UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ECONOMIA
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
Análise da Experiência Internacional na Contratação de Termoelétricas: Contribuições para o Caso Brasileiro
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
Análise da Experiência Internacional na Contratação de Termoelétricas: Contribuições para o Caso Brasileiro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia da Indústria e Tecnologia, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Economia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx XXXXXXXXXXXX: Prof. Dr. Xxxxxxx Xxxx xx Xxxxxx
Aos meus pais, Helcio e Xxxxxx.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Helcio e Xxxxxx. Este é o primeiro dos agradecimentos, e o mais especial. Vocês são a base da minha vida. A pessoa que sou é fruto de todo o amor, esforço e educação que sempre me deram.
À minha namorada, Xxxxx. Obrigado por fazer parte da minha vida. Obrigado por me dar força, me fazer sorrir, me fazer amar. Obrigado pela paciência, cumplicidade e respeito nos momentos mais difíceis que enfrentei na trajetória desse mestrado. Te amo!
Aos meus irmãos, Xxx, Xxxxxx e Xxxxx. Vocês são meus exemplos de vida. As pessoas nas quais me espelho.
A toda minha família. Agradeço a cada um de vocês. Meus avós, meus tios, meus padrinhos, minha madrinha, meus primos e meus cunhados. Mas me permito fazer um agradecimento especial aos que se foram recentemente, mas que deixaram um legado de amor. Meus avós, Xxxxxxx e Xxxxxxx, meu tio, Xxxxxx, e também meu companheiro, Xxxx. Obrigado por terem feito parte da minha história. Que Deus ilumine vocês. Por fim, dedico este trabalho às minhas menininhas que ainda estão chegando ao mundo. Xxxxx e Xxxxx, minhas sobrinhas, e Xxxxxxxx, minha afilhada, todo o amor para vocês!
Aos mestres da minha vida, desde o início, no Externato Coração Eucarístico, e ao longo da minha formação, no CAp da UFRJ e no Instituto de Economia da UFRJ. Devo muito a todos vocês. Em especial, gostaria de agradecer aos meus orientadores, os professores Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx e Xxxxxxx xx Xxxxxx. Agradeço pelo suporte, pela confiança e por tudo que me ensinaram até hoje.
Aos meus amigos da vida. Amigos de infância, do colégio, da faculdade, da natação, do vôlei, do inglês, do francês, do mundo. Todos vocês! Entretanto, gostaria de enfatizar minha gratidão àqueles que fizeram parte da minha trajetória dentro do mestrado. Assim, “meu obrigado” a todos meus amigos e colegas - mais amigos do que colegas! – do mestrado e do GESEL. Sintam-se homenageados, vocês merecem. Vosso suporte foi, e ainda é, essencial.
Por fim, agradeço a todas as instituições que participaram desse processo. Ao Programa de Pós- Graduação em Economia da UFRJ, pela oportunidade de realizar o mestrado. Ao Programa de P&D da ANEEL e à Xxxxx, que permitiram que este trabalho e o Projeto existissem. E ao GESEL, por acreditar em mim e no meu trabalho. É uma honra fazer parte deste grupo.
RESUMO
CORRÊA, Xxxxx Xxxxxxxx. Análise da Experiência Internacional na Contratação de Termoelétricas: Contribuições para o Caso Brasileiro. 2017. 172 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Economia da Indústria e Tecnologia, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
Historicamente, o desenvolvimento do Setor Elétrico Brasileiro foi fortemente centrado em usinas hidroelétricas com grande capacidade de reservatório e de regularização da oferta. Esse cenário se manteve relativamente estável até o final do século XX. Entretanto, desde os anos 2000, como consequência da crise de 2001, o Setor Elétrico Brasileiro tem experimentado um processo de transição de uma matriz hídrica para uma matriz hidrotérmica. O novo marco regulatório do setor elétrico, instituído pela Lei Nº 10.848 de 2004, introduziu os leilões de energia elétrica, além da figura da contratação de geração térmica por disponibilidade. No entanto, este modelo se mostrou financeiramente instável durante o período de seca prolongada, entre finais de 2012 e início de 2016, quando o Operador Nacional do Sistema optou por realizar um despacho contínuo e prolongado de grande parte do parque térmico brasileiro. Evitou-se com isso um racionamento, mas os altos preços da energia no curto prazo provocaram grande impacto financeiro para os agentes expostos a ele. Constata-se, ao longo do trabalho, que o problema principal reside no desenho das regras de comercialização de energia, evidenciando a necessidade de se aplicar aperfeiçoamentos regulatórios nas regras comercialização de usinas termoelétricas. Tendo em vista este contexto, esse trabalho visa responder como a experiência internacional pode auxiliar na introdução de inovações regulatórias para o ambiente de contratação de termoelétricas no Brasil. Neste sentido, buscou-se examinar dois mecanismos específicos, os ditos mercados de capacidade e confiabilidade, através do caso colombiano, e os mercados de serviços ancilares, através do caso PJM. Conclui-se que os mercados de capacidade e confiabilidade se mostram insuficientes para embasar possíveis aperfeiçoamentos ao caso brasileiro. Por outro lado, os mercados de serviços ancilares revelam alguns ensinamentos importantes ao caso brasileiro, merecendo uma agenda de estudo específica para este tema.
Palavras-chaves: Contratação; Mercado de Capacidade; Mercado de Confiabilidade; Regulação Econômica; Serviços Ancilares; Termoeletricidade
ABSTRACT
CORRÊA, Xxxxx Xxxxxxxx. Análise da Experiência Internacional na Contratação de Termoelétricas: Contribuições para o Caso Brasileiro. 2017. 172 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Economia da Indústria e Tecnologia, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
Historically, the development of the Brazilian Electricity Sector has been strongly focused on hydroelectric plants with large reservoir capacity and supply regularization. However, since the 2000s, as consequence of the 2001 crisis, the Brazilian Electricity Sector has undergone a process of transition from a hydric matrix to a hydrothermal matrix. The new regulatory framework for the electricity sector, established by Law No. 10848 of March 2004, introduced the energy auctions, in addition to the availability contracts for thermal generation. However, this model proved to be financially unstable during the prolonged period of drought, between 2012 and 2016, when the National System Operator chose to carry out a continuous and prolonged dispatch of the Brazilian thermal capacity. This avoided rationing, but the high energy prices in the short term caused a great financial impact for the agents exposed to it. It is observed that the main problem lies in the design of the contracting rules, highlighting the need to apply regulatory improvements in the contracts of thermoelectric power plants. Given this context, this dissertation aims to answer how international experience can help in the introduction of regulatory innovations for the thermoelectric contracting environment in Brazil. In this sense, we sought to examine two specific mechanisms, the capacity/reliability markets, through the Colombian case study, and the ancillary services markets, through the PJM case study. It is concluded that the capacity and reliability markets are insufficient to support possible improvements to the Brazilian case. On the other hand, the markets for ancillary services reveal some important lessons to the Brazilian case, deserving a specific study of this mechanism.
Palavras-chaves: Ancillary Services; Capacity Market; Contracting; Economic Regulation; Reliability Market; Thermoelectricity.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Evolução da Participação na Capacidade Instalada por Tipo de Fonte: 1974 – 2015 (em %) 41
Gráfico 2 - Acréscimo de Capacidade Instalada Contratada e Planejada até 2024 (em MW) . 46 Gráfico 3 - Acréscimo Anual de Capacidade Instalada por Fonte: 2015 - 2024 (em MW) 47
Gráfico 4 - Razão entre Capacidade Energia Armazenável Máxima dos Reservatórios e Carga: 2013 - 2021 51
Gráfico 5 - Safra da Cana e Energia Natural Afluente (% mês com maior oferta) – 2008 56
Gráfico 6 – Evolução da Capacidade Instalada Nova e Acumulada: 2005 – 2020 (em MW). 57 Gráfico 7 – Exemplo de Complementaridade entre Energia Hídrica e Eólica 59
Gráfico 8 - Geração Térmica Convencional: Janeiro de 2003 – Janeiro de 2016 (em MWmed)
............................................................................................................................................ 65
Gráfico 9 – Média Mensal do PLD para o Submercado Sudeste/Centro-Oeste em Patamar de Carga Média: Janeiro de 2010 – Julho de 2017 (em R$/MWh) 87
Gráfico 10 - Variação Diária do Preço Médio Ponderado de Energia Elétrica no PJM, USA: 18/07/2016 - 18/07/2017 (em US$/MWh) 106
Gráfico 11 – Oferta e Demanda em Mercados de Curto Prazo de Energia 107
Gráfico 12 - Relação entre o Preço Médio do Gás Natural e o Preço da Energia Elétrica nos Períodos de Ponta nos Estados Unidos: 2001 a 2013. 108
Gráfico 13 - Curva de Ordem de Mérito Estilizada para o Caso da Alemanha 110
Gráfico 14 - Missing Money no Mercado de Curto Prazo de Energia 112
Gráfico 15 – Exemplo de Demanda Regulatória para um Mercado de Capacidade 116
Gráfico 16 – Preço da Bolsa de Energia e Preço de Escassez: janeiro de 2015 a dezembro de 2016 (em US$/MWh) 124
Gráfico 17 - Oscilação Diária da Carga e Despacho 128
Gráfico 18 – Participação na Capacidade Instalada Total do PJM por Tipo de Fonte: 2006 e 2017 137
Gráfico 19 - Geração por Tipo de Fonte na Região Nordeste: janeiro de 2011 a dezembro de 2016 (MWmed) 150
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Participação na Geração Elétrica Total por Tipo de Fonte: 2011 – 2015 (em %) .. 40 Tabela 2 – Evolução da Participação Relativa das Fontes de Geração Alternativas na Capacidade Instalada Total: 2015 – 2024 (em %) 54
Tabela 3 - Contratação de Projetos Eólicos por Subsistema: 2009 - 2015 58
Tabela 4 – Capacidade Instalada do Parque Térmico por tipo de Combustível: Junho de 2016 (em MW) 64
Tabela 5 –Potência Contratada pelos Leilões de Energia por Tipo de Fonte e Participação Relativa: Agregado entre 2005 e 2016 (em MW e %) 82
Tabela 6 – Geração Anual das Fontes Termoelétricas Movidas a Combustíveis Fósseis e suas Respectivas Participações na Produção de Energia Elétrica Total: 2011 – 2016 (em GWh e %)
............................................................................................................................................ 89
Tabela 7 – Resumo dos Serviços Ancilares Ofertados dentro do Sistema PJM 138
Tabela 8 - CPSA por Tipo de Usina e Tipo de Serviço Ancilar 146
Tabela 9 – Formas de Contratação e Remuneração dos Serviços Ancilares no SEB. 148
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Características Econômicas dos Segmentos do Setor Elétrico 35
Quadro 2 - Tipos de Leilões de Energia Elétrica 81
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Organização Básica dos Mercados Atacadistas Pós Reformas Liberalizantes 98
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABEEÓLICA - Associação Brasileira de Energia Eólica ACL - Ambiente de Contratação Livre
ACR - Ambiente de Contratação Regulada ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica CCC - Conta de Consumo de Combustíveis
CCEAR - Contratos de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Regulado CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
CMO - Custo Marginal de Operação
CMSE - Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico CONE - Cost of a New Entry
CPSA - Contrato de Prestação de Serviços Ancilares CREG - Comisión de Regulación de Energía y Gas CVU - Custo Variável Unitário
ENA – Energia Natural Afluente
EPE - Empresa de Pesquisa Energética ESS - Encargos de Serviços de Sistema
FERC - Federal Energy Regulatory Commission
GESEL/UFRJ - Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
GW – Gigawatt
GWh – Gigawatt-hora GWmed – Gigawatt Médio ICB - Índice Custo Benefício
ISO - Operador Independente do Sistema (Independent System Operator)
kW – Quilowatt
MME - Ministério de Minas e Energia
MW – Megawatt
MWh – Megawatt-hora MWmed – Megawatt Médio
NERC - North American Electric Reliability Corporation OEF - Obrigação de Energia Firme
ONS - Operador Nacional do Sistema Elétrico PCH - Pequena Central Hidrelétrica
PDE 2024 - Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 PIE - Produtor Independente de Energia
PJM - Pennsylvania - New Jersey – Maryland PLD - Preço de Liquidação das Diferenças
RE-SEB - Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro
RTO - Operador Regional de Transmissão (Regional Transmission Operator)
SEB – Setor Elétrico Brasileiro SIN - Sistema Interligado Nacional
SUMÁRIO
1. Revisão da Literatura da Teoria de Regulação 21
1.1. Regulação Econômica: Conceitos e Relevância 22
1.2. Regulação e o Setor Elétrico 30
2. Considerações sobre a Expansão do Parque Gerador Brasileiro: de 1970 a 2024 38
2.1. Breve Histórico do Setor Elétrico Brasileiro 39
2.2. Expansão das Fontes Renováveis 44
2.2.1. Considerações e Perspectivas do Parque Hídrico 44
2.2.2. Fontes Renováveis Alternativas 53
2.3. A Importância das Termoelétricas 61
3. Histórico do Arcabouço Regulatório de Contratação de Usinas Termoelétricas e Análise dos Problemas Decorrentes do Novo Marco Regulatório 68
3.1. Histórico do Arcabouço Regulatório de Contratação de Usinas Termoelétricas 68
3.1.1. Anos 1950 - 1998: Exploração por Empresas Estatais 69
3.1.2. 1998 - 2004: Contratos Bilaterais entre Geradores e Concessionárias de Distribuição 71
3.1.3. A partir de 2004: Contratação de Usinas Termelétricas via Leilões de Energia através de Contratos por Disponibilidade 76
3.2. Problemas Decorrentes do Descasamento da Realidade Operacional com as Obrigações dos Agentes Geradores Termoelétricos 86
3.2.1. Problemas Conjunturais Decorrentes da Crise Hidrológica de 2012 a 2015 86
4. Experiências Internacionais de Contratação 94
4.1. Reestruturação do Setor Elétrico, Formação das Estruturas de Mercado Atuais e o Mercado de Energia de Curto Prazo 95
4.1.1. Reestruturação do Setor Elétrico e as Estruturas de Mercado 95
4.1.2. Mercados de Energia de Curto Prazo 99
4.1.2.1. Limitações dos Mercados de Energia 105
4.2. Mercados de Longo Prazo: Mecanismos de Capacidade e Confiabilidade 113
4.2.1. Mecanismo de Confiabilidade: o Caso Colombiano 118
4.3. Mercado de Serviços Ancilares: o Caso PJM 126
4.3.1. Serviços Ancilares: Definições e Contratação 126
4.3.2. Serviços Ancilares: o Caso PJM 135
Conclusão 142
Referências 155
INTRODUÇÃO
Historicamente, o desenvolvimento do Setor Elétrico Brasileiro (SEB) foi fortemente centrado em usinas hidroelétricas com grande capacidade de reservatório e de regularização da oferta, através de uma forte presença do Estado. Esse cenário se manteve relativamente estável até o final do século XX. Entretanto, o modelo de estruturação do SEB implementado ao longo da década de 1990 foi responsável por uma insuficiência de investimentos no setor elétrico, tanto na geração, quanto na transmissão de energia. Como consequência, o Brasil enfrentou a pior crise energética de sua história, a denominada “Crise do Apagão”, em 2001.
Constata-se, como consequência do insucesso da implantação do modelo de investimento privado da década de 1990 e, sobretudo, a partir da crise de 2001, que a matriz elétrica brasileira iniciou uma alteração significativa da sua composição, através da adoção de um novo modelo. Desde o início dos anos 2000, a participação da fonte hídrica vem se reduzindo paulatinamente, movimento compensado por um aumento constante da importância das usinas térmicas. Em outras palavras, pode-se afirmar que o SEB passou - nessas últimas duas décadas - por uma transição de uma matriz majoritariamente hídrica para uma chamada matriz hidrotérmica.
O novo marco regulatório do setor elétrico, instituído pela Lei Nº 10.848 de março de 2004, introduziu os leilões de energia elétrica, além da figura da contratação de geração térmica por disponibilidade. Os contratos por disponibilidade são destinados à contratação de usinas termelétricas e preveem uma remuneração fixa ao agente gerador, independente do que for efetivamente gerado. Nesses contratos, a parcela fixa é destinada à cobertura dos custos fixos para a disponibilização da usina ao sistema, que pode ou não ser despachada por conta das condições hidrológicas do sistema interligado. Todavia, quando essas usinas são despachadas, as distribuidoras devem pagar os custos variáveis relativos ao uso do combustível, que serão repassados aos consumidores no momento do reajuste tarifário. O objetivo dos contratos por
disponibilidade é garantir a segurança do sistema hidrotérmico. Caso as condições hidrológicas sejam desfavoráveis, como em períodos excessivamente secos, essas usinas podem ser solicitadas a despachar sua energia, reduzindo o risco do déficit de oferta do sistema como um todo. Ao contrário, quando as condições hidrológicas são favoráveis, essas usinas são deixadas em estado de espera.
Em virtude dessas alterações regulatórias, ao longo dos últimos 10 anos um considerável número de projetos termoelétricos foi contratado, especialmente nos leilões de 2007 e de 2008. Contudo, uma parte dos projetos contratados não apresentam características compatíveis com as necessidades de expansão do sistema elétrico brasileiro, por terem custos de variáveis de geração elevados e com frequência apresentarem características técnicas que não se adequam ao atendimento da ponta.
No sistema elétrico brasileiro, a construção de hidrelétricas com grandes reservatórios de armazenagem, interconectadas em um sistema interligado nacional, tornou a realização do risco hidrológico uma possibilidade remota. Porém, com o crescimento contínuo do consumo e as dificuldades de ampliação da reserva hídrica, a capacidade de regularização dos reservatórios se reduz gradativamente. Consequentemente, a garantia de suprimento passa a estar cada vez mais condicionada à realização de hidrologias favoráveis e o acentuado e recorrente deplecionamento dos reservatórios torna o risco mais palpável. Neste novo contexto, os desdobramentos financeiros da exposição ao risco hidrológico passam a ser concretos e cruciais, colocando à prova a alocação de riscos pré-estabelecida.
Nesse contexto, desde fins de 2012, o país passou a enfrentar incertezas quanto à garantia de fornecimento de energia. Tal cenário foi produzido por uma crise hidrológica que atingiu o país no último trimestre de 2012, perdurando até o fim do ano de 2015. Todo o parque térmico
contratado para atuar esporadicamente – em contratos por disponibilidade - foi acionado continuamente, atendendo quase 30% da carga, ante a uma participação média inferior a 10%.
O uso intenso e prolongado das termoelétricas disponíveis era, nos cenários utilizados nos leilões que contrataram os empreendimentos hoje em operação, um evento de baixa probabilidade. Entretanto, o que ocorreu nos últimos anos foi o despacho contínuo de todas as termoelétricas com custos variáveis baixos ou intermediários e o despacho por longos períodos de usinas com CVU elevado. O despacho contínuo representou um problema para os geradores térmicos na medida em que essas usinas passaram a enfrentar restrições técnicas associadas ao próprio despacho contínuo, tornando a produção dentro dos níveis de disponibilidade declarada previamente nos leilões um grande desafio. Como consequência, houve uma alta expressiva nos volumes de ressarcimentos dos contratos por disponibilidade, bem como a degradação dos valores de garantia física de alguns geradores.
Em resumo, a crise hidrológica deu início a uma série de problemas enfrentados pelo segmento de geração térmica, resultando em um desequilíbrio financeiro e risco de inviabilização econômica aos projetos termoelétricos. Tais problemas estão relacionados à aplicação de dispositivos vinculados aos contratos por disponibilidade, originados dos Leilões de Energia Nova, e das regras de comercialização para energia de fonte térmica, em um contexto onde há despacho termoelétrico intenso e prolongado, dificuldades de vários agentes em gerar a energia despachada pelo ONS (Operador Nacional do Sistema) e atrasos nos cronogramas de implantação de alguns deles, e uma alta do PLD (Preço de Liquidação de Diferenças) para valores extremos.
O problema principal reside no desenho das regras de comercialização de energia. Por um lado, elas permitem a criação de obrigações vultosas para agentes que por qualquer razão se encontrem expostos aos preços de curto prazo da energia na medida em que, em situações de
escassez, ele se descola (sem nenhuma justificativa e fundamentação econômica válida) do custo de produção da energia. Por outro lado, as regras de recomposição de lastro e dos ressarcimentos para termoelétricas contratadas por disponibilidade estão desenhadas sem levar em conta a capacidade de pagamento e o porte econômico dos empreendimentos, que podem, por isso, ficarem sujeitas a obrigações capazes de inviabilizar o negócio. Com base nestes argumentos são necessários aperfeiçoamentos nas regras de comercialização de energia e em especial naquelas que dizem respeito à geração térmica.
Tendo em vista o contexto e o problema apresentados, a pergunta fundamental que esse trabalho visa responder é como a experiência internacional pode auxiliar na introdução de inovações regulatórias para o ambiente de contratação de termoelétricas no Brasil. Em outras palavras, quais mecanismos de contratação são utilizados em outros países e que ensinamentos e implicações estes casos poderiam fornecer ao modelo brasileiro.
Para responder essa pergunta, este trabalho está estruturado em cinco capítulos, para além desta introdução. O primeiro capítulo dedica-se a compreender a importância da regulação econômica para o setor elétrico, considerado uma indústria de rede com a provisão de um bem essencial para qualquer sociedade, a energia elétrica. O capítulo 2 fornece considerações acerca da expansão do parque gerador brasileiro, tanto sob uma ótica histórica, quanto sob as perspectivas de expansão de cada fonte. O terceiro capítulo, por sua vez, trata do modelo de contratação brasileiro, com especial ênfase para as usinas termoelétricas. Nesse sentido, será realizado um apanhado do histórico evolutivo dos modelos de contratação, bem como uma avaliação mais detalhada do arcabouço atual para usinas termoelétrica e os problemas decorrentes do descasamento entre a realidade operacional com as obrigações contratuais dessas usinas.
O capítulo 4 dedica-se ao estudo de experiências internacionais de contratação. Para tanto, esse capítulo está dividido em três seções. A primeira examina a formação dos mercados atuais de
energia, com foco nos mercados de curto prazo e suas limitações. A segunda seção apresenta os mercados de longo prazo, que visam corrigir limitações identificadas no curto prazo, com ênfase em dois mecanismos: o mercado de capacidade e de confiabilidade. Com intuito de melhor explicar estes mecanismos, optou-se pela realização de um estudo de caso do setor elétrico colombiano. A terceira seção trata de outro mecanismo que pode auxiliar na introdução de aperfeiçoamentos regulatórios para o modelo de contratação de usinas termoelétricas brasileiro, os mercados de serviços ancilares, exemplificado através do estudo de caso do PJM. Ao fim, destacam-se as principais conclusões obtidas ao longo do trabalho, contendo análise crítica do mecanismo de confiabilidade colombiano e dos mercados de serviços ancilares do PJM, apresentando os principais rebatimentos e implicações para o caso brasileiro.
1. REVISÃO DA LITERATURA DA TEORIA DE REGULAÇÃO
A indústria da eletricidade é considerada uma indústria de infraestrutura. Mais especificamente, trata-se de uma indústria de rede, que, por definição, são um caso especial de monopólio natural, que exploram a multiplicidade de relações transacionais entre os agentes econômicos situados em diferentes nós da rede, envolvendo um princípio de organização espacial e territorial. Adicionalmente, a indústria da eletricidade é marcada pela presença de fortes elementos de serviço público, ou seja, elementos que a caracterizam como uma indústria de importância estratégica, cujo funcionamento afeta o interesse geral da sociedade. Tendo em vista essas especificidades, justifica-se, portanto, a necessidade de intervenção do poder público neste setor, incluindo a adoção de regulação econômica.
Além das características gerais de uma indústria de rede, o setor elétrico possui a obrigação de fornecimento de um bem que se tornou essencial para a sociedade, a energia elétrica. Assim como outros serviços públicos de grande penetração social e importância econômica, o setor elétrico desempenha relevante papel no desenvolvimento econômico do país, sobretudo pelas externalidades positivas produzidas pelos investimentos e serviços oferecidos. Tendo em vista essas características e sua essencialidade para a sociedade, reforça-se a necessidade de se regular esse setor estratégico, com o propósito de atender a estes objetivos.
Dado este cenário, torna-se relevante compreender a dinâmica da regulação econômica de forma mais aprofundada. Assim, a seção 1.1 se propõe a realizar um breve histórico da regulação econômica, evidenciando seus principais conceitos e sua relevância. Posteriormente, tendo em vista as características da indústria da eletricidade, pretende-se avaliar, na seção 1.2, a relação entre a regulação econômica e o setor elétrico, destacando com maior detalhe a dinâmica de cada segmento. Por fim, são realizadas considerações finais deste capítulo.
1.1. Regulação Econômica: Conceitos e Relevância
A teoria clássica de Xxxx Xxxxx (2007) é apontada de forma consensual pela literatura como sendo o marco fundador da economia política. De acordo com Xxxxx (2012), este autor a inaugura com uma interpretação sistematizada da ordem social capitalista, observando-a “tanto pela ótica da produção, da acumulação e do excedente como pela forma de mercado” (p. 3).
Especificamente quanto à leitura pela ótica do mercado, a importante contribuição de Xxxxx vai na direção da construção do ideário liberal. De forma simplificada, a solução apresentada pelo autor introduz o conceito da mão invisível, em que interesses privados ao invés de se conflitarem, acabam por produzir bem-estar social. Para a teoria smithiana, a ação complexa dos indivíduos é a base da economia, resultando “naturalmente” na ordem social do mercado (GANEM, 2012).
Nesse sentido, de acordo com o que apresenta o laissez-faire, a participação do Estado na economia deve ser mínima, pois o funcionamento do mercado é suficiente para garantir a melhor alocação dos recursos. A intervenção do Estado deve ser, portanto, pontual, visando apenas que haja um bom funcionamento dos mercados, promovendo, por exemplo, segundo Xxxxx (2007), a manutenção da segurança militar, a administração da justiça e a criação e sustento de certas instituições públicas. O resultado seria a condução da economia, via mercado e pelo mecanismo natural da mão invisível, ao Ótimo de Pareto. De acordo com Xxxx (2013), este resultado significa um equilíbrio econômico onde não existe qualquer forma de melhorar a situação de um agente econômico sem piorar a de outro.
No entanto, ao longo do processo histórico capitalista, o mecanismo de livre mercado defendido por Xxxx Xxxxx apresenta importantes problemas. O autor não previa a existência de falhas de mercado e a incapacidade do mercado de garantir elevados níveis de emprego e a estabilidade dos preços. Ou seja, cria-se uma condição que não possibilita a maximização do bem-estar de
todos os agentes. Nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxxx, especialista em economia do setor público:
“O mecanismo de preço de mercado assegura uma alocação ótima de recursos desde que sejam satisfeitas certas condições. Estas são razoavelmente satisfeitas em vastas áreas da atividade econômica, de modo que o grosso da função de alocação pode ser deixado às forças do mercado. Nestas áreas, a política governamental não precisa preocupar-se com questões de alocação. Entretanto, há ocasiões em que as forças de mercado não conseguem assegurar resultados ótimos. Apresenta-se, então, o problema de como a política do governo pode intervir, a fim de que haja uma alocação de recursos mais eficiente” (1976, p. 27).
É neste contexto que surge a justificativa para a presença da atuação do Estado na economia, que visa solucionar, ou ao menos mitigar, os principais problemas decorrentes das falhas de mercado (KESSLER, 2006). Conforme apresenta Xxxxxxx, Xxxxxxxxxx e Xxxxxx (2005) e Resende (2012), as principais falhas de mercado são:
i. A existência de bens públicos, ou seja, bens não-rivais1 e não-excludentes2. Essas características tornam inviável a produção pelo mercado privado, como, por exemplo, segurança, justiça, dentre outros;
ii. A existência de bens meritórios que, apesar de poderem ser produzidos pelo mercado, possuem externalidades positivas e/ou são de direitos básicos do cidadão. Dois exemplos amplamente apresentados pela literatura são os serviços de saúde e educação;
iii. Externalidades, que são os impactos a terceiros por determinada atividade econômica.
Investimento em infraestrutura, de forma geral, implica na geração de externalidades positivas para a economia, enquanto a poluição decorrente de uma fábrica, por exemplo, ocasiona em externalidades negativas.
1 Define-se um bem como sendo não rival quando o seu consumo por parte de um indivíduo não reduz a quantidade disponível para o consumo de outro indivíduo (COSTA, 2010).
2 Define-se um bem como sendo não passível de exclusão se, quando o bem é ofertado, não for possível, ou for proibitivamente caro, impedir qualquer pessoa de consumi-lo (COSTA, 2010).
iv. A assimetria de informação, que podem gerar ineficiências alocativas; e
v. Poder de mercado: monopólio, oligopólio e concorrência monopolística3. Na economia real, a situação de competição perfeita raramente se evidencia. Há, na prática, a ocorrência da chamada concorrência imperfeita, manifestada pela presença de estruturas de mercado de monopólio, de oligopólio ou de concorrência monopolística. Essas estruturas de mercado acabam por conceder a certos agentes um exacerbado poder de mercado, implicando em uma capacidade, por parte desses agentes, em influenciar os preços.
Tendo em vista as falhas de mercado apresentadas, abre-se a possibilidade de atuação do Estado no sentido de corrigir ou amenizar tais falhas. Nesse contexto, Pigou (1932) sugere, através da abordagem da Teoria do Interesse Público, a aplicação da regulação econômica, com o objetivo de maximizar o bem-estar da sociedade como um todo. A ideia básica dessa teoria é que o regulador atue de acordo com este objetivo, de tal modo a remediar falhas que os mecanismos do próprio mercado não são suficientes para solucionar. Assim, para o autor, a regulação deve ocorrer sempre que os benefícios sociais atribuídos ao regulamento forem maiores do que seus custos. Na visão de Xxxxx (1998), é a partir da Teoria do Interesse Público que a teoria econômica passou a “tratar de maneira formalizada a intervenção do Estado na economia, uma vez que a própria análise econômica é fundada, a partir do surgimento da obra d’A Riqueza das Nações de A. Xxxxx, negando a necessidade desta intervenção” (p. 10).
3 O monopólio é a estrutura em que há apenas um produtor que domina o mercado. A demanda do monopolista é a demanda da indústria, implicando em poder de impor o preço aos consumidores. Esse poder de mercado permite que o monopolista opere sempre com lucros extraordinários. De forma similar, quando um mercado é dominado por um pequeno número de produtores/vendedores ofertantes (os chamados oligopolistas), diz-se que existe um oligopólio. Os oligopolistas aproveitam a sua posição de privilégio para fixar preços mais altos, produzindo em menor quantidade. São empresas que colaboram entre elas com vista a manter esse poder e a evitar a competição. Por sua vez, a concorrência ou competição monopolística é um tipo de concorrência imperfeita em que existem várias empresas, cada uma vendendo uma marca ou um produto que difere em termos de qualidade, aparência ou reputação, e cada empresa é a única produtora de sua própria marca. Por esta razão, as empresas também detêm poder de mercado (MELO, 2013).
Uma abordagem complementar à Teoria do Interesse Público quanto à necessidade de intervenção do Estado diz respeito à delimitação das funções clássicas do Estado, que são classificadas como:
i. Função alocativa;
ii. Função redistributiva; e
iii. Função estabilizadora.
As funções redistributivas e estabilizadoras, apesar de vitais para qualquer economia e sociedade, não estão diretamente associadas ao escopo desse trabalho e, portanto, não serão examinadas. A função alocativa, por sua vez, é fundamental para solucionar, ou ao menos amenizar, as falhas de mercado. Nesse sentido, Xxxxxxxx (1999) identifica três grandes categorias de intervenção alocativa do Estado, quais sejam:
i. Produção pública;
ii. Produção privada com subsídios/impostos que encorajem/desencorajem a produção; e
iii. Produção privada com regulação econômica.
Especificamente quanto à terceira categoria de intervenção alocativa, são propostas uma série de políticas públicas de regulação da concorrência, as quais costumam abranger dois grandes blocos de questões (POSSAS; PONDÉ; FAGUNDES, 1997). De um lado situa-se a política de defesa da concorrência, também conhecida como antitruste, voltada à prevenção e repressão de condutas anticompetitivas que possam conduzir a estruturas de mercado fortemente concentradas. O objetivo é o de exercer acompanhamento e correção contínuos das condições estruturais e das práticas correntes nos mercados domésticos, de forma a assegurar um ambiente competitivo nas economias nacionais.
De outro lado, está a política de regulação das atividades de infraestrutura, que usualmente se apresentam sob a estrutura de monopólios naturais, sejam estas sob controle estatal ou privado4. Xxxxx Xxxxxx e Fiani (2013) definem monopólio natural como uma situação onde “os custos são menores se produzimos uma dada quantidade x do produto em uma única firma do que em duas” (p. 300). Mais especificamente, os monopólios naturais estão associados a atividades que apresentam custos fixos muito elevados combinados com custo marginal muito baixo, exigindo-se, portanto, a presença de fortes economias de escala para que os custos sejam minimizados e a atividade viabilizada. Do mesmo modo como no caso das políticas de defesa da concorrência, as políticas de regulação visam a preservação, na medida do possível, do ambiente competitivo. Busca-se a prática de preços não monopolistas e a garantia da qualidade dos serviços prestados, bem como a incorporação e difusão de novas tecnologias e serviços mais modernos, tendo em vista favorecer a eficiência econômica e o bem-estar social.
De acordo com Xxxxxx, Xxxxx e Fagundes (1997), os dois grandes blocos de questões que particionam as políticas públicas de regulação, acima apresentados, podem ser definidos como padrões básicos da regulação, conforme se segue:
i. Regulação ativa: trata-se da regulação de serviços públicos de infraestrutura (utilities), de caráter mais diretamente interventivo; e
ii. Regulação reativa: é a regulação de mercados em geral destinada à prevenção e repressão de condutas anticompetitivas (ou antitruste), com característica de acionamento mais eventual, segundo motivações previstas em lei.
4 De acordo com Xxxxxx e Picard (2009), desde meados da década de 1980, países em desenvolvimento têm drasticamente reduzido suas participações estatais nas atividades de infraestrutura, com intuito de reestruturar esses setores. Para os autores, na maioria dos casos, os governos têm privatizado os ativos públicos por causa das condições críticas orçamentárias, seguindo diretrizes neoliberais do Banco Mundial e do FMI.
As principais diferenças entre os dois padrões derivam do fato de que a regulação ativa, diferentemente da reativa, constitui uma intervenção voltada não a induzir maior concorrência, mas a substituí-la por instrumentos e metas administrados publicamente em atividades econômicas caracterizadas pela presença de monopólios naturais. Nesse sentido, os autores destacam:
“O principal, mas não único pressuposto, como já observado, é o de que nesses casos uma estrutura de mercado mais competitiva levaria a maior ineficiência, devido à presença de significativas economias de escala (e escopo). Considera-se também que a presença de importantes economias externas para outros setores (outra típica “falha de mercado”) justifica a ação reguladora que, nesses setores - geralmente serviços de infraestrutura -, tem atuação permanente e de caráter interventivo, mantendo contínua monitoração do desempenho das empresas em questão” (POSSAS; PONDÉ; FAGUNDES, 1997, p. 8).
Por outro lado, a regulação reativa de mercados apoia-se na lei de defesa da concorrência, que basicamente lhe oferece como mecanismo apenas o controle preventivo de atos de concentração econômica, os quais podem no limite ser desconstituídos se houver forte presunção de graves prejuízos à concorrência; bem como multas e outras sanções no caso de infrações à lei decorrentes de condutas consideradas anticompetitivas. Portanto, a discussão sobre mecanismos de regulação dedica-se essencialmente à regulação ativa dos setores de infraestrutura em suas várias modalidades, como, por exemplo, o setor elétrico.
Nesse contexto, a regulação ativa dispõe de uma série de instrumentos para atuação. De forma geral, a regulação observada na experiência internacional nos setores de infraestrutura foca nos mecanismos de regras de tarifação. É possível definir um regime tarifário por meio das regras de fixação de preço das empresas reguladas, bem como pela estrutura de produtos/serviços que estas empresas ofertam. Algumas das modalidades mais usuais de regimes tarifários são destacadas por Pires e Xxxxxxxxx (1998):
i. Tarifação pelo custo do serviço ou regulação da taxa interna de retorno: a tarifação pelo custo do serviço, também conhecida como regulação da taxa interna de retorno, é o regime tradicionalmente utilizado para a regulação tarifária dos setores de monopólio natural. Através desse critério, os preços devem remunerar os custos totais e conter uma margem que proporcione uma taxa interna de retorno atrativa ao investidor;
ii. Tarifação pelo custo marginal: a ocorrência de oferta de multiprodutos em vários segmentos dos setores de infraestrutura (eletricidade e telecomunicações, por exemplo) leva à preocupação crescente com a distribuição mais racional dos custos. A tarifação pelo custo marginal procura transferir ao consumidor os custos incrementais necessários ao sistema para o seu atendimento. No caso do setor elétrico, sua principal motivação - aproveitando a característica multiproduto deste setor5 - é atingir maior eficiência econômica. As tarifas são, então, diferenciadas de acordo com as distintas categorias de consumidores (residencial, comercial, industrial, rural, etc.) e com outras características do sistema, tais como as estações do ano, os horários de consumo, os níveis de voltagem, as regiões geográficas etc.;
iii. Regulação pelo desempenho (yardstick competition): trata-se de uma regulação por incentivos, adotada nos casos de monopólio natural. Este instrumento procura introduzir estímulo à redução de custos entre as empresas, reduzir as assimetrias de informação existentes e estimular maior eficiência econômica. O regulador estabelece padrões de avaliação do desempenho das firmas, os benchmarks, utilizados no
5 Embora a indústria de energia elétrica tenha um único produto, as características de demanda (tipos, tamanhos e hábitos diferentes dos consumidores) e oferta (produção diferenciada por estações do ano, requerimentos de oferta diferentes por tipo de consumidor etc.) permitem segmentar a energia produzida em “diversos” produtos (PIRES; PICCININI, 1998).
acompanhamento de custos e preços, com intuito de induzir a aumentos de produtividade e redução de custos; e
iv. Price-cap: introduzido no contexto da reestruturação com privatização realizada na Inglaterra no setor elétrico, este mecanismo de fixação de tarifa compreende uma regra de reajuste por índice público de preços, acompanhada de previsão de redução de custos por aumento de produtividade, com o objetivo de estimular, de forma muito simples e transparente, a busca de aumento de eficiência microeconômica. A fórmula típica do preço (p) é dada por p = RPI - X, onde RPI é o índice de preços e X um redutor de produtividade predeterminado.
As discussões acerca da regulação de setores de infraestrutura têm como base a constatação de que estes possuem características que os diferenciam de forma significativa da grande maioria dos mercados de bens e serviços de uma economia. Essas especificidades são responsáveis por fazer com que o processo competitivo, que em outros mercados é considerado capaz de gerar resultados socialmente satisfatórios, passe a apresentar falhas ou distorções que exigem uma ação compensatória do Estado: a regulação econômica.
A indústria da eletricidade, por se tratar de um setor de infraestrutura, requer a presença atuante do Estado, seja esta por meio de uma regulação mais forte, nos segmentos de transmissão e distribuição, ou em uma regulação parcial, nos segmentos de geração e comercialização. A próxima seção dedica-se exclusivamente a analisar o setor elétrico e suas características estruturais, de modo a sistematizar a relação entre a regulação econômica e os segmentos que o compõem.
1.2. Regulação e o Setor Elétrico
Conforme salientado na seção anterior, a indústria da eletricidade é considerada uma indústria de infraestrutura. Mais especificamente, conforme assinalam Xxxx e Xxxxxxxxx (1997) e Xxxxxxxx (2009), trata-se também de uma indústria de rede. Entende-se como indústrias de rede o conjunto de indústrias dependentes da implantação de malhas (redes ou grids) para o transporte e distribuição ao consumidor dos seus respectivos produtos. Para Pinto Junior e Fiani (2013), as indústrias de rede são um caso especial de monopólio natural, que exploram a multiplicidade de relações transacionais entre os agentes econômicos situados em diferentes nós da rede, envolvendo um princípio de organização espacial e territorial. De acordo com os autores, as indústrias de rede podem ser caracterizadas, dentre outros, pela presença de:
i. Necessidade de equilíbrio instantâneo entre oferta e demanda, pelas dificuldades técnicas de estocagem;
ii. Extensa rede de interconexão entre agentes, implicando, do ponto de vista do consumidor, em menor flexibilidade em termos de mudança de fornecedores;
iii. Os segmentos de transporte e distribuição são caracterizados como exemplos clássicos de monopólio natural;
iv. Volatilidade de demanda no tempo, o que implica a existência de capacidade ociosa;
v. Economias de escopo associadas à coordenação dos produtores;
vi. Presença de economias de escala, sobretudo a nível de transporte e distribuição;
vii. Existência de externalidades;
viii. Elevados custos afundados (sunk costs6); e
ix. Forte efeito multiplicador econômico, tanto para frente – insumo básico para outras atividades – como para trás – grande demandante de capital e trabalho.
6 Custos afundados são os custos que, independentemente do que realize a empresa, não se podem recuperar (GILBERT, 1989).
Neste sentido, as indústrias de rede são consideradas, no todo ou ao menos em parte, objeto de uma dupla caracterização, conforme apontam Xxxx e Xxxxxxxxx (1997):
i. São entendidas como sujeitas a uma situação de monopólio natural, a elas intrínseca; e
ii. São marcadas pela presença de fortes elementos de serviço público, ou seja, elementos que as caracterizam como indústrias de importância estratégica, cujo funcionamento afeta o interesse geral da sociedade.
A conjunção dessas duas especificidades justifica, portanto, a necessidade de intervenção do poder público em indústrias de rede, incluindo a adoção de regulação econômica, como no caso da indústria da eletricidade.
Além das características gerais de uma indústria de rede, o setor elétrico possui a obrigação de fornecimento de um bem que se tornou essencial para a sociedade, a energia elétrica. Assim como outros serviços públicos de grande penetração social e importância econômica, o setor elétrico desempenha relevante papel no desenvolvimento econômico do país, sobretudo pelas externalidades positivas produzidas pelos investimentos e serviços oferecidos. Destaca-se, no caso brasileiro, os pilares que sustentam esse setor: segurança no abastecimento, modicidade tarifária e universalização. Tendo em vista esses pilares e sua essencialidade para a sociedade, reforça-se a necessidade de se regular esse setor estratégico, com o propósito de atender a estes objetivos (KESSLER, 2006).
De modo geral, a estrutura básica na qual a indústria da eletricidade está montada possui pouca variação na maioria dos países. De acordo com Xxxxxx (2000), o fornecimento de eletricidade é tradicionalmente dividido em quatro segmentos/funções separadas, quais sejam:
i. Geração;
ii. Transmissão;
iii. Distribuição; e
iv. Comercialização.
O mercado de eletricidade apresenta características particulares derivadas em parte dos aspectos técnicos da energia elétrica e da infraestrutura necessária para provê-la, e pelos atributos econômicos de cada segmento do setor. Nesse sentido, podem-se destacar duas características principais da eletricidade (BORESTEIN, 2002). Primeiro, de um ponto de visto técnico- econômico, a eletricidade não pode ser estocada, ao menos não em quantidades significativas e a custos razoáveis. Segundo, tendo em vista a primeira característica, que não torna factível estocar grandes quantidades de energia elétrica, esta deve ser produzida no momento em que se demanda, isto é, deve haver um equilíbrio instantâneo entre oferta e demanda por eletricidade.
Dadas as características principais da eletricidade, torna-se relevante compreender os atributos das atividades envolvidas no setor. Conforme destacado, as atividades geralmente presentes nas indústrias de eletricidade são a geração, transmissão, distribuição e comercialização. Um ordenamento natural das atividades se inicia pela geração elétrica, que é a primeira das atividades da cadeia produtiva. Esta consiste em transformar alguma classe de energia (térmica, mecânica, luminosa, entre outras) em energia elétrica. Destaca-se, de acordo com Xxxxxx (2000) e OECD e EIA (2001), que o segmento de geração não se caracteriza pela presença significativa de economias de escala, não se tratando, portanto, de uma estrutura de monopólio natural. Nesse sentido, segundo os autores, o segmento de geração pode ser classificado como sendo potencialmente competitivo.
Considerando a localização das fontes geradoras, que usualmente se encontram afastadas do centro de carga, surge a necessidade de se criar uma infraestrutura de transporte para a energia elétrica (EPE, 2005). Este transporte se realiza através das linhas de transmissão, as quais, na
maioria dos casos, cobrem longas distâncias com elevadas voltagens, a fim de se minimizar as perdas técnicas7 de energia. Trata-se, portanto, do segmento de transmissão. Em seguida, a atividade que permite levar a energia elétrica desde o sistema de transmissão ao consumidor final se denomina distribuição elétrica. Consiste em transportar a oferta de eletricidade dentro dos centros finais de consumo.
Em contraste com o segmento de geração, as atividades de transmissão e distribuição apresentam características de monopólio natural, isto é, proporcionam significativas economias de escala, sendo uma atividade capital-intensiva, com altos custos de investimento (muitos dos quais, custos afundados / sunk costs) e reduzidos custos marginais. Assim, quanto maior a produção/utilização do serviço, menores serão os custos médios. Por estas razões, seria ineficiente a presença de mais de uma empresa competindo pela mesma concessão. Conforme assinala Xxxxxxx (2006), em uma situação de monopólio natural, o ponto de equilíbrio não pode ser atingido somente pelas condições e atuação do mercado. Assim, cabe à regulação econômica ser o vetor que cria as condições para que os objetivos essenciais sejam atingidos, reduzindo a ineficiência e as perdas provocadas pelo poder de mercado que a estrutura de monopólio proporciona ao agente monopolista, resultando em menores preços. Portanto, pelas características econômicas desses segmentos, a presença de uma consistente e bem fundamentada regulação econômica torna-se imperativa, a fim de dar mais eficiência alocativa nos custos e nos benefícios como um todo.
Por fim, o segmento de comercialização pode ser dividido em dois, o atacado e o varejo. O atacado se refere principalmente à comercialização existente entre agentes geradores e distribuidores, além das transações que acontecem no mercado livre. Enquanto isso, o varejo
7 As perdas técnicas são aquelas inerentes ao transporte da energia elétrica na rede, relacionadas à transformação de energia elétrica em energia térmica nos condutores (efeito joule), perdas nos núcleos dos transformadores, perdas dielétricas, etc. Podem ser entendidas como o consumo dos equipamentos responsáveis pela distribuição de energia (ANEEL, 2017b).
diz respeito à comercialização que existe com os usuários regulados do serviço de eletricidade, ou seja, entre as distribuidoras e os consumidores cativos8. Do mesmo modo como observado no segmento de geração, a comercialização também pode ser classificada como um mercado potencialmente competitivo, justamente por não possuir grandes barreiras à entrada. Nesse sentido, conforme assinala GESEL/UFRJ (2014), a competição no segmento de liberalização pode ser verificada na prática em diversas situações, como no caso de geradores vendendo energia diretamente para consumidores, através do mercado livre, pactuando preços e condições de forma desregulada. No entanto, conforme salientam Lira, Aristondo e Navarro (2011), a comercialização apresenta algumas falhas de mercado, como a presença de externalidades, o que implica na necessidade de também se regular esse segmento, embora com menor intensidade do que se observa nas atividades de transmissão e distribuição.
O Quadro 1 fornece resumidamente os desenhos de mercado tradicionalmente encontrados em indústrias de energia elétrica, evidenciando suas diferentes atividades e as principais características econômicas de cada uma.
8 O funcionamento dos ambientes de contratação regulada – entre concessionárias de distribuição e consumidores cativos - e de contratação livre – que compreende as transações do mercado livre – serão explicadas ao longo da seção 3.1.3 deste trabalho.
Quadro 1 - Características Econômicas dos Segmentos do Setor Elétrico
Segmento | Características Econômicas | Implicações |
Geração | - Economias de escala limitadas à capacidade da planta; - Economias de coordenação no sistema; | - Potencialmente competitivo; - Regulação parcial; |
Transmissão | - Monopólio Natural; - Economias de escala; - Altos custos de investimento (inclusive sunk costs); - Reduzidos custos marginais; | - Necessidade de planejamento indicativo; - Forte regulação; |
Distribuição | - Monopólio Natural; - Economias de escala - Altos custos de investimento (inclusive sunk costs); - Reduzidos custos marginais; | - Forte regulação; |
Comercialização | - Baixos custos de investimento; - Presença de externalidades e características de bens públicos; | - Potencialmente competitivo; - Regulação parcial; |
Fonte: Elaboração própria com base em Kessler (2006) e Xxxxxxxxx, Xxxx e Xxxxxxx (2011).
Tendo em vista as possibilidades de se adotar mecanismos mais competitivos no setor elétrico, diversos países optaram por promover reestruturações de suas indústrias de energia elétrica a partir da década de 1980. De modo geral, a reestruturação se deu no sentido de uma desverticalização do setor como um todo, desmembrando grandes monopólios verticalmente integrados em concessionárias específicas para cada segmento do setor (KWOKA, 2008).
De acordo com Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxx (2000), o processo de reestruturação foi fortemente guiado pelas mudanças verificadas na atividade de geração, como o progresso tecnológico e os preços dos combustíveis, que tornaram economicamente viável a produção em plantas de menor tamanho. Além disso, observa-se a possibilidade de integrações regionais cada vez mais significativas, o que permitiu o aumento do mercado para geradores independentes. Essas mudanças, à primeira vista, levam à constatação de que o segmento de geração não mais precisaria de intervenções estatais, já que poderia se abrir à competição de diversos agentes geradores. Contudo, os autores ressaltam que uma série de fatores torna a geração de
eletricidade um caso muito mais complexo, como a inviabilidade de estocagem de eletricidade em larga escala e a necessidade de se equilibrar oferta e demanda instantaneamente.
Ao longo desta trajetória, a reestruturação passou a ser vista como um veículo para introduzir a concorrência de forma mais geral na indústria de energia elétrica, com expectativa de elevação da eficiência e redução dos custos como resultado dos objetivos da reestruturação. No entanto, na mesma direção da constatação de Xxxxxxxxxx e Bushnell, Kwoka (2008) destaca alguns problemas associados à busca por mercados de eletricidade mais competitivos, sobretudo pelas diferenças inerentes à indústria da eletricidade em comparação a outras indústrias que também passaram por reformas estruturantes, bem como por expectativas equivocadas em relação ao funcionamento do setor elétrico após sua reestruturação.
A título de exemplo, a reestruturação conduzida em alguns mercados dos Estados Unidos não tem implicado em uma facilidade de entrada de novas firmas no segmento de geração. Os defensores da reestruturação esperavam que a competição entre geradores existentes fosse complementada e aperfeiçoada por novos produtores independentes que adentrariam ao mercado. Os novos entrantes seriam caracterizados por uma escala mais eficiente, tecnologias superiores e uma melhor localização de suas plantas, auferindo, assim, custos mais baixos do que as plantas de geração já existentes. Esperava-se que essas forças reduzissem os custos de geração e, finalmente, os preços para os consumidores finais de eletricidade. No entanto, o trabalho de Xxxxx (2008) evidenciou que, na prática, há diversos impedimentos para que esse processo idealizado de novos entrantes na atividade de geração ocorra. Tais impedimentos incluem barreiras convencionais à entrada, como a presença de economias de escala e vantagens absolutas de custo por parte dos geradores incumbentes.
Esses impedimentos também incluem questões regulatórias, bem como uma variação de demanda e custo que provocam incertezas. Ocorre que tanto os investidores como os
fornecedores são avessos à incerteza, e os mercados de eletricidade reestruturados são caracterizados por incertezas substanciais, como a presença de forte volatilidade de preços, possivelmente impedindo a entrada de novos entrantes. Nesse sentido, Kwoka assinala que a presença da regulação econômica deve existir para reduzir as incertezas no segmento de geração.
Nesse contexto, o aparato regulatório deve servir, sobretudo, para garantir a estabilidade e confiabilidade do setor de energia elétrico, seja para investidores, seja para consumidores. Uma regulamentação bem construída, fundamentada e apropriada serve para minimizar essas questões indicadas. Por exemplo, as regras de comercialização devem fornecer a sinalização econômica adequada para induzir novos investimentos no segmento de geração. Além disso, inadequações verificadas na regulamentação devem ser aperfeiçoadas, visando, justamente, que descasamentos entre a regulamentação e a realidade operacional dos agentes sejam solucionados.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPANSÃO DO PARQUE GERADOR BRASILEIRO: DE 1970 A 2024
Historicamente, o desenvolvimento do Setor Elétrico Brasileiro (SEB) foi fortemente centrado em usinas hidroelétricas com grande capacidade de reservatório e de regularização da oferta, através de uma forte presença do Estado. Esse cenário se manteve relativamente estável até o final do século XX. Entretanto, o modelo de estruturação do SEB implementado ao longo da década de 1990 foi responsável por uma insuficiência de investimentos no setor elétrico, tanto na geração, quanto na transmissão de energia. Como consequência, o Brasil enfrentou a pior crise energética de sua história, a denominada “Crise do Apagão”, em 2001.
Constata-se, como consequência do insucesso da implantação do modelo de investimento privado da década de 1990 e, sobretudo, a partir da crise de 2001, que a matriz elétrica brasileira iniciou uma alteração significativa da sua composição, através de um novo modelo. Desde o início dos anos 2000, a participação da fonte hídrica vem se reduzindo paulatinamente, movimento compensado por um aumento constante da importância das usinas térmicas. Em outras palavras, pode-se afirmar que o SEB passou - nessas últimas duas décadas - por uma transição de uma matriz majoritariamente hídrica para uma chamada matriz hidrotérmica.
Tendo em vista esse cenário, torna-se relevante examinar como este processo de transição da matriz vem ocorrendo, desde o modelo de investimento estatal, passando pelo modelo de investimento privado e ao longo do no novo modelo, implementado a partir de 2004. Neste sentido, a primeira seção dedica-se a um breve histórico do setor, apresentando como a matriz elétrica evoluiu no período considerado. Posteriormente, a seção 2.2 evidencia como tem ocorrido a expansão das fontes renováveis na matriz elétrica brasileira, incluindo a mudança do perfil das usinas hidroelétricas e a inserção das fontes alternativas de geração. A seção 2.3 dedica-se ao exame da importância da fonte termoelétrica no processo de transição da matriz,
revelando os motivos pelos quais esta fonte tem se destacado e suas perspectivas de expansão. Por fim, são realizadas considerações finais acerca deste capítulo.
2.1. Breve Histórico do Setor Elétrico Brasileiro
Pode-se assinalar que o SEB, em termos da composição de sua matriz, apresenta uma posição singular em comparação ao resto do mundo. Enquanto 66,7% da energia elétrica mundial, no ano de 2014, advinham de recursos combustíveis fósseis (IEA, 2016), a participação das fontes renováveis respondeu por 73,16% da oferta total de eletricidade no Brasil. Mais especificamente, a fonte hídrica se destaca como o principal recurso para a geração de energia elétrica no país, tendo sido responsável por 63,24% da produção de 2014 (EPE, 2016a).
A importância da fonte hídrica fica ainda mais evidente quando se avalia o histórico recente de sua participação na geração de energia elétrica, mesmo durante o período de crise hidrológica, que perdurou entre os anos de 2012 e 2015. Conforme dados da Tabela 1, a geração hidráulica alcançou 80,55% da oferta total de energia elétrica de 2011, ainda antes do período de estiagem. Contudo, durante o período crítico, a produção hídrica observou significativa redução em sua participação. Por exemplo, em 2012, ano de início da crise, as centrais hidroelétricas passaram para um patamar de 75,18% da oferta total. Nos anos subsequentes, entre 2013 e 2015, a fonte hídrica obteve uma redução ainda maior, respondendo, respectivamente, por 68,49%, 63,24% e 61,87% (EPE, 2016a). Apesar das sucessivas reduções, deve-se ressaltar a importância da geração hidráulica para o sistema elétrico brasileiro. Mesmo durante toda a crise hidrológica, as usinas hídricas foram responsáveis por mais de 60% da geração elétrica total em todo o período considerado.
Tabela 1 - Participação na Geração Elétrica Total por Tipo de Fonte: 2011 – 2015 (em %)
2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | |
Gás Natural | 4,72 | 8,46 | 12,0 | 13,73 | 13,67 |
Hidráulica | 80,55 | 75,18 | 68,49 | 63,24 | 61,87 |
Óleo | 2,30 | 2,93 | 3,87 | 5,34 | 4,41 |
Carvão | 1,22 | 1,52 | 2,59 | 3,11 | 3,28 |
Nuclear | 2,94 | 2,90 | 2,71 | 2,60 | 2,53 |
Biomassa | 5,95 | 6,27 | 6,95 | 7,62 | 8,15 |
Eólica | 0,51 | 0,91 | 1,15 | 2,07 | 3,72 |
Outras9 | 1,81 | 1,81 | 2,14 | 2,30 | 2,36 |
Fonte: EPE, 2016a.
Para explicar a composição da geração de energia elétrica em anos recentes, deve-se recorrer à evolução da capacidade de geração nas últimas décadas. O Gráfico 1 ilustra a evolução da capacidade instalada (%), por tipo de fonte, entre os anos de 1974 e 2015. É possível constatar o predomínio histórico da fonte hídrica frente às demais fontes de geração10, chegando a um máximo de 87,36% no ano de 1996. Em termos absolutos, a capacidade instalada total do SEB, para o ano de 2015, foi de 140.857 MW. Desse total, a fonte hídrica respondeu por 91.650 MW (65,07%), as térmicas por 39.563 MW (28,09%), as usinas eólicas por 7.633 MW (5,42%), a nuclear por 1.990 MW (1,41%) e a solar fotovoltaica, por sua vez, por 21 MW (0,015%) (EPE, 2016b).
9 Inclui gás de coqueria, outras secundárias, outras não renováveis e outras renováveis, como a solar.
10 De acordo com a classificação apresentada pela EPE (2016b), a fonte térmica é constituída, dentre outros, por recursos de combustíveis fósseis (como óleo diesel, gás natural e carvão), e por usinas de biomassa, como, o bagaço de cana de açúcar.
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
Hídrica
Térmica Eólica Solar
Nuclear
20%
10%
0%
Gráfico 1 - Evolução da Participação na Capacidade Instalada por Tipo de Fonte: 1974 – 2015 (em %)
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
Fonte: EPE, 2016b.
Ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, a fonte hídrica experimentou um aumento contínuo de sua participação, com um movimento contrário sendo observado pelas usinas térmicas. Esse fenômeno pode ser entendido através do papel que a Eletrobras exerceu no setor elétrico brasileiro desde a década de 1960. No modelo de planejamento público, adotado a partir dos anos 1960, a estatal passou a ser responsável pela operação das usinas, gerenciamento do sistema integrado, planejamento da expansão de longo prazo e investimento em usinas e linhas de transmissão, assumindo papel de holding verticalizada observado em outros países desenvolvidos e em desenvolvimento (SANTOS et al., 2008).
Contudo, o padrão de financiamento público baseado nas empresas estatais mostrou-se insustentável nos anos 1980 com a crise internacional, revelando a necessidade da adoção de um novo modelo de financiamento. Calcada em experiências liberais de outros países, a opção econômica e política foi permitir que o investimento privado assumisse a responsabilidade
sobre o planejamento e a expansão da capacidade produtiva do SEB, através da implantação de um novo modelo fundamentado na privatização de ativos públicos (CASTRO; ROSENTAL, 2016).
No entanto, conforme avaliação de Tolmasquim (2000), o novo modelo de estruturação do SEB, implementado ao longo da década de 1990, foi responsável pela insuficiência de investimentos necessários no setor elétrico, tanto na geração, quanto na transmissão de energia. A título de exemplo, entre os anos de 1990 e 2000, o consumo de energia elétrica cresceu 49%, enquanto a capacidade produtiva foi expandida em 35% (TOLMASQUIM, 2000). Ou seja, o Brasil ingressara numa espécie de vácuo, onde Estado e iniciativa privada investiam muito menos do que o necessário. A consequência desse cenário foi a pior crise energética que o Brasil já enfrentou, denominada “Crise do Apagão”, vivida em 2001. Pode-se afirmar que a principal causa dessa crise, de natureza estrutural, foi o processo de privatização do setor elétrico brasileiro, iniciado em 1990, com o Plano Nacional de Desestatização, que impôs uma falta de investimento ocasionada pelo marco regulatório vigente, priorizando, num primeiro momento, as privatizações, ou seja, a troca de propriedade de ativos, prejudicando os investimentos (XXXXX, 2007).
Constata-se, através do Gráfico 1, que, como consequência do insucesso da implantação do modelo de investimento privado e, sobretudo, a partir da crise do apagão, a matriz elétrica brasileira iniciou uma alteração significativa da sua composição, através de um novo modelo. Desde o início dos anos 2000, a participação da fonte hídrica vem se reduzindo paulatinamente, movimento compensado por um aumento constante da importância das usinas térmicas. Em outras palavras, pode-se afirmar que o SEB passou - nessas últimas duas décadas - por uma transição de uma matriz majoritariamente hídrica para uma chamada matriz hidrotérmica.
Deve-se destacar que, na composição das usinas térmicas apresentadas no Gráfico 1, estão incluídos os recursos de biomassa. Essa fonte apresenta forte crescimento a partir de 2004, ano de criação do PROINFA. O objetivo básico desse programa era estimular e promover a diversificação da composição da matriz elétrica brasileira por meio de incentivos às fontes alternativas, visando, em última instância, aumentar a segurança energética do país (CORRÊA, 2015). Em decorrência desse programa, a participação da biomassa na geração de eletricidade total passou de 3,22%, em 2004, para 8,15%, em 2015 (CORRÊA, 2015; EPE, 2016a).
Outra fonte que merece destaque é a eólica, observando um aumento bastante significativo de sua participação na geração total do país. Também como consequência inicial e de estímulo promovido pelo PROINFA, esta fonte, que detinha apenas 0,02% da geração total de 2004, passou para uma participação de 3,72% do total gerado em 2015 (CORRÊA, 2015; EPE, 2016a). Ressalta-se, ainda, o forte crescimento de sua capacidade instalada em anos recentes. Entre os anos de 2011 e 2016, a taxa média de crescimento anual da capacidade produtiva das usinas eólicas foi de 53,61% (ABEEÓLICA, 2016; EPE, 2016a).
Conforme salientam Castro, Brandão e Dantas (2010), o crescimento de fontes renováveis alternativas, sobretudo a eólica e a biomassa oriunda da cana de açúcar, é fundamental para a expansão do SEB, justamente por suas características de geração complementar ao regime de afluências. A expectativa para os próximos anos é de que a haja forte expansão dos projetos eólicos, combinado com uma gradativa inserção da geração solar fotovoltaica na matriz. Contudo, apesar da contribuição para o equilíbrio energético do setor elétrico, as fontes eólica e solar apresentam característica de intermitência, evidenciando a necessidade de complementar o parque gerador com a expansão de fontes de caráter controlável, o que pode ser obtido através da ampliação da capacidade das usinas termoelétricas.
Tendo em vista a contínua redução da capacidade produtiva da fonte hídrica e a crescente importância das fontes térmicas - fósseis e de biomassa -, bem como da energia eólica e solar fotovoltaica, faz-se necessário analisar mais a fundo como essas fontes têm evoluído e, sobretudo, seus papéis na expansão do parque gerador brasileiro. Nesse sentido, a seção 2.2 busca apresentar análise da expansão das fontes renováveis, incluindo as centrais hidroelétricas, as usinas eólicas, de biomassa e as plantas solares. Um estudo específico sobre a importância das termoelétricas para o sistema é realizado na seção 2.3. Por fim, considerações finais acerca da expansão do SEB são feitas na seção 2.4.
2.2. Expansão das Fontes Renováveis
Esta seção se dedica a estudar a expansão das fontes renováveis no SEB, levando em conta o histórico recente e o crescimento projetado para cada recurso. Além disso, busca apontar as principais considerações acerca da expansão de cada fonte.
2.2.1. Considerações e Perspectivas do Parque Hídrico
Conforme apresentado na seção anterior, mesmo considerando a redução da participação da fonte hídrica na potência instalada total nos últimos anos, é possível afirmar que esta fonte permanecerá sendo predominante na matriz brasileira. Essa afirmativa é reforçada quando se avalia os projetos de geração hidráulica contratados em anos recentes e a expansão planejada para esta fonte até 2024. De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 (PDE 2024)11 (MME; EPE, 2015), no decênio 2014 – 2024, a expansão prevista para o Sistema
11 Deve-se ressaltar que o Plano Decenal de Energia possui caráter indicativo. A expansão efetiva do sistema fica a cargo da contratação resultante dos leilões de geração, mecanismo que será explicado no capítulo 3 desse trabalho.
Interligado Nacional (SIN) para atender à carga projetada é de 73.569 MW12 de capacidade instalada, representando 55% de acréscimo na oferta de energia elétrica, sendo que os projetos hídricos correspondem a 28.349 MW deste total.
Tendo em vista que os empreendimentos de geração exigem um período entre a construção e a entrada em operação, faz-se necessário que esses projetos sejam contratados com prazos compatíveis com seus tempos de implantação. Nesse sentido, o Brasil efetua, em conformidade com a Lei nº 10.848 de 2004, os leilões A-3 e A-5 para compra de energia com três e cinco anos de antecedência, respectivamente. Como consequência, no momento de publicação do PDE 2024, em 2015, havia um parque de geração já contratado e em implantação de aproximadamente 41.500 MW (56% da expansão planejada para o decênio), contratados através de leilões A-5 e A-3 já realizados. Dessa forma, a oferta a ser viabilizada nos leilões futuros, com previsão para entrada em operação até 2024, corresponde a aproximadamente 32.700 MW (44% da expansão), conforme apresentado no Gráfico 2. Ressalta-se que usinas termelétricas à biomassa, pequenas centrais hidroelétricas (PCH), eólicas e solares estão agregadas no componente “outras fontes renováveis”.
12 Esta expansão leva em consideração a potência instalada da Usina de São Luiz do Tapajós, com 8.040 MW. No entanto, por decisão do Instituo Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o licenciamento deste empreendimento foi arquivado (VALOR ECONÔMICO, 2016).
Gráfico 2 - Acréscimo de Capacidade Instalada Contratada e Planejada até 2024 (em MW)
Fonte: MME e EPE, 2015.
Pode-se, ainda, avaliar a expansão do sistema elétrico brasileiro de acordo com o acréscimo anual em termos da capacidade instalada de cada fonte, conforme ilustra o Gráfico 3. Depreende-se destes dados que a fonte hídrica será responsável por adicionar 27.183 MW de capacidade instalada até 2024, ou 36,95% do total projetado, sendo, portanto, a fonte com maior contribuição para a expansão neste decênio (MME; EPE, 2015).
Gráfico 3 - Acréscimo Anual de Capacidade Instalada por Fonte: 2015 - 2024 (em MW)
Fonte: MME e EPE, 2015.
Cabe, no entanto, observar que as características das usinas hidroelétricas contratadas nos últimos anos distinguem-se fundamentalmente daquelas observadas nas usinas que pautaram o desenvolvimento histórico do setor elétrico brasileiro ao longo do século XX. A mesma constatação se aplica ao potencial remanescente, que se encontra na Região Amazônica. De forma geral, as usinas construídas ao longo das últimas décadas caracterizam-se pela presença de grandes reservatórios de armazenagem, capazes de regularizar a variabilidade das afluências e, consequentemente, os fluxos de geração hidrelétrica (BICALHO, 2014). Além disso, para este autor, a expansão do sistema elétrico brasileiro se aproveitou da diversidade hidrológica existente entre as bacias e regiões, explorando ao máximo a capacidade dos reservatórios, de tal modo a obter uma grande capacidade de regularização do “estocástico regime pluviométrico”. Para tanto, os reservatórios devem ser capazes de estocar energia suficiente para abastecer o mercado durante o período seco do ano, ou seja, precisam chegar relativamente cheios ao fim da estação úmida.
Esta dinâmica pôde ser observada em grande parte das bacias já exploradas, como nos casos dos afluentes do rio Paraná e do São Francisco. Nestas bacias foram construídas represas que ocupam vales profundos, com capacidade de estocar um enorme volume de água (energia), sobretudo pela existência de aproveitamentos a jusante (CASTRO; BRANDÃO; DANTAS, 2010). De acordo com dados disponíveis sobre os reservatórios de água do Brasil (ONS, 2017a), é possível identificar que apenas seis reservatórios, de três bacias distintas, são responsáveis por praticamente metade da energia armazenada do SIN, quais sejam, Emborcação, Nova Ponte e Itumbiara (Rio Paranaíba), Furnas (Rio Grande) e Três Marias e Sobradinho (Rio São Francisco).
Em suma, o paradigma prevalecente no SEB no século XX teve como base a regularização da oferta de energia ao longo do ano através do armazenamento de água em grandes reservatórios, com complementação de termoelétricas apenas em situações de hidrologia desfavorável. Neste sentido, conforme assinala Romeiro (2015), “a complementação térmica foi concebida para ser totalmente flexível, de modo a operar esporádica e pontualmente em situações hidrológicas adversas, traduzindo-se em uma disponibilidade térmica latente preferencialmente evitada” (p. 4).
Em contraponto ao observado nas usinas hidrelétricas construídas ao longo do último século, a expansão hídrica mais recente se baseia em usinas fio d’água, empreendimentos sem armazenamento ou com pequenos reservatórios capazes de armazenar água por apenas algumas horas ou dias, impondo uma tendência de redução da capacidade de regularização da oferta hídrica ao longo do ano. Este fenômeno está associado mais diretamente a dois fatores. Conforme xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxx e Xxxxxx (2010), o primeiro fator diz respeito a um maior rigor das legislações ambientais, enquanto o segundo está relacionado às questões geográficas
/ técnicas das áreas onde se encontra o potencial hídrico remanescente:
“Por um lado, a construção de barragens com grandes reservatórios passou a sofrer restrições dos órgãos ambientais, que condenam e impedem aproveitamentos com elevada razão entre a área alagada e a capacidade instalada. Por outro lado, o potencial hídrico remanescente concentra-se na Região Norte, onde predominam rios que cortam grandes planícies. A topografia suave da região e os baixos desníveis fazem com que mesmo represas alagando áreas extensas armazenem volumes relativamente modestos de energia, tornando a construção de reservatórios de regularização difícil de justificar” (CASTRO; BRANDÃO; DANTAS, 2010, p. 10).
Em virtude dessa tendência, pode-se afirmar que o sistema de geração hidroelétrico brasileiro se encontra em processo de transição. Desde 2005, quase a totalidade das usinas hidrelétricas contratadas não apresentam reservatórios de água. De acordo com o PDE 2024, apenas as usinas São Roque, Baixo Iguaçu e Sinop, com entradas em operação previstas para 2018, serão capazes de contribuir com aumento da quantidade de energia armazenável do sistema (MME; EPE, 2015). Esta mesma constatação se aplica aos projetos de geração planejados. O potencial hidráulico remanescente, localizado majoritariamente na região Norte do país, não é apropriado para construção de usinas com reservatórios. Como consequência, pode-se apontar que as novas hidrelétricas, embora possam apresentar grande capacidade instalada, possuem pouca capacidade de regularização, ou seja, baixa geração efetiva no período seco (CASTRO; BRANDÃO; DANTAS, 2010).
Neste contexto, Xxxxxx, Xxxxxxx e Dantas (2010) apontam a Usina de Tucuruí como um caso emblemático. Trata-se de uma grande hidrelétrica, com capacidade instalada de 8.340 MW, localizada na bacia do Rio Tocantins, no Pará. Na estação úmida, a usina consegue utilizar toda a potência instalada que dispõe, inclusive com vertimento de água. Contudo, no período seco do ano, a geração dessa hidrelétrica se restringe a pouco mais de 2.000 MW médios. Este fenômeno se dá em decorrência das variações das vazões naturais da bacia em que está localizada, combinadas com a inexistência de reservatórios, ou seja, a incapacidade de regularização de sazonalidades desse projeto.
Os autores apontam ainda outro exemplo, que ilustra o comportamento das usinas hidrelétricas que estão sendo construídas ou planejadas para a expansão do sistema: a hidrelétrica de Belo Monte. Com 11.233 MW de potência total, e situada na bacia do Rio Xingu, esta usina tem previsão de conclusão total das obras em 2019 (MME; EPE, 2015). Contudo, Belo Monte está localizada em um ponto do rio onde a vazão média varia de 18 mil m3/s, no auge da estação úmida, a 1,1 mil m3/s, no período de seca. Esta situação se revela como uma grande adversidade pelo fato de não haver reservatório capaz de regularizar esta variação de vazão. Esta questão também se apresenta como relevante em outras bacias e rios brasileiros. Do mesmo modo como verificado na usina de Belo Monte, não há projetos de construção de reservatórios capazes de regularizar de forma satisfatória a vazão de outros importantes rios, como o Madeira, Tapajós e Teles Pires, que constituem as principais frentes de avanço da fronteira hidroelétrica na Amazônia (CASTRO; BRANDÃO; DANTAS, 2010).
A questão da capacidade de regularização e sua relação com o mercado é tão importante que o PDE 2024 (MME; EPE, 2015) dedica um de seus capítulos somente a estudá-la. Conforme destaca o plano:
“A relação entre a Capacidade de Armazenamento e o Mercado é um parâmetro que auxilia na avaliação da segurança do sistema ao longo do horizonte de planejamento, já que os reservatórios constituem a forma mais adequada de estoque de energia para garantir o fornecimento nas situações mais críticas. Como novas fontes de energia vêm sendo inseridas na matriz energética brasileira, com diferentes perfis e características de geração não controláveis, essa característica dos reservatórios assume importância cada vez maior, exigindo análise cuidadosa da variação do grau de dependência do SIN aos reservatórios e das políticas de operação, para o atendimento ao mercado de energia ao longo dos anos” (p. 97).
De acordo com o PDE 2024 (MME; EPE, 2015), apesar do aumento expressivo na capacidade instalada de usinas hidrelétricas no decênio analisado, o acréscimo da capacidade de armazenamento, neste período, é de apenas 2,6 GWmed, o que corresponde a aproximadamente
1% do total existente em 2015. Por outro lado, a taxa projetada de crescimento para o mercado é de aproximadamente 45%, ou seja, espera-se que a carga seja aumentada em 29.213 MWmed entre os anos de 2014 e 2024. Portanto, um crescimento bem superior ao observado para a energia armazenável.
Pode-se, assim, concluir que gradativamente a energia estocada nos reservatórios dos empreendimentos de hidroeletricidade representará uma proporção cada vez menor da carga anual, indicando uma capacidade de regularização também decrescente. O Gráfico 4 ilustra essa tendência de redução da capacidade de regularização através da razão entre a capacidade de energia armazenável máxima dos reservatórios e a carga, entre os anos de 2013 e 2021. Segundo Chipp (2013, apud GESEL/UFRJ, 2013, p. 42), a capacidade de regularização estimada de 2013 era de 5,4, ou seja, significa que os reservatórios, quando completamente cheios, podem armazenar energia equivalente à carga de 5,4 meses. Conforme se depreende desse gráfico, a razão é sempre decrescente, chegando a um nível de 3,3 no ano de 2021, isto é, pouco mais de três meses.
Gráfico 4 - Razão entre Capacidade Energia Armazenável Máxima dos Reservatórios e Carga: 2013 - 2021
Fonte: Chipp, 2013 (apud GESEL/UFRJ, 2013, p. 42).
Outra característica decorrente da construção de novos empreendimentos hidroelétricos a fio d’água é o impacto cada vez maior da sazonalidade na geração hídrica. Dessa forma, espera-se que haja um grande contraste entre a energia disponível no período úmido e no período seco, principalmente nas bacias dos rios Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins.
Nesse contexto de redução da capacidade de regularização e de maior influência da sazonalidade na geração hídrica, devem-se buscar alternativas para minimizar os impactos desse novo perfil do parque hídrico. Nesse sentido, uma medida será utilizar reservatórios de usinas localizadas fora da região Norte para acúmulo de água em seus períodos úmidos, de tal modo que se utilize esse estoque de água durante os meses de menor afluência da região Norte. Contudo, duas importantes restrições limitam a aplicação dessa alternativa. Primeiro, muitos dos reservatórios atuais não são adequados a uma operação em regime anual, dado que uma única estação chuvosa pode não ser suficiente para encher de forma plena seus reservatórios. Segundo, mesmo que a quantidade de energia armazenada esteja em níveis satisfatórios ao final do período úmido, nada garante que ela esteja distribuída entre os reservatórios de tal forma que seja suficiente para atender à carga durante o período de baixa afluência.
Dado esse cenário, conforme concluem Castro, Brandão e Dantas (2010), é imperativo o uso de recursos de geração não hídricos no SEB, de forma complementar ao período de baixa afluência, mesmo em anos de hidrologia normal, dando, assim, maior segurança ao suprimento. Deve-se ressaltar que essa necessidade (emprego de recursos não hídricos) será cada vez maior, em função do crescimento da carga nos próximos anos, sobretudo quando se considera o horário de ponta no auge da estação seca. Nesse sentido, observa-se que o processo de diversificação da matriz elétrica é uma das principais estratégias que deve ser adotada pelo planejamento da expansão do sistema. Para seguir essa estratégia, o Brasil dispõe de uma gama de fontes as quais
pode se utilizar, como as fontes renováveis alternativas, abordadas na seção 2.2.2., e geração termoelétrica, que será analisada mais adiante, na seção 2.3.
2.2.2. Fontes Renováveis Alternativas
Para fazer frente ao seu crescimento da demanda projetado para os próximos anos de forma segura, econômica e com respeito à legislação ambiental, o Brasil dispõe de grande potencial energético, com destaque para as fontes renováveis de energia. Deve-se destacar o papel fundamental das fontes renováveis alternativas, quais sejam, usinas eólicas, biomassa e plantas solares.
Conforme se depreende da Tabela 1, e do exposto na seção 2.1, nota-se uma forte expansão desses recursos alternativos na participação da geração de eletricidade brasileira, sobretudo das usinas eólicas e de biomassa. Além disso, de forma estratégica, o planejamento do sistema se baseia em grande aumento da participação dessas fontes na capacidade instalada total. Os Gráficos 2 e Gráfico 3 servem para ilustrar essa tendência, apontando que, no decênio 2015- 2024, estas fontes deverão crescer a uma taxa média de 10% ao ano. Este crescimento representa um acréscimo de 34.965 MW à capacidade instalada total, sobretudo nas regiões Nordeste e Sudeste/Centro-oeste (MME; EPE, 2015).
Mais especificamente, o Gráfico 2 evidencia que, em 2015, cerca de 15.000 MW já haviam sido contratados. O restante, portanto, aproximadamente 20.000 MW, reflete a projeção do planejamento da expansão do sistema. De acordo com dados fornecidos pelo PDE 2024 (MME; EPE, 2015), compilados na Tabela 2, a participação relativa das fontes de geração renováveis alternativas (eólica, biomassa e solar, dentre outras) saltará de 16,2%, em 2014, para 27,3%, em 2024. Isto significa que, de acordo com a projeção do planejamento, mais de um quarto da
matriz elétrica de geração brasileira será composta por fontes alternativas no ano de 2024.
Somando-se o potencial hídrico convencional, espera-se que as fontes renováveis alcancem uma participação de 84,0% da capacidade instalada total do país ao final do decênio avaliado.
Tabela 2 – Evolução da Participação Relativa das Fontes de Geração Alternativas na Capacidade Instalada Total: 2015 – 2024 (em %)
2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
16,2% | 17,7% | 19,1% | 20,2% | 20,9% | 21,0% | 21,0% | 22,7% | 24,4% | 26,0% | 27,3% |
Fonte: Elaboração própria com base em MME e EPE, 2015.
Considerando este cenário de crescente importância dos recursos alternativos, faz-se necessário, então, estudar como se dará a evolução de cada fonte especificamente, apontando as principais considerações que norteiam suas expansões.
Iniciando a análise pela energia solar, pode-se constatar que esta ainda se caracteriza por apresentar uma evolução ainda bastante incipiente. Por exemplo, apenas em anos recentes verifica-se a contratação desta fonte via mecanismo de leilão. Os projetos contratados nos leilões de 2014 e 2015 somam uma potência de apenas 2.652,8 MW. Neste sentido, a possibilidade de enquadramento como mini ou microgeração distribuída, através da promulgação da Resolução Normativa nº 482 de 2012, consiste em um vetor fundamental de desenvolvimento para esta fonte (MME; EPE, 2015).
No entanto, a expectativa é de crescimento da participação dessa fonte na capacidade instalada do SIN. De acordo com o PDE 2024 (MME; EPE, 2015), projeta-se uma capacidade instalada de 7 GW ao final de 2024. Em função do tratamento regulatório oferecido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), espera-se que a expansão da solar fotovoltaica ocorra essencialmente em termos de microgeração. A estimativa é que a geração solar distribuída responda por algo entre 1 e 2,5 % da carga até 2030. Dentre os prós e os contras associados ao desenvolvimento dessa fonte, o Dantas (2016) destaca que:
“A energia solar fotovoltaica possui uma característica que torna sua inserção desejável no sistema elétrico brasileiro: é o caráter complementar em relação à energia eólica, sendo relevante o fato de que os potenciais de geração eólica e de geração solar possuem concentração relativamente coincidente, destacando-se as potencialidades da Região Nordeste. Logo, a exploração conjunta destas fontes é uma estratégia pertinente para o atendimento da carga da Região Nordeste. De todo modo, embora contribua para o equilíbrio energético do sistema, é importante enfatizar que a energia solar fotovoltaica também é caracterizada pela natureza intermitente. Desta forma, sua difusão acaba por aumentar a possibilidade de um déficit de potência no sistema” (Dantas, 2016, p. 18).
Dentre as fontes ditas alternativas, a que apresenta maior participação na composição atual da matriz elétrica é a biomassa. A título de exemplo, conforme já mencionado, as térmicas movidas a biomassa responderam por 8,15% do total ofertado (EPE, 2016a). De acordo com dados do Banco de Informações de Geração da ANEEL (2017a), a biomassa possui atualmente pouco mais de 14.000 MW, ou seja, levemente superior à potência total de Itaipu.
Mais especificamente, destacam-se os empreendimentos que utilizam resíduos do processamento industrial da cana-de-açúcar (etanol e açúcar), sobretudo o bagaço. Conforme assinalam Xxxxxx et al. (2010, p. 17), a eletricidade oriunda das usinas sucroenergéticas é, por definição, “um processo eficiente e sustentável em termos ambientais por se tratar de uma produção de energia a partir da biomassa residual da produção de etanol e de açúcar utilizando o processo de cogeração”. A capacidade instalada desses empreendimentos responde por aproximadamente 75% do total da potência da biomassa (UNICA, 2017). Em termos de geração, entre janeiro e novembro de 2016, a biomassa da cana-de-açúcar respondeu por 90% do total ofertado pelas usinas movidas a biomassa.
O potencial de geração a partir da cana-de-açúcar está localizado majoritariamente nos estados de São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Paraná, ou seja, tal como as PCHs, próximo aos maiores centros de carga. Estes empreendimentos apresentam ainda outra grande
vantagem. Como as principais usinas canavieiras encontram-se localizadas nas regiões Sudeste
e Centro-oeste, com a safra acontecendo entre os meses de abril/maio e novembro, há grande complementaridade com o regime hidrológico da região Centro-Sul, onde está concentrada a maior parte dos reservatórios de acumulação das usinas hidrelétricas. Isto significa que o grosso de sua geração se dá em no período de baixa afluência dessas usinas, contribuindo, dessa forma, para amenizar o processo de deplecionamento dos reservatórios dessa região. O Gráfico 5 ilustra a complementaridade existente entre a Energia Natural Afluente (ENA) e moagem de cana na região Centro-Sul, ambos para o ano de 2008.
Gráfico 5 - Safra da Cana e Energia Natural Afluente (% mês com maior oferta) – 2008
Fonte: Xxxxxx et al., 2010.
No entanto, apesar do potencial técnico de produção de energia para o SIN ser da ordem de 7 GWmed13, deve-se ressaltar que os investimentos necessários para o desenvolvimento dessa fonte estão sujeitos à volatilidade do setor sucroalcooleiro. Isto significa que, dependendo das condições verificadas no setor industrial de produção de etanol e de açúcar, poderá haver um desestímulo à ampliação da capacidade de geração da biomassa canavieira.
13 Considerando o aproveitamento ótimo do bagaço de cana.
Gráfico 6 – Evolução da Capacidade Instalada Nova e Acumulada: 2005 – 2020 (em MW)
Fonte: ABEEÓLICA, 2017.
As contratações dos últimos anos demonstram que os empreendimentos eólicos atingiram preços bastante competitivos. Além disso, esta forte expansão tem ajudado a impulsionar a
instalação de uma indústria nacional de equipamentos para o atendimento deste mercado. Dessa
forma, conforme salientam o MME e a EPE (2015, p. 91), “esta fonte, ainda com grande potencial a ser explorado, se consolida como um dos principais componentes para a expansão da matriz de energia elétrica do Brasil”.
É interessante notar que o potencial eólico brasileiro está bastante concentrado na região Nordeste. De acordo com dados do Atlas do Potencial Eólico Brasileiro (AMARANTE; XXXX; SÁ, 2001), esta região responde por mais da metade da capacidade brasileira, que é estimada em 143,5 GW14 (ou 272,2 TWh/ano em termos de geração). Tal potencial se origina, sobretudo, pela intensidade e regularidade que os ventos dessa região apresentam. Neste sentido, é compreensível que a maior parte dos projetos contratados se localizem na região Nordeste do país, conforme se verifica na Tabela 3 para os anos 2009 a 2015.
Tabela 3 - Contratação de Projetos Eólicos por Subsistema: 2009 - 2015
Subsistema | Nº de Projetos | Potência (MW) | Garantia Física (Mwmed) |
Nordeste | 505 | 13.065,80 | 6.158,60 |
Sul | 85 | 1.810,90 | 740,30 |
Norte | 10 | 297,60 | 140,20 |
Total | 600 | 15.174,30 | 7.039,10 |
Fonte: Dantas, 2016 (apud CCEE, 2017).
14 Considerando torres de até 50 m de altura. Com a expansão do setor, boa parte dos estados brasileiros está revendo o seu potencial, agora para torres de 120 m ou mais. Há a previsão de que o potencial chegue a 350 GW (MME, 2016).
complementaridade entre a energia hídrica e a eólica, comparando o regime hídrico do rio São Francisco com os ventos do estado do Ceará.
Gráfico 7 – Exemplo de Complementaridade entre Energia Hídrica e Eólica
Fonte: Xxxxxx et al., 2010.
Nestes termos, pode-se concluir, do mesmo modo que para a biomassa, que a inserção em larga escala da energia eólica no SEB contribuirá de forma positiva para conter o deplecionamento dos reservatórios, isto é, diminuindo a intensidade de utilização da água (energia) desses armazenamentos no período de seca. Porém, embora esta complementariedade contribua para o equilíbrio energético, deve-se enfatizar que a energia eólica é uma fonte intermitente. Isto significa que sua inserção implica em maiores dificuldades, por questões de ordem técnica, à operação do sistema. Além disso, acaba por acentuar o problema do atendimento da ponta do sistema. Soma-se à intermitência o fato de parques eólicos, de forma geral, estarem distantes
dos centros de carga, ou seja, implicam na necessidade de se investir em reforços na rede de transmissão. Nota-se, portanto, que essas dificuldades e restrições devem ser incorporadas na análise de competitividade dos projetos, apesar dos benefícios associados.
Pode-se mencionar, ainda, o papel das pequenas centrais hidroelétricas (PCH)15 no SEB. Trata- se de uma tecnologia já em fase madura e com custos unitários de produção estáveis. Entretanto, apesar dos benefícios associados à exploração desse recurso, esta fonte não tem se mostrado muito competitiva. Isto ocorre, principalmente, por questões relacionadas ao processo de licenciamento ambiental e pelo preço da construção civil. Como resultado, observa-se que os leilões realizados ao longo do ano de 2014 contrataram apenas 45 MW de potência instalada de PCHs (MME; EPE, 2015). Contudo, estimular a expansão desse recurso pode ser bastante interessante em termos estratégicos para o sistema. Um primeiro benefício direto está relacionado ao fato de as PCHs serem uma fonte de geração distribuída, ou seja, permitem que haja relativa proximidade entre as usinas geradoras e os grandes centros de carga. Mas, além disso, as PCHs apresentam outra interessante característica: de modo geral, são relativamente controláveis. Isto significa que podem ser utilizadas para atendimento da ponta, com adicional de serem limpas e eficientes.
A título de conclusão desta seção, pode-se assinalar que a análise da expansão das fontes renováveis indica para a crescente participação de geração não controlável no sistema elétrico brasileiro, como decorrência da redução da capacidade de regularização das usinas hidroelétricas, bem como pela maior presença de fontes alternativas de geração intermitentes. Portanto, é notória a necessidade de mecanismos que permitam com que essas novas características do parque gerador brasileiro não comprometam a segurança do suprimento,
15 De acordo com definição da ANEEL, as pequenas centrais hidroelétricas são empreendimentos destinados a autoprodução ou produção independente de energia elétrica, cuja potência seja superior a 3.000 kW e igual ou inferior a 30.000 kW e com área de reservatório de até 13 km² (ANEEL, 2015a)
especialmente no que diz respeito ao atendimento da ponta em períodos de baixa afluência. Neste sentido, será cada vez mais necessária a presença de novas fontes geradoras com energia controlável, papel este que terá que ser desempenhado pela geração térmica movida a combustíveis fósseis.
2.3. A Importância das Termoelétricas
Conforme exposto nas seções anteriores, há uma continua redução da capacidade do sistema hídrico em regularizar a disponibilidade de energia. Com intuito de preservar a segurança do abastecimento, a diversificação da matriz se faz absolutamente necessária. Mais especificamente, pode-se afirmar que será imprescindível a presença de um robusto parque de usinas termoelétricas - movidas a combustíveis fósseis - por dois motivos principais:
i. Necessidade de contratação de térmicas que sejam capazes de operar na base
ii. Necessidade de geração controlável adequada para operação na ponta do sistema.
A operação de térmicas atuando na base permite que haja um enchimento mais rápido dos reservatórios das usinas hídricas em períodos úmidos, além de conduzir a um deplecionamento mais lento desses reservatórios nos meses de baixa afluência. Por outro lado, é importante para o sistema possuir térmicas de partida rápida específicas para reforçar o atendimento da ponta.
Nesse sentido, de acordo com classificação de Xxxxxx, Brandão e Dantas (2010, p. 14), o parque térmico brasileiro pode ser dividido em usinas de dois tipos, conforme se segue:
i. Térmicas inflexíveis: que, devido às suas características técnicas (cogeração, energia nuclear), ou em respeito às cláusulas take-or-pay em seus contratos de fornecimento de combustível, requerem uma operação com menor variação, sendo capazes e mais
indicadas para operar de forma contínua na base.
ii. Térmicas flexíveis: são usinas com caráter de despacho controlável, isto é, que podem ser solicitadas pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), quando necessário, para operação de ponta, sobretudo tendo em vista seus tempos relativamente baixos de partida e parada.
Considerado que as térmicas inflexíveis funcionam como fonte regular de energia, não estando sujeitas às incertezas do regime de chuvas, trata-se de uma fonte previsível de suprimento de energia. Por esta razão, essa classe de térmica permite uma operação de base, implicando em uma menor necessidade de se utilizar os reservatórios dos projetos de geração hídrica.
Em contrapartida, as térmicas flexíveis constituem uma reserva de energia. Ou seja, funcionam como uma espécie de backup do parque hídrico, concebido para atuar esporadicamente, em períodos de hidrologia desfavoráveis, ou seja, com elevado nível de ociosidade (ROMEIRO, 2015; DANTAS, 2016). Apesar desse caráter esporádico e eventual de seu despacho, sua contratação permite que o sistema atenda a uma carga maior. Isto é, quando a energia disponível das fontes naturais (incluindo o sistema hídrico) e das térmicas inflexíveis permite garantir a segurança do suprimento, as térmicas flexíveis não são despachadas. Deve-se ressaltar que, dependendo das condições hidrológicas, esse parque térmico flexível pode ficar longos períodos sem acionamento. Contudo, quando a energia total das fontes naturais e regulares não é suficiente, alterando o nível de segurança do fornecimento, as térmicas inflexíveis são, então, chamadas a operar. Desse modo, as térmicas flexíveis reforçam o balanço de energia apenas em cenários adversos. Conforme salientam Castro, Xxxxxxx e Dantas (2010, p. 14), “a este acréscimo de segurança também corresponde um aumento na capacidade de atendimento de carga pelo sistema e é este o fundamento para elas comercializem uma energia virtual, isto é, não correspondente à geração efetiva”.
Ao se analisar o exposto anteriormente, há em curso uma transição para um novo paradigma operativo do sistema elétrico brasileiro. Esse novo paradigma acaba por exigir, conforme já apresentado, o despacho mais frequente de usinas termoelétricas, sobretudo no período seco, mesmo em anos de hidrologias normais. Contudo, em anos de afluência desfavorável, o emprego do parque térmico tende a ocorrer inclusive nas estações úmidas. Nesse sentido, a crise hidrológica de 2012 – 2015 é bastante ilustrativa e será abordada posteriormente.
Apesar da transição verificada, de uma matriz hídrica para uma matriz hidrotérmica, o sistema elétrico brasileiro permanecerá com predomínio da geração hidráulica. Pode-se afirmar que o sistema continuará exigindo a presença de térmicas flexíveis para compensar hidrologias desfavoráveis. No entanto, dado o cenário de redução da capacidade de regularização e de diminuição da participação das hidroelétricas na geração, faz-se necessário que parte do parque térmico assuma cada vez mais uma função de fonte regular, operando na base do sistema. Chama-se atenção, contudo, para o risco envolvido nesse processo: termoelétricas com custos variáveis elevados, adequados para operação esporádica, podem acabar assumindo papel da geração regular, ou seja, sendo despachados de forma frequente e contínua, acarretando em elevação dos custos de operação do sistema (DANTAS, 2016).
Apesar do exposto, Dantas (2016) aponta para a presença de grandes montantes de geração flexível no sistema. De acordo com dados do Banco de Informações da Geração (ANEEL, 2017a), a potência instalada total do parque térmico a combustíveis fósseis é de pouco mais de
27.000 MW. Merece ser destacado que as usinas térmicas despachadas ou programadas pelo ONS tinham disponibilidade efetiva de aproximadamente 15.000 MW, nos anos 2014/2015, sendo que apenas pouco mais de 1.000 MW eram classificadas como inflexíveis (DANTAS, 2016). A Tabela 4 apresenta a composição do parque térmico brasileiro por tipo de combustível para o mês de junho de 2017.
Tabela 4 – Capacidade Instalada do Parque Térmico por tipo de Combustível: Junho de 2016 (em MW)
Combustível | Capacidade Instalada (MW) |
Carvão mineral | 3.804 |
Gás natural | 13.018 |
Outros Fósseis | 147 |
Petróleo | 10.051 |
Total | 27.021 |
Fonte: ANEEL, 2017a.
Examinando o planejamento estratégico do sistema (MME; EPE, 2015), é possível identificar essa mesma tendência no perfil de expansão das térmicas, isto é, uma maioria de projetos inteiramente flexíveis. Para atender de forma adequada ao crescimento da carga de energia prevista no decênio 2015/2024, prevê-se uma expansão do parque gerador termelétrico em cerca de 10.500 MW até 2024. Destaca-se, no entanto, que a concretização dessa expansão está atrelada à disponibilidade de combustível a um preço competitivo para participação dos projetos nos futuros leilões de energia nova.
Conforme já mencionado, em anos de afluência desfavorável, há grande probabilidade de se despachar o parque térmico inclusive nas estações úmidas. Isto significa que muitas térmicas flexíveis acabam sendo chamadas a operar para reduzir a possibilidade de colapso no abastecimento. Neste sentido, a crise hídrica iniciada em finais de 2012 ilustra de forma clara o problema em questão, justamente por revelar um despacho contínuo e prolongado de todo o parque térmico. O Gráfico 8 fornece um retrato da geração térmica convencional entre os anos de 2003 e 2016, evidenciando os impactos da crise hídrica no despacho das térmicas.
Gráfico 8 - Geração Térmica Convencional: Janeiro de 2003 – Janeiro de 2016 (em MWmed)
Fonte: ONS, 2016.
Observando as informações contidas no Gráfico 8, depreende-se que, desde o início da crise hídrica, no último trimestre de 2012, o parque térmico saltou de uma geração de menos de 6.000 MWmed para um patamar acima de 10.000 MWmed, chegando, inclusive, a superar os 15.000 MWmed. Ressalta-se que nunca antes a geração térmica havia rompido a barreira de 8.000 MWmed. Como consequência desse cenário desfavorável, e sob o risco de falha no fornecimento, todo o parque térmico - contratado para atuar esporadicamente, em contratos por disponibilidade16 - foi acionado continuamente, chegando a atender quase 30% do total da carga em alguns momentos. De acordo com Xxxxxxx (2015), a participação média do parque térmico no atendimento da carga, entre janeiro de 2000 e setembro de 2012, era de 9%. Após o início da crise, entre outubro de 2012 e março de 2015, essa participação alcançou uma média de 23%.
16 Esse mecanismo de contratação será devidamente explicado no capítulo 3 deste trabalho.
O uso intenso e prolongado das termoelétricas disponíveis era, nos cenários utilizados nos leilões que contrataram os empreendimentos atualmente em operação, um evento de baixa probabilidade. Entretanto, o que ocorreu nos últimos anos foi o despacho contínuo de todas as termoelétricas com custos variáveis baixos ou intermediários e o despacho por longos períodos de usinas com Custo Variável Unitário (CVU) elevado (CASTRO; HUBNER; BRANDÃO, 2014). Esse despacho acabou por explicitar algumas inadequações do modelo atual. Os problemas derivados destas inadequações vão desde questões operacionais e técnicas das plantas, o que resulta em custos adicionais aos empreendedores, até a materialização do risco financeiro inerente ao despacho contínuo deste parque para o sistema elétrico brasileiro. Estas questões serão analisadas com maior profundidade no capítulo 3.
Pode-se, então, concluir que, dado o cenário de transição da matriz elétrica brasileira, e as novas características operativas do sistema, como maior participação de fontes não controláveis, é imperativa a expansão do parque termoelétrico de combustíveis fósseis. Contudo, embora seja necessária a participação de térmicas flexíveis, sobretudo para atender a ponta em períodos de hidrologia desfavorável, é extremamente importante que o planejamento considere a expansão de usinas térmicas próprias para se operar na base, com características técnicas e econômicas adequadas para este fim. Ao encontro dessa conclusão, Xxxxxx (2016, p. 27) contribui:
“Portanto, é importante contratar térmicas a gás natural e térmicas a carvão para operação de forma contínua, especialmente no período seco. Térmicas com vocação de base, não apenas são essenciais para a garantia da garantia do suprimento em uma base razoável de custos, como podem até mesmo contribuir com o equilíbrio no balanço de potência do sistema. Explica-se: ao gerarem na base, tais usinas térmicas criam condições mais propícias para usinas hidroelétricas modularem a carga de forma a atender a ponta. Não obstante, a geração térmica na base durante o período seco torna o ritmo de deplecionamento dos reservatórios mais lento e, desta forma, minimiza o problema da perda de potência do parque hidroelétrico derivado da redução da altura das quedas” (DANTAS, 2016, p. 27).
Nesse sentido, pode-se constatar no PDE 2024 (MME; EPE, 2015) a indicação da necessidade de contratação de projetos de geração controláveis, incluindo a participação das térmicas como fontes regulares de energia. Porém, ressalta-se que o plano tem apenas caráter indicativo, isto é, o resultado efetivo da expansão do sistema é decorrente dos processos licitatórios. Assim, não basta apenas o reconhecimento e indicação da necessidade de plantas térmicas com características técnicas e econômicas adequadas. Demanda-se, portanto, um arcabouço regulatório, comercial e contratual que possibilite uma expansão do sistema compatível com suas necessidades, tema que será mais profundamente abordado no próximo capítulo.
3. HISTÓRICO DO ARCABOUÇO REGULATÓRIO DE CONTRATAÇÃO DE USINAS TERMOELÉTRICAS E ANÁLISE DOS PROBLEMAS DECORRENTES DO NOVO MARCO REGULATÓRIO
Diante do cenário de despacho contínuo e prolongado de todo o parque térmico ao longo da crise hídrica de 2012 a 2016, algumas inadequações do modelo atual de contratação de termoelétricas se tornaram evidentes, tanto relacionadas a questões operacionais e técnicas das próprias plantas, como associadas a um elevado risco financeiro inerente ao despacho contínuo deste parque para o sistema elétrico brasileiro.
Neste sentido, torna-se relevante o exame do arcabouço regulatório vigente para se compreender as reais causas desse fenômeno. Para tanto, inicialmente será realizado um breve histórico do arcabouço de contratação das usinas termoelétricas. Esta análise está estruturada em três períodos distintos, correspondentes aos modelos de contratação, com foco analítico sobre o terceiro período, referente ao Novo Modelo do SEB, em função das implicações nas obrigações dos empreendimentos termoelétricos. Posteriormente, a seção 3.2 traz uma discussão acerca dos problemas decorrentes do descasamento entre as obrigações contratuais e a realidade operacional das usinas, objetivando analisar e discutir os problemas conjunturais enfrentados pelas usinas termoelétricas relacionadas direta e indiretamente com a crise hidrológica ocorrida entre finais de 2012 e o ano de 2015.
3.1. Histórico do Arcabouço Regulatório de Contratação de Usinas Termoelétricas
Desde a década de 1950, percebe-se uma evolução do arcabouço regulatório brasileiro para contratação de usinas termoelétricas. Pode-se dividir a análise desta evolução em três períodos distintos, quais sejam:
i. Da década de 1950 até 1998: com predomínio das empresas estatais com atribuições sobre a expansão do sistema elétrico brasileiro;
ii. Entre 1998 e 2004: introdução da figura do Produtor Independente de Energia (PIE), abrindo a possibilidade de contratação de longo prazo de usinas termelétricas mediante celebração de contratos bilaterais de compra e venda de energia;
iii. A partir de 2004: instituição do Novo Modelo do Setor Elétrico, com a criação de dois ambientes de contratação de energia - o Ambiente de Contratação Livre e o Ambiente de Contratação Regulada –, os Leilões de Energia e os contratos por disponibilidade.
Nesse sentido, a presente seção se divide em três partes, correspondentes aos períodos supracitados, destacando-se que o foco analítico será dado sobre o terceiro período, referente ao Novo Modelo do SEB, em função das implicações nas obrigações dos empreendimentos termoelétricos, abordadas posteriormente.
3.1.1. Anos 1950 - 1998: Exploração por Empresas Estatais
De forma geral, é possível agrupar o período entre 1950 e 1998 em termos do modelo de contratação dos projetos de geração termoelétrica prevalecente nesse período. Ao longo desses anos, o SEB ainda estava estruturado de forma verticalizada, com as usinas térmicas integradas às empresas estatais. Ficava a cargo dessas empresas a implantação dos projetos térmicos, com os custos desse processo – construção e operação - repassados às tarifas dos consumidores finais (BRANDÃO; GOMES, 2016).
Conforme analisado no capítulo 2, o desenvolvimento do SEB foi fortemente centrado em usinas hidroelétricas. Assim, verifica-se que a capacidade instalada das usinas termoelétricas implantadas até a década de 1970 respondia por cerca de 20% do total (MME, 2017). No entanto, apesar da reduzida capacidade instalada, e a consequente baixa participação na geração de eletricidade nesse período, a operação das plantas termoelétricas se dava em virtude de necessidades do sistema ou por interesse nacional. Como os custos de operação de usinas
térmicas são maiores do que os observados para as centrais hidroelétricas, havia necessidade de se partilhar tais custos entre as concessionárias.
Nesse sentido, a promulgação da Lei nº 5.899 de 1973 instituiu a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), prevendo o uso racional das instalações geradoras e de transmissão existentes, de tal modo que os ônus e vantagens decorrentes do consumo dos combustíveis fósseis fossem rateados, através da CCC, entre todas as empresas concessionárias do sistema (BRASIL, 1973). Tratava-se, portanto de uma conta de compensação. Dessa forma, conforme conclui Brandão e Xxxxx (2016), a CCC fora criada como política energética voltada para o incentivo à geração termoelétrica, com objetivo de garantir segurança no suprimento de energia elétrica, tendo em vista a necessidade de se complementar a geração hídrica.
Esse esquema de contratação permaneceu estável até o final da década de 1990. Em 1998, já no governo de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, deu-se início uma fase de transição entre o regime de remuneração garantida dos geradores e o da comercialização por conta e risco do agente produtor, através da promulgação da Lei nº 9648/98. Como consequência da referida lei, foram celebrados os primeiros contratos entre geradores e concessionárias de distribuição. A ideia era reduzir gradativamente os montantes pertencentes às distribuidoras, de tal modo que, em algum momento, os geradores pudessem comercializar energia livremente assumindo os riscos envolvidos no negócio.
Tratava-se do início do processo de liberalização do segmento brasileiro de geração de energia elétrica. Ainda neste contexto, a Lei nº 9.648/98 buscou dar fim ao benefício da sistemática de rateio de ônus e vantagens decorrentes do consumo de combustíveis fósseis para novas usinas de geração térmica. Para tanto, extinguiu-se o benefício da CCC para termoelétricas que iniciassem sua operação a partir de fevereiro de 1998 (BRASIL, 1998).
Em resumo, desde a década de 1950 até finais da década de 1990, mais especificamente com a promulgação da Lei nº 9.648/1998, as usinas termoelétricas foram construídas e operadas por empresas estatais (concessionárias de distribuição), em um modelo de subsídio de combustível e repasse total dos custos de geração para a tarifa. Destaca-se que algumas importantes usinas construídas nesse período ainda se encontram em operação, usufruindo do subsídio dos custos de combustível (BRANDÃO; XXXXX, 2016). Cita-se, por exemplo, as unidades de geração de Xxxxx Xxxxxxx A, B e C, Xxxxxxxx, Presidente Médici A e B e São Jerônimo, todas movidas a carvão mineral, totalizando 1.343 MW de potência, de acordo com dados disponíveis no Banco de Informações da ANEEL (2017a).
3.1.2. 1998 - 2004: Contratos Bilaterais entre Geradores e Concessionárias de Distribuição
O exame das reformas no arcabouço regulatório de contratação do final do século XX passa necessariamente pela compreensão do contexto neoliberal pelo qual o Brasil e o mundo passavam. Diante de um cenário macroeconômico instável em que se encontrava o SEB, o Governo Federal passou a estudar medidas que pudessem atrair investimentos privados, acompanhando uma tendência neoliberal observada em diversos países que apostavam na reestruturação de seus setores de infraestrutura. Conforme constata Xxxxxx (1996), durante as décadas de 1980 e 1990, vários países desenvolvidos e em desenvolvimento promoveram reestruturações buscando melhorar o desempenho no setor de energia elétrica. De forma geral, as principais medidas adotadas estavam voltadas à privatização, reestruturação e reforma regulatória, desverticalização dos segmentos, criação de mercados atacadistas, órgãos reguladores e operadores independentes.
De forma condizente com o movimento neoliberal observado no mundo, no princípio da década de 1990, iniciou-se no Brasil uma discussão acerca de uma reformulação do SEB, materializada no Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (RE-SEB). De acordo com Xxxxxxx (2009), dentre os objetivos do Projeto RE-SEB estavam:
i. Assegurar a oferta de energia elétrica;
ii. Estimular o investimento no SEB;
iii. Fortalecer o órgão regulador;
iv. Reduzir os riscos para os investidores;
v. Maximizar a competição; e
vi. Assegurar a expansão hidroelétrica.
Como consequência do Projeto RE-SEB, Losekann (2003, p. 151) assinala que “foi desenhado um novo modelo para o setor elétrico brasileiro, definindo os papéis das instituições e a nova estrutura industrial”. Através das discussões estabelecidas nesse projeto, identificou-se a necessidade da desverticalização das empresas de energia elétrica e da promoção da competição nos segmentos de geração e comercialização. Por outro lado, os entendimentos desse trabalho apontavam para a manutenção da regulação nos segmentos de distribuição e transmissão, tendo em vista que estes são considerados monopólio natural (FLOREZI, 2009).
O Projeto RE-SEB culminou com a publicação da Lei nº 9.648, em maio de 1998, que modificou dispositivos de diversas leis setoriais esparsas e propiciou o início da desverticalização das atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização. Pode- se afirmar que esta lei introduziu o princípio da competição setorial, introduzindo um novo regime com contratos celebrados de forma bilateral entre os PIEs e as concessionárias de distribuição (XXXXXXX XXXXX, 2007). De acordo com redação da referida lei, passou a ser
de livre negociação a compra e venda de energia elétrica entre concessionários ou autorizados (BRASIL, 1998).
Tendo em vista este ambiente de maior liberdade de negociação, novas atribuições foram delegadas à ANEEL, fundada no ano de 1996. O Poder Concedente, na figura da própria Agência, passou a deter o direito de intervir nos contratos bilaterais celebrados entre os PIEs e as concessionárias de distribuição podendo, por exemplo, alterar seu preço ou até mesmo reprovar a homologação dos contratos. Além disso, coube à ANEEL regular os repasses da compra de energia por parte das distribuidoras aos consumidores, com objetivo de atender a modicidade tarifária e proteger os consumidores. Tratava-se do estabelecimento de um limite para os repasses, de tal modo que os custos da energia transacionada em contratos bilaterais não fossem mais repassados aos consumidores de forma automática. Os valores praticados passaram a sofrer ação de um mecanismo específico, que buscava definir o montante que seria assumido pelos consumidores da distribuidora, denominado Valor Normativo.
No entanto, a aplicação do Valor Normativo não se mostrava eficiente na função de estimular a diversificação da matriz, conforme assinala Xxxxxxx e Xxxxx:
“A instituição do mecanismo do Valor Normativo único, em conjunto com a extinção da CCC no sistema interligado para usinas entrando em operação após 1998, não induzia a expansão termelétrica. Isto porque o custo de implantação e operação das usinas termelétricas tendia a ser maior do que o repasse para os consumidores finais, causando prejuízo às distribuidoras que eventualmente celebrassem contratos com agentes termelétricos” (2016b, p. 12).
Nesse sentido, no ano de 1999, a Agência Reguladora buscou introduzir aperfeiçoamentos no mecanismo, explicitando forte preocupação com o estímulo à expansão da oferta de eletricidade. Uma das alterações foi a estipulação de diferentes Valores Normativos, de acordo com a fonte de energia, servindo de base para o repasse dos custos efetivos à concessionária de distribuição. Ou seja, na prática, o Valor Normativo deixava de ser um mecanismo puramente
de proteção ao consumidor - visando a modicidade tarifária -, passando para uma ferramenta mais ampla de regulação do contrato bilateral entre os PIEs e a distribuidora. Passou a funcionar também como um mecanismo de política energética, tendo em vista a possibilidade de aplicação de diferentes Valores Normativos para cada tipo de fonte (XXXXXXX; XXXXX, 2016).
A busca por formas alternativas de produção de energia elétrica, que não as fontes hidrelétricas, era uma das preocupações do governo, tendo em vista a alta dependência das condições hidrológicas. Nesse contexto, discutia-se o papel das usinas termelétricas movidas a gás natural em complementação à geração hidroelétrica e, em fevereiro de 2000, o Ministério de Minas e Energia (MME) deu início ao Programa Prioritário de Termeletricidade. Este programa previa uma série de incentivos aos PIEs para produzir eletricidade por meio da queima de gás natural. De acordo com Xxxxxxx Xxxxx (2007), dentre as vantagens do programa estavam:
i. A garantia de suprimento pela Petrobras pelo prazo de até vinte anos para novos empreendimentos;
ii. A garantia de repasse pela distribuidora do custo da energia para a tarifa cobrada dos consumidores finais por meio do Valor Normativo; e
iii. O acesso a financiamentos concedidos pelo BNDES.
Posteriormente, usinas integrantes do Programa Prioritário de Termeletricidade passaram a obter garantia de preço e certas condições econômicas favoráveis, particularmente para o gás natural.
Apesar da introdução do Programa Prioritário de Termeletricidade, e de outras medidas adotadas pela percepção de uma iminente crise energética, os investimentos efetivados nesses anos não foram suficientes para atender às necessidades do país, culminando na crise do racionamento de 2001. Mais especificamente, Xxxxxxx Xxxxx (2007) aponta que, apesar do
visível insucesso no cumprimento das metas originais do programa, o setor continuava a contar
com os megawatts previstos pelas novas plantas termoelétricas, projeção que não jamais se concretizou. Assim, a ocorrência da crise pode ser atribuída à falta de planejamento do setor, bem como ao modelo de estruturação do SEB, fundamentado na privatização de ativos públicos, implementado ao longo da década de 1990, responsável pela insuficiência de investimentos necessários no setor elétrico, tanto na geração, quanto na transmissão de energia (XXXXXX et al., 2014; XXXXXX; ROSENTAL, 2016).
Destaca-se, no entanto, que somente em maio de 2001 a crise de energia elétrica foi oficialmente reconhecida, através da edição da Medida Provisória nº 2.147. Foi por meio dessa medida que se instalou a Câmara de Gestão da Crise de Energia, que tinha como finalidade específica administrar programas de ajuste da demanda energética, aumentar a oferta de energia elétrica e implementar medidas de caráter emergencial para contornar a crise no abastecimento pela qual o país passava. Na prática, as ações autorizavam outras usinas, além daquelas já contempladas no Programa Prioritário de Termeletricidade, a usufruir das vantagens concedidas pelo programa.
Portanto, pode-se concluir que o Programa Prioritário de Termeletricidade foi o fio condutor da expansão das usinas termoelétricas entre os anos 2000 e 2002. De forma mais ampla, é possível constatar que o modelo comercial adotado entre os anos 1998 e 2003 foi, sobretudo, o de viabilização de projetos termoelétricos através da celebração de contratos bilaterais de compra e venda de energia elétrica entre os PIEs e as concessionárias de distribuição. Ressalta-se que os contratos firmados entre os agentes eram normalmente de longo prazo (vinte anos) e contavam, na grande maioria dos projetos, com preço do gás natural instituído pelo governo federal (BRANDÃO; XXXXX, 2016). Como consequência, ao longo do período analisado, foram contratadas diversas usinas termelétricas, principalmente de unidades movidas a gás
natural, tais como as plantas de geração Norte Fluminense (826 MW), Termoceará (220 MW), Termopernambuco (523 MW), dentre outras (ANEEL, 2017a).
3.1.3. A partir de 2004: Contratação de Usinas Termelétricas via Leilões de Energia através de Contratos por Disponibilidade
A reforma liberalizante adotada no final do século XX falhou em promover os investimentos necessários para garantir a expansão da oferta de eletricidade, resultando, no ano de 2001, no maior racionamento de energia elétrica da história do Brasil. Nesse processo, conforme assinalam Xxxxxx et al. (2014), o governo partiu do errôneo pressuposto de que, sendo a geração uma atividade potencialmente competitiva, os mecanismos de mercado seriam suficientes para garantir a expansão do sistema.
Na prática, a procura pela contratação de energia de longo prazo de forma desregulada foi pequena. Assim, os projetos contratados antes da reforma de 2004 eram, em geral, firmados nas bases da garantia de repasse da compra de energia à tarifa do consumidor cativo ou se tratavam de empreendimentos de autoprodução.
Em função das características que o SEB apresentava, como a predominância da geração hídrica e Custo Marginal de Operação (CMO) com tendência a valores extremos, é possível compreender a falta de interesse na realização de novos projetos. Nesse sentido, destacam Xxxxxx et al. (2014, p. 53): “não havia sinal econômico para a contratação de longo prazo, nem para geradores nem para consumidores”. Para os autores, o suporte regulatório não era suficiente, pois não garantia uma previsibilidade de receitas para o projeto de geração. Os consumidores não possuíam incentivos para assumir compromissos de compra que fossem compatíveis com os prazos associados aos investimentos em novos projetos de geração. Nesses termos, com a ausência de contratos de longo prazo, o mercado de curto prazo não era capaz de
induzir os investimentos em novos projetos, já que se caracteriza por possuir fortes variações de preço.
Nesse contexto conturbado do setor elétrico, no ano de 2003, o novo governo inicia estudos e debates para uma reforma substancial e estrutural do SEB. Em meados de 2003, o Ministério de Minas e Energia (MME) divulgou as propostas de aperfeiçoamento do modelo e, após amplo debate com os agentes do setor, no final de 2003 foi finalizado o novo Modelo Institucional do Setor Elétrico (CUBEROS, 2008).
Na visão de Xxxxx (2007, p. 878, apud Magalhães, 2009, p. 24), as propostas apresentadas pelo documento não consistiam apenas em aprimoramentos do modelo institucional vigente, mas sim na redefinição do mesmo, haja vista as divergências entre a visão do governo anterior, de cunho mais liberal, e o novo governo, confiante na ação estatal. De fato, como xxxxxx Xxxxx (2010), a Lei nº 10.848 de 2004 alterou significativamente o marco regulatório do SEB, com objetivo principal de criar um ambiente de estímulo à contratação de energia elétrica de longo prazo que fosse capaz de viabilizar e estimular novos projetos de geração.
O novo modelo foi concebido com base em quatro premissas/objetivos principais, de acordo com Xxxxxxx (2009):
i. Promover a modicidade tarifária;
ii. Garantir a segurança do suprimento de energia elétrica;
iii. Assegurar a estabilidade do marco regulatório; e
iv. Promover a inserção social no SEB, principalmente pelos programas de universalização do atendimento.
Xxxxxxxxx (2009) apresenta os pilares que nortearam a reforma:
i. A criação de ambientes separados para atividades de comercialização: o Ambiente de Contratação Regulada (ACR) e o Ambiente de Contratação Livre (ACL);
ii. A proibição de venda de energia elétrica por distribuidora e consumidores livres a preços negociados e o aprimoramento da obrigatoriedade de compra de energia elétrica por meio de leilões no ACR;
iii. A possibilidade de outorga da concessão/autorização para exploração da geração conjuntamente com a venda de energia elétrica às distribuidoras no ACR, mediante celebração de contratos de longo prazo;
iv. A alteração de regras de governança setorial, com o reforço das competências do Poder Executivo e do Poder Concedente no SEB, em especial para outorgar concessões, permissões e autorizações e realizar o planejamento centralizado;
v. A criação de instituições técnicas especializadas com finalidade de contribuir para o planejamento setorial: a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE);
vi. A criação de instituição específica para tratar das funções relativas à comercialização no SIN, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Cabe à CCEE fazer o registro dos contratos de energia e contabilizar e liquidar financeiramente as diferenças entre a energia contratada e a energia efetivamente produzida ou consumida.
Dentre as diversas modificações introduzidas pela Lei nº 10.848/04, será concedido maior foco analítico àquelas que se relacionam com a reformulação do modelo de comercialização de energia elétrica no atacado, tendo em vista o escopo do trabalho.
Observando os pilares apresentados, destaca-se, com a implementação da referida lei, que as concessionárias de distribuição passaram a ter obrigatoriedade de garantir a totalidade de seu mercado por meio da contratação regulada. Buscou-se conceder maior previsibilidade à
expansão da capacidade instalada de geração de energia elétrica, justamente um dos gargalos observados no modelo institucional anterior e causa central da crise de 2001. Resguardando o objetivo da modicidade tarifária, o modelo prevê a compra de energia elétrica pelas distribuidoras por meio de leilões.
Mais especificamente, a compra das distribuidoras para atender aos consumidores cativos passa a ocorrer no ACR. A contratação neste ambiente de mercado é formalizada através de contratos bilaterais regulados, denominados Contratos de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Regulado (CCEAR), celebrados entre os agentes vendedores – agentes de geração, comercialização ou importação, que sejam habilitados para este fim – e as concessionárias de distribuição que participam dos leilões de compra e venda de energia (SILVA, 2010). Por outro lado, no ambiente de mercado do ACL, há a livre negociação entre os agentes geradores, comercializadores, consumidores livres e especiais, importadores e exportadores de energia elétrica. Os acordos de compra e venda de energia são pactuados através de Contratos de Compra de Energia no Ambiente Livre (CCEAL), que são contratos negociados livremente entre duas partes e firmados entre os agentes, sem a participação da ANEEL ou da CCEE (CUBEROS, 2008).
Magalhães (2009) e Xxxxxx et al. (2014) examinam o funcionamento do mecanismo dos leilões. Segundo os autores, as outorgas de concessão são organizadas periodicamente pelo MME, pautadas nas necessidades estimadas apresentadas pelas distribuidoras para os próximos três e cinco anos com base em projeções de seus mercados. As demandas estimadas devem ser atendidas por meio dos Leilões de Energia Nova, nas modalidades A-3 (entrada em operação em até três anos) e A-5 (entrada em operação em até cinco anos). Os agentes investidores se inscrevem nos leilões de geração e disputam os contratos em um sistema reverso, com vitória daquele que apresentar o menor preço por unidade gerada, tendo como parâmetro superior um
preço-teto definido pela EPE17. Ressalta-se que as concessionárias de distribuição não possuem gerência sobre a contratação da energia nos leilões, mas, em contrapartida, possuem o direito de repassar o custo dessa energia aos consumidores, caso realizem de forma eficiente suas declarações de demanda para os leilões (XXXXXXX; XXXXX, 2016).
Os Leilões de Energia Nova são destinados a empreendedores dispostos a construir novas plantas de geração e obter contratos de fornecimento de energia elétrica de longo prazo, podendo variar entre 15 a 30 anos, dependendo da fonte18. De acordo com o planejamento estratégico, o governo pode optar por realizar as licitações de energia nova direcionadas para a contratação de determinadas fontes ou projetos, como se observa nos Leilões de Fontes Alternativas – para energias alternativas - ou nos Leilões Estruturantes - para projetos hídricos de grande porte considerados estratégicos (MAGALHÃES, 2009; XXXXXX et al., 2014). É importante destacar que os empreendimentos vitoriosos dos Leilões de Energia Nova recebem contratos de longo prazo capazes de viabilizar economicamente seus projetos, além de servir de garantia para a obtenção de financiamento junto ao BNDES para a construção dos projetos.
Há, ainda, outras modalidades de leilões, denominados Leilões de Energia Existentes e Leilões de Ajuste. A primeira modalidade é destinada aos geradores que possuam energia descontratada e que visam complementar o suprimento das distribuidoras para o próximo ano, tendo em vista o término dos contratos existentes e as oscilações de mercado. Enquanto isso, o segundo tipo visa a adequação da contratação de energia pelas distribuidoras, tratando eventuais desvios oriundos da diferença entre as previsões feitas pelas distribuidoras em leilões anteriores e o
17 A Empresa de Pesquisa Energética, criada em 2004, tem por finalidade prestar serviços na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético, tais como energia elétrica, petróleo e gás natural, carvão mineral, eficiência energética, dentre outras (EPE, 2017a).
18 Em geral, os contratos de usinas hidroelétricas possuem duração de 30 anos, enquanto os contratos de centrais térmicas possuem prazo de 15 anos.
comportamento de seu mercado (CCEE, 2017a). A Quadro 2 resume os tipos de leilão existentes, apresentando o objeto da contratação e as vigências associadas.
Quadro 2 - Tipos de Leilões de Energia Elétrica
Leilão | Objeto | Vigência |
A-1 | Energia existente | De 5 a 15 anos, contados do ano seguinte ao da realização do leilão; |
A-3 | Energia de novos empreendimentos | De 15 a 30 anos, contados do início do suprimento; |
A-5 | Energia de novos empreendimentos | De 15 a 30 anos, contados do início do suprimento; |
Entre A-3 e A-5 | Energia de fontes alternativas | De 10 a 30 anos, contados do início do suprimento; |
Ajuste | Energia existente | Até 2 anos |
Energia Existente | Energia existente | - Mínimo de 8 anos, para início de suprimento em 2005, 2006 e 2007; - Mínimo de 5 anos, para início de suprimento em 2008 e 2009; |
Fonte: Xxxxx, 2010.
Em suma, os leilões de energia possuem a função de garantir o equilíbrio dinâmico entre a oferta e demanda de energia elétrica para o mercado cativo (ACR) através da contratação de longo prazo de usinas geradoras pelas concessionárias de distribuição. De forma geral, os novos empreendimentos são estruturados em Sociedades de Propósito Específico, em função do modelo de financiamento adotado pelo BNDES, assinando contratos de longo prazo com todas as distribuidoras que declararam demanda ao MME. De acordo com dados fornecidos pela ANEEL (2017c), os leilões de energia do ACR, compreendendo todos os seus tipos, foram responsáveis por adicionar 69.478,948 MW de potência ao SEB entre os anos de 2005 e 2016. A Tabela 5 fornece maior detalhamento da capacidade instalada acrescentada por fonte de geração, em MW, bem como as participações relativas de cada fonte. Através dos dados apresentados nesta tabela, é possível observar a importância das fontes hídrica e térmica contratadas no período, correspondendo a praticamente 75% do total adicionado.
Tabela 5 –Potência Contratada pelos Leilões de Energia por Tipo de Fonte e Participação Relativa: Agregado entre 2005 e 2016 (em MW e %)
Potência Adicionada (MW) | Participação no Total | |
Hídrica | 26.414,64 | 38,1% |
Térmica | 25.058,13 | 36,2% |
Eólica | 15.173,05 | 21,9% |
Solar | 2.652,80 | 3,8% |
Total | 69.298,62 | 100,0% |
Fonte: Elaboração própria com base em ANEEL, 2017c.
Segundo Xxxxxxx e Xxxxx (2016), o mecanismo de leilão é capaz de estimular a competição e permitir a entrada de novos agentes no mercado, especificamente no segmento de geração, se constituindo, portanto, como um aperfeiçoamento em relação ao modelo institucional anterior. Conforme já apresentado, os contratos oriundos dos Leilões de Energia Nova e Existente são chamados de CCEARs, e podem ter duas modalidades (SILVA, 2010; ABRADEE, 2017):
i. Contratos de Quantidade de Energia: preveem o fornecimento de um montante fixo de energia a um determinado preço. Nesta modalidade, geralmente utilizada para a contratação de energia hidráulica, os geradores estão sujeitos a riscos de sobras ou déficits de energia, liquidados ao Preço de Liquidação das Diferenças (PLD).
ii. Contratos de Disponibilidade de Energia: são destinados à contratação de usinas termelétricas e preveem uma remuneração fixa ao agente gerador, independente do que for efetivamente gerado. Quando essas usinas são despachadas, as distribuidoras devem pagar os custos variáveis relativos ao uso do combustível, com garantia de repasse aos consumidores finais. Portanto, os riscos são assumidos pelo comprador.
No modelo institucional anterior, os empreendimentos de geração termoelétricos eram, em geral, contratados por quantidade. Isto significa que os geradores ficavam expostos ao mercado de curto prazo na eventualidade de não serem despachados. Tratava-se de um critério de contratação que imputava demasiados riscos ao gerador termoelétrico. Em virtude da
racionalidade dos agentes, era de se esperar que estes precificassem os riscos, repassando-os para o consumidor final.
Nesse contexto, o novo marco regulatório introduziu a figura dos CCEARs por disponibilidade, isto é, contratos que buscam fornecer maior proteção ao agente gerador quanto às variações do mercado de curto prazo, atribuindo algumas responsabilidades aos compradores (XXXXX, 2010). No processo licitatório dos leilões, os projetos termoelétricos são comparados e selecionados com base no Índice Custo Benefício (ICB), que busca estimar o custo por MWh de garantia física19 de cada usina contratada por disponibilidade. De acordo com o que apresenta Xxxxxxx (2008), na modalidade de contratação por disponibilidade, após a seleção dos projetos, os empreendimentos termoelétricos vencedores estabelecem CCEARs com duração de 15 a 25 anos que concedem o direito de recebimento de uma remuneração fixa - associada à garantia física e indexada ao IPCA – que se destina à construção e manutenção da usina. Independente da energia gerada ou de ser despachado, o empreendimento é remunerado por este pagamento fixo.
Como contrapartida, cabe às concessionárias de distribuição:
i. Arcar com o custo correspondente à receita fixa das usinas;
ii. Arcar com os custos variáveis associados à operação da usina, destinados à recuperação desses custos variáveis (basicamente custos de combustível); e
iii. Em princípio, são responsáveis pelas exposições positivas ou negativos da usina no mercado de curto prazo da CCEE.
19 A garantia física, dada em MW médio, corresponde a uma parcela da carga que o sistema elétrico como um todo é capaz de atender dentro de parâmetros de segurança do abastecimento e de custo. A garantia física de cada usina é calculada pelo MME utilizando uma metodologia definida regulatoriamente. Ressalta-se que a garantia física de uma usina é sempre menor que sua potência instalada e a soma das garantias físicas de todas as usinas corresponde à carga que o sistema tem condições de suprir - mantendo o risco de déficit controlado e operando a um custo operacional médio compatível com o custo de expandir o sistema (XXXXXX et al., 2014).
Considerando as obrigações da distribuidora nesse processo, pode-se depreender que esta assume, em nome do consumidor, as responsabilidades financeiras decorrentes da incerteza quanto ao regime hidrológico e do despacho verificado das usinas. Entretanto, as distribuidoras possuem o direito de repassar os custos aos consumidores cativos nos reajustes tarifários anuais.
Conforma redação original da Lei nº 10.848/04 (BRASIL, 2004), havia diferenciação entre as modalidades dos contratos conforme a alocação dos riscos hidrológicos, de tal modo que: se o risco for do comprador (distribuidora/consumidor), trata-se de um contrato por disponibilidade; se o risco for do vendedor (gerador), a modalidade contratual é por quantidade. Essa alocação de risco foi de fato aplicada nos leilões ocorridos entre os anos de 2005 e 2010. No entanto, uma alteração conceitual significativa começou a ser aplicada nas cláusulas contratuais dos CCEARs de 2011 em diante. Nesta modificação definiu-se que, quando há despacho por ordem de mérito, a obrigação de entrega de energia pelo gerador é dada pela Disponibilidade Máxima Contratual, ficando de responsabilidade do vendedor a exposição ao mercado de curto prazo, seja esta positiva ou negativa. As consequências dessa modificação regulatória são destacas por Xxxxxxx e Xxxxx:
“Portanto, na prática e em condições normais de operação, uma determinada usina que esteja comprometida totalmente com os CCEARs por disponibilidade gera mais energia do que o compromissado com o contrato. A diferença entre a geração e o compromisso é liquidado ao PLD em favor da xxxxxxxx. Esse valor, em tese, serve para cobertura da exposição ao mercado de curto prazo quando o gerador está despachado, mas indisponível. No longo prazo, caso o gerador verifique exatamente os mesmos níveis de indisponibilidade declarados para cálculo da garantia física e na hipótese de PLDs constantes, a despesa e receitas do gerador no mercado de curto prazo se anulam. No entanto, sabe-se que o PLD é volátil, o que traz um risco financeiro para o gerador, caso a indisponibilidade ocorra em momentos de PLD alto. Conceitualmente, tal risco não deveria ser imputado ao gerador em um contrato por disponibilidade” (2016, p. 27).
Mais recentemente, no ano de 2015, houve outra modificação na regulamentação dos CCEARs
por disponibilidade no que tange à alocação dos riscos hidrológicos. A alteração promovida
pela Lei 13.203/2015 dispõe que na contratação regulada, a critério do MME, os riscos hidrológicos serão assumidos, total ou parcialmente, pelos geradores ou pelos compradores, com direito de repasse às tarifas dos consumidores finais, conforme as modalidades contratuais por quantidade e por disponibilidade (BRASIL, 2015). Para Brandão e Xxxxx (2016), o objetivo principal desta modificação era trazer uma flexibilização legal à alocação de risco dos CCEARs por quantidade, permitindo que os riscos hidrológicos fossem total ou parcialmente suportados pelos consumidores. No entanto, tal alteração regulatória também possui impactos nos contratos firmados na modalidade por disponibilidade, já que leilões futuros podem trazer um regime com risco hidrológico suportado de forma integral, ou ao menos parcial, pelo agente gerador.
O aparato regulatório dos CCEARs por disponibilidade prevê ainda um conjunto de penalidades para algumas situações (SILVA, 2010). Estas penalidades estão majoritariamente associadas ao cumprimento do índice de indisponibilidade declarado, à falta de combustível e ao atraso na entrada em operação. Conforme será apresentado na próxima seção, essas penalidades previstas, associadas à alocação dos riscos hidrológicos, podem implicar em uma série de problemas aos agentes geradores.
Além disso, depreende-se que, independente da tecnologia empregada na usina ou da fonte utilizada, as plantas térmicas vencedoras do Leilão de Energia Nova possuem direitos e obrigações muito similares. Isto é, além de receberam a receita fixa e a variável (quando geram), possuem a obrigação de gerar quando solicitadas a despachar pelo ONS, ressalvados os índices de indisponibilidade declarados no cálculo da garantia física. Esta constatação permite indicar, com a devida ênfase, que trata-se de contratos genéricos, que não levam em consideração as características e particularidades de cada empreendimento.
Desse modo, a título de conclusão desta seção, sugere-se que há possibilidade de introdução de inovações regulatórias para que seja aperfeiçoada a regulamentação vigente.
3.2. Problemas Decorrentes do Descasamento da Realidade Operacional com as Obrigações dos Agentes Geradores Termoelétricos
Conforme previam Castro e Brandão (2010), em uma situação de seca prolongada, em que se faça uso de um despacho contínuo e prolongado de todo o parque termoelétrico para que se evite um racionamento de energia, será gerado um grave impacto e desequilíbrio financeiro dos agentes geradores e do próprio sistema por conta de uma série de custos extraordinários. Ainda mais preocupante, segundo avaliação dos autores, o arcabouço regulatório e contratual da comercialização de energia não dispõe de mecanismos robustos capazes de evitar que estes impactos financeiros se propaguem de forma adversa e nociva por todo o SEB.
Diante dessa problemática, sinalizada pelos autores ainda no ano de 2010, os efeitos da crise hídrica iniciada em 2012 começaram a ser sentidos pouco tempo depois, evidenciando que de fato havia um descasamento entre as obrigações contratuais e a realidade operacional das usinas. Nesse sentido, o objetivo dessa seção é analisar e discutir os problemas conjunturais enfrentados pelas usinas termoelétricas relacionadas direta e indiretamente com a crise hidrológica ocorrida entre finais de 2012 e o ano de 2015.
3.2.1. Problemas Conjunturais Decorrentes da Crise Hidrológica de 2012 a 2015
Em virtude da crise hidrológica ocorrida entre os anos de 2012 e 2015, que acarretou em um despacho intenso e prolongado das usinas termoelétricas, diversos empreendimentos térmicos enfrentaram uma situação preocupante, resultado de um desequilíbrio econômico e financeiro de seus projetos. Mais especificamente, esse cenário é resultado da combinação da crise
hidrológica com o desenho original dos contratos de energia e a aplicação das regras de comercialização vigentes (BRANDÃO; XXXXX, 2016).
O que se observou ao longo da crise foi um cenário de afluências abaixo da média histórica e um consequente deplecionamento dos reservatórios, acarretando em níveis muito baixos de armazenagem. Tendo em vista que o PLD responde diretamente em função da situação hidrológica, a conjuntura da crise acarretou na manutenção de um PLD em patamar muito elevado, sendo, por algumas semanas, igual ao valor teto estabelecido de forma regulatória. A título de ilustração, o Gráfico 9 fornece a média mensal do PLD para o submercado Sudeste/Centro-Oeste em patamar de carga média, entre janeiro de 2010 e julho de 2017, em R$/MWh (CCEE, 2017b). Neste gráfico, é possível constatar que no segundo semestre de 2014 o PLD alcançou o valor máximo regulatório de R$ 822,83 por MWh.
900,00
800,00
700,00
600,00
500,00
400,00
300,00
200,00
100,00
0,00
R$/MWh
Gráfico 9 – Média Mensal do PLD para o Submercado Sudeste/Centro-Oeste em Patamar de Carga Média: Janeiro de 2010 – Julho de 2017 (em R$/MWh).
Fonte: CCEE, 2017b.
Nesse sentido, era de se esperar que os agentes geradores não seriam capazes de cumprir com seus compromissos, sofrendo com vultosas obrigações, que, conforme apontam Castro Hubner e Xxxxxxx (2014), são:
i. Economicamente elevadas, pois podem comprometer de forma irreversível e em um período relativamente curto a viabilidade econômica de diversos projetos; e
ii. Financeiramente insustentáveis, pois em vários casos as obrigações extraordinárias superam em muito a capacidade de pagamento dos projetos.
Para além desses problemas emergenciais pelos quais os agentes geradores passaram no período em questão, é provável que novas obrigações surjam, como ressarcimentos e recomposições de lastro. Caso essas expectativas se confirmem, agravariam o já crítico cenário econômico e financeiro desses agentes. De acordo com Xxxxxx, Xxxxxx e Xxxxxxx (2014), caso seja mantida essa tendência, há um grande risco de se evoluir para um problema sistêmico do modelo do SEB, associado diretamente ao parque gerador térmico. O que se deve avaliar é se as penalizações e ressarcimentos, vinculados ao PLD, são de fato desproporcionais. Isto é, se são superiores à capacidade de pagamento de diversos projetos, ameaçando a viabilidade econômica e a solvência financeira de boa parte do parque gerador térmico.
Conforme exame anterior, os problemas emergenciais do segmento de geração térmica estão muito fortemente relacionados à aplicação de dispositivos vinculados aos CCEARs por disponibilidade e das regras de comercialização, em um contexto onde há:
i. Despacho termoelétrico intenso e prolongado;
ii. Dificuldades de diversos projetos em gerar a energia despachada pelo Operador, além da ocorrência de atrasos na entrada em operação para alguns casos; e
iii. Alta do PLD para patamares extremos, próximos ao teto regulatório.
Nesse sentido, faz-se necessária uma avaliação mais detalhada de cada uma dessas situações e as implicações para a saúde econômico-financeira dos empreendimentos.
Em relação ao primeiro ponto, o despacho contínuo e prolongado que o parque térmico passou a enfrentar após o início da crise de 2012, tratava-se de um evento que possuía baixíssima probabilidade de ocorrência nos cenários adotados na metodologia dos leilões que contrataram estes empreendimentos, conforme avaliação, ainda em 2010, de Xxxxxx e Brandão (2010). Para se ter uma ideia do quão intenso foi o despacho ao longo da crise hidrológica, apenas nos dois primeiros anos o tempo de despacho de algumas plantas térmicas já havia superado a projeção original de acionamento para todo o período contratual de 15 anos. A Tabela 6 fornece dados consolidados anuais para a geração de eletricidade a partir de fontes térmicas movidas a combustíveis fósseis, em GWh, e suas respectivas participações na produção total de energia elétrica do mesmo ano, entre os anos de 2011 e 2016. Constata-se, a partir destes dados, que a participação agregada das usinas termoelétricas movidas a combustíveis fósseis representou 22,2% da geração total de eletricidade para o ano de 2014, enquanto para 2011, por exemplo, esse indicador foi de 8,2% (EPE, 2016a; EPE, 2017b).
Tabela 6 – Geração Anual das Fontes Termoelétricas Movidas a Combustíveis Fósseis e suas Respectivas Participações na Produção de Energia Elétrica Total: 2011 – 2016 (em GWh e %)
2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | ||
Gás Natural | Geração (GWh) | 25.095 | 46.760 | 69.003 | 81.073 | 79.490 | 56.485 |
Participação na Geração Total | 4,7% | 8,5% | 12,1% | 13,7% | 13,7% | 9,8% | |
Derivados de Petróleo20 | Geração (GWh) | 12.239 | 16.214 | 22.090 | 31.529 | 25.662 | 12.103 |
Participação na Geração Total | 2,3% | 2,9% | 3,9% | 5,3% | 4,4% | 2,1% | |
Xxxxxx | Xxxxxxx (GWh) | 6.485 | 8.422 | 14.801 | 18.385 | 19.096 | 17.001 |
Participação na Geração Total | 1,2% | 1,5% | 2,6% | 3,1% | 3,3% | 2,9% |
Fonte: EPE, 2016a e EPE, 2017b.
20 Óleo diesel e óleo combustível.
Esse cenário inesperado e anormal de despacho conduziu os empreendimentos a uma situação de dificuldade técnica de operação e manutenção. Desse modo, tornou-se difícil o cumprimento dos níveis de disponibilidade declarados na contratação. Duas razões principais podem ser apresentadas para tal fenômeno (XXXXXX; HUBNER; BRANDÃO, 2014). Primeiro, boa parte das usinas térmicas despachadas ao longo da crise hídrica eram empreendimentos relativamente novos e, portanto, que estavam sujeitos à curva da banheira21. Assim, era de se esperar que tais usinas enfrentassem altas taxas de falha e problemas de confiabilidade por ainda estarem em início de operação comercial. Considerando que as falhas implicam em multas, e que estas estão indexadas ao PLD teto, os valores associados a esses pagamentos eram extremamente elevados.
A segunda razão diz respeito ao despacho continuado do parque térmico. Tal situação acarreta em custos de operação mais elevados e em maiores necessidades de manutenção. Com intuito de preservar seus índices de disponibilidade, e de evitar penalizações ou ressarcimentos por geração abaixo do despacho do Operador, vários agentes reviram suas programações de manutenção no sentido de postergar paradas. No entanto, conforme observa Xxxxxxx e Xxxxx (2016), com o prolongamento do período de despacho, algumas manutenções se tornaram impostergáveis por questões contratuais de garantia dos equipamentos e acabaram ocorrendo em momentos inoportunos de PLD elevadíssimos, impactando de forma desproporcional os valores de ressarcimento.
O segundo ponto, que trata das dificuldades em se gerar a energia despachada, está associado à aplicação das regras de ressarcimento e de recomposição de lastro. Nesse sentido, os CCEARs
21 A curva da banheira é conhecida como a representação gráfica para representar padrões de taxa de falha de equipamentos e componentes. De forma geral, espera-se que ativos em início de operação e final de vida útil apresentem maiores taxas de falha, enquanto a fase de operação normal apresenta baixo índice de falha (RAPOSO, 2004)
por disponibilidade celebrados pelos Leilões de Energia Nova para usinas térmicas possuem uma alocação de riscos hidrológicos definida do seguinte modo:
i. O consumidor assume o risco hidrológico e o risco de preço dos combustíveis, e
ii. O gerador assume o risco de atraso na entrada em operação comercial e o risco da disponibilidade dos equipamentos.
Como é de se esperar, caso a operação sofra atraso caracterizado por ser de responsabilidade do gerador, este é obrigado a repor o lastro através da contratação de energia no mercado livre. De forma similar, caso a usina não seja capaz de cumprir o índice de disponibilidade com a qual se comprometeu contratualmente, esta deverá ressarcir as distribuidoras. Neste sentido, as sanções financeiras as quais os agentes geradores estão expostos são de duas naturezas:
i. Caso a disponibilidade verificada seja inferior à declarada, o agente poderá perder garantia física, reduzindo seu o lastro comercial para venda e tendo que comprar energia no mercado para honrar seus contratos; e
ii. Sempre que a produção de eletricidade for inferior àquela solicitada pelo ONS por razões em que o agente “der causa”, este deverá ressarcir as distribuidoras contratadas no montante da energia não gerada.
Na prática, esse montante do ressarcimento corresponde à diferença entre o PLD vigente e o CVU da usina (CASTRO; XXXXXX; XXXXXXX, 2014).
Deve-se notar que os dois primeiros pontos apresentados possuem possíveis obrigações que estão em alguma medida indexadas ao PLD. Portanto, é importante perceber que grandes variações no PLD podem determinar elevada pressão financeira sobre agentes expostos à necessidade de comprar energia no mercado de curto prazo ou com penalizações atreladas ao PLD. A título de exemplo, de acordo com dados fornecidos por Xxxxxx, Xxxxxx e Xxxxxxx
(2014), o PLD do início de 2014 estava em um patamar de R$ 823/MWh nos submercados Sudeste/Centro-oeste e Sul, o que correspondia a cerca de sete vezes o preço usual resultante dos leilões de energia nova.
Com a persistência da crise hidrológica no primeiro semestre de 2017, o preço médio para o PLD calculado pela CCEE para maio desse ano foi de R$ 411,49/MWh no submercado Sudeste/Centro-oeste22 (CCEE, 2017b), revelando que o problema da exposição ao PLD ainda persiste. Para Xxxxxx, Xxxxxx e Xxxxxxx (2014, p. 9), essa exposição acarreta em uma situação preocupante, conforme se segue:
“[...] o modelo de comercialização de energia adotado no Brasil está estruturado de tal forma que em eventuais situações de seca prolongada com alta do PLD o risco financeiro no setor elétrico assume proporções intoleravelmente elevadas. Em tais situações o montante financeiro das liquidações no Mercado de Curto Prazo da CCEE tende a crescer exponencialmente, determinando obrigações vultosas para agentes que estejam de alguma maneira – voluntária ou involuntariamente – expostos ao PLD. A seca prolongada com alta do PLD acabou ocorrendo em 2014 sem que medidas mitigatórias tivessem sido tomadas tempestivamente por parte das autoridades, criando uma situação preocupante. Em 2014 o PLD encontra-se muito acima do custo médio da energia no atacado. Como resultado desta diferença, há um processo de transferência maciça de riqueza entre os agentes do sistema sem nenhuma racionalidade econômica, dado que o fator determinante é uma diferença entre custo das UTE e preço de liquidação de diferença determinado, este último, por modelo computacional” (XXXXXX; XXXXXX; XXXXXXX, 2014, p. 9).
De acordo com o exposto ao longo dessa seção, pode-se constatar que o impacto financeiro dos ressarcimentos e recomposições de lastro é um problema bastante grave, sendo desproporcional à capacidade de pagamento dos empreendimentos termoelétricos e capaz de tornar rapidamente os empreendimentos insustentáveis do ponto de vista econômico. Torna-se evidente, portanto, a necessidade de se rever o mecanismo de contratação das usinas termoelétricas de longo prazo
22 A CCEE realiza mensalmente o cálculo da média mensal do PLD, por submercado. O cálculo considera os preços semanais por patamar de carga - leve, médio e pesado - ponderado pelo número de horas em cada patamar e em cada semana do mês (CCEE, 2017b).
à luz dos problemas apresentados, através de inovações regulatórias que possam fazer os ajustes necessários à nova dinâmica estrutural de equilíbrio entre oferta e demanda de energia elétrica.
4. EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS DE CONTRATAÇÃO
Conforme apresentado no capítulo 3 deste trabalho, o modelo comercial brasileiro atual, originado na reforma de 2004, se mostrou financeiramente instável durante o período de seca prolongada de outubro de 2012 a início de 2016, quando o Operador Nacional do Sistema (ONS) despachou de forma contínua a maior parte das usinas termoelétricas existentes, incluindo as mais caras movidas a óleo. Evitou-se com isso um racionamento, mas os altos preços da energia no curto prazo provocaram grande impacto financeiro para os agentes expostos a ele, fossem eles consumidores subcontratados, geradores hídricos com déficit de geração, geradores térmicos que por qualquer razão não conseguiram gerar a energia despachada pelo ONS ou mesmo geradores com entrada em operação em atraso.
Tendo em vista esse cenário, busca-se, ao longo deste capítulo, analisar mecanismos adotados por outros países que possam servir de reflexão e base para firmar proposições de aperfeiçoamentos regulatórios ao arcabouço de contratação brasileiro, sobretudo para o modelo específico das usinas termoelétricas por disponibilidade. Para tanto, antes de adentrar nas análises da experiência internacional, optou-se, na primeira seção, pela realização de uma explanação acerca da reestruturação de diversos setores elétricos a partir da década de 1980, buscando revelar o processo de formação das estruturas de mercado atuais e, mais especificamente, descrevendo o funcionamento e limitações dos mercados de energia de curto prazo.
A partir das explicações fornecidas, realiza-se, na segunda seção, uma avaliação dos mercados de capacidade e confiabilidade, ilustrados pelo caso colombiano. A escolha do caso colombiano está pautada principalmente pelo fato da matriz que este país apresenta ser bastante similar à matriz brasileira. Em seguida, na terceira e última seção, será desenvolvida análise dos mercados de serviços ancilares, apresentando seus principais conceitos, formas de contratação,
remuneração e estruturas de custo. Com intuito de avaliar um caso prático da aplicação desses mercados, optou-se pela análise do sistema do PJM23 (Pennsylvania - New Jersey – Maryland), que possui três mercados de serviços ancilares bem definidos e desenvolvidos. Além disso, o caso PJM torna-se especialmente interessante quando se observa a composição de sua matriz, majoritariamente térmica, tendo em vista o atual processo de transição da matriz elétrica brasileira e a necessidade de expansão da capacidade instalada oriunda de fontes térmicas tradicionais, sobretudo o gás natural, para dar mais segurança ao suprimento.
4.1. Reestruturação do Setor Elétrico, Formação das Estruturas de Mercado Atuais e o Mercado de Energia de Curto Prazo
4.1.1. Reestruturação do Setor Elétrico e as Estruturas de Mercado
Historicamente, a indústria elétrica se organizava sob a estrutura de monopólios verticalmente integrados que, de modo geral, eram de propriedade estatal. Estes monopólios eram encarregados tanto da produção, quanto do transporte da eletricidade até o consumidor final, sendo regulados em toda a cadeia produtiva como um monopólio natural (JOSKOW, 2008).
Entretanto, essa estrutura implicava em um cenário de altos custos de operação e de investimento, ocasionando em tarifas elevadas ao consumidor final ou em subsídios por parte do Estado (CASTRO et al., 2017a). Dado este cenário de ineficiência e de altos custos da energia elétrica, ocorreu forte movimento em diversos países do mundo por uma transformação radical da indústria elétrica a partir de finais da década de 1980 e ao longo da década de 1990
23 O PJM é um Operador Regional de Transmissão (RTO) responsável pela coordenação do mercado atacadista de energia elétrica que contempla as seguintes regiões americanas: Delaware, Illinois, Indiana, Kentucky, Maryland, Michigan, New Jersey, North Carolina, Ohio, Pennsylvania, Tennessee, Virginia, West Virginia e o Distrito de Columbia (capital e maior cidade do estado da Carolina do Sul). Trata-se de uma instituição neutra e independente, que opera o mercado de energia e gerencia a rede de mais de 65 milhões de consumidores (PJM, 2017).
(XXXXXX, 2008). Neste sentido, o processo de liberalização do Reino Unido, iniciado em 1989 com a promulgação da lei The Electricity Act, transformou-se em paradigma do novo modelo.
O pioneirismo britânico se converteu em referência para as diversas reformas adotadas ao longo dos anos subsequentes ao redor do mundo. Conforme aponta Xxxxxx (2008), estas reformas buscavam implementar estruturas de mercados mais liberalizadas, através da adoção de diversos elementos-chave, dos quais merecem ser destacados:
i. A privatização dos monopólios estatais de eletricidade;
ii. A desverticalização da indústria elétrica em quatro segmentos: geração, transmissão, distribuição e comercialização.
iii. A restruturação horizontal da atividade de geração com objetivo de introduzir competição neste segmento;
iv. A manutenção dos segmentos de transmissão e distribuição como monopólios naturais, com tarifas definidas pelo Estado, através de um regulador, e operados por um operador independente do sistema;
v. A criação do mercado atacadista de energia elétrica no qual geradores vendem grandes blocos de energia e;
vi. A introdução de competição no mercado de varejo através da liberalização de todos os consumidores, tornando livre a escolha do comercializador prestador deste serviço.
Seguindo os preceitos da liberalização britânica, vários países adotaram reformas em seus setores elétricos. Contudo, deve-se destacar que nem todos os países implementaram o mesmo modelo. Nesse sentido, Xxxxxx et al. (2017a) assinalam que, apesar de as reformas possuírem alguns traços em comum, como a adoção de mecanismos de mercado e desverticalização, a estrutura efetivamente implantada variou significativamente de país para país, em função de características econômicas e políticas. Ainda assim, é possível identificar uma semelhança entre
diversos países que passaram pela liberalização da indústria elétrica, como nos casos do Brasil, Colômbia, Estados Unidos, Reino Unido, Japão, México, dentre outros. Em todos esses exemplos, o setor elétrico foi fragmentado em dois grandes mercados: o mercado de varejo e o mercado atacadista (BRANDÃO et al., 2016).
De acordo com PJM (2017), o mercado de varejo se caracteriza como sendo o ambiente onde a energia elétrica é vendida aos consumidores finais, tipicamente com transações entre as concessionárias de distribuição e os consumidores residenciais e comerciais de baixo consumo de eletricidade. Já o mercado atacadista, por sua vez, pode ser definido como o ambiente onde ocorre a venda de grandes blocos de energia elétrica pelos geradores aos comercializadores, distribuidoras e grandes consumidores.
Tendo em vista o escopo do trabalho e deste capítulo em especial, o foco analítico será o mercado atacadista de energia elétrica. Conforme assinalam Xxxxxx et al. (2017a), este mercado pode estar organizado em função de duas estruturas básicas, quais sejam, o esquema de comprador único e a diferenciação entre os mercados de curto e longo prazo, muito embora, vale assinalar, cada país apresenta características próprias em cada uma dessas estruturas. A Figura 1 fornece a estrutura básica nas quais os dois tipos de mercados atacadistas estão dispostos.
G G
G
D/C
D/C
G.C
Xxxxxxx atacadista
G
G
CONSUMIDOR
CONSUMIDOR
G.C
Mercado longo prazo
Mercado curto prazo
Figura 1 – Organização Básica dos Mercados Atacadistas Pós Reformas Liberalizantes
G
G G G
G
Xxxxxxx atacadista
D/C
CONSUMIDOR
COMPRADOR ÚNICO
CONSUMIDOR
G- Gerador
D/C - Distribuidor e/ou comercializador
G.C - Grande consumidor
Fonte: Xxxxxx et al., 2017a.
O esquema de comprador único apresenta algumas características gerais que podem ser encontradas nos países que o adotam. Por exemplo, o comprador único apresenta-se como uma empresa do Estado, proprietária das redes de transmissão e distribuição. Além disso, nessas estruturas, o segmento de geração possui a presença tanto de produtores públicos, que em geral são agentes oriundos da desverticalização da empresa estatal, quanto de produtores independentes de energia. A China e a Coreia do Sul são exemplos de países que ainda mantém o esquema de comprador único (BRANDÃO et al., 2016). Tendo em vista as características apresentadas, esse caso não se mostra muito relevante para uma análise comparativa com o caso brasileiro e, portanto, não será objeto desse trabalho.
A segunda estrutura resultante das reformas liberalizantes é de um mercado atacadista subdividido em dois mercados, o de curto e o de longo prazo. Conforme será detalhado nas seções 4.1.2 e 4.1.3, o curto prazo apresenta diferentes tipos de mercado de energia, enquanto o longo prazo introduz mecanismos com intuito de corrigir algumas limitações dos mercados de curto prazo no que diz respeito aos investimentos para expansão do sistema elétrico.
4.1.2. Mercados de Energia de Curto Prazo
De acordo com Xxxxxx (2008), o objetivo das reformas liberalizantes era criar um novo arranjo institucional para o setor elétrico que permitisse à sociedade auferir benefícios de longo prazo, obtidos através da introdução de diversos mecanismos de concorrência de mercado no setor. Nesse sentido, era esperado que os incentivos criados seriam suficientes para promover a correta expansão do sistema, reduzir os custos dos investimentos em capital fixo e incentivar inovações tecnológicas, conferindo à sociedade preços mais competitivos e serviços de maior qualidade. A ideia fundamental por trás das reformas adotadas era a de aproximar o mercado atacadista de energia elétrica a um mercado de concorrência perfeita. Entretanto, o mercado de concorrência perfeita é um modelo apenas teórico, não se verificando efetivamente na prática. O desafio, portanto, é tentar replicar suas condições para que se obtenha um desenho de mercado o mais próximo possível do que seria uma concorrência perfeita.
No caso específico da indústria de eletricidade, foi perceptível o esforço de aumentar a competição a partir da adoção das reformas. A desverticalização dos monopólios estatais conjugada com a entrada de novos agentes privados de geração aumentou o número de produtores, que passaram a ser tomadores de preço, dado pela interação entre oferta e demanda. Além disso, o livre acesso concedido às redes de propriedade estatal amenizou as barreiras à entrada, tanto para os produtores, como para os consumidores. No entanto, apesar dessa evolução, a indústria elétrica continua sendo caracterizada como intensiva em capital e por possuir altos custos afundados e longo prazo de maturação, apresentando barreiras à entrada e à saída por parte dos agentes (GREEN; NEWBERRY, 1992).
Em relação ao produto energia elétrica, trata-se de um bem homogêneo, pois, do ponto de vista do consumidor, independente da fonte geradora, o produto final é o mesmo: eletricidade. Entretanto, conforme será analisado mais adiante, na prática, quando o produto transacionado