CONTRATOS FUTUROS DE SOJA: ONEROSIDADE EXCESSIVA E MATRIZ DE RISCOS
CONTRATOS FUTUROS DE SOJA: ONEROSIDADE EXCESSIVA E MATRIZ DE RISCOS
Xxxx Xxxxxxxxx Xxxx* Xxxx Xxxxxx**
Resumo: A aplicação da doutrina “rebus sic stantibus” é um exercício de análise econômica da relação contratual, à luz do objeto, das partes e de fatores exógenos conjunturais. Neste tra- balho exploramos hipóteses de eventos imprevisíveis para deli- mitar a aplicabilidade excepcional da onerosidade excessiva como fundamento de revisão judicial de contratos futuros de soja.
Palavras-Chave: Contratos futuros. Soja. Onerosidade Exces- siva. Análise Econômica do Direito.
SOYBEANS FUTURES: “REBUS SIC STANTIBUS DOC- TRINE” AND CONTRACTS RISKS ALLOCATION
Abstract: The application of the “rebus sic stantibus” doctrine demands an economic analysis of the contractual relationship, regarding its object, parties and markets variables. We explore uncertainties and abnormalities which might be sufficient, or not, to enable the exceptional applicability of the “fundamental change of circumstances” clause, as a ground for judicial review of soybean futures.
* Advogado (Bacharel em Direito pela UFPR), Economista (Bel. em Economia pela FAE), Mestre em Políticas Públicas pela UFPR.
** Bacharelando em Direito da UFPR.
Ano 10 (2024), nº 3, 511-528
Keywords: Futures. Soybean. Rebus Sic Stantibus. Law and Economics.
I INTRODUÇÃO
A acentuada variação dos preços da soja, dentro do período de uma safra, associada à expectativa forense brasileira por revi- sões contratuais, sinaliza incentivos ao descumprimento dos contratos futuros de soja.
Nesses contratos, o produtor recebe, antecipadamente, preço certo pelo que entregará com a colheita. Quando os preços (e/ou custos de produção) se elevam substancialmente entre o a antecipação de valores e a entrega dos grãos, o produtor percebe uma perda da oportunidade.
A essa realidade econômico-financeira conjugam-se a hipótese legal de revisão de contratos privados em virtude de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” (onerosidade excessiva, rebus sic stantibus) e os debates em torno de cláusu- las gerais de função social e boa-fé objetiva nos contratos.
Xxxxxx descrever a racionalidade econômica dessas rela- ções jurídicas, a fim de identificarmos as finalidades e vontades que configuram tais negócios, como meio de sua interpretação (conforme artigos 112 e 113 do Código Civil) e de solução de controvérsias.
II TEORIA DA IMPREVISÃO
Da regra clássica de vinculação (pacta sunt servanda), derivaram evoluções dogmáticas medievais, com propostas de que “os contratos de trato sucessivo e com dependência de prazo (a termo) estão sujeitos ao estado das coisas existentes no mo- mento de sua elaboração”1. O revisionismo contratual possui
1 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Teoria Da Imprevisão E Revisão Judicial Nos Contra- tos. Revista dos Tribunais, vol. 733, p. 109-119 nov. 1996.
desenvolvimento intimamente ligado à história e às correntes econômicas e filosóficas de cada tempo.
“A cláusula teve maior aplicação e desenvolvimento com os Canonistas, que condenavam a usura e o enriquecimento de um dos contratantes em detrimento do outro, apoiados principal- mente nas obras de Xxxxx Xxxxxxxxx e Xxx Xxxxx xx Xxxxxx (Summa Theológica) (...) Com o individualismo e o libera- lismo econômico do final do século XVIII e século XIX, a apli- cação da cláusula rebus sic stantibus decaiu de forma sensível. (...) A cláusula rebus sic stantibus veio a ressurgir apenas com a 1ª Grande Guerra Mundial, que de forma marcante alterou todo o sistema político-econômico-social europeu.2”
Denota-se um esforço de compatibilização entre uma fonte jurídica material de origem medieval e cristã e as fontes jurídicas formais, liberais ou social-democratas, que a recepcio- naram na modernidade. A rebus sic stantibus decorre mais de intenções por equidade e de justiça restaurativa do que de teleo- logias pós-revolucionárias (autonomia da vontade ou dirigismo estatal). A hermenêutica deve obter coerência e coesão entre um elemento antigo e um sistema moderno. A contenção das expec- tativas do Mercador de Veneza, mas em Amsterdã, Londres ou Nova Iorque, alguns séculos após a obra.
Na Europa, o ressurgimento da aplicação da teoria da im- previsão se deu em função das Guerras Mundiais enfrentadas pelo continente. No Brasil, a aplicação da teoria da imprevisão ganhou força, sobretudo no final do século XX, diante do cená- rio de crise político-econômica, que acabou por ocasionar perdas no valor da moeda comparáveis ao ocorrido na Europa.3
Carlos Alberto Bittar Filho4 compila o embate jurispru- dencial “entre anti-revisionistas, a dos revisionistas e a dos mo- derados” das décadas de 30 a 90, denotando a impossibilidade
2 XXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx. Cláusula "Rebus Sic Stantibus". Revista de Pro- cesso | vol. 63/1991 | p. 190 - 198 | Jul - Set / 1991 | DTR\1991\282)
3 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 138.
4 BITTAR FILHO, Xxxxxx Xxxxxxx. TEORIA DA IMPREVISÃO: SENTIDO ATUAL. Revista dos Tribunais | vol. 679/1992 | p. 18 - 29 | Maio / 1992 Doutrinas Essenciais. Obrigações e Contratos | vol. 4 | p. 481 - 500 | Jun / 2011 | DTR\1992\161
de previsão dos rumos dos tribunais, nesse debate, ao longo do tempo.
No Brasil, com Código Civil de 1916, não houve previ- são de possibilidade de aplicação da teoria da imprevisão, o que fez com que, ao menos parte da doutrina, advogasse pela sua completa inaplicabilidade. Por outro lado, o Código de 2002, in- fluenciado pelas novas codificações de países como Itália, Por- tugal e Argentina, passou a prever a aplicação da teoria da im- previsão, por meio da possiblidade de revisão contratual por onerosidade excessiva.5
Assim, prescreve o art. 478, do Código Civil Brasileiro: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a pres- tação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a reso- lução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retro- agirão à data da citação”.
Sem exigir “extrema vantagem”, mas restrito à variação do montante nominal das prestações, entre a avença e o adim- plemento, também o artigo 317 do mesmo diploma referencia a alteração do conteúdo obrigacional a partir de variações exóge- nas imprevisíveis.
A ideia central da visão mais moderna dessa teoria é a limitação da autonomia da vontade no interesse comutativo dos contratos, garantindo a equivalência das prestações mesmo que diante de fato superveniente imprevisível que torne o contrato excessivamente oneroso a uma das partes. Assim, impede-se tanto o empobrecimento injusto de uma das partes quanto o en- riquecimento sem causa de outra. 6
Por isso mesmo, para revisão/resolução contratual fun- dada em onerosidade excessiva, é necessário que seja percebida
5 XXXXXX XX, Ruy Rosado de. XXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx (coord.). Comentá- rios ao Novo Código Civil, v. 6. Rio de Janeiro: Forense, t. 2, p. 869-873.
6 XXXX, Xxxxxxx. Direito civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, vol. 2, p. 300-302. Nesse sentido, vide nota de rodapé 1.
a vantagem excessiva pela outra parte. 7 No entanto, a demons- tração dessa vantagem pode ser circunstancial, conforme o Enunciado nº 365, da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
“A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que com- porta a incidência da resolução ou revisão do negócio por one- rosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”.
Veja-se, nesse sentido, que o objetivo da revisão contra- tual por onerosidade excessiva é sempre a manutenção do equi- líbrio das prestações contratadas, mas não a correção de eventual desproporção econômica já presente quando da contratação.8
Outrossim, nada obstante alguns advoguem pela desne- cessidade de constatação da imprevisibilidade do fato superve- niente gerador da onerosidade para a revisão contratual (aplica- ção da rebus sic stantibus sem sua recepção pela teoria da im- previsão),9 sedimentou-se, nos tribunais pátrios, a necessidade de que o evento seja extraordinário, admitindo-se a aplicação da teoria de modo muito restrito, somente em casos especialíssi- mos.10
III CONTRATOS COMUTATIVOS E CONTRATOS ALEATÓRIOS
7 XXXXXXX, Xxxxxxxxx xx Xxxxx. XXXXX, Xxxxxxxx. Xxxxxx (coord.). Comentários ao código civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p.
470. Em sentido contrário, há quem argumente que a excessiva vantagem da outra parte não é requisito para a aplicação da teoria da imprevisão: VENOSA, Xxxxxx xx Xxxxx. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Contratos - Vol. 3. Ed. 21. São Paulo: Atlas, 2021, pag.123.
8 XXXXXXX, Xxxxxxxxx xx Xxxxx. XXXXX, X. X. Xxxxxxxxxxx ao código civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 470.
9 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Teoria Geral dos Contratos, 4. ed, São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 44.
10 XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxx. A Aplicabilidade Da Teoria Da Imprevisão Aos Contratos De Compra E Venda De Commodities. Revista de Direito Empresarial, vol. 0, p. 25 – 44, Nov – Dez. 2013.
Como visto, um dos objetivos da teoria da imprevisão é limitar a autonomia da vontade das partes aos interesses comu- tativos do contrato. No caso dos contratos de venda antecipada de soja, no entanto, a comutatividade do contrato não é facil- mente identificada.
Nos contratos comutativos, as partes conhecem as pres- tações que serão devidas e podem verificar, imediatamente, a equidade de tais prestações. Mesmo diante da possibilidade de oscilação do valor do contrato, bem como da existência de risco, a equivalência das prestações é primordial nos contratos comu- tativos.11
Nos contratos aleatórios, regulados pelos artigos 458 ao 461, do Código Civil, não se identifica de antemão a comutati- vidade. Veja-se, sobretudo, o que dispõem os artigos 458 e 459, do Código Civil:
Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos con- tratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha ha- vido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir. Art. 459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qual- quer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada.
A incerteza, portanto, é o que caracteriza tais contratos. Como exemplo clássico desse tipo de contrato, tem-se os con- tratos de seguro de vida e acidentes.12 É que, no momento da contratação, as partes não conhecem a sua posição futura, ou seja, não conhecem exatamente a extensão das prestações, que ficam dependentes de eventos futuros, sujeitando as partes à pos- sibilidade de perda ao invés de lucro.13 Por isso, a teoria da
11 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 138. 12 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 138. 13 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil - Vol. III - Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 62.
imprevisão não é, geralmente, aplicável a contratos aleatórios.
Quanto aos contratos futuros de soja são, há discussão se são comutativos ou aleatórios. Isso porque, em uma primeira lei- tura, diante do disposto nos artigos transcritos, sendo coisas fu- turas, o comprador assumiria o risco de quebra de safra. Mesmo assim, há quem sustente a comutatividade desses contratos, visto que as partes já conhecem exatamente a extensão das prestações no momento da contratação14.
De todo modo, mesmo a classificação desses contratos como aleatórios não será óbice definitivo para a aplicação da te- oria da imprevisão, visto que é corrente na doutrina a ideia de que “É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosi- dade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione à álea assumida no contrato”15.
Portanto, a questão central sempre residirá na constata- ção da onerosidade excessiva decorrente de fato imprevisível e da não alocação do risco relacionado a esse fato pela autonomia das partes, ao contratarem. Isto é, se este fato imprevisível cau- sador do desequilíbrio não for relacionado à álea do contrato.
Extrair do contrato essa alocação de riscos pode ser a chave para que uma hipótese legal dotada de conceitos indeter- minados não ponha em risco toda a segurança de cláusulas bem determinadas – derrubando-se toda a autonomia privada em efeito dominó.
Por exemplo, determinado risco (produtividade) pode es- tar alocado ao produtor, mas os ganhos decorrentes do infortúnio (elevação de preços por quebra de safra) podem não ter sido alo- cados ao comprador, demandando-se uma revisão parcial, que mitigará apenas parte dos prejuízos do produtor e retirará apenas uma parte dos ganhos do comprador. Como passou a disciplinar
14 Xxxxxx Xxxxxxxxx, em parecer elaborado para a Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetais (Abiove), nos autos do Recurso Especial 722.130. Nesse mesmo sentido, vide nota de rodapé nº 4.
15 Enunciado 440, da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
o art. 421-A, II do Código Civil Brasileiro (via “Lei de Liber- dade Econômica”, de 2019), não pode haver revisão contratual contrária à alocação de riscos entre as partes.
IV FATORES ECONÔMICOS E COMPORTAMENTO DAS PARTES
A “venda na baixa” cria um incentivo a que o produtor não entregue o produto (descumpra o contrato), preferindo o mercado à vista. A expectativa é de que, por meio de acordo ou decisão judicial, os custos do seu inadimplemento (multas, inde- nizações, reputação, despesas judiciais, honorários etc.) sejam inferiores ao diferencial de preço usufruído – além de que sejam tais custos incorridos em momento posterior.
O fundamento jurídico que daria legitimidade ao inadim- plemento seria de “acontecimentos extraordinários e imprevisí- veis” (art. 478 do Código Civil). Como exemplo proposto, aque- les recentemente relacionados à pandemia de COVID-19 en- quanto suposta causa do aumento expressivo no preço da com- modity e dos seus custos de produção.
Ainda como exemplo histórico, a soja disponibilizada em Paranaguá-PR em março de 2021 tinha seu preço em torno de R$ 170,00 a saca, enquanto cerca de um ano antes, na colheita anterior, o preço girava em torno de R$ 100,0016. Isto é, entre a formação de expectativas de preço e a execução contratual um acréscimo de 70%. Mesmo em dólar e no mercado financeiro houve movimento similar. Entre maio de 2020 e março de 2021
o preço futuro da soja nos EUA subiu 68,33%, de cerca de 840 para 1400 dólares por bushel17.
Há, ainda, o argumento de aumento de custos. A variação cambial em tese possui forte correlação com insumos
16 Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxxxx.xxx.xx/xx/xxxxxxxxx/xxxx.xxxx>. Acesso em 18.03.2021.
17 Disponível em: <xxxxx://xx.xxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxx/xx-xxxxxxxx-xxxxxxxxx>. Acesso em 18.03.2021.
importados e derivados de petróleo aplicados à produção, tais como diesel, fertilizantes e defensivos. De um modo geral a in- flação brasileira de preços de atacado foi muito significativa du- rante a safra de 2020/2021, com o IPA-FGV (que mede a varia- ção de custos de produção agrícola e industrial em geral) acu- mulando 41,78% entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021. Assim, os argumentos não são apenas no sentido do que deixou o produtor de ganhar com a nova conjuntura econômica impre- vista, mas também de efetivos prejuízos.
Contudo, sendo a alocação de riscos, e não apenas a an- tecipação de capital, da essência desse negócio, o inadimple- mento (com proposta de revisão judicial) desses contratos não apenas atrai critério heterônomo de equidade em concreto, mas pode advogar, nessa rota, pela ilicitude em abstrato da livre alo- cação de riscos entre partes – se o conteúdo contratual for com- pleto nesse sentido. Logo, se o risco incorrido é da natureza do negócio, ou sobre ele dispuseram as partes, o art. 421-A, II iria vedar a sua revisão.
V CONTRATO COMO MECANISMO DE ALOCAÇÃO DE RISCOS
Os contratos futuros de soja servem, pela ótica do produ- tor, aos propósitos de: (a) financiar a produção (antecipação do recebível futuro); e (b) mitigar os riscos de mercado, pois o preço também pode cair entre o recebimento antecipado do preço e a entrega do grão.
Diante disso, há um negócio agrícola que não se benefi- cia de nenhum regime jurídico que afaste a presunção de pari- dade das partes, expressa no art. 421-A, do Código Civil. Isto é, o produtor não se coloca em juízo, em caso de revisão, em posi- ção análoga ao consumidor ou ao reclamante trabalhista, por exemplo. Nesse sentido, aspectos subjetivos de formação e ex- pressão da vontade contratual (hipossuficiência ou vícios
volitivos) possuem um prognóstico bastante negativo em juízo, isto é, ou demandam um ônus probatório subjetivo insuportável ou demandam uma hermenêutica de especial leniência com o produtor rural.
Como visto, no aspecto objetivo, dos fatos ocorridos du- rante a relação, revisão costuma se fundamentar no art. 478 do Código Civil. Para tal hipótese a lei estabelece a possibilidade de resolução do contrato ou, por proposta do réu, de sua modifi- cação em atenuação desse desequilíbrio. Não raro se pede a de- cretação judicial da modificação do teor das cláusulas, isto é, a sua revisão judicial. O raciocínio seria que da possibilidade de resolução deduz-se ilegalidade das cláusulas em seu teor origi- nal.
A revisão (substituição da vontade das partes pela do ju- ízo) foi fortemente restringida pelo novo artigo 421-A, III, do Código Civil. Nos seus incisos I e II, o mesmo dispositivo enfa- tiza que as hipóteses de revisão em razão de imprevistos devem estar prescritas no próprio contrato e que a alocação de riscos feita pela parte deve ser respeitada. O contrato de venda anteci- pada é basicamente um contrato de alocação de risco de variação de preços de mercado.
De modo algum isso é, para contratos de venda a preços presentes para entrega futura, uma novidade introduzida pela Lei da Liberdade Econômica. Como já tratado acima, a sua regula- ção enquanto contratos aleatórios (artigos 458-461) traz longa tradição jurídica de respeito à alocação de riscos feita pela parte. O direito administrativo brasileiro trouxe expressivos de-
xxxxx em torno da rebus sic stantibus, em grande parte úteis ao direito privado. A teoria da imprevisão tem aplicação menos ex- cepcional no direito público, por advir de uma regra geral de in- tangibilidade da equação contratual.
A outra face do problema, contraposta às prerrogativas da Ad- ministração, assiste precisamente no campo das garantias do particular ligado pelo acordo. Cabe-lhe integral proteção quanto às aspirações econômicas que ditaram seu ingresso no
vínculo e se substanciam, de direito, por ocasião da avença, consoante os termos ali estipulados. Esta parte é intangível e poder algum do contratante público pode reduzir-lhe a expres- são, feri-la de algum modo, macular sua fisionomia ou enodoá- la com jaça, por pequena que seja (...) a desigualdade dantes encarecida equilibra-se com o resguardo do objetivo de lucro buscado pelo contratante xxxxxxx00
Isto é, como contrapeso às chamadas cláusulas exorbi- tantes, com base no art. 37, XXI da Constituição e dispositivos da Lei 14.133/2021, a revisão contratual, mesmo diante de con- tratos comutativos19, é muito mais frequente e autorizada nos contratos públicos, razão pela qual, igualmente, a questão da ma- triz de riscos nesse campo também encontrou significativo de- senvolvimento. Na nova lei de licitações, a alocação de riscos ganhou capítulo próprio.
Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados. (...) § 5º. Sempre que atendidas as condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, será considerado mantido o equilíbrio econômico- financeiro, renunciando as partes aos pedidos de restabeleci- mento do equilíbrio relacionados aos riscos assumidos (...)
Isto é, mesmo no direito público, em que a revisão (ou a extinção) contratual por fato imprevisto, tem aplicabilidade me- nos excepcional, o direito evoluiu para tentar limitar tais revi- sões por meio da disciplina contratual dos riscos. A onerosidade excessiva está com aplicação restrita às hipóteses em que a parte prejudicada não teve a si alocados os riscos contratuais.
A exceção é apenas quando uma das partes já conhece a consumação do risco ao tempo da contratação. Isto é, quando
18 BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Curso de Direito Administrativo. 21ªed. São Paulo: Malheiros, p. 595.
19 Em regra, são ilícitos os contratos administrativos aleatórios, justamente pela su- premacia do interesse público face a riscos aleatórios de prejuízos significativos, cf. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Adminis- trativas - Ed. 2021. São Paulo: Revista dos Tribunais, Página RL-1.32, e-book.
não há uma alocação de risco, mas um ardil. Aloca-se a uma parte um risco que já não é “risco”, mas prejuízo certo ou pro- vável. No campo prático processual, essa situação atrai para o prejudicado um complexo ônus de prova, relativo a defeitos do negócio jurídico.
VI INEXISTÊNCIA DE VANTAGEM EXCESSIVA
Na formação da vontade no negócio jurídico, a experiên- cia nos faz supor que o sujeito irá assumir mais risco em troca de uma expectativa de maior rentabilidade. Pela mesma razão, em via inversa, abre-se mão de parte da rentabilidade esperada em troca de reduzir os riscos a que está exposto em suas ativida- des. Tanto o produtor quanto o comprador dimensionam o risco que estão dispostos a correr, proporcionalmente à rentabilidade almejada. Ainda que inexista uma matriz explícita de riscos no instrumento, a venda futura de soja é a alocação de riscos rela- cionadas à alta de preços para uma parte e de riscos de queda de preços para outra.
Já vimos que o produtor, além de se financiar (ao receber antes) visa a reduzir o risco de o preço cair. O comprador (tra- der), ao pagar antecipado, busca, além de se resguardar do risco de o preço subir, também anular o risco de ter dificuldades de obter o produto, caso muitos produtores já tenham optado por vendas antecipadas ou ocorra quebra na safra.
Ocorre que o comprador (trader ou final) não necessari- amente consome essa soja no sentido mais estrito possível (não se alimenta dela pessoalmente). Ele irá ou cumprir com compro- missos de revender em atacado o produto (ao reunir a produção de diversos agricultores) ou irá utilizá-lo como insumo de sua produção (por exemplo, se farelo, óleo ou rações).
Ou seja, o risco que o comprador quer anular ou mitigar é o do inadimplemento dos seus contratos nos elos seguintes da cadeia produtiva do complexo soja – o que inclui instrumentos
financeiros existentes nesse mercado para essa específica finali- dade de alocação de riscos de variação de preços.
O que é mais comumente observado nesse mercado, por- tanto, é que o comprador não se beneficia integralmente do fato de ter comprado soja a um preço menor do que o vigente no mo- mento do seu consumo ou revenda, porque ele próprio já possui compromissos, físicos ou de derivativos financeiros, que assu- miu em momento anterior, isto é, de entregar a algo (soja, con- tratos ou derivados) a preços ou custos menores do que os atuais. Por exemplo (bastante simplificado), o trader que com-
pra a 100 em 2020 e recebe a soja quando o preço de mercado é 170 e, ainda em 2020, por meio de outros contratos havia alo- cado o seu risco de a soja valer 60 no momento da colheita. Ele teria pagado 100 e teria que revender a 60. Em razão disso, cos- tuma fazer hedge, mediante contratos de opção de venda de soja a 100. Se o preço cair, ele tem a opção de vender (obrigar ter- ceiro a comprar) a preço mais alto e assim compensar seu preju- ízo. Se o preço subir, ele perde o que investiu nesses contratos financeiros (pois não tem interesse em forçar que alguém com- pre de si abaixo de preço de mercado), mas ganho no mercado real (pois comprou soja por menos, antecipadamente). Os elos seguintes da cadeia tendem a se comportar de modo semelhante. Inclusive o próprio produtor pode ter, para compensar o risco de aumento do preço ao vender antecipado, adquirido opções de compra em torno de 100 reais, “apostando” na alta em bolsa para compensar as suas eventuais perdas, nesse cenário.
Ou seja, não há uma anulação de riscos entre produtor, revendedor e o mercado em geral, mas uma complexa alocação de riscos em cadeia, no sentido de sua mitigação.
A revisão de contratos quebra todas essas expectativas, ensejando uma cadeia de prejuízos de comprovação relativa- mente simples, expondo o produtor inadimplente a um risco de arcar com cláusulas penais (não compensatórias) e indenizações que podem ser múltiplos de sua própria operação.
Assim, como há a possibilidade e, não raro, a realidade de “trava de posições” por meio de relações contratuais com ter- ceiros, a venda antecipada em regra não significa rentabilidade e prejuízos extraordinários, seja em sentido de previsibilidade, seja em sentido de intensidade.20
Quem acaba por receber a rentabilidade (ou prejuízo) fora do normal nessa negociação é aquela parte que, correndo o risco (especulando), negocia a commodity, seja no campo, seja na bolsa, sem “travas”, isto é, sem um contrato no qual ganhe no mesmo cenário de preços em que perde no contrato de sua ativi- dade principal.
Por isso, a mera variação de preços, por mais imprevista e aguda que seja, não significa, por si só, hipótese legal onerosi- dade excessiva nos contratos de venda antecipada de soja.
Em vista de cada caso concreto e da alocação de riscos (típica ou específica) pode haver soluções de revisões menos simplistas (e intensas) que aquelas orientadas apenas pelos pre- ços e suas variações.
É importante investigar a causa da variação de preços e a sua eventual correlação com outros prejuízos ou ganhos das partes. Em regra, o contrato aloca os riscos de mercado (variação de preços do produto) mas não altera os riscos relacionados a custos de produção. Se o mesmo fato gera aumento de preços e custos, pode haver, na margem de aumento de custos apenas, uma revisão residual do contrato.
Por exemplo, a quebra de safra (pragas e motivos climá- ticos sendo os mais comuns) é uma variável que ao mesmo tempo agrava os custos unitários de produção e eleva os preços do produto ao longo do tempo. Ou seja, há uma correlação par- cial entre o prejuízo imprevisto de uma parte e o benefício ex- traordinário de outra.
20 Com argumento similar, ver: XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx. Contratos futuros de soja: qual sua lógica econômico-jurídica? Jota. Disponível em
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxx-xx-xxxx/xxxxxxxxx-xxxxxxx- de-soja-22022021>. Acesso em 10.03.21.
Um fenômeno inflacionário global de insumos, como o da pandemia de 2020 em diante, é, ao mesmo tempo causa, e consequência (em diferentes graus e consequências) da subida de preços que beneficia o comprador. A soja sobe tanto pela es- cassez de produtos e transportes (e outros fatores não relaciona- dos à pandemia), como pela própria pressão sobre custos de pro- dução, como os de combustível. O preço de equilíbrio de mer- cado decorre do encontro de curvas de demanda (relacionadas à escassez e à utilidade do produto) e de oferta (formadas pelos custos de produção).
O tema “GVC” (cadeia global de valor) é um dos domi- nantes quando a academia econômica se debruça sobre os mer- cados de soja21, constatando perda de autonomia e margens de valor de produtores, em benefício de detentores de tecnologias, comercializadores e financiadores da produção22.
Caso excepcionalmente configuradas áleas extraordiná- rias, não alocadas em contrato, que, ao mesmo tempo, benefi- ciam sobremaneira uma parte e prejudicam outra, ainda assim, a revisão deveria ser marginal, recompondo os prejuízos de uma parte na medida em que se relacionam com os lucros extraordi- nários de outra.
Todavia, mesmo nessas hipóteses, em que demonstrada uma causa comum de aumento de preços do produto e custos de produção, a recomposição de uma margem de prejuízos decor- rentes de variação de custos somente não violaria a matriz de riscos caso comprovado que comprador efetivamente se benefi- ciou do fato extraordinário, isto é, que ele próprio já não sofre outros limitadores de suas aparentes vantagens.
A jurisprudência já era consolidada do STJ é no sentido
21 Xx Xxx, Xxxxx Xxxx, Xxxxxxxx Xxxxx, Xxxxx Xxx, Xxxxxxx Xxxx, Soybean supply chain management and sustainability: A systematic literature review, Journal of Cleaner Production, Volume 255, 2020; 120254
22 Xxxxxx Xx Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx Xx Xxxx, Xxxxxxxxxx Xxxxx X. X. Xxxxxxx Trap: Challenges and Risks for Brazilian Producers. Frontiers in Sustainable Food Systems, V. 4, 2020.
de que não há possibilidade da aplicação da teoria da imprevisi- bilidade pela alta da cotação do dólar e do preço da commodity. 23 Apesar de que os julgados não tenham ocorrido conforme rito de uniformização de jurisprudência, os tribunais estaduais têm seguido o entendimento já sedimentado.24 Em que pese possível, nesses casos, seria muito complexa e diminuta a demonstração do incremento de prejuízos (em sentido estrito, de aumento de custos) decorrentes da variação cambial. Além disso, seria ne- cessário se avaliar a posição do comprador (eventuais posições em divisas e mercadorias) para se apurar a efetiva vantagem ex- traordinária.
Tal análise é determinante para a decisão de eventual ju- dicialização do litígio, visto que a complexidade dessas premis- sas torna ainda mais remota a obtenção de tutelas provisórias.
A situação se mostra ainda menos favorável diante do dever do aplicador da lei de considerar as consequências da sua decisão. O art. 20, da LINDB, introduzido em 2018, estabelece uma ordem pragmática ao poder judiciário: a análise das conse- quências das decisões. Nesse sentido, “o principal problema que o dispositivo quer resolver se encontra na aplicação acrítica e superficial de princípios normativos menos densificados”;25 exa- tamente o caso da função social do contrato e teoria da imprevi- são, que fundamentam as teses de revisão contratual.
No mesmo rumo, são os enunciados números 3 e 4 do II Fórum Nacional da Concorrência e da Regulação da AJUFE,
23 Nesse sentido, STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 784.056/SP, Rel. Min. Xxxxx Xx- xxxxx Xxxxxxxx, 3ª Turma, j. 15/9/2016; STJ, REsp 849.228/GO, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, 4ª Turma, j. 12/8/2010; STJ, RESP 803.481/GO, 3ª Turma, Min. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 1º/8/2007.
24 Recentemente, TJSC, apelação nº 0000554- 36.2008.8.24.0025, Rel. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 6/8/2019; TJSC, apelação nº 0300305-84.2016.8.24.0072, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 10/12/2019.
25 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Dever judicial de conside- rar as consequências práticas da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A&C – Revista de Direito Administrativo & Consti- tucional, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 143-160, jan./mar. 2019.
Campinas, 2018:
3. “O Poder Judiciário deve deferir tutelas que restabeleçam a juridicidade violada com o menor grau de impacto interventivo possível, também atentando para as consequências políticas, econômicas e concorrenciais de suas decisões”. 4. “O Poder Judiciário deve primar pelo controle de juridicidade empirica- mente informado, incentivando as partes e terceiros interessa- dos a apresentarem dados técnicos e científicos que subsidiem a verificação lógica entre as premissas, as metodologias e as conclusões que embasam os atos regulatórios”
Ou seja, para aplicar a teoria da imprevisão e o princípio da função social do contrato, o juiz deve considerar as conse- quências da sua decisão, fundamentando-a de acordo com essa ponderação. E, considerando os contratos de venda antecipada de soja, decidir pela sua revisão poderia causar prejuízo exata- mente a quem se esperava proteger.
Essa foi a conclusão do estudo feito por Xxxxxxx e Zyl- bersztajn (2011)26. Os autores, analisando o cenário no Estado de Goiás após demandas de revisão contratual pela alta da soja, perceberam que houve aumento da exigência de garantias para contratos de venda antecipada, bem como a diminuição dessa modalidade de contrato, o que acaba por aumentar a onerosidade dos contratos futuros (descontos exigidos) e, sem essa ferra- menta, diminuir a previsibilidade de resultados das safras para os produtores em geral.
VII CONCLUSÃO
Até aqui, apontou-se para as questões que envolvem os contratos de venda antecipada de soja de forma generalizada. Como é um contrato de alocação justamente do risco cuja con- sumação se invoca como causa extraordinária, a aplicação da re- bus sic stantibus a contratos futuros de soja é excepcional – den- tro de uma hipótese já ontologicamente excepcional.
26 REZENDE, Xxxxxxxxxx Xxxxx and ZYLBERSZTAJN, Decio. Quebras contratuais e dispersão de sentenças. Rev. direito GV [online]. 2011, vol.7, n.1
Em regra, a revisão judicial desses contratos não encon- tra acolhimento nos tribunais nacionais. Para que se respeite a autonomia das partes na alocação de riscos, eventuais aplicações da rebus sic stantibus seguramente não teria a capacidade de re- por integralmente o que o produtor deixou de ganhar ao não con- tratar a entrega futura de sua produção. Pelo contrário, seriam revisões marginais, de complexa demonstração probatória.
A elevação de preços no mercado à vista, após a contra- tação do seu compromisso de entrega a preços prefixados, não se confunde com o infortúnio do mercador Antônio, da ficção inglesa, pois não se presume catastrófica. Tampouco o direito subjetivo do adquirente da venda futura se equipara à pretensão e às paixões de Shylock, pois sequer se pode pressupor a sua apropriação de todos os benefícios aleatórios.
A rebus sic stantibus presta-se a mitigar áleas. A venda futura de soja, também. Não se pode inverter o sinal da vontade inicial das partes pela aplicação simultânea de ambos os meca- nismos institucionais.