anglocentrismo da teoria desenvolvida por Xxxxxxxx. Aplicada à história britânica, o desenvolvimento histórico da cidadania traçado em “Citizenship and Social Class” enquadra-se de forma coerente na narrativa formulada por Xxxxxxxx, mas o mesmo não acontece quando aplicado à forma como os elementos que a constituem foram conquistados noutros países europeus. Na Alemanha, por exemplo, como afirma Rees, os direitos sociais precederam os direitos políticos12.
Pertencente a uma tradição liberal de cidadania, a concepção de Xxxxxxxx ancora-se, sobretudo, a um modelo que enfatiza grosso modo a perspectiva dos direitos e que se contrapõe a outros modelos13 no debate contemporâneo sobre a cidadania.
9 Xxxxxx, “Outline of a Theory of Citizenship”, p. 192.
10 Turner, “Contemporary Problems in the Theory of Citizenship”, p. 8.
11 Xxxxxxx X. Xxxx, “T. H. Xxxxxxxx and the progress of citizenship”, p. 18.
12 Xxxxxxx X. Xxxx, op. cit., p. 14.
13 Por motivos de espaço não podemos aqui dar conta das diversas concepções de cidadania que emanam da teoria política contemporânea. Para esse efeito, recomendamos a obra de Xxxxxx Xxxxxxx, pp. 7-49, onde o autor aborda detalhadamente o tema e também a obra citada de Xxxx Xxxxxxx Xxxxx, capítulos 4, 5 e 6.
É o caso do modelo comunitarista de cidadania inaugurado com a distinção efectuada pelo sociólogo alemão, Xxxxxxxxx Xxxxxxx, entre comunidade e sociedade, na obra homónima de 188714. Para Xxxxxxx, a comunidade referia-se ao mundo tradicional e coeso, enquanto sociedade associa-se ao mundo fragmentado da modernidade com as suas estruturas racionalistas e individualizadas.
Xxxxxxx lamentava a passagem de comunidade (o mundo rural e as aldeias) à sociedade (o mundo urbano), considerando que a comunidade dotava o ser humano de maiores recursos morais, dado que esta aponta para uma dimensão local, próxima e total, ao passo que a sociedade caracteriza-se por fragmentação, alienação e distância.
Em termos de cidadania, o comunitarismo resgata alguns elementos da concepção política de Xxxxxxxxxxx e da ideia renascentista de virtude15 e propõe a comunidade e não o indivíduo como base e fundação da sociedade civil, centrando a sua atenção mais nas questões da participação pública e na identidade do indivíduo do que na questão dos direitos, como é apanágio da posição liberal.
Para o comunitarismo, como sustenta Xxxxxx Xxxxxxx00, a noção liberal de pertença a um grupo, nomeadamente a questão dos direitos, é demasiado formalista, negligenciando as dimensões de identidade e participação, os verdadeiros vínculos que unem os indivíduos a uma comunidade.
Contrariamente à posição de Xxxxxxxx, no modelo comunitarista, a cidadania radica, sobretudo, na participação no indivíduo no seio da comunidade política e, consequentemente, num maior enfoque na esfera dos deveres do que na esfera dos direitos.
Veremos, já no próximo capítulo, como a influência do artigo de T.H. Xxxxxxxx, bem como a contraposição entre direitos e deveres, continua a ser de todo primordial para a relação entre a cidadania e as questões ambientais e também para a construção de uma noção de cidadania ambiental ou ecológica.
De momento, porém, foquemos a nossa atenção num outro tema crucial da cidadania contemporânea que é a sua interacção com as novas ferramentas tecnológicas de
14 Gemeinschaft und Gesellschaft no original alemão.
15 Xxxxxxx, op. cit., p. 23.
16 Delanty, “Communitarianism and Citizenship” in E. Isin and B. Xxxxxx (Eds.) Handbook of Citizenship Studies, p. 163.
informação e participação num mundo cada vez mais globalizado dependente da tecnologia.
3.2. Cidadania digital e ciberdemocracia: novas ferramentas de participação cívica no mundo global
3.2.1. Xxxxxx Xxxxxxxx e A Era da Informação
A evolução das tecnologias de comunicação e informação produziu alterações em todas as esferas da sociedade contemporânea, sendo praticamente impossível conceber a existência humana sem escapar à sua influência.
Um dos conceitos que melhor retracta uma sociedade profundamente marcada pela tecnologia é o conceito de sociedade em rede formulado pelo sociólogo Xxxxxx Xxxxxxxx na obra A Era da Informação17, em que analisa as alterações provocadas na sociedade contemporânea pela recente emergência das tecnologias de comunicação e informação.
Assim, segundo Castells,
“Uma revolução tecnológica, centrada nas tecnologias de informação, começou a remodelar, de forma acelerada, a base material da nossa sociedade”18.
Esta revolução que, de acordo com Xxxxxxxx, se difundiu num período de reestruturação global do capitalismo19, transformou o sistema económico, provocando a sua interdependência global e alterou também a natureza da relação entre Estado e sociedade, bem como dos próprios actores do sistema político, dependentes do nível de exposição que têm nos meios de comunicação de massas.
A emergência de redes interactivas de computadores ligados à internet além de ter implicações significativas na estrutura da identidade pessoal do ser humano, que se está a tornar a principal referência e fonte de sentido na nossa época histórica20, produziu um impacto ainda mais amplo.
17 Seguimos a tradução portuguesa da obra, publicada em três volumes pela Fundação Calouste Gulbenkian, a partir de 2005.
18 Xxxxxxxx, A Era da Informação, Volume 1, p. 1.
19 Castells, op. cit., p. 15.
20 Castells, op. cit., p. 3.
A internet veio alterar por completo a base da esfera comunicacional do indivíduo,
“(…) criando novas formas e canais de comunicação, moldando a vida e, ao mesmo tempo, sendo moldadas por ela”21.
A existência humana, nos seus mais variados âmbitos, está singular e crescentemente dependente da adaptação da nossa adaptação às regras ditadas pelos novos meios tecnológicos de informação e comunicação.
O acesso ou não às tecnologias de informação e comunicação pode influenciar largamente a existência do indivíduo, uma vez que estas têm o poder de determinar a sua sobrevivência ou o seu anonimato, mediante a sua exclusão da sociedade de informação.
A sua influência é tal que possuir conhecimentos e competências de domínio das tecnologias de comunicação e informação chegar mesmo a representar um novo modo de iliteracia, a iliteracia digital.
Como refere Xxxxxxxx estar em rede, isto é, ter acesso e competências para utilizar as tecnologias de informação, pode significar um factor crítico de mudança ou de domínio dentro do contexto social em que estamos inseridos22.
A possibilidade de acesso ou não à rede configura de forma determinante a ampliação do conceito tradicional de cidadania que emergiu nos últimos anos a um espaço virtual que se designa como cidadania digital.
3.2.2. Cidadania digital
Sendo um fenómeno que surgiu apenas na última década e que só em anos recentes começou a merecer a atenção por parte da comunidade académica, a melhor definição que podemos encontrar de cidadania digital até à data é a que inicia um dos ainda muito poucos estudos consagrados ao tema, a obra conjunta de Xxxxx Xxxxxxxxxx, Xxxxxxxx X. Xxxxxxx e Xxxxxx X. Xx Xxxx, Digital Citizenship – The Internet, Society and Participation, publicada em 2008.
21 Castells, op. cit., p. 3.
22 Castells, op. cit., p. 605.
Segundo as autoras,
“A ‘cidadania digital’ é a capacidade para participar na sociedade online”23.
Considerando que a cidadania digital detém um elevado capital de potencial participação política na sociedade da era da informação24, as autoras afirmam que, e aqui socorremo-nos da terminologia de Xxxxxx Xxxxxxxx, numa época em que as redes informáticas são o sustentáculo da comunicação contemporânea, a utilização da internet trouxe benefícios significativos para a participação democrática25.
Nesse sentido, os cidadãos digitais
“(…) são aqueles que utilizam a tecnologia frequentemente, que a utilizam em busca de informação política para cumprir os seus deveres cívicos (…)”26.
Outro factor que contribuiu de forma preponderante para a emergência do conceito de cidadania digital é o processo de globalização económica que o mundo sofreu nas duas últimas décadas, alicerçado na expansão das tecnologias de informação. Estas foram, aliás, fundamentais para a propulsão da tendência globalizante a que assistimos hoje em dia.
Como defende Xxxx Xxxxx do Patrocínio em Tornar-se Pessoa e Cidadão Digital27:
“De facto, a globalização, como processo complexo e multicausal, com o sentido que lhe é dado nos mais diversos tipos de discurso (económico, político, social, cultural, educativo) surge quando as novas tecnologias de informação e comunicação começam a expandir-se e a popularizar-se por todo o mundo (e ainda mais com o advento da internet) tornando-se a sua estrutura de sustentação”28.
Mas a globalização não nos remete apenas para isto. Sugere, sobretudo, uma ruptura com a representação tradicional de três séculos de modernidade a diversos níveis. Pauta- se por uma desfragmentação paulatina dos seus pilares da qual somos actores nem sempre de forma consciente.
23 “«Digital citizenship» is the ability to participate in society online”. Xxxxxxxxxx et al, op.cit., p.1.
24 Xxxxxxxxxx et al, op. cit., p. 2.
25 Xxxxxxxxxx et al, op. cit., p. 2.
26 “Digital citizens are those who use technology frequently, who use technology for political information to fulfill their civic duty”. Xxxxxxxxxx et al, op. cit., p. 2.
27 Tornar-se Pessoa e Cidadão Digital – Aprender a formar-se dentro e fora da escola na sociedade tecnológica globalizada. Dissertação de Doutoramento em Ciências da Educação apresentada à Universidade Nova de Lisboa, em 2004.
28 J.T. Patrocínio, op. cit., pp. 37-38.
A sua relação com a emergência da cidadania digital centra-se nisto: no descrédito das instituições políticas e na desconfiança dos cidadãos face à forma como estas actuam, no divórcio profundo entre agentes políticos e cidadãos que se traduz num défice de participação política e cívica.
Mas, mais do que isso, a aceleração do tempo dos acontecimentos na rede digital e a aproximação geográfica que ela suscita, possibilita, como afirma Xxxxxxxxxx,
“(…) o desenvolvimento da consciência da vivência num planeta de grandes interdependências (…) ou seja, a consciência de que, contemporaneamente, quase nenhum assunto se pode resolver exclusivamente por conta própria nos tradicionais contextos local, regional ou nacional, apelando a contextos, mais do que internacionais, globais (…)”29.
3.2.3. Cidadania Digital e Redes Sociais: participação 2.0
Afirmar que a emergência das tecnologias de informação e comunicação desencadearam por si só a possibilidade da ampliação do exercício cívico à vertente digital seria enfocar a questão de uma forma redutora.
A constituição de comunidades virtuais e o aparecimento das redes sociais contribuíram, e continuarão a contribuir, em larga medida para redesenhar o quadro da participação cívica na sociedade contemporânea, não no sentido de fazer renascer das cinzas um novo conceito de cidadania, mas sim de lhe ampliar a sua base geográfica e o seu horizonte de actuação.
Explicitemos melhor o que acabámos de afirmar. Se até ao aparecimento da Internet a noção de comunidade, além de restrita a um determinado espaço geográfico, vinculava apenas indivíduos do mesmo território, condicionando assim a manifestação do exercício cívico a uma escala local, regional ou nacional, de acordo com Patrocínio
“(…) na sociedade tecnológica globalizada que percepcionamos, a cidadania não tem uma dimensão ligada exclusivamente ao espaço residencial ou nacional, mas apresenta um sentido mais global, mais universal”30.
É nesta dialéctica constante, e nem sempre coerente e harmoniosa, entre a esfera local e a esfera global que se articula a dimensão de participação digital. Mas não só. A condição social e ideológica que muitas vezes vinculava indivíduos a uma mesma causa
29 J.T. Patrocínio, op. cit., p. 38.
30 J.T. Patrocínio, op. cit., p. 138.
surge fragmentada por uma certo carácter de despolitização do fenómeno cívico: o exercício cívico deixou de estar ligado fundamentalmente a questões políticas e económicas, mercê do descrédito actual da política e da economia, para passar a gravitar primordialmente em torno de causas sociais como a luta contra a pobreza, a preservação do ambiente ou a paz.
Numa contemporaneidade marcada pelo primado da desvinculação política por parte dos indivíduos, as tecnologias de informação e comunicação possuem a capacidade de potenciar um maior grau de participação cívica.
É o que sustenta Xxxxxx Xxxxxxxx num artigo escrito para a conferência promovida pela Presidência da República Portuguesa em 2005 e organizada pelo próprio e por Xxxxxxx Xxxxxxx, intitulada A Sociedade em Rede – Do conhecimento à acção política:
“Sabemos, pelos estudos em diferentes sociedades, que a maior parte das vezes os utilizadores de Internet são mais sociáveis, têm mais amigos e contactos e são social e politicamente mais activos do que os não utilizadores”31.
A isso não é alheio o fenómeno a que nos últimos anos se tem dado a conhecer como web 2.032, da qual fazem parte as redes sociais. Assentes numa lógica de participação e de interacção, distinguem-se dos meios de comunicação tradicionais pela forma de comunicação.
Televisão, rádio ou jornais são meios unidireccionais, ao passo que redes sociais como, por exemplo o Facebook ou o Twitter, para nomearmos apenas as mais importantes, são bidireccionais, isto é, de acordo com Xxxx Xxxxxxx, autora de As redes sociais online, os jovens e a cidadania33, permitem
“(…) ao receptor ser também emissor, com um alcance global e instantâneo (…)”34, dotando-o igualmente de maior autonomia porque
“(…) conferem ao utilizador da Internet um maior controlo sobre a informação”35.
31 Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx, A Sociedade em Rede – Do conhecimento à acção política, p. 23. 32 Termo criado em 2004 pela empresa O’Reilly Media e que pretende designar uma segunda geração de ferramentas de interacção e partilha que vão desde sites como o a WikiPedia e YouTube, redes sociais como o Facebook, aplicativos como o Twitter, entre outros.
33 Dissertação de Mestrado apresentada no ISCTE-IUL no ano de 2011.
34 Xxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 19.
35 Xxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 19.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxxx, autor da obra O que é a Internet, com esta e através do potencial trazido pelas redes sociais,
“(…) os indivíduos ou grupos têm ao seu dispor um meio mais fácil e menos dispendioso para trocarem informações numa base local, nacional ou global”36.
Neste sentido, a importância das redes sociais para a cidadania traduz-se essencialmente no seu carácter agregador e mobilizador em torno de uma determinada causa ou movimento com um potencial de difusão mediática e a uma temporalidade vertiginosa inigualável por qualquer outro meio de comunicação na nossa era.
Expressão desse carácter mobilizador em larga escala são acontecimentos como os que ocorreram na Tunísia e no Egipto no início de 2011, designados pelos analistas políticos mais optimistas como “Primavera Árabe”, em que as redes sociais foram utilizadas como instrumento de consciencialização política da população, ajudando à queda dos chefes de Estado de ambos os países.
Devido à escassa distância histórica que nos separa dos acontecimentos em questão, subscrevemos com algum cepticismo a tese quase de imediato difundida de que foram as redes sociais as principais responsáveis pela queda de Xxx Xxx na Tunísia e de Xxxxx Xxxxxxx no Egipto e de que “Primavera Árabe” foi a primeira revolução feita através das redes sociais, salientando, no entanto, a capital importância que estas tiveram no desenrolar dos acontecimentos37, precisamente através das características que já antes enunciamos e que, em nosso entender, constituem os marcos de referência principais do que se pode entender por cidadania digital: a capacidade de mobilização para a participação cívica e política através da interacção entre os seus utilizadores.
3.2.4. Cidadania digital e o futuro
Para além da “Primavera Árabe”, outros testemunhos dão conta do potencial mobilizador que as redes sociais detêm como motor de participação cívica: o Movimento 15M – Demoracia Real Ya, ocorrido em 2011, em Espanha ou Occupy Wall Street, nos EUA, também no mesmo ano, apenas enumerando os principais.
36 Xxxxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 160.
37 Sobre este assunto veja-se o estudo de Xxxxxx X. Xxxxxx et al., Open Closed Regimes – What Was the Role of Social Media During the Arab Spring? do Project on Information Technology & Political Islam publicado em 2012.
Carecemos ainda do distanciamento crítico suficiente para confirmar ou infirmar historicamente a consistência temporal destas manifestações de cidadania que, pela primeira vez, tiveram a sua origem na Internet. Constituirão elas uma nova era na história ou sucumbirão à lei do veloz olvido ditado pela velocidade do mediatismo vertiginoso que é a palavra de ordem consagrada no nosso século?
Para já, é lícito e prudente apenas afirmar o seguinte: as redes sociais, tendo a Internet como suporte físico, possuem um reservatório de potencialidades ainda por explorar na senda da participação cívica. Para além das redes sociais propriamente ditas, fóruns digitais, blogues, petições, entre outros são ferramentas online que permitem a criação de um espaço de debate público capaz de promover cidadãos melhor informados e com maior consciência cívica. Local e globalmente.
Tal como a própria cidadania, a criação desse espaço público digital é uma tarefa em construção permanente. Os desafios globais que enfrentamos, cuja repercussão local também se faz sentir, assim o exigem. Precisamos, igualmente, de cidadãos cada vez mais conscientes e esclarecidos face à complexidade do nosso mundo, que possam erguer a sua voz e que tenham uma palavra a dizer nas questões que norteiam o nosso tempo.
Dito isto, é tempo de iniciarmos a análise da relação entre cidadania e ambiente.
Capítulo 4 – Cidadania ecológica: um conceito insuficiente perante os desafios da crise ambiental
4.1. A busca de novos horizontes teóricos para a cidadania em face da crise do ambiente
A busca de novos enfoques teóricos no campo da cidadania para lá das suas águas territoriais tradicionais prende-se, sobretudo, com a dimensão que os desafios suscitados pela crise global do ambiente ganharam nas últimas três décadas no espectro social e político.
Na medida em que os problemas ambientais ocupam actualmente um lugar de destaque na agenda política internacional, a grande tarefa da teoria política contemporânea no que concerne à cidadania é tentar erigir uma formulação teórica que tenha em conta as problemáticas de ambiente e sustentabilidade do nosso tempo.
Segundo Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx, um dos mais destacados nomes no panorama da cidadania ambiental,
“(…) a dupla condição do ambiente como um bem político e como uma potencial ameaça que ultrapassa as fronteiras do Estado-nação tornam necessários novos espaços teóricos que justifiquem a legitimidade da conservação da natureza e da prevenção de catástrofes ecológicas”1.
A necessidade de encontrar novos espaços teóricos para a cidadania não advém apenas dos desafios gerados pela crise ambiental. Como salienta Saíz no mesmo artigo2, e como já tivemos oportunidade de observar no capítulo anterior, a cidadania converteu- se, desde o ressurgimento do seu interesse académico na década de 1990, num conceito fundamental da teoria política contemporânea e num eixo de articulação da vida democrática devido às alterações que estão a ser impostas ao Estado-nação nas sociedades ocidentais pelos efeitos da globalização que têm ocorrido primordialmente nos últimos vinte anos.
1 “(…) esta doble cara de lo medioambiental como bien público a defender y como amenaza potencial más allá del Estado-nación, hacen necesarios espacios teóricos nuevos que justifiquen la legitimidad tanto de la conservación de la naturaleza como de la prevención ante las consecuencias de las catástrofes ecológicas”. Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx, “Ciudadania Ecologica: una noción subversiva dentro de una política global” in M. Alcantara (ed.): Política en América Latina. I Congreso Americano de Ciencia Política, p.
272. O itálico é do autor.
2 Saíz, op. cit., p. 275.
Não obstante, a formulação de um conceito de cidadania que albergue no seu seio uma preocupação com questões de foro ambiental exige uma ampliação dos seus limites teóricos, seja esta ampliação efectuada numa perspectiva antropocêntrica ou ecocêntrica, a questões outrora impensáveis neste âmbito como a questão da responsabilidade para com as gerações vindouras e a natureza como possível alvo de legislação ética e jurídica, tema que teremos oportunidade de tratar no capítulo 6 a propósito da possibilidade ou não da celebração de um contrato estritamente natural e de cariz ecocêntrico.
Apesar de a formulação de um conceito de cidadania ambiental ou ecológica ser ainda incipiente no que diz respeito ao seu desenvolvimento teórico e não granjear um grau de consenso unânime dentro da comunidade intelectual3, o seu eixo de reflexão presente e futuro, segundo Xxxx, deve posicionar-se essencialmente ante a possibilidade
“(…) de encontrar um ponto de equilíbrio entre a reivindicação dos direitos ambientais e a justificação da ideia de responsabilidade colectiva”4.
É, pois, na tentativa de estabelecer esta articulação entre direitos e deveres ambientais e/ou ecológicos que têm trabalhado alguns autores nas últimas duas décadas.
Por uma questão metodológica optámos por dividi-los em três categorias diferentes:
1) Os que negam de todo a possibilidade de alargar o conceito de cidadania às questões ambientais como Engin F. Isin e Xxxxxxxx X. Wood5;
2) Os que, como Xxxx Xxx Xxxxxxxxxxx ou Xxxxxx Xxxxx, apontam a cidadania ambiental como uma quarta dimensão da cidadania no seguimento da formulação clássica de T.H. Xxxxxxxx, dando prioridade, por conseguinte, à esfera dos direitos em detrimento da esfera dos deveres.
3 Saíz, op. cit., p. 281.
4 “(…) uno de los ejes fundamentales de futuro de la reflexión del pensamiento político verde en esta materia sea la de conseguir un punto de equilibrio entre la reivindicación de los derechos medioambientales y la justificación de la idea de responsabilidad colectiva”. Xxxx, op. cit., p. 281.
5 Veja-se a secção dedicada à cidadania ecológica na obra conjunta dos dois autores, Citizenship and Identity, pp. 113-118, onde declaram como conceptualmente inviável a possibilidade de articular as questões ecológicas e as questões cívicas.
Xxx Xxxxxxxxxxx0, seguindo criteriosamente a teorização efectuada por Xxxxxxxx, facto que lhe valeu algumas censuras7, adiciona a dimensão ambiental da cidadania às três já estabelecidas pelo autor de “Citizenship and Social Class”8, inserindo-a numa lógica de inclusão crescente que, segundo ele, representa a história da cidadania 9.
A perspectiva de Xxxxx00 subscreve por inteiro a de Xxx Xxxxxxxxxxx. Este autor argumenta que, na contemporaneidade e no seguimento da teoria elaborada por Xxxxxxxx, estamos a assistir à emergência de uma quarta dimensão da cidadania, a cidadania ambiental11;
3) Os que subscrevem uma noção de cidadania ecológica firmemente arreigada no primado dos deveres na relação entre estes e a esfera dos direitos, como é o caso de Xxxx Xxxxx, de Xxxxx Xxxxxxxxx, do já citado Xxxxxxxx Xxxx e, principalmente, do cientista político britânico contemporâneo, Xxxxxx Xxxxxx00. Este último por ser o autor com o mais original e mais importante trabalho nesta área até ao momento merece ser alvo de análise mais detalhada numa outra secção.
Xxxxx00 posiciona-se contra o conceito de cidadania ambiental, no qual se incluem categorias como ética empresarial ou responsabilidade social, dado que este, além de dar ao Estado uma maior preponderância no desempenho das tarefas de sustentabilidade, é insuficiente para o desempenho cívico em matéria ambiental14.
6 No seu artigo “Towards a global ecological citizen” in Xxx Xxxxxxxxxxx (Ed.), The Condition of Citizenship.
7 Saíz denota a fragilidade teórica das elaborações que partem de Marshall para a sua formulação precisamente pela excessiva dependência que revelam daquele que é considerado o texto fundador da cidadania contemporânea. Cf. Xxxx, op. cit., p. 287.
8 Xxx Xxxxxxxxxxx, op. cit., p. 142.
9 Xxx Xxxxxxxxxxx, op. cit., p. 144.
10 Num artigo intitulado “Citizenship in a Green World: Global Commons and Human Stewardship” em X.Xxxxxx and X. Xxxx, Citizenship Today: The Contemporary Relevance of T.H. Xxxxxxxx.
11 Xxxxx, op. cit., p. 212.
12 Alem dos autores citados devem-se acrescentar outros dois que primam também por uma noção de cidadania ecológica centrada nos deveres: Xxxx X. Xxxxx, autor Manual de Ecologismo – Rumo à Cidadania Ecológica (1998), Xxxxxxx Xxxx, autor do artigo “Green Citizenship” e Xxxxx Xxxxxxx autor de “The Virtues of Environmental Citizenship”.
13 Em “Resistence is Fertile: From Environmental to Sustainability Citizenship” in Dobson and Xxxx (Eds.), Environmental Citizenship: getting from here to there.
14 Xxxxx, op. cit., p. 22.
O conceito de cidadania ambiental torna-se redutor na medida em que não aborda o tema de forma ampla sob as suas dimensões políticas e sociais, nem se foca numa alteração do padrão comportamental dos cidadãos15.
Xxxxx estabelece uma distinção entre cidadania ambiental e cidadania sustentável. A primeira reduz a actividade cívica a acções ambientais ou a acções que têm efeitos benéficos sobre o ambiente enquanto a cidadania sustentável, integrando as influências de uma visão mais profunda e ecológica, foca-se nas próprias estruturas – políticas, sociais, culturais e económicas – que produzem a degradação ambiental, bem como integra questões de justiça social e de direitos humanos16.
Nesta perspectiva, a cidadania sustentável cunhada por Xxxxx ultrapassa a concepção de cidadania ambiental, na medida em que, segundo o mesmo autor, mantém essa amplitude conceptual, ultrapassando a mera preocupação com a preservação dos recursos ambientais17.
Xxxxxxxxx00, por seu turno, mantém uma argumentação próxima da de Xxxxx e de autores como Xxxxxx e Xxxx na enfâse colocada nos deveres relativamente à construção de um conceito de cidadania ecológica, no entanto a sua teorização denota também a influência de autores do campo da ética ambiental como Xxxx Xxxxxxx ou Xxxx Xxxxx.
Divergindo de uma perspectiva menos antropocêntrica para uma perspectiva mais ecocêntrica, Xxxxxxxxx argumenta que os seres humanos têm que assumir a sua responsabilidade não só perante as gerações futuras, mas também perante as outras espécies no âmbito do que o autor designa como tutoria ambiental (environmental stewardship)19.
Contrariamente à cidadania ambiental, que se queda por uma redutora enfâse na reivindicação de direitos ambientais, segundo Xxxxxxxxx, a cidadania ecológica define-se pela sua tentativa de ampliar o discurso de bem-estar social ao reconhecimento de princípios relacionados com direitos ambientais e integrá-los no direito, na cultura e na política, e aqui numa concepção próxima da ecologia profunda de Xxxx Xxxxx, bem
15 Xxxxx, op. cit., p. 23.
16 Xxxxx, op. cit., p. 24.
17 Xxxxx, op. cit., p. 24.
18 No artigo “Ecological Citizens and Ecological Guided Democracy” in B. Xxxxxxx and X. xx Xxxx (Eds.), Democracy and Green Political Thought.
19 Xxxxxxxxx, op. cit., p. 156.
como procura igualmente fazer reconhecer os direitos dos não-cidadãos, isto é, das gerações futuras e das espécies não humanas nos processos de tomada de decisão política20.
Para que seja um processo bem-sucedido, a cidadania ecológica depende da revitalização da sociedade civil através da transformação activa da vida privada, mediante a criação de uma consciência verde e de uma influência democrática na esfera económica21.
Passemos agora àquela que é seguramente, até à data, a mais fecunda contribuição para uma concepção ecológica da cidadania nas disciplinas de teoria e de ciência política. A que Xxxxxx Xxxxxx tem procurado desenvolver ao longo da última década.
20 Xxxxxxxxx, op. cit., p. 159.
21 Xxxxxxxxx, op. cit., p. 159.
4.2. A cidadania ecológica segundo Xxxxxx Xxxxxx
Embora possa ser enquadrado até um certo ponto na mesma linha de pensamento de autores como Xxxxx ou Xxxxxxxxx apresentados na secção anterior, o principal mérito de Xxxxxx Xxxxxx é o de ter sido o primeiro a tentar conferir um efectivo estatuto epistemológico ao conceito de cidadania ecológica22.
É também dele a primeira obra de fundo inteiramente dedicada ao tema, Citizenship and the Environment, publicada em 2003, a qual, conjuntamente com o artigo “Ecological Citizenship: A disruptive influence?”23, constituem a exposição mais interessante e detalhada que Xxxxxx dedica ao conceito e os quais analisaremos ao longo das próximas páginas.
Antes disso, é necessário, porém, aludir à distinção conceptual entre cidadania ambiental e cidadania ecológica à luz da forma como Dobson diferencia ambientalismo e ecologismo numa obra anterior, Green Political Thought (1992).
Tal distinção torna-se importante neste momento não só para compreendermos e nos posicionarmos face à concepção de cidadania ecológica de Xxxxxx, como também no tocante à nossa argumentação sobre o conceito de cidadania ambiental nos capítulos subsequentes da nossa investigação.
Assim, em Green Political Thought, e numa distinção que se tornou já clássica no âmbito da literatura sobre política ecológica, Xxxxxx diferencia o ambientalismo e o ecologismo da seguinte forma:
“(…) o ambientalismo defende uma abordagem de gestão face aos problemas ambientais apoiado na crença de que eles podem ser resolvidos sem alterações fundamentais nos valores presentes ou nos padrões de produção e consumo (…)”24.
Ao passo que o ecologismo,
“(…) afirma que uma existência realizada e sustentável pressupõe alterações radicais no nosso relacionamento com o mundo natural não humano e no nosso modo de vida social e político”25.
22 Xxxx, op. cit., p. 287.
23 Artigo escrito por Xxxxxx em 2000 e publicado em C. Xxxxxxx e S. Xxxxxx (Eds.), Politics at the Edge: the PSA yearbook 1999.
24 “(...) environmentalism argues for a managerial approach to environmental problems, secure in the belief that they can be solved without fundamental changes in present values or patterns of production and consumption (…)”. Xxxxxx, Green Political Thought p. 1.
Com esta distinção, Xxxxxx recusa a ideia de que o ambientalismo possa ser elencado na mesma árvore conceptual que o ecologismo, sendo incorrecto considerar-se o primeiro apenas como uma manifestação menos radical que o segundo no que diz respeito à preocupação e cuidado com o mundo natural26.
Principalmente, o que separa ambas as categorias é o facto de o ambientalismo não poder ser considerado de modo algum uma ideologia, dado não reunir as três condições essenciais enumeradas por Xxxxxx para se poder designar como tal.
São elas:
1) A necessidade de providenciar uma descrição analítica de um determinado modelo de sociedade;
2) A necessidade de prescrever um determinado modelo de sociedade em que a condição humana possa reproduzir, replicar e aplicar a ideia desse mesmo modelo;
3) A necessidade de estabelecer um programa de acção política ou, pelo menos, a necessidade de determinar rumos que permitam atingir o modelo de sociedade proposto27.
Nesse sentido, Xxxxxx argumenta que o ecologismo possui características passíveis de se considerar uma ideologia política, o mesmo não acontecendo com o ambientalismo28.
É em torno desta distinção que Xxxxxx vai fazer valer a sua argumentação sobre o conceito de cidadania ecológica. A tensão conceptual existente entre ambientalismo, no contexto da democracia liberal, e ecologismo, no sentido em que pressupõe uma transformação radical dos paradigmas social e político incompatível em larga medida com os princípios da democracia liberal, avessa a mudanças radicais, transporta- se da mesma forma para o âmbito da cidadania, em que, não obstante algumas diferenças, imperam as mesmas coordenadas de pensamento e de argumentação.
25 “(…) while ecologism holds that a sustainable and fulfilling existence presupposes radical changes in our relationship with the non-human natural world and in our mode of social and political life”. Xxxxxx, op. cit., p. 1.
26 Xxxxxx, op. cit., p. 2.
27 Xxxxxx, op. cit., p. 2.
28 Xxxxxx, op. cit., p. 3.
O ponto de partida é o que Xxxxxx enuncia em duas questões logo no início do artigo “Ecological Citizenship: A disruptive influence?”:
1) A política ecológica, no sentido da delimitação conceptual traçada acima, pode ser articulada em termos de cidadania?
2) Como é que a cidadania ecológica influencia a própria ideia de cidadania?29
Em primeiro lugar, Xxxxxx defende que é possível articular a ecologia enquanto prática política face à esfera cívica, no entanto alerta para o facto de a inclusão da primeira alterar significativamente a arquitectónica conceptual da segunda30, nomeadamente nas principais dicotomias que lhe são inerentes: público/privado, direitos/deveres, activo/passivo.
A estas, como iremos ver, o autor irá acrescentar como fundamental para a sua concepção de cidadania ecológica a de territorialização/desterritorialização31. Isto porque a cidadania ecológica, rompendo com as fronteiras do cânone conceptual da esfera da modernidade, insere-se de pleno direito nos debates sobre a noção cidadania cosmopolita iniciados, também eles, na década de 1990 por autores como Xxxxx Xxxx, Xxxxxxx Xxxx ou Xxxxxx Xxxxxxxxx00.
Contrariamente aos autores citados, cujo cosmopolitismo postula a comunidade humana como pressuposto operativo para o desenvolvimento da sua concepção, a perspectiva de Xxxxxx aponta num sentido diferente.
Segundo ele, uma noção de cidadania ecológica, devido às clivagens sociais e económicas produzidas pelos efeitos da globalização, deve privilegiar o seu enfoque em comunidades de obrigação, ou “espaços de obrigação”33, “produzidos por actos de globalização”34, mais do que propriamente primar pela ampliação de uma arquitectónica
29 Dobson, “Ecological Citizenship: A disruptive influence?”, p. 1
30 Dobson, op. cit., p. 2.
31 Xxxxxx, op. cit., p. 3. Ao referir-se a estes dois conceitos, Xxxxxx não os interpreta no sentido em que Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxxx os interpretaram em Qu’est-ce que la philosophie (1991).
32 Remetemos aqui uma vez mais para a obra de Xxxxxx Xxxxxxx citada no capítulo anterior, pp. 49-67.
33 Dobson, Citizenship and the Environment, p. 22.
34 Xxxxxx, op. cit., p. 22.
institucional internacional ou transnacional que permita alargar as fronteiras do espaço cívico e político como sustenta, por exemplo, Xxxxxx Xxxxxxxxx00.
Como afirma Xxxxxx,
“Deveríamos reconhecer que estas são, primeiro, comunidades de injustiça e só depois comunidades de diálogo forçado e que a solução é, portanto, mais justiça e também mais democracia”36.
Neste sentido, a posição de Xxxxxx demarca-se da posição dos teóricos da cidadania cosmopolita, direccionando-se para o que ele designa como pós-cosmopolitismo37. Primeiro porque considera o processo de globalização um espaço politicamente assimétrico38, em virtude do desequilíbrio económico entre países industrializados do hemisfério norte e os países em desenvolvimento do hemisfério sul.
Daí a natureza das obrigações, por fruto da herança histórica das últimas décadas e também do passado colonial dos países europeus, se efectuar principalmente na direcção de norte para sul39. É lá que estão maioritariamente as comunidades de injustiça a que Dobson alude.
Segundo porque, e aqui apartando-se do cosmopolitismo ético e da ideia da humanidade como um todo por ele evocado, o pós-cosmopolitismo do nosso autor,
“(…) oferece uma descrição densamente materialista dos vínculos criados não pela actividade mental, mas pela produção e reprodução material da vida quotidiana num mundo globalizado desigual e assimétrico”40.
A perspectiva da cidadania ecológica e pós-cosmopolita de Xxxxxx afasta-se também da concepção clássica liberal e republicana da cidadania tradicional em vários aspectos.
Comecemos pela questão contractual inerente às duas tradições. Sustentando que tanto uma como outra, liberal e republicana, possuem uma abordagem contratual da
35 Linklater, The Transformation of Political Community: Ethical Foundations of the Post-Westphalian Era, p. 7.
36 “We should recognize that these are communities of injustice first, and only of coerced dialogue second; that the remedy is therefore more justice as well as more democracy”. Xxxxxx, op. cit., p. 22.
37 Xxxxxx, op. cit., p. 31.
38 Xxxxxx, op. cit., p. 30.
39 Xxxxxx, op. cit., p. 50.
40 “Post-cosmopolitanism, in contrast, offers a thickly material account of the ties that bind, created not by mental activity, but by the material production and reproduction of daily life in an equal and asymmetrically globalizing world”. Xxxxxx, op. cit. p. 30. O bold é nosso.
relação entre cidadão e Estado41, o conceito de cidadania ecológica proposto por este autor é não-contractual, dado que, como já ficou patente acima relativamente à questão das comunidades de obrigação suscitadas por um processo de globalização que é assimétrico, a natureza das relações por ela estabelecida pauta-se por um carácter de unilateralidade e de não-reciprocidade.
Isto é corroborado inteiramente nesta passagem de Citizenship and the Environment, onde Xxxxxx afirma claramente que pretende estabelecer:
“(…) a possibilidade de obrigações unilaterais e não-recíprocas de cidadania e afirmar que este tipo de obrigação é uma característica definitiva de uma ‘cidadania pós-cosmopolita’ e distingue-se também evidentemente da cidadania liberal e da reciprocidade da cidadania republicana cívica”42.
Esta concepção desloca o território da cidadania em dois sentidos. Por um lado, em sentido geográfico propriamente dito, dado Xxxxxx inserir a sua noção de pós- cosmopolitismo num quadro de referência de desterritorialização em contraposição às noções liberal, republicana ou cosmopolita que fazem do conceito de território um conceito operativo no plano conceptual43.
Por outro lado, porque, de acordo com Xxxxxx, a esfera pública por si só não esgota o espaço da cidadania. A sua dimensão ecológica invade a esfera privada e politiza-a. Nela, segundo o autor, reside também um espaço de exercício de poder com consequências ecológicas importantes44.
Não se trata, assegura Xxxxxx,
“(…) de politizar a totalidade da esfera privada de forma invasiva, mas sim de reconhecer que algumas das coisas que nela fazemos possuem características cívicas”45.
Para Xxxxxx, no conceito de cidadania ecológica, não faz sentido uma distinção entre esfera pública e esfera privada porque esta, contrariamente à noção que vem desde a Grécia clássica de que o espaço público é por essência o espaço cívico privilegiado, é
41 Xxxxxx, op. cit., p. 40.
42 “I want to suggest the possibility of unreciprocated and unilateral citizenship obligations and to claim that this type of obligation is both definitive of ‘post-cosmopolitan’ citizenship, as well as that which distinguishes it most obviously from liberal citizenship and from the reciprocity of civic republican citizenship”. Xxxxxx, op. cit., p. 47. O itálico é do autor.
43 Xxxxxx, op. cit., p. 74.
44 Xxxxxx, op. cit., p. 53.
45 “This is not to politicize the whole of the private sphere in an invasive way, but to recognize that some of the things we do in the private sphere have citizenly characteristics”. Xxxxxx, op. cit., p. 54.
também um espaço em que a cidadania é praticada46. Nesse sentido, o autor recupera para actualidade o sentido etimológico que está na base do étimo ecologia, a dimensão do oikos (lar) grego.
Regressemos agora à dimensão puramente geográfica do espaço da cidadania ecológica. Vimos já que ela é não recíproca, assente numa esfera de obrigações unilaterais e que a esfera privada é uma das suas condições estruturantes. Relativamente ao seu espaço político, Xxxxxx recusa a noção de território associada à tradição liberal e republicana (neste caso, o Estado-nação), bem como o espaço consagrado a uma dimensão transnacional ou cosmopolita (por exemplo, a União Europeia)47.
Isto porque, fundando-se a noção de cidadania ecológica pós-cosmopolita numa descrição material das relações cívicas48, ela não surge como algo dado pelas fronteiras políticas de um determinado território, sendo antes produzida através da relação material entre o indivíduo e o ambiente49.
Como afirma Xxxxxx,
“Esta relação faz emergir uma pegada ecológica que, por sua vez, gera relações com aqueles que sofrem os seus impactos”50.
Assim, o espaço privilegiado do exercício cívico ecológico, não-territorial, define-se pela extensão da pegada ecológica51 de cada indivíduo. É este o critério espacial que preside à teoria de Xxxxxx00: um indicador de sustentabilidade ambiental transformado em espaço político e critério para o desempenho cívico.
Por essência uma concepção de cidadania activa (opondo-se à cidadania passiva herdada da tradição liberal), assente mais no exercício de responsabilidades do que na reivindicação de direitos (à semelhança da tradição republicana), a virtude cardeal de
46 Dobson, “Ecological Citizenship: A disruptive influence?”, p. 10.
47 Para Dobson, mesmo uma noção de cidadania que seja transnacional possui ainda as características de territorialidade incompatíveis com a dimensão pós-cosmopolita que reclama. Cf. Citizenship and the Environment, p. 74.
48 Cf. nota 40.
49 Xxxxxx, op. cit., p. 106.
50 “This relationship gives rise to an ecological footprint which gives rise, in turn, to relationships with those on whom it impacts”. Xxxxxx, op. cit., p. 106.
51 Termo cunhado pelo ecologista canadiano, Xxxxxxx Xxxx, em 1992 e que calcula a quantidade de terra e água que seriam necessárias para o desenvolvimento das gerações actuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos, gastos por uma determinada população.
52 Xxxxxx, op. cit., p. 118.
uma concepção da cidadania ecológica é a obrigação de, através da sua acção quotidiana, o indivíduo contribuir para uma pegada ecológica sustentável53.
Em nosso entender, mais do que articular verdadeiramente uma noção exequível de cidadania no quadro de uma teoria política no contexto de regimes políticos democráticos, a formulação de Xxxxxx afigura-se-nos, antes de mais e acima de tudo, como uma espécie de reconstrução do imperativo categórico kantiano que Xxxx Xxxxx, em O Princípio de Responsabilidade, aplicou eticamente às gerações futuras.
Encontramos alguns vestígios desse imperativo, por exemplo, nesta passagem de
Citizenship and the Enviroment:
“(…) a obrigação correspondente [da cidadania ecológica] é assegurar que tais pegadas [ecológicas] não comprometam ou impeçam a oportunidade das outras pessoas aspirarem a uma vida digna, tanto no presente como no futuro”54.
Ou traduzido de outra forma, eis o que em nosso entender significa a concepção de cidadania ecológica preconizada por Xxxxxx: age de tal modo que o teu comportamento quotidiano seja universal e ecologicamente sustentável e não interfira, presente ou futuramente, com as possibilidades de desenvolvimento do espaço ecológico de outrem.
A fonte das obrigações que a cidadania ecológica afirma existirem provém não da reciprocidade ou da vantagem mútua que existe na relação entre Estado e cidadão, mas sim de um sentido de justiça não recíproco ou de compaixão. Xxxxxx defende, por isso, que a cidadania ecológica é uma cidadania de estranhos55.
Nessa medida, mais do que uma concepção política, o conceito de cidadania ecológica encontra maiores possibilidades de desenvolvimento num plano moral, até porque o seu princípio fundador é a justiça56, contudo não um princípio universal em virtude do seu estatuto de não reciprocidade fruto das assimetrias económicas e sociais globais.
53 Xxxxxx, op. cit., p. 119.
54 “(…) and the corresponding obligation is to ensure that such footprints do not compromise or foreclose other’s opportunities, both in the present and the future, for living meaningful lives”. Xxxxxx, op. cit., p. 127.
55 Xxxxxx, op. cit., p. 106.
56 Xxxxxx, op. cit., p. 123.
Visando uma justa distribuição do espaço ecológico57, o carácter das obrigações propostas por Xxxxxx assume neste ponto, algo surpreendentemente, uma espécie de validade ou de critério temporário no desempenho cívico: a partir do momento em que cessarem os desequilíbrios distributivos do espaço ecológico, uma vez corrigidas as assimetrias, cessam igualmente as obrigações inerentes à cidadania ecológica58.
Outro aspecto que nos deve chamar à atenção é o do tipo de cidadania estabelecida na dimensão ecológica ser de uma dimensão horizontal porque rejeita a hierarquia temporal do presente sobre o futuro. No fundo, estamos aqui perante uma ideia retomada de Xxxx Xxxxx no que toca ao alargamento do domínio ético à natureza.
Um pouco à semelhança de Xxxxx no domínio ético, Xxxxxx, em termos cívicos, propõe a sua extensão, neste ponto acertadamente não recíproca, às gerações futuras, demarcando-se, no entanto, de uma possível extensão ao mundo natural.
Embora à luz da distinção feita por Xxxxxx a que aludimos no início desta secção entre ambientalismo e ecologismo nos parecesse verosímil e coerente que o autor militasse em prol de uma perspectiva exclusivamente ecocêntrica, ele situa, correctamente a nosso ver, a sua noção de cidadania ecológica dentro dos limites do antropocentrismo59, não incorrendo no erro de outros autores que reivindicam um ecocentrismo militante.
Isto porque sendo a justiça o conceito forte da teoria da cidadania de Xxxxxx, a possibilidade de a aplicar a seres naturais não humanos esbarra em evidentes dificuldades operativas.
Por esse motivo, e principalmente por não ser inteiramente fiel à delimitação teórica entre ambientalismo e ecologismo que estabeleceu e que mantém até certo ponto na sua obra maior dedicada à cidadania ecológica60, não podemos deixar de evocar a forma como Xxxxxx parece olvidar neste campo algumas das implicações teóricas da distinção que fez.
De forma a poder compatibilizar alguns aspectos da sua formulação de cidadania ecológica, em Citizenship and the Environment, após destrinçar as fronteiras entre
57 Xxxxxx, op. cit., p. 132.
58 Xxxxxx, op. cit., p. 120.
59 Xxxxxx, op. cit., p. 111.
60 Xxxxxx, op. cit., p. 89.
ambientalismo e ecologismo, afirma que existe uma certa complementaridade entre a noção de cidadania ambiental e a noção de cidadania ecológica do ponto de vista político61, dado que ambas buscam a concretização do mesmo objectivo, ou seja, uma sociedade sustentável.
Neste ponto, cremos que Xxxxxx acaba por se enredar no labirinto da própria distinção por ele efectuada, sem conseguir quer sob o plano intelectual quer sob o ponto de vista de uma práxis cívica, diferenciar claramente os limites de ambas as acepções ambiental e ecológica de cidadania, contribuindo assim para lançar alguma ambiguidade quanto à definição e contextualização das mesmas como o fez em Green Political Thought.
Teremos oportunidade de observar melhor e de tornar mais claro até que ponto pode ir esta distinção entre ambientalismo e ecologismo em termos de prática política levada ao seu extremo mais radical quando abordarmos o exercício do ecologismo sob o prisma da ecologia profunda.
Vejamos agora, desde o ponto de vista mais lato da crise global do ambiente, alguns outros aspectos em que a argumentação de Xxxxxx revela algumas dificuldades e insuficiências.
61 Xxxxxx, op. cit., p. 89.
4.3. A cidadania ecológica à luz da crise global do ambiente: algumas das fragilidades da concepção de Xxxxxx
Na secção anterior explicámos porque é que mais do que uma teoria da cidadania, a noção de cidadania ecológica construída por Xxxxxx Xxxxxx afigura-se-nos, sobretudo, mais articulável no campo da ética do que no quadro do espaço político: porque a sua principal virtude é a justiça não-recíproca entre comunidades de obrigação, derivando disto a impossibilidade de constituir a noção de cidadania ecológica de Xxxxxx num princípio universal de cidadania.
Pretendemos agora explicitar outros pontos nos quais detectamos também algumas lacunas quanto à sua exequibilidade.
Não obstante os seus méritos, principalmente por ter sido Xxxxxx o primeiro autor a ousar aventurar-se de forma sistemática num território quase intelectualmente virgem e que, sem sombra de dúvida, oferece sérios obstáculos conceptuais, estamos em crer que a sua abordagem ao problema peca por uma perspectiva assaz redutora do mesmo.
Embora tendo em conta certos limites epistemológicos e disciplinares aos quais não podemos ficar insensíveis, uma vez que a argumentação de Xxxxxx move-se, principalmente, apenas no eixo da ciência política, não podemos também deixar de mencionar que dada a complexidade da crise global do ambiente, esta exige um maior ângulo de enfoque do que aquele de que parte o nosso autor para a abordagem do problema da cidadania ecológica.
Eis os aspectos nos quais consideramos que a perspectiva de Xxxxxx se revela redutora e insuficiente:
1) Como já vimos, Xxxxxx faz da pegada ecológica o espaço territorial por excelência onde se desenrola a sua concepção de cidadania. Além de obedecer a um critério puramente quantitativo em que as relações cívicas são matematicamente calculáveis e mensuráveis, fruto dos modos de produção e reprodução material das condições de vida quotidiana62, estamos em crer que fazer do espaço da cidadania uma mera soma de inputs e outputs assente somente nos indicadores da pegada ecológica (área de energia fóssil, terra arável, pastagens, floresta e área urbanizada) é um critério demasiado arbitrário, com base num utilitarismo cerrado e simplista, que desvirtua por completo a
62 Xxxxxx, op. cit., p. 119.
rica complexidade que constitui a relação entre o exercício cívico e o espaço político onde ele decorre e transforma o cidadão em mero produtor ou reprodutor de recursos naturais numa narrativa materialista quotidiana.
Um espaço de cidadania não pode, de modo algum, estruturar-se apenas com base numa visão predominantemente economicista de produção e consumo de recursos naturais.
Por conseguinte, o que Xxxxxx designa como espaço político da cidadania, e do qual faz a sua condição de possibilidade territorial da cidadania ecológica, constitui apenas o seu espaço económico, sendo assim insuficiente para constituir um critério válido que presida à constituição de uma teoria da cidadania;
2) Essa mesma visão redutora que Xxxxxx tem do espaço político da cidadania amplia- se também à própria dinâmica das sociedades democráticas contemporâneas com a diversidade da sua constelação de actores.
Ao colocar toda a ênfase na questão dos deveres, relegando a questão dos direitos para segundo plano, e, sobretudo, ao fazer da sua noção de cidadania ecológica uma noção não-contractual distinta das tradições liberal e republicana, Xxxxxx parece ignorar a perspectiva dialéctica que está na base do exercício da cidadania na dinâmica das sociedades democráticas, isto é, a relação entre o cidadão e o Estado.
De acordo com Xxxxxx, uma concepção de cidadania ecológica nunca poderá partir da formulação clássica de Xxxxxxxx porque a teoria deste pressupõe mais uma cidadania assente em direitos do que em deveres e a posição da cidadania ecológica dá primazia aos segundos em detrimento dos primeiros63.
Assim sendo, e tendo em conta a complexidade que representam os inúmeros desafios suscitados pela crise ambiental contemporânea no seu todo e num plano global, a concepção de cidadania ecológica poderá representar uma resposta válida aos mesmos?
Aqui, mais uma vez, temos de acentuar o registo redutor com que a perspectiva de Xxxxxx afronta o problema e expressar, por isso, um inevitável cepticismo.
Uma teoria da cidadania que incida o seu foco sobre questões ambientais de uma forma lúcida e realista, e que não ignore a complexidade global das mesmas, não se pode
63 Dobson, “Ecological Citizenship: A disruptive influence?”, p. 3.
eximir a uma perspectiva contratual que contemple a relação entre o indivíduo e as instituições políticas.
Essencialmente por duas razões: primeiro porque ao fazê-lo ignora, quanto a nós, uma das características inerentes à história da cidadania moderna que é o seu carácter dialéctico entre cidadãos e instituições políticas. A dinâmica da história da cidadania nos últimos três séculos, e da qual somos herdeiros, desenrolou-se sempre por força de uma relação dos indivíduos com as instituições políticas numa lógica de conflito.
Ao prescindir de um enfoque da relação entre o cidadão e o Estado no delinear da sua noção de cidadania ecológica, e ao incidir primordialmente na questão dos deveres e na forma como esta se articula na esfera privada, Xxxxxx não só está a passar ao largo da complexidade do problema (como construir uma noção de cidadania ecológica no quadro de uma sociedade democrática na óptica da complexidade da crise ambiental?), assim como ostenta um ângulo de visão extremamente reduzido face ao todo que representa o panorama que nos apresenta a crise ambiental contemporânea.
Dado que alguns dos maiores desafios da crise ambiental só podem ser problematizados e solucionados com base na intervenção do Estado em conjunto com os outros actores da sociedade civil presentes na esfera democrática, a vertente dos direitos é, por essa razão, tão importante e passível de consideração como a dos deveres na constituição de uma teoria de cidadania ecológica.
O enfoque privilegiado dado por Xxxxxx à questão dos deveres no quadro geral da cidadania ecológica obscurece algo o papel que o Estado tem de desempenhar enquanto executor de políticas públicas no quadro da crise ambiental.
Sem negar a evidente importância que desempenha a esfera dos deveres numa concepção de cidadania ecológica, e nesse ponto estamos até certo ponto de acordo com Xxxxxx quanto ao papel que a esfera privada pode e deve desempenhar, cremos que ela se torna incompleta sem uma articulação com a esfera dos direitos e, consequentemente, com a ausência de uma posição face às instituições políticas existentes.
Em fase da crise ambiental global, no âmbito das clivagens económicas e sociais que dela decorrem a nível planetário e tendo em conta o papel que cabe às instituições políticas locais, nacionais e transnacionais na sua correcção, na relação entre cidadania e
ambiente, a reivindicação de direitos é um imperativo que deve coexistir com a esfera dos deveres.
Dito isto, e voltamos a salientá-lo, a concepção de Xxxxxx, ainda que proveniente das fronteiras delimitadas da ciência política, apresenta uma patente falta de amplitude de perspectiva no que diz respeito à complexidade do funcionamento das sociedades democráticas e, sobretudo, aos desafios complexos da crise ambiental;
3) A ausência de amplitude teórica mantém-se numa outra questão fundamental da crise ambiental contemporânea, agora já não só em Xxxxxx mas também em todos os outros autores que tratam da relação entre cidadania e ambiente e que mencionámos neste capítulo: na falta de um posicionamento crítico face à tecnociência, completamente inexistente na construção de um conceito de cidadania ecológica.
Dado que o que está em causa a um nível mais profundo na crise ambiental, de acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxxx-Xxxxxxx, é
“(…) nada mais nada menos do que a base efectiva da própria crença no progresso [tecnológico]”64,
não deixa de nos surpreender o completo silêncio destes autores face àquele que é uma das raízes fundamentais da crise global do ambiente e que exige uma postura esclarecida por parte de uma concepção de cidadania de dimensão ambiental ou ecológica.
Mas não só. Não podemos esquecer o facto de vivermos em sociedades eminentemente tecnológicas em que a aliança de ciência e tecnologia é produtora de riscos incomensuráveis tanto em termos ambientais como no que diz respeito à própria condição humana.
Possíveis consequências em áreas como a engenharia genética ou outras biotecnologias, bem como outras correntes de pensamento que, como o trans-humanismo ou o singularismo que fazem do progresso infinito a sua religião suprema, devem suscitar a nossa postura crítica pela natureza das suas actividades.
A relação entre cidadania e ambiente, denomine-se cidadania ambiental ou cidadania ecológica, pelo menos no domínio da sua construção conceptual, não pode deixar de deter uma consciência crítica sobre o papel social desempenhado pela ciência como
64 V. Soromenho-Marques, Metamorfoses – Entre o colapso e o desenvolvimento sustentável, p. 11.
actor institucional no quadro de uma sociedade democrática e como agente de resolução dos problemas da crise ambiental, bem como sobre a ideia de progresso, tecnocientífico e económico, que, como sabemos, nos conduziu ao momento presente da nossa história. Veremos, sobretudo no capítulo 8, como este é um dos eixos fundamentais da articulação entre cidadania e ambiente na contemporaneidade.
Antes disso, e ao contrário de Xxxxxx que recusa uma dimensão não-contractual na sua formulação de cidadania ecológica, vejamos como a crise ambiental contemporânea nos remete na direcção oposta dos seus argumentos.
Ou seja, a construção de um conceito de cidadania ambiental, do ponto de vista da complexidade da crise global do ambiente, remete-nos para a possibilidade de repensar e aprofundar o contratualismo moderno tendo esta como uma das suas condições de base e partindo da natureza como actor social e histórico contemporâneo como premissas fundamentais para esse efeito.
Capítulo 5 – A natureza na sociedade e na história como premissas fundamentais da cidadania ambiental e do Contrato Ambio-Social
5.1. A singularidade da crise ambiental I: A “fusão” entre natureza e sociedade sob o signo da incerteza no caos da modernidade. Esboço de uma Sociedade de Risco
O conturbado início do segundo milénio da nossa era confronta-nos com a presença de uma palavra que se tornou inseparável da condição humana dos nossos dias: a palavra crise.
Ela chega até nós, como bem sabemos, em diversas acepções: crise ambiental, económica, política e social, constituindo estes os vértices de uma crise muito mais profunda – uma longa e emergente crise civilizacional. As diferentes esferas de crise que referimos acima instalaram-se irremediavelmente no nosso quotidiano e somos forçosamente obrigados a conviver com elas.
Além de ter acompanhado as três últimas décadas da modernidade, a palavra crise estrutura não só o seu presente, como suscita enigmas fracturantes quanto à sua continuidade futura.
É perante este cenário de uma modernidade vertiginosa, complexa e caótica que ganha relevo a desconstrução das suas estruturas e paradigmas levada a cabo por Xxxxxx Xxxx. Forçosamente assumem relevo no actual panorama intelectual europeu e mundial pela sua actualidade.
Através das suas principais teses e da análise levada a cabo sobre os pilares fundamentais da sociedade contemporânea, Beck convida-nos, a um encontro ao qual não nos podemos eximir: um encontro com a modernidade, nomeadamente com a sua matriz tecnocientífica, e com os grandes paradigmas que ajudaram a modelar as grandes linhas de orientação do presente tempo histórico que vivemos, caracterizado por constantes fragilidades, metamorfoses e descontinuidades.
No contexto de uma sociedade contemporânea moldada por constantes cenários de crise aos mais diversos níveis, deparamo-nos com o conceito central em torno do qual se desenvolve o pensamento de Xxxxxx Xxxx: o conceito de risco, o qual permite caracterizar a sociedade contemporânea como uma Sociedade de Risco.
O conceito de risco, introduzido por Xxxx na sua primeira obra datada de 19861, pretende afirmar o seguinte: a sociedade actual encontra-se dominada por um clima de incerteza e insegurança criadas por uma série de ameaças globais, nomeadamente a nível ambiental, que não se deixam circunscrever ou calcular totalmente, escapando a qualquer previsão exacta e fidedigna por parte dos meios e instrumentos de avaliação e detecção das mesmas que possuímos para esse efeito.
A crescente proliferação de ameaças, que se traduzem na possibilidade de ocorrência de situações de catástrofe ambiental ou tecnológica de dimensão transnacional ou global, foi introduzida no mundo contemporâneo pelas actividades da ciência e da tecnologia no decorrer da modernidade, nomeadamente a partir da primeira Revolução Industrial ocorrida no século XVIII.
Além de ter provocado modificações decisivas nas estruturas da sociedade actual, a ocorrência de riscos confronta pela primeira vez a história humana com as mais ameaçadoras possibilidades e os mais dantescos cenários.
Segundo Xxxx, o que pode estar em jogo com a proliferação de situações de catástrofe ambiental e tecnológica2 é a própria destruição da nossa civilização tal como a temos conhecido até ao momento e também a destruição da integralidade das condições de vida do planeta Terra.
Mais do que uma forma de conceptualizar a dinâmica da sociedade contemporânea e de sistematizar os perigos e as incertezas geradas pelo desenvolvimento tecnológico da modernidade3, o risco encontra-se definitivamente inscrito na vivência da condição humana na actualidade, sendo um modo de orientação que nos permite traçar as titubeantes coordenadas em que se desenrola a existência humana na sociedade contemporânea, marcada por factores de incerteza e insegurança e de constantes
1 Risikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Moderne,. A tradução da obra foi feita para língua inglesa em 1992 com o título de Risk Society – Towards a New Modernity, dando uma maior amplitude e divulgação ao pensamento de Xxxx dentro da comunidade sociológica. Daqui em diante citamos a obra pela sua edição inglesa.
2 Como exemplo de catástrofe tecnológica, encontra-se ainda bem presente na nossa memória o acidente ocorrido com o reactor nuclear de Chernobyl, em 1986. Retenha-se, apenas a título de curiosidade não totalmente destituída de uma certa ironia, que a redacção de Risk Society foi concluída pouco tempo antes deste trágico acontecimento. Nas palavras do próprio Beck: “Chernobyl happened just as I was just finishing the proofs of Risk Society”. Xxxxxx Xxxx and Xxxxxxxx Xxxxxx, Conversations with Xxxxxx Xxxx, p. 116.
3 Beck define o risco como “(…) a systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by modernization itself”. Beck, Risk Society, p. 21. O itálico é do autor.
processos de adaptação face a cenários gerados por possibilidades ou por consequências reais de riscos.
Na sociedade actual, o risco é um traço inerente à condição ontológica do indivíduo e das próprias sociedades: ambos são forçados a tomar decisões em relação ao seu agir presente e futuro condicionados por contextos marcados, muitas vezes, pela ausência de conhecimento.
Eis, portanto, a palavra de ordem para a existência do ser humano do século XXI:
- Estar em risco é a característica mais importante da humanidade neste início de século4.
Apesar das alterações suscitadas pelos riscos actuais na existência humana serem um tema importante no pensamento de Xxxx, não é, porém, essa a sua principal linha de investigação no que diz respeito ao conceito de risco. A sua importância, em consonância com a dimensão global e imprevisível e incontrolável das ameaças ambientais e tecnológicas, consiste no facto de o conceito de risco ter sido responsável pela introdução de um novo momento no decurso histórico da época moderna.
Não obstante alimentarmo-nos ainda dos paradigmas clássicos da modernidade, o conceito de risco fez com que as suas categorias fundamentais, isto é, a crença na infalibilidade da ciência e da tecnologia, na ideia de progresso infinito, na inesgotabilidade dos recursos naturais, no crescimento económico desmedido e na eficiência política do Estado-nação se vissem confrontadas com a sua própria fragilidade, inadaptação e desajustamento perante os cenários de incerteza que caracterizam a contemporaneidade.
Esse desajustamento desencadeou um processo de autoconfrontação da modernidade consigo mesma, de questionamento e crítica dos seus próprios fundamentos, processo esse que Beck designa como reflexividade. Resumindo: os riscos ambientais e tecnológicos de amplitude global cindiram a modernidade em dois momentos diferentes.
4 “Being at risk is the way of being and ruling in the world pf modernity; being at global risk is the human condition at the beginning of the 21st century”. Xxxxxx Xxxx, “Living in the World Risk Society”. Conferência proferida por Beck na London School of Economics, a 15 de Fevereiro de 2006.
Um primeiro momento marcado pela ascensão da ciência e da tecnologia, em que estas exercem uma atitude de domínio sobre a natureza sob o signo do progresso como motor do crescimento económico exponencial e das aspirações desmedidas do ser humano. Este momento, que corresponde a uma sociedade de cariz industrial, Beck designa-o como primeira modernidade.
Um segundo momento em que os progressos científicos e tecnológicos começaram a gerar uma quantidade inumerável de riscos ambientais e tecnológicos que preconizam cenários de dimensão catastrófica ao nível das suas potenciais consequências. Beck designa este período como modernidade reflexiva ou segunda modernidade e o tipo de sociedade que lhe corresponde é uma Sociedade de Risco5.
Poder-se-á argumentar, e com razão, que o conceito de risco não é um conceito exclusivo da era moderna. Desde sempre, de uma forma ou de outra, a existência humana foi caracterizada pela presença de situações de risco.
Porém, o que distingue decisivamente a natureza das ameaças com que se confronta a sociedade contemporânea das ameaças de épocas anteriores à modernidade é, por um lado, a origem antropogénica das mesmas, ou seja, a produção de riscos ambientais e tecnológicos é motivada pela intervenção humana através das suas realizações científicas e tecnológicas e, por outro, o seu potencial de alcance global6.
Enquanto a ocorrência de catástrofes nos períodos históricos anteriores à modernidade era percepcionada como uma fatalidade imposta pelo destino e a sua origem era atribuída a entidades sobrenaturais ou divinas, a partir da era moderna é à actividade humana, através da ciência e da tecnologia, que se pode imputar a maior quota-parte de responsabilidade pela proliferação de situações de risco.
É a partir da Revolução Industrial, com as primeiras ameaças de degradação ambiental por ela geradas, que se começa a alterar a percepção e a origem das situações de risco. A actividade humana, alicerçada no domínio e exploração do homem sobre os recursos naturais, substitui gradualmente o elemento natural como causa da produção de riscos e
5 “(…) we are eye-witnesses – as subjects and objects – of a break within modernity which is freeing itself from the contours of the classical industrial society and forging a new form, the (industrial) risk society”. Risk Society, p. 9.
6 Confrontando a natureza do risco associado às viagens marítimas do século XVI com o teor das ameaças contemporâneas, Xxxx afirma que “In that earlier period, the word ‘risk’ had a note of bravery and adventure, not the threat of self-destruction of all life on Earth”. Xxxx, op. cit., p. 21.
a percepção dos mesmos começa a excluir quase por completo o elemento divino para a sua explicação.
Com a transição da sociedade industrial para a sociedade de risco aumenta a participação humana na produção de riscos através da proliferação de riscos ambientais, da possibilidade de utilização de armas químicas e dos progressos desenvolvidos na biotecnologia e nas engenharias genéticas.
Num quadro social em que a extensão total de impactos reais que os riscos podem provocar se apresenta marcada pela imprevisibilidade, a tese da Sociedade de Risco confronta-nos com um dado novo no que toca à definição do risco: a incapacidade das instituições responsáveis pela sua gestão, isto é, a ciência e a política, em desenvolverem dispositivos adequados que permitam oferecer soluções efectivas de combate às ameaças ocorridas7. Voltaremos a este assunto no capítulo 8.
À semelhança do que acontece na esfera da existência individual marcada pela incerteza, também os agentes científicos e políticos, no contexto social, actuam muitas vezes num quadro de ignorância operativa e confrontam-se com a inadequação dos seus métodos, instrumentos e estratégias para fazerem face aos riscos de origem tecnocientífica8.
Xxxx designa esta incapacidade das esferas científica e política perante situações de catástrofe como irresponsabilidade organizada9, ficando ambas as esferas sujeitas a uma situação de fracasso metodológico e a um questionamento da exequibilidade dos seus métodos.
Sintetizando: no quadro de uma sociedade que se confronta com ameaças globais, a ciência e política, enquanto entidades responsáveis pela gestão dessas ameaças, vêem-se confrontadas com o reconhecimento forçado dos seus limites e com a sua autoridade e legitimidade colocadas em causa.
7 “However, in the mid to late twentieth century the legitimacy of the calculus of risk becomes threatened by the generation of unmanageable risks which began to outstrip prevailing methods of calculation and liability”. Mythen, op. cit., p. 57.
8 “(…) the sciences are entirely incapable of reacting adequately to civilizational risks, since they are prominently involved in the origin and growth of those very risks”. Xxxx, op. cit., p. 59. O itálico é do autor.
9 A incapacidade da esfera científica e das instituições políticas no que concerne à gestão dos riscos antropogénicos é um tema que Xxxxxx Xxxx irá desenvolver numa obra posterior, Ecological Politics in the Age of Risk (1995).
Outra característica que, segundo Xxxx, diferencia ambos os momentos da modernidade e se torna assumidamente relevante no contexto contemporâneo para a compreensão profunda da crise ambiental, prende-se com a relação entre sociedade e natureza.
Um dos pilares nos quais se funda o projecto da modernidade é, como já dissemos, a visão antropocêntrica e utilitarista que o homem possui dos recursos naturais. A natureza opõe-se ao humano e existe fora da sociedade como fonte de recursos para as realizações humanas. Esta visão levada até ao seu último extremo ao longo de toda a modernidade conduziu à emergência da sociedade contemporânea com os contornos que são já por demais conhecidos.
A crise ambiental, como fenómeno por excelência da modernidade reflexiva, introduz uma alteração na relação entre natureza e sociedade. Se, na primeira modernidade, a natureza estava fora do meio social, a sua progressiva destruição pela actividade humana obriga, na sociedade contemporânea, a que a fronteira que separava sociedade e natureza seja posta em causa. É precisamente isso que Xxxx nos indica numa das passagens mais fecundas de Risk Society e que constitui a primeira premissa fundamental para a construção de um conceito de cidadania ambiental.
Afirma Beck que, na modernidade reflexiva,
“(…) a destruição da natureza, (…) deixa de ser ‘mera’ destruição da natureza e torna-se uma componente integral da dinâmica económica, política e social”10.
A progressiva destruição do meio natural, submetido à voracidade da racionalidade tecnológica, induz à proliferação de ameaças que, pela sua dimensão imprevisível e por atentarem directamente contra a vida humana, se convertem em assombrosos desafios para as instituições sociais e políticas11.
Os problemas ambientais gerados pelos progressos da ciência e da tecnologia, diz-nos Beck, são problemas que não se encontram fora do contexto social, mas sim profundamente inscritos e enraizados nele12. Por dizerem respeito directamente às populações e ao meio em que estão inseridas e tendo que se ter em conta as suas condições de vida, o meio em que vivem, o seu âmbito histórico, político e cultural, o
10“(…) the destruction of nature (…), ceases to be ‘mere’ destruction of nature and becomes an integral component of the social, political and economic dynamic”. Beck, Risk Society, p. 80.
11 Beck, op. cit., p. 80.
12 Beck, op. cit., p. 81.
grau de informação e a atitude que demonstram perante a existência de cenários de risco, por tudo isto, os problemas ambientais têm que ser resolvidos no quadro das instituições sociais existentes para esse efeito. Devido a isto, é já impossível dissociar natureza e sociedade.
Como conclui Beck a este respeito,
“No fim do século XX, a natureza é sociedade e a sociedade é também natureza”13.
A “fusão forçada” entre natureza e sociedade face à dinâmica destrutiva que as ameaças ambientais e tecnológicas apresentam é um dos exemplos mais claros que, segundo Beck, justificam o conceito de Sociedade de Risco14 e que fazem do ambiente um conceito revestido de uma especificidade singular inédita na história humana neste planeta e um dado absolutamente fundamental para repensar o contratualismo moderno como base da cidadania ambiental.
Contudo, não é apenas da sociedade que se torna já impossível separar a natureza. Por força da dependência da história humana do meio natural, como nos relembra a disciplina de história ambiental, a natureza converteu-se, também, numa parte integrante, num actor fundamental, do próprio processo histórico.
13 “At the end of the twentieth century nature is society and society is also nature”. Xxxx, op. cit., p. 81. O itálico é do autor.
14 Beck, op. cit., p. 81.
5.2. A singularidade da crise ambiental II: A natureza na história. O ambiente como momento histórico decisivo para a condição humana
Relegada desde sempre para um plano inferior por parte daqueles que se dedicam ao estudo e à compreensão dos fenómenos intervenientes na construção humana da história, a natureza reivindica para si actualmente um novo enfoque na construção do processo histórico, obrigando a repensar a história através de um prisma diferente daquele que tem sido a tónica dominante das correntes historiográficas tradicionais.
A análise do processo histórico revestiu-se sempre de matizes antropocêntricos, permanecendo fiel ao grande paradigma que a modernidade, através da filosofia cartesiana, instaurou e que ainda hoje, em grande parte, perdura: a cisão radical entre o ser humano e o meio natural, ou seja, a construção de uma fronteira intelectual e secular entre cultura, espelho reflexo de tudo o que é próprio do humano, e natureza, o elemento não-humano oposto ao homem e que, por isso mesmo, sempre foi pensado como um mundo distinto que se encontra fora da esfera do humano.
Apesar de constituir ainda de alguma forma o paradigma dominante, a cisão cultura/natureza, com a cada vez mais crescente preocupação em torno das questões de pendor ambiental, tem vindo a perder alguma consistência nas últimas décadas em detrimento da inclusão da natureza como agente e elemento imprescindível à interpretação dos diversos processos que constituem o desfecho histórico do ser humano e não apenas como mero palco onde o mesmo se desenrola.
Foi assim que, nas décadas de 1960 e 1970, surgiu uma nova área no campo da historiografia denominada história ambiental que, contrariamente às escolas históricas anteriores que focalizam a sua atenção na esfera da cultura, procura compreender a interacção do homem com o meio natural15.
A história ambiental não procura reescrever por inteiro a história humana. Procura, isso sim, ajudar a repensar o nosso modo de pensar a natureza e dar a sua contribuição para integrar a esfera natural no âmbito da história humana, sustentando a tese de que a relação entre homem e natureza assenta numa perspectiva dialógica em que o primeiro influencia a segunda e é, simultaneamente, influenciado por ela. É com base nesta
15 Para uma visão de conjunto sobre a problemática da história ambiental, veja-se o artigo de Xxxxxx X. Xxxxxxxx, “Historicizing Natural Environments: The Deep Roots of Environmental History” in Xxxxx Xxxxxx and Xxxxx Xxxx (Eds.), A Companion to Western Historical Thought, pp. 372-389.
relação entre o humano e os fenómenos naturais que os historiadores ambientais procuram compreender o processo histórico.
Segundo Xxxxx Xxxxxxxx, autor de A Green History of the World, uma das primeiras obras evocativas daquilo que o conceito de história ambiental representa na sua verdadeira acepção, a vida na Terra depende de como o Homem se relaciona com o meio ambiente que o envolve, pois a sua existência só é possível precisamente pela interacção com um complexo sistema de relações de vária ordem.
A emergência da história ambiental não coloca apenas em causa a perspectiva tradicional da história centrada única e exclusivamente no Homem, negando por completo a ocorrência de condicionantes ambientais e naturais que afectam a sua existência, como, em consequência disso, pretende contribuir também com novos dados para explicar o declínio de algumas sociedades e civilizações que não foram estudados pelas correntes de historiografia anteriores.
Ao contrário de alguns autores que abordaram a questão do colapso das civilizações sem recorrerem a factores de cariz ambiental como tendo contribuído para tal16, a tese fundamental defendida pela perspectiva da história ambiental neste aspecto é a de que entre os factores que conduziram algumas sociedades ou civilizações a um declínio ou mesmo à sua total desaparição encontram-se factores de natureza ambiental, entre eles a saber:
- Pressão demográfica causada por um crescimento incontrolado da população conduzindo a um possível esgotamento dos recursos naturais, má gestão dos solos gerando um consequente declínio dos processos e colheitas agrícolas, desflorestação, escassez de recursos hídricos.
O mais conhecido representante desta teoria é o americano Xxxxx Xxxxxxx, em quem encontramos de forma clara e incisiva a metodologia interdisciplinar absolutamente necessária com que a história ambiental trabalha:
16 Entre os autores mais marcantes neste aspecto encontramos Xxxxxx Xxxxxxxx, autor do magistral Declínio do Ocidente (1918), cuja visão cíclica do tempo histórico preconizava a progressiva decadência da supremacia europeia e ocidental constituídas em civilização ao longo dos séculos precedentes e Xxxxxx Xxxxxxx que na sua obra de referência, Um Estudo de História (1934-1961), subordinava a existência das civilizações a uma tríade cronológica de florescimento, apogeu e decadência, apontando como principais causas do fracasso civilizacional factores de origem política e cultural ou invasões estrangeiras.
“(…) analisando mais os colapsos que as construções, comparo muitas sociedades, passadas e presentes, e as suas diferenças com respeito à fragilidade ambiental, relações com comunidades vizinhas, instituições políticas e outras variáveis destinadas a influenciar a estabilidade das sociedades”17.
Convém esclarecer alguns aspectos relativamente à tese defendida por Xxxxx Xxxxxxx: contrariamente ao que se poderia pensar pelo título da sua obra mais famosa, o autor não afirma que todas as sociedades ou civilizações estão condenadas à desaparição18.
O que Xxxxxxx nos pretende fazer compreender é:
1) Que as sociedades dos países desenvolvidos, tecnologicamente mais avançadas e mais poderosas economicamente, enfrentam problemas de ordem ambiental e económica que não podem nem devem ser negligenciados19;
2) Muitos dos problemas de cariz ambiental com que as sociedades actuais se debatem são os mesmos problemas que as sociedades do passado enfrentaram e que, em alguns casos, estiveram na base do seu colapso civilizacional20.
Principalmente por este último motivo, Xxxxxxx afirma que
“O passado oferece-nos uma rica base de dados com a qual podemos aprender de forma a continuarmos a ser bem-sucedidos”21.
São consideráveis os exemplos que Xxxxxxx nos oferece na sua obra de sociedades que no passado enfrentaram problemas de ordem ambiental e em que os mesmos se encontram intrinsecamente ligados ao seu fracasso. Trata-se, sobretudo, de uma visão mais holística da história que assume uma importância determinante na contemporaneidade.
17 “(…) focusing on collapses rather than build-ups, I compare many past and present societies that differed with respect to environmental fragility, relations with neighbours, political institutions, and other "input" variables postulated to influence a society's stability”. .Xxxxx Xxxxxxx, Collapse – How Societies Choose to Fail or Succeed, p. 18.
18 “Nor am I claiming that farms or societies in general are prone to collapse: while some have indeed collapsed like Xxxxxx, others have survived uninterruptedly for thousands of years”. Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 2
19 “(…) even the richest, technologically most advanced societies today face growing environmental and economic problems that should not be underestimated”. Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 2
20 “Many of our problems are broadly similar to those that undermined Gardar Farm and Norse Greenland, and that many other past societies also struggled to solve”. Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 3.
21 “The past offers us a rich database from which we can learn, in order that we may keep on succeeding”. Xxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 3.
De acordo com Xxxxx Xxxxxxxx:
“A história humana não pode ser compreendida num vácuo. Todas as sociedades humanas foram, e ainda são, dependentes de complexos processos físicos biológicos e químicos interrelacionados entre si”22.
Para o objectivo de tentarmos compreender a especificidade da crise ambiental contemporânea é importante reter esta afirmação de Pointing sobre a dependência que a história humana comporta face ao meio natural e de como as condições ambientais são um factor determinante no sucesso ou no fracasso das sociedades humanas ao longo da sua história.
Porque é neste ponto que desejamos evocar a singularidade da crise ambiental global. Na contemporaneidade não se trata já do declínio isolado de determinada sociedade ou determinada civilização como sucedeu no passado, mas sim da possibilidade, ainda que decerto remota, de um colapso civilizacional colectivo pela primeira vez na história humana.
Não se trata aqui de querer fazer soar as trombetas de um apocalipse anunciado ou de evocar uma pedagogia do temor como o faz Xxxx Xxxxx, mas sim de lucidamente darmo-nos conta de que a desmesura humana, oscilando entre o humano, demasiado humano - utilizando uma expressão tão cara a Xxxxxxxxx -, e a tentação de um futuro pós-humano em direcção a um no man’s land conceptual e territorial de consequências imprevisíveis, nos conduziu a um momento sem paralelo na nossa habitação colectiva neste planeta.
Intuímos isto com uma clareza extrema na reflexão dedicada por Xxxxxxx Xxxxxxxxx- Xxxxxxx a este tema.
Afirma ele que
“(…) vivemos num tempo onde se operou uma mudança radical na relação entre a cultura humana e o mundo natural. (…) Durante milénios o problema da humanidade consistia na escassez e desproporção do seu poder perante as forças transbordantes de uma natureza esmagadora. Hoje, na era da crise do
22 “Human history cannot be understood in a vacuum. All human societies have been, and still are, dependent on complex, interrelated physical, chemical and biological processes”. Xxxxx Xxxxxxxx, A Green History of the World – The Environment and the Collapse of Great Civilizations, p. 12.
ambiente, o nosso principal problema reside na desmesura do nosso poder, na hubris, na falta de um princípio interno ou externo de contenção do imenso poder acumulado pela cultura humana”23.
Eis o (ainda) inapercebido espírito do tempo contemporâneo oculto pelos eufemismos do crescimento económico de uma agenda política e mediática global que teima em persistir na cegueira da desmesura tecnocientífica.
E isto, ou seja, a natureza como actor integrante da história, dá-nos a segunda premissa fundamental para repensar o contratualismo moderno como base da cidadania ambiental.
Momento simultaneamente crítico e singular na história que obriga a uma inédita metamorfose civilizacional e cultural de âmbito global24, a crise do ambiente, no quadro de uma sociedade contemporânea produtora de riscos tecnológicos e ambientais de impacto não inteiramente calculável, dirigida operativamente pelo conceito de incerteza, pensada no seu nível mais profundo e mais amplo, sob pena de ameaçar profundamente a estrutura ontológica da condição humana a nível planetário, obriga a integrar o ambiente no horizonte de reflexão da cidadania e a repensá-la, bem como o nosso modelo de contrato social, tendo o ambiente como ponto de partida e a sustentabilidade como meta.
23 V. Soromenho-Marques, “Crise Ambiental e Condição Humana. Três questões fundamentais” in
Metamorfoses – Entre o colapso e o desenvolvimento sustentável, p. 176. O itálico é do autor.
24 V. Soromenho-Marques, “Ambiente, Cultura e Cidadania. Cinco questões fundamentais” in O Futuro Frágil – Os desafios da crise global do ambiente, p. 110.