Universidade de Federal do Ceará Fortaleza, CE, Brasil
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x. 00, x. 0, x. 00-00, jan./mar. 2009
Contrato emocional e código de ética: pilares da reconstrução conjugal
Mônica Teles Tavora
Universidade de Federal do Ceará Fortaleza, CE, Brasil
RESUMO
A psicoterapia de casal deve enfocar primordialmente os eixos centrais de cada relação conjugal: o contrato emocional e os acordos éticos estabelecidos no início do casamento. As primeiras iniciativas terapêuticas visam ao desbloqueio dos canais de comunicação, à definição de condutas inaceitáveis e à elaboraçãoda perda da ilusão do casamento perfeito. Procedimentos de aprofundamento do processo terapêutico ajudam então o casal a identificar a interferência de vínculos passados nas interações presentes, possibilitando a redistribuição de poder, a revisão da divisão de responsabilidades e o aprendizado da reparação e da negociação. A proposta terapêutica de casal aqui apresentada vai além da resolução da queixa trazida pelo casal. A atualização do contrato conjugal e a revisão de seu código de ética produzem mudanças nas estruturas da própria relação, nos efeitos das prescrições culturais e na reverberação do passado dos cônjuges sobre a relação atual.
Palavras-chave: acordos conjugais; ética; prescrições culturais de gênero.
ABSTRACT
Emocional contract and ethical code: bases of marital reconstruction
Psychotherapy of couples should focus on the central aspects of the spouses’ relationship: the emocional contract and the ethical agreements established at the beginning of their marriage. The main purpose of the first therapeutic interventions are to unblock communication, to define unacceptable behaviors and to elaborate the loss of the illusion of a perfect marriage. Complementary procedures aim to help the couple identify the influence of previous relationships on their present interations, making it possible to have an equal division of power and shared responsabilities while learning to make emocional repair and negotiate. The present psychotherapic approach goes beyond couples inicial complaints, bringing old marital contracts up-to-date and revising marital ethical code. This will produce significant changes in the foundation of the couple’s relationship, as well as changes on the effects of cultural gender prescriptions and the echos of the past on the partners’ present relationship.
Keywords: marital agreements; ethics; gender cultural prescriptions.
RESUMEN
Contrato emocional y código de ética: pilares de la reconstrucción conyugal
La psicoterapia de pareja debe enfocar primordialmente los ejes centrales de cada relación conyugal: el contrato emocional y los acuerdos éticos establecidos al empiezo del matrimonio. Las primeras iniciativas terapéuticas visan el desbloqueo de los canales de comunicación, la definición de conductas inaceptables y la elaboración de la pérdida de la ilusión de un matrimonio perfecto. Procedimientos de profundizaje del proceso terapéutico ayudan entonces la pareja a identificar la interferencia de lazos pasados em las interaciones presentes, posibilitando la redistribución de poder, la revisión de la división de responsabilidades y el aprendizaje de la reparación y de la negociación. La propuesta terapéutica de pareja aquí presentada va además de la resolución de la queja traída por la pareja. La actualización del contrato conyugal y la revisón de su código de ética producen cambios en las estructuras de la propia relación, em los efectos de las prescripciones culturales y en el eco del pasado de los cónyuges sobre la relación actual.
Palabras clave: acuerdos conyugales; ética; prescripciones culturales de gênero.
INTRODUÇÃO
A estrutura de um casamento está assentada sobre
dois pilares: um contrato emocional e um código
de ética construídos na intimidade de cada relação. O contrato, geralmente não explícito e em parte inconsciente, refere-se à definição dos papéis e à forma particular como os parceiros se relacionam
no dia-a-dia compartilhado. O código de ética rege a conduta dos cônjuges, estabelecendo limites de convivência, principalmente no que diz respeito ao trato de um com o outro. Ao longo do tempo, e com interações repetidas, as regras podem ser elastecidas, modificadas ou confirmadas, definindo maneiras aceitáveis de tomar decisões, assim como de expressar carinho, desejo sexual, insatisfação, raiva ou mágoa.
Quando um casal entra em crise, pelo menos um dos dois pilares descritos precisa ser atualizado. Se os cônjuges não conseguem fazer esse movimento, o casamento tem poucas chances de sobrevivência. Transformações situacionais ou de crescimento pessoal exigem que os papéis de marido e mulher sejam alterados em vários pontos da trajetória empreendida conjuntamente. Muitas vezes, o apego a antigos acordos e a sensação de ameaça produzida pela perspectiva de mudança impedem os casais de evoluir e efetuar ajustes necessários à preservação da relação.
Não raro, parceiros em crise infringem suas próprias normas de convivência civilizada, sentindo- se à vontade para expressar insatisfações de forma desrespeitosa ou violenta. Sentem-se justificados de humilhar-se e insultar-se um ao outro diante de um comportamento indesejado ou de um pedido não atendido. A inflexibilidade dos papéis estabelecidos e o afrouxamento dos princípios de civilidade geram, muitas vezes, um sofrimento intenso, um clima afetivo de desesperança e alimentam disputas cotidianas declaradas ou silenciosas. Esse é, em linhas gerais, o quadro típico do casal que chega ao consultório em busca de ajuda psicológica profissional.
A psicoterapia conjugal aqui proposta visa promover a revisão de acordos firmados consciente ou inconscientemente no início da relação, desbloquean- do o movimento de evolução e enriquecimento que deveria fazer parte do processo de amadurecimento de uma relação de casal. Três procedimentos iniciais são indispensáveis na preparação do terreno para um trabalho terapêutico que promova a transformação da relação: o restabelecimento de um canal de comunicação que possibilite aos cônjuges ouvirem-se um ao outro, a identificação de condutas inaceitáveis que inviabilizam qualquer tentativa de melhoria da relação (como no caso da violência) e a elaboração da perda da ilusão inicial do casamento perfeito. O príncipe precisa criar espaço para o sapo; a gata borralheira deve substituir, quando necessário, a eterna Cinderela.
Tarefas terapêuticas estimularão o casal a avaliar as regras estabelecidas e os aspectos da relação que precisam ser transformados, diferenciando fantasias de suas reais necessidades. Nesse processo, a atualiza- ção do contrato conjugal e a revisão de seu código de ética gradativamente criam novas bases para a
distribuição de poder, a divisão de responsabilidades e o desenvolvimento de competência para negociar e lidar com as diferenças.
A DINÂMICA CONJUGAL: OBSTÁCULOS AO CRESCIMENTO
Uma relação a dois percorre etapas previsíveis ao longo do tempo, embora variem as circunstâncias de vida de cada casal (Xxxxxx, 2001). A maneira como esse caminho é trilhado depende não só da bagagem emocional que cada participante traz para o casamento, como também da forma como suas histórias pessoais são combinadas.
Já no início do século passado, Xxxxxxx Xxxxx, o pai da psicanálise, acreditava que motivações inconscientes levam dois parceiros a eleger-se um ao outro em meio a tantas outras possibilidades de escolha. Ao reproduzir, na intimidade conjugal, elementos da experiência familiar original, cada parceiro supostamente vivencia uma segunda oportunidade para ter suas necessidades essenciais atendidas. Na atualidade, Xxxxx (2000) comenta que, por mais realista que seja um relacionamento significativo, sempre nele haverá uma mistura de manifestações do passado e do presente, da realidade e da fantasia. Outros autores de diversas abordagens teóricas convergem em suas reflexões para o reconhecimento da influência das vivências originais na dinâmica da relação de casal atual (Satir, 1976; Bustos, 1990; Seixas, 1992; Xxxxxx,
1995; Xxxxxx, 2001; França, 2005).
De fato, a construção de uma relação a dois é permeada não só por uma sucessão de demandas presentes, mas também por um movimento subjacente de busca da satisfação de necessidades não atendidas no passado. Ciclos de pedido-frustração-resignação ou pedido-frustração-reparação determinam o en- caminhamento de uma relação conjugal bem ou malsucedida. Três fatores importantes interferem nesse processo: o amadurecimento emocional de cada cônjuge, a influência das tradições culturais na determinação dos papéis conjugais e a decepção evolutiva do ciclo conjugal.
O amadurecimento dos cônjuges
Xxxxxxx (2002) considera que a preparação de uma intimidade autêntica, e não projetiva, antecede de longe a constituição do casal. Quanto mais forte é o senso de identidade construído por um longo processo de diferenciação de pessoas significativas, maior é a possibilidade de que o indivíduo mantenha-se íntegro nos conflitos com o parceiro e melhor tolere a intimidade sem medo de perder a individualidade. Um processo de individuação bem elaborado permite ao cônjuge
enxergar e considerar o parceiro, enriquecendo-se com as diferenças.
Cônjuges pouco diferenciados como pessoas cos- tumam estabelecer verdadeiras batalhas para moldar-se um ao outro à sua própria imagem e garantir que suas necessidades sejam atendidas. Qualquer oposição a esse esforço é sentida como uma ameaça à relação ou como uma manifestação pessoal de abandono. O parceiro é considerado uma pessoa má ou insensível por não proporcionar a gratificação desejada. Em conseqüência, os cônjuges estabelecem um padrão interativo de desqualificação mútua na tentativa infrutífera de obter o que desejam (Tavora, 2001). A evolução pessoal, fruto de um ganho adicional da psicoterapia de casal, ou como resultado de uma psicoterapia individual, auxilia cada cônjuge a construir a autoconfiança necessária para identificar sua participação pessoal no conflito conjugal e redirigir a atenção para personagens do passado que estão ocupando indevidamente o lugar do parceiro atual.
Tradições culturais
As tradições culturais influenciam a relação de casal de uma maneira menos evidente, mas igualmente poderosa, na produção de grandes entraves ao entendimento quando a relação é submetida a tensões. Real (2002) considera que, na intimidade do casamento, a mulher subutiliza o poder pessoal e a assertividade já presentes em suas conquistas no mercado de trabalho. De acordo com o autor, no contexto afetivo da relação conjugal, ela usa predominantemente o lado “feminino” superdesenvolvido pela estimulação cultural diferenciada a que foi submetida durante anos. Depara, nesse momento, com um parceiro geralmen- te inábil para lidar com afetos e vulnerabilidades, competências consideradas de valor secundário na definição tradicional de masculinidade.
Satir (1995) identifica uma relação de casal saudável como aquela em que existe um senso de igualdade entre as partes. Aqui a autora considera necessária uma distribuição de poder equilibrada e uma alternância de papéis complementares, o que se opõe ao engessamento dos papéis inflexíveis de dominador/dominado, carrasco/vítima, cuidador/cuidado. Fatores que podem comprometer profundamente a funcionalidade de uma relação de casal estão relacionados à autoestima dos cônjuges e à atribuição arbitrária da competência cognitiva ao homem e da competência intuitiva à mulher. De acordo com Xxxxx, uma relação bem-sucedida só pode acontecer entre duas pessoas que se sintam de igual valor, uma em relação à outra. Ambos os sexos possuem talentos cognitivos e intuitivos que devem ser desenvolvidos e integrados. Ao contarem apenas com parte de si mesmos, os cônjuges tentam precariamente
formar um todo a partir de duas pessoas incompletas. Paradoxalmente, no entanto, a intimidade satisfatória e duradoura somente é possível entre duas pessoas completas e pelo menos relativamente independentes. Como Xxxxx, Real (2002) parte da premissa de que a relação conjugal a ser tratada em psicoterapia é assimétrica: existe entre os sexos, ainda que imperceptivelmente, um desequilíbrio de poder que inviabiliza muitas tentativas de resolver questões conjugais. Significa dizer que o terapeuta tem como desafio central equilibrar a relação para que, ao chegar à mesa de negociação, os parceiros tenham melhores chances de tomar decisões conscientes e compartilhadas. O que, à primeira vista, pode parecer apenas uma questão de dominação masculina sobre suas indefesas parceiras, aos olhos de Real configura-se como uma questão mais complexa: ambos os sexos são vítimas de prescrições culturais que os privam de elementos vitais de si mesmos, debilitando-os e tornando-os vulneráveis aos percalços inevitáveis de uma relação a dois e às
mudanças naturais do ciclo de vida humano.
Decepção evolutiva
Nos tempos iniciais da relação de casal, os papéis tradicionais para os quais homens e mulheres foram treinados têm boas chances de ser exercitados satisfatoriamente. Essa é a fase da inclusão caracterizada pelo contato com a novidade, a intensidade afetiva e a gratificação mútua dos parceiros. É o momento em que cada cônjuge investe grande parte de sua energia em ser aceito e mostrar o melhor de si mesmo, visando encontrar seu lugar na relação e se tornar importante para o outro. No entanto, o que começa como um sonho de Xxxxxxxxx, quando o príncipe proporciona à donzela o contexto para exercer o papel principal de administradora das relações familiares, pode acabar em um pesadelo povoado de bruxas e gênios do mal.
Ao longo de uma relação a dois, uma fase de decepção segue-se à ilusão inicial, não porque os parceiros estivessem propositadamente escondendo parte de si mesmos, mas porque a convivência revela necessariamente aspectos menos atraentes de cada personalidade, exigindo de ambos maturidade emocional para lidar com frustrações. Esse movimento de ajuste à realidade pode variar em intensidade e potencial para gerar conflitos destrutivos, mas está sempre presente nas trajetórias conjugais.
O principal desafio do casamento é ultrapassar a fase da decepção, mantendo o amor, a consideração e a admiração de um pelo outro mesmo diante de suas imperfeições (Tavora, 2004). O aspecto mais comprometedor dessa fase não é em si a própria decepção, mas a impossibilidade, criada pelo clima de desalento, de se comunicar construtivamente e negociar
aspectos da nova realidade. Os parceiros tornam-se surdos ao clamor de um pelo outro; parecem agora ter ouvidos apenas para a própria dor.
Nesse momento, quando mais precisam de seus recursos pessoais e de habilidades relacionais, homens e mulheres contam apenas com parte de si mesmos para enfrentar uma batalha na qual os dois deveriam unir forças. Na decisiva luta para salvar o casamento, os cônjuges mostram pontos de vista distintos sobre o conflito comum, tendo como base aquilo que lhes foi permitido experienciar e desenvolver ao longo de suas construções pessoais. A voz feminina torna-se então repetitiva, queixosa ou dramática, mas pouco eficaz quando o conflito se instala. O homem aprende rapidamente a driblar e desqualificar as abordagens femininas, escondendo muitas vezes a própria sensibilidade por trás de um escudo protetor ou de subterfúgios para recuperar o interesse perdido pela relação através de prazeres substitutos como o álcool ou casos extraconjugais.
RECUPERAÇÃO DO CASAMENTO: AÇÃO TERAPÊUTICA
Quando um casal permanece por muito tempo lutando para sobreviver à fase de decepção, com um contrato emocional desatualizado e um código de ética sistematicamente descumprido, a relação está seriamente comprometida. Paradoxalmente, no entanto, a vivência de uma crise pode favorecer o engajamento de seus participantes em um processo terapêutico. Dois caminhos diversos podem ser seguidos a partir da vivência da decepção: o encaminhamento para a resignação e morte afetiva do casamento ou o mo- vimento produtivo da reparação, este último muitas vezes somente possível por meio de ajuda profissional. Reparação, em um sentido mais amplo, refere-se ao processo de revisão dos padrões estabelecidos que visa possibilitar alterações no desempenho de papéis, abrir os canais de comunicação e negociação e estabelecer com clareza os limites éticos da relação. A fim de penetrar no mundo emocional privado do casal e tornar essa mudança possível, o psicoterapeuta pode utilizar intervenções que promovem a desestabilização de convicções equivocadas e redirecionam uma complexa dinâmica destrutiva construída ao longo de muitos
anos. São elas:
– Intervenções didáticas: atuação na esfera cognitiva por meio de exposições, explicações ou breves leituras que facilitem o reconhecimento e a compreensão dos padrões de interação destrutivos adotados até então e possibilitem a visualização de padrões alternativos. Estimulam movimentos de observação e reflexão.
– Intervenções elaborativas: exploração das moti- vações emocionais subjacentes às práticas esta- belecidas que se tornam obstáculos à resolução de questões centrais da relação. Esse aspecto ela- borativo envolve não só a mudança gradual de um estilo de interação presente, como também a identificação de vivências passadas que possam interceptar encaminhamentos realistas.
– Intervenções experienciais: por meio da pres- crição de tarefas terapêuticas a serem executadas principalmente no intervalo das sessões, o terapeuta estimula o casal a transpor o que é vivido na sessão para a experiência do dia-a-dia. Para se arriscarem em novas experimentações, os cônjuges não dependem apenas de uma determinação voluntária. A coragem para in- vestir na mudança, mesmo que gradualmente, está associada a fatores como a intensidade da dor vivenciada no momento, o vínculo de confiança e adesão à proposta terapêutica, o grau de significação que o casamento ainda tem para cada um dos cônjuges, além dos ditames afetivos de suas vivências originais.
A ação interventiva, em qualquer caso, deve ser executada primordialmente em um contexto de acolhimento afetivo e confirmação dos sentimentos de cada cônjuge. É a qualidade do vínculo terapêutico que proporciona o solo fértil em que a transformação da relação de casal poderá se processar. Tal qual uma criança que necessita de um ambiente protetor de forma que possa desenvolver a confiança necessária para crescer e se tornar autônoma, o casal precisa inicialmente da segurança proporcionada pela presença do terapeuta para garantir um espaço para escolhas e o respeito por seu ritmo de evolução.
Procedimentos iniciais
1. Desbloqueio do fluxo de comunicação
A impossibilidade de ouvir-se um ao outro, fruto do desgaste continuado de acusações mútuas, provoca, com freqüência, discussões acaloradas ou silêncios intermináveis que aumentam progressivamente a distância afetiva entre os cônjuges. Real (2002) acredita que, em uma sociedade patriarcal, é em geral a mulher quem precisa aprender a falar mais eficientemente nas interações de casal. O homem, por sua vez, deve aprimorar a habilidade, pouco exercitada em seu próprio desenvolvimento, para ouvir não só os apelos da parceira, como também os próprios sentimentos e necessidades. Embora reconheça que, em algumas relações, esses papéis possam estar invertidos, Xxxx insiste em sua crença no poder das tradições culturais para silenciar os apelos femininos na privacidade
conjugal, criando formas camufladas de distribuição de poder na qual o volume e a intensidade das reclamações simulam uma demonstração de força na relação.
Ao confirmar cada um dos cônjuges em sua dor e compreensão diferenciada do conflito conjugal, o terapeuta oferece um modelo de relação alternativa, fazendo pelos cônjuges o que eles ainda não podem fazer um pelo outro. A vinculação terapêutica se inicia quando o profissional usa sua sensibilidade para ouvir os sentimentos de cada parte, reverberando sua compreensão nos ouvidos pouco treinados do casal. Ainda que rudimentarmente a princípio, essa primeira etapa do processo terapêutico visa restabelecer a fluidez na transmissão de mensagens entre os interlocutores de forma que os problemas possam ser discutidos mesmo quando a perspectiva de uma solução imediata ainda não existe. O mais importante, nesse momento, é interromper o ciclo destrutivo de acusações mútuas.
2. Definição do inadmissível
Com a deterioração gradual de uma relação con- jugal, muitas vezes os parceiros passam a destratar-se e desrespeitar-se um ao outro com tanta freqüência que esse estilo destrutivo de interagir torna-se aceito como natural. O psicoterapeuta precisa rapidamente definir em que ponto e com que gravidade o limite do respeito mútuo está sendo ultrapassado. Os cônjuges precisam compreender que raivas, mágoas e impulsos não justificam a transgressão dos princípios éticos que fazem parte ou precisam ser construídos na relação.
O inadmissível não deve ser definido arbitrariamente pelo terapeuta. Os limites de convivência devem estar alicerçados na percepção do sofrimento particular de cada parceiro, seja essa dor explícita ou velada, admitida ou negada. Em geral, quando se toca na superfície dos comportamentos abusivos adotados como normais pelo casal, vê-se aflorar rapidamente a dor do ressentimento resignado, da negação ou da agressividade reprimida. Quando o comportamento abusivo é reconhe- cido como inaceitável, o terapeuta começa a ajudar os parceiros a transmitir um ao outro mensagens assertivas de seus limites, deixando bem claro como querem e como merecem ser tratados. Em contato com o poder pessoal que dispõe para lidar com a relação, cada cônjuge é também exposto a uma nova visão das potencialidades do outro. Um aspecto fascinante desse processo refere-se à descoberta, principalmente pelo parceiro anteriormente mais enfraquecido, de que agora cada um precisa falar ou gritar menos para que
seus “recados” sejam entendidos.
3. Elaboração da perda da ilusão inicial
O terapeuta precisa ajudar o casal a aceitar o término de uma fase da relação amorosa que
inicialmente parecia poder ser eternizada. A persistência do desejo de resgatar vivências dos velhos tempos alimenta a ilusão de que a admiração e a atração somente podem ser preservadas se características da relação inicial forem reproduzidas. Casais que insistem em olhar para o passado têm dificuldade de reconhecer a beleza e a riqueza de uma fase de maior amadurecimento e conhecimento mútuo. Reconstruir essa admiração, agora em bases mais realistas, é uma tarefa elaborativa do processo terapêutico. Nenhuma técnica ou ensinamento específico realiza esse feito; a adoção dessa nova perspectiva é fruto de um processo laborativo de reconhecimento de pequenos gestos de um e do outro, do exercício de cuidados mútuos e da conscientização que as vivências em terapia possam gradativamente estimular.
Procedimentos de aprofundamento
A adequação da ilusão anterior à realidade atual, a eliminação de formas de interação inaceitáveis e o restabelecimento de um canal de comunicação por meio do qual se possam tratar as diferenças são os três movimentos essenciais que criam condições emocionais mínimas para que o casal avalie as chances de recuperação do casamento. Inicia-se então, sobre essa base, o processo de reconstrução da relação deteriorada pela erosão emocional da desqualificação mútua cotidiana. A experimentação de possibilida- des de interação mais construtivas, inicialmente estimulada pela observação e pela reflexão, deve ser progressivamente ampliada pela utilização de tarefas terapêuticas mais concretas. Na prática, o processo de evolução segue um movimento de avanços e retrocessos que deve ser acompanhado com paciência e confiança pelo psicoterapeuta do casal.
1. Redistribuição de poder
Com o objetivo de avaliar o tipo de parceria que se estabeleceu ao longo do casamento e o que se quer construir na nova proposta de relação, três possibilidades de manejo das diferenças são apresentadas pelo terapeuta ao casal: iniciativas de conciliação, de enfrentamento e de negociação. Conciliar quer dizer abrir mão de alguma preferência ou ponto de vista em prol de um interesse comum. Isso deve partir de um movimento voluntário e de decisão de seu autor. Enfrentamento, por outro lado, refere-se à defesa de um ponto de vista ou atitude que se reporta a uma necessidade fundamental de um dos parceiros. Consiste em apresentar um ao outro, limites físicos ou emocionais de forma inequívoca e firme.
A negociação é uma espécie de encaminhamento do que pode ser conciliado e do que pode ser reconhecido como limite individual ou da relação. É a busca de alternativas viáveis para a convivência sem a violação
da integridade pessoal dos participantes. Aprender a negociar é uma habilidade essencial, na trajetória de mudanças ao longo do ciclo de vida conjugal, para evitar que a relação se paralise em um dos dois perigosos pólos da abnegação indiscriminada ou da luta incessante pelo poder.
Em terapia, cada cônjuge é incentivado a identificar pontos das discordâncias conjugais que se reportam às suas necessidades fundamentais, discriminando-os de outros aspectos que podem ser tolerados pela conciliação ou modificados pela negociação. Ao reconhecer o que é secundário em sua escala pessoal de necessidades, o cônjuge precisa aprender a lidar com a frustração de adiar ou transpor para outros vínculos significativos a possibilidade de gratificação.
A impossibilidade de ter todas as necessidades atendidas em uma dada relação é uma realidade humana incontestável. Depositar no parceiro todas as expectativas de gratificação é parte da ilusão inicial da relação amorosa que deve ser elaborada em terapia. Cada cônjuge precisa encontrar fontes diversificadas de gratificação em vínculos familiares, de amizade e de interesses profissionais para evitar sobrecarregar o parceiro com expectativas irrealistas.
Há duas espécies de distorções possíveis no manejo das diferenças. A primeira refere-se à falsa etiquetagem de uma necessidade central, relegando-a a um plano de menor importância. Uma pseudoconciliação é, com freqüência, utilizada por pessoas que habitualmente abrem mão de suas posições para evitar o escalonamento de discordâncias com seus parceiros, alimentando, como resultado, ressentimentos e agressões veladas. A outra possibilidade de distorção refere-se ao deslocamento do alvo de uma determinada frustra- ção. Trata-se, nesse caso, de uma necessidade central, mas, ao utilizar o mecanismo de enfrentamento, o cônjuge cobra do parceiro uma dívida que não é sua, mas sim de alguma outra figura significativa do passado.
Parte do processo de terapia de casal dedica-se a reconhecer os modelos de relação originais de cada cônjuge e as necessidades não atendidas no passado que continuam interferindo na qualidade da relação atual. Identificados os reais devedores, cada participante toma para si a tarefa de aliviar o parceiro do fardo alheio. O movimento de realocação das dívidas emocionais pode ser um resultado do processo de psicoterapia de casal ou pode ser alcançado por meio de uma psicoterapia individual complementar.
2. Divisão de responsabilidades
O papel masculino foi, ao longo dos tempos, associado a força e iniciativa, enquanto o papel feminino se vinculou particularmente à idéia de sensibilidade e
fragilidade. Na família, coube à mulher a função de cuidar e nutrir; ao homem foram atribuídas as tarefas de comandar e tomar decisões. As mães deveriam educar os filhos e se encarregar dos problemas domésticos. Ao pai caberiam as grandes iniciativas e a determinação das principais regras da casa.
Com as mudanças do mundo moderno e as demandas do novo papel da mulher no mercado de trabalho, essa dinâmica familiar vem passando por várias transformações. No entanto, mudanças de atitude não se processam necessariamente no mesmo ritmo das mudanças de comportamento. Muitos homens, por exemplo, ainda associam a masculinidade à condição de principal provedor financeiro da família. Algumas mulheres esperam que os maridos as sustentem ou constroem suas vidas em torno do sonho de encontrar um príncipe encantado que lhes possa trazer felicida- de. Em muitos casos, porém, marido e mulher estão aprendendo a auxiliar-se mutuamente a prover sustento, educação, cuidado e afeto à família.
Geralmente os casamentos se iniciam com uma divisão tradicional de papéis entre os cônjuges, cabendo à mulher a maior parcela de responsabilidade pelas atividades domésticas. Ao longo da trajetória conjunta, principalmente com a chegada dos filhos e o acúmulo de tarefas cotidianas a serem cumpridas, essa divisão precisa ser revista para se adequar às necessidades de cada fase vivida pelo casal. A atualização do contrato inicial mostra-se então imprescindível para evitar que uma sobrecarga física, emocional ou financeira venha a gerar ressentimentos e insatisfações, comprometendo a qualidade da relação.
3. Aprendizagem da reparação
Reparar significa reconhecer que um comporta- mento ou reação inadequada causou algum tipo de mágoa ou dano à outra pessoa envolvida. Esse re- conhecimento leva a ações que variam de um simples pedido de desculpas a atitudes mais complexas que demandam tempo para reflexão e diálogos repetidos até sua completa resolução. Muitos casais lidam indiscriminadamente com as ofensas mútuas, relegando- as ao esquecimento, limitando-se a um casual pedido de desculpas ou utilizando-se de mecanismos de reconciliação compensatórios como presentes, sexo ou demonstração adicional de carinho.
O exercício da reparação requer o desenvolvimento da habilidade de fazer correções, evoluindo para formas mais satisfatórias e respeitosas de lidar com as diferenças, os desentendimentos e as ofensas mútuas. Uma relação amorosa saudável não é definida por uma aproximação da perfeição, mas por sua capacidade de se corrigir e de se aprimorar. A mera repetição de erros e posterior reconciliação não se configuram como
indicadores promissores da preservação de uma relação de casal bem-sucedida.
Mágoas e ofensas requerem medidas reparatórias proporcionais à gravidade do ocorrido. Enquanto um pedido de desculpas pode ser suficiente para lidar com pequenas faltas, desentendimentos crônicos e ofensas mais graves exigem processos elaborativos mais complexos de forma a evitar a recorrência das mesmas queixas cada vez que novas divergências precisem ser enfrentadas. Um ou vários diálogos podem ser necessários para avaliação do ocorrido, expressão de sentimentos e discussão de medidas preventivas para situações similares que venham a ocorrer.
Três iniciativas podem ser utilizadas no processo de uma reconciliação construtiva:
• Um distanciamento temporário entre os cônjuges enquanto perdurar o clima de ânimos exaltados e emoções intensas: interromper uma discussão, quando necessário, requer a capacidade de lidar com a ansiedade de dissolver imediatamente o clima afetivo desfavorável. Suportar a solidão temporária, dando oportunidade ao parceiro de se recompor e elaborar o ocorrido, cria condições emocionais propícias para o entendimento e uma negociação produtiva posterior.
• A responsabilização de cada cônjuge por sua própria participação não só na ocorrência do desentendimento como também no processo de reparação: tornar claro um para o outro os limites pessoais de tolerância e comprometer-se com o controle dos próprios impulsos são atitudes que levam os parceiros a se distanciarem do ciclo improdutivo de acusações mútuas.
• A avaliação crítica do ocorrido e a exploração de alternativas para o manejo dos desentendimentos na busca de soluções construtivas.
4. Identificação da interferência de vivências
passadas
O entendimento e a negociação adulta podem ser inviabilizados por fragmentos afetivos do passado que se interpõem e fazem sombra na vivência presente, obscurecendo e deformando a imagem do parceiro conjugal. Figuras de mundo interno podem emergir principalmente quando o vínculo é submetido a ten- são, evocando defesas e respostas de sobrevivência emocional utilizadas em vínculos significativos anteriores (Bustos, 1990). Ao tratar de temas sensíveis e dolorosos, o processo psicoterápico de casal inevi- tavelmente mobiliza elementos da vida pregressa de cada cônjuge, expondo sua hipersensibilidade à repetição de antigas ofensas e a inabilidade decorrente para chegar a soluções realistas das questões em pauta. À medida que esses sentimentos emergem, o profissional
deve ajudar o casal a identificar os verdadeiros responsáveis pelas dívidas cobradas atualmente ao cônjuge. Intervenções terapêuticas que promovam uma interconexão entre presente e passado possibilitam o deslocamento do foco de atenção da dor e desbloqueiam possíveis caminhos para a negociação e para o manejo das diferenças (Tavora, 2000).
Gradativamente, cada cônjuge passa a reconhecer seu poder pessoal e os recursos desenvolvidos ao longo de sua experiência de vida para fazer face às dificuldades da relação a dois. Ao longo da sessão de casal, o terapeuta deve promover vivências que favoreçam o contato com temas relacionados à hierarquia de poder e a divisões arbitrárias entre força e fraqueza, dominação e submissão, libertando assim os cônjuges de imagens cristalizadas do passado e elevando-os a uma condição adulta de negociação. Um tipo de estratégia terapêutica desenvolvida para esse fim consiste em solicitar que os cônjuges dialoguem em diferentes níveis físicos de posicionamento, um em relação ao outro. Enquanto um deles permanece de pé, o outro deve sentar-se em uma cadeira ou em uma almofada colocada no chão. Várias combinações dessas posições devem ser experimentadas com o objetivo de estimular o contato com antigos sentimentos de impotência e a apropriação do poder atual.
5. Negociação
O processo de negociação conjugal, quer se refira a uma decisão prática ou à satisfação de uma necessidade emocional, exige uma equilibração de poder entre os participantes para evitar ressentimentos ou resultados improdutivos. Tendo trabalhado as divisões internas anteriores, os parceiros se apresentam agora como dois adultos capazes de expor suas posições e fazer concessões. Eventualmente, no entanto, o casal poderá precisar retomar velhos temas para reafirmar ou complementar elaborações anteriores.
A negociação já vem na verdade se processando, embora de forma rudimentar, desde os primeiros estágios da evolução terapêutica. No entanto, é nesse ponto de maturação da relação que os cônjuges dis- põem de um maior número de recursos para avaliar, sem distorções indevidas, a significação do casamento para cada um, suas possibilidades pessoais de lidar com os limites da realidade e as alternativas que dispõem para fazer escolhas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os eixos centrais do processo psicoterápico de casal referem-se a temas bem mais abrangentes do que se poderia supor em uma primeira análise, ampliando-se para as estruturas da própria relação,
para as prescrições culturais e para as reverberações do passado dos cônjuges. Uma atuação terapêutica mais consistente envolve a exploração das bases da relação de casal, avaliando os acordos firmados em sua origem e a ética prevalente no histórico conjugal.
A compreensão teórica e a utilização de recursos técnicos têm pouco valor se dissociadas da qualidade do vínculo que se constrói entre o terapeuta e os membros do casal. O desenvolvimento da sensibilidade e da capacidade de ouvir em níveis cada vez mais profundos não é tarefa apenas dos cônjuges, mas uma aprendizagem que se processa e se aprimora na experiência singular do que é vivido entre todos os envolvidos.
Uma proposta terapêutica que se ocupa apenas da solução da queixa apresentada empobrece o processo de transformação da relação conjugal e limita o potencial de crescimento pessoal dos cônjuges. Uma relação convencional, na qual alguns ajustes foram feitos em psicoterapia para aumentar a zona de conforto e minimizar o potencial de conflito, difere fundamentalmente de uma relação de crescimento transformada por uma ação terapêutica que promova a recriação cotidiana de regras, de projetos conjuntos e de formas construtivas de interagir.
REFERÊNCIAS
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Recebido em: 20/08/2008. Aceito em: 23/04/2009.
Autora:
Mônica Teles Tavora – Psicóloga. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Psicodramatista. Psicoterapeuta de casal e família.
Endereço para correspondência:
Mônica Teles Tavora
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