RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Exmo. Sr. Juiz de Direito da Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte-MG
Distribuição
Cruzeiro Esporte Clube (“Recuperanda”, “Cruzeiro-Associação” ou “Associação”) 1, associação civil, inscrita no CNPJ/ME nº 17.241.878/0001-11, com sede na Rua dos Guajajaras, nº 1.722, Barro Preto, em Belo Horizonte-MG, cep. 30.180-101, vem, por seus procuradores constituídos (cf. instrumento de mandato, doc. 1), ajuizar pedido de
RECUPERAÇÃO JUDICIAL
com fundamento nos art. 47 e seguintes da Lei 11.101/2005 (“LRE”) e nos art. 13, II, e 25 da Lei 14.193/2021 (“Lei da SAF”), de acordo com os fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos.
1 Nesta petição, os termos “Cruzeiro” e “Clube” são utilizados de forma genérica, sem vínculo com qualquer pessoa jurídica. A referência a “Cruzeiro-Associação” ou apenas a “Associação” diz respeito à pessoa jurídica da associação “Cruzeiro Esporte Clube” e a menção a “Cruzeiro-SAF” corresponde ao “Cruzeiro Esporte Clube – Sociedade Anônima do Futebol”.
- I - Competência
1. Trata-se de pedido de recuperação judicial do Cruzeiro-Associação, cuja sede administrativa e unidades de recreação estão localizadas na cidade de Belo Horizonte.
2. O art. 3º da LRE estipula:
Art. 3º É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.
3. Por isso, o Cruzeiro-Associação ajuíza este pedido perante as Varas Empresariais da Comarca de Belo Horizonte, sendo incontroverso que este Juízo é o competente para conhecer de seu pleito.
- II - Legitimidade
4. A recente edição da Lei da SAF tornou induvidosa a legitimidade dos clubes de futebol organizados por meio de associações civis para requerer recuperação judicial, como se vê do art. 13, II:
Art. 13. O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério:
(...)
II - por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005
5. Não bastasse a expressa previsão do artigo 13, II, acerca da legitimidade dos clubes, a Lei da SAF prevê, no art. 25, que, ao optar pela forma de pagamento prevista naquele artigo, o clube deverá ser admitido como parte legítima para requerer recuperação judicial, submetendo-se à LRE2.
2 Art. 25. O clube, ao optar pela alternativa do inciso II do caput do art. 13 desta Lei, e por exercer atividade econômica, é admitido como parte legítima para requerer a recuperação judicial ou extrajudicial, submetendo-se à Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.
6. Tanto é assim que, recentemente, outros clubes de futebol, como é caso do Coritiba Foot Ball Club3, da Associação Chapecoense de Futebol4 e do Joinville Esporte Clube5, tiveram sua legitimidade expressamente reconhecida pelos Juízos competentes, com o devido processamento dos pedidos de recuperação judicial.
7. Nessa mesma linha, o Santa Cruz Futebol Clube logrou obter tutela cautelar de antecipação dos efeitos da decisão que defere o processamento da recuperação judicial e a instauração de procedimento de mediação e conciliação antecedente ao processo de recuperação judicial6.
8. Pelo exposto, resta inequívoca a legitimidade do Cruzeiro-Associação para pedir sua recuperação judicial, que, conforme restará provado a seguir, demonstra capacidade de superar o desequilíbrio econômico-financeiro e de sanear o passivo acumulado.
- III -
Da Recuperanda:
a associação civil Cruzeiro Esporte Clube
- A -
O Cruzeiro-Associação: história, organização e situação atual
9. A Recuperanda é associação civil, de objetivo polidesportivo, que foi constituída na cidade de Belo Horizonte, em 2.1.1921, no seio da comunidade italiana que residia na capital mineira, com o nome de Società Sportiva Palestra Italia, sendo seu escudo composto pelas cores verde, vermelho e dourado, em homenagem ao país italiano.
3 Autos do processo de recuperação judicial nº 0001540-26.2022.8.16.0185, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de Curitiba/PR.
4 Autos do processo de recuperação judicial nº 5001625-18.2022.8.24.0018, em trâmite perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Chapecó/SC.
5 Autos do processo de recuperação judicial nº 5020747-54.2022.8.24.0038, em trâmite perante a 4ª Vara Cível da Comarca de Joinville/SC
6 Autos dos processos nº 0014524-96.2022.8.17.2001 e nº 0014412-30.2022.8.17.2001, ambos em trâmite perante a Seção A da 9ª Vara Cível da Capital/PE.
10. Durante a Segunda Guerra Mundial, com a edição de Decreto Federal proibindo a utilização de termos e símbolos que remetessem a países que compunham o Eixo (dentre eles, a Itália), decidiu-se, em 7.10.1942, mudar o nome do Clube para sua atual designação, Cruzeiro Esporte Clube, tendo as cores do uniforme sido alteradas para o azul.
11. Em todos esses anos, dentre as atividades desportivas de seu objeto, destacou-se desde sempre o futebol masculino, com a formação de equipe profissional dedicada a disputar torneios nacionais e internacionais, sagrando-se vencedora de diversos deles, entre os quais duas Copas Libertadores da América, duas Supercopa da Libertadores, quatro Campeonatos Brasileiros, seis Copas do Brasil e dezenas de Campeonatos Mineiros.
12. Ao lado do futebol (que é composto pelas equipes profissionais masculina e feminina, categorias de base e escola de futebol), o Cruzeiro-Associação também formou equipes de vôlei (de desempenho esportivo incomparável, tendo conquistado 7 Superligas, nos últimos 10 anos), atletismo, futebol americano e basquete.
13. A governança da Associação é exercida por meio dos órgãos previstos e regidos em seu Estatuto Social (doc. 2, anexo), com destaque para (i) a Assembleia Geral, da qual participam todos os Associados e a quem compete eleger o Conselho Deliberativo e alterar o Estatuto; (ii) o Conselho Deliberativo, formado por ex-Presidentes e Vice- Presidentes, Conselheiros Natos e Conselheiros escolhidos entre os Associados, cabendo- lhe eleger o Presidente e o Vice-Presidente, a Mesa Diretora e o Conselho Fiscal, analisar as contas da Diretoria e autorizar a alienação de bens imóveis, entre outras funções; (iii) o Presidente e o Vice-Presidente do Clube, eleitos para mandato de 3 (três) anos, com funções executivas e de representação; (iv) o Conselho Diretor, para apoio à Presidência; e (v) o Conselho Fiscal, de atuação permanente.
15. O Cruzeiro-Associação atrai, há décadas, um conjunto de torcedores e apoiadores que se destaca nos cenários nacional e mundial, que ganhou o apelido de “Nação Azul”, tamanho o engajamento e dedicação às causas e desafios do Clube, em especial no segmento do futebol. São símbolos desse fenômeno a sustentação do recorde de público do Estádio Mineirão, que comportou mais de 130.000 (cento e trinta mil) torcedores, na final do Campeonato Mineiro de 1997 e o fato de o Clube ter aproximadamente 7 milhões de torcedores espalhados pelo mundo7.
16. O engajamento da torcida celeste é tão expressivo que o Clube, mesmo disputando a Série “B” do Campeonato Brasileiro há 3 anos, conta com mais de 50.000 (cinquenta mil) sócios-torcedores8 e com um contingente de inscritos em suas redes sociais de mais de 8 milhões de pessoas (somando Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e TikTok)9.
17. Fato é que, nos últimos 101 (cento e um) anos, o Cruzeiro-Associação construiu história repleta de conquistas desportivas e viu sua principal atividade (futebol masculino profissional) ocupar posição de destaque nos cenários nacional e mundial, tornando-se um verdadeiro patrimônio do esporte e da cultura, ladeado por um conjunto de milhões de apoiadores, que acompanham diuturnamente a equipe, os atletas e a vida do Clube.
18. Contudo, assim como ocorre em diversos clubes do futebol brasileiro, o Cruzeiro-Associação enfrenta quadro de desequilíbrio econômico-financeiro, que foi
7 Disponível em xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx-xxx-xxxxxx-xx-xxxxxxx-xxxxxxxx-xx- brasil-viraliza-na-internet-veja-o-top-20/#foto=1. Acesso em 3.6.2022
8 Disponível em xxxxx://xx.xxxxx.xxx/xx/xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxxx-xx-x-xxxxxxxxxxx-xx- alta-flamengo-em-baixa-veja-ranking-de-socios-por-clube.ghtml. Acesso em 3.6.2022.
9 Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx/xx/xxxxxxxx/xxxxxxx-xxxxxxx-xxx-xxxxxx-xxxxxxxxxxx- mai-2022/. Acesso em 3.6.2022.
Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”).
19. De fato, a desestabilização das obrigações financeiras em tempos mais recentes comprometeu o exercício das atividades da Associação, com importante reflexo no futebol masculino profissional, tudo a reclamar a adoção de programa de reestruturação financeira e organizacional, com vistas à superação da crise.
20. Este pedido de Recuperação Judicial integra o conjunto de esforços para a reestruturação do Clube, que já vêm sendo implementados com êxito, mostrando-se verdadeiramente crucial que o Poder Judiciário faça incidir a previsão do ordenamento concursal voltada à preservação das empresas, para que se dê continuidade a toda essa história de realizações e ganhos para a sociedade mineira e brasileira.
- B -
O contexto no qual se insere o Clube: normas, regulamentos e decisões emanadas das Entidades de Administração do Desporto
21. A desestabilização econômico-financeira do Cruzeiro-Associação (e, em especial, o agravamento do quadro dos últimos anos) ensejou sanções de natureza esportiva impostas pela FIFA e pela CBF. Para a melhor compreensão da forma pela qual as entidades de prática desportiva se inserem no sistema do futebol organizado – e, consequentemente, se sujeitam às normas e às decisões a ele inerentes –, faz-se necessário trazer à baila como esse sistema se sustenta por meio da Lex Sportiva.
22. A Lex Sportiva é um sistema jurídico autônomo, formado pelas normas, regulamentos e decisões emanadas das entidades de administração do desporto – no caso do futebol, notadamente, a FIFA (em nível transnacional) e a CBF (em território brasileiro).
23. Integram esse sistema jurídico desde as normas mais básicas definidoras da regra do jogo (i.e. a quantidade de jogadores de cada equipe, o número de substituições possível, o significado dos cartões amarelo e vermelho) até regras complexas que norteiam, por exemplo, o sistema de transferências de atletas ou a atuação de intermediários.
24. Essas regras são editadas por pessoas jurídicas de direito privado e sua aplicabilidade decorre do art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.615/9810 (“Lei Pelé”) e de sucessivas relações associativas entre as diversas entidades que integram esse sistema: um clube brasileiro é filiado (associado) à respectiva federação estadual de futebol e esta, por sua vez, filia-se à CBF, que é vinculada à FIFA. Essa cadeia associativa faz com que o clube esteja sujeito às normas emanadas de todas as entidades de administração do desporto, desde aquela à qual é diretamente associado (no caso dos times sediados em Minas Gerais, a Federação Mineira de Futebol – “FMF”) até a FIFA.
25. Vejam-se, a propósito, trechos dos estatutos da FMF e da CBF que bem ilustram esses vínculos:
Estatuto da FMF11
Art. 10. A FMF é constituída pelas ligas, por filiação direta reconhecidas como exclusivas entidades dirigentes do futebol, no âmbito dos Municípios do Estado de Minas Gerais, pelas entidades de práticas de futebol (clubes) amadores da Capital, e, pelas entidades de práticas de futebol (clubes) integrantes das Divisões do Campeonato Mineiro de Futebol Profissional.
Art. 11. Os Estatutos das ligas Municipais e das entidades de prática de Futebol (Clubes) filiadas à FMF subordinar-se-ão aos Estatutos da FMF e CBF, cujas normas e regras orientarão a organização, competência e funcionamento daquelas.
Art. 103. A admissão de associação, para a prática de futebol profissional, obedecerá, além dos requisitos previstos neste Estatuto, as normas estabelecidas pela Confederação Brasileira de Futebol.
10 Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não-formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.
§ 1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.
11 Disponível em xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/Xxxxxxxx_XXX.xxx. Acesso em 3.6.2022
Estatuto da CBF12
Art. 15 – São filiadas da CBF as seguintes entidades regionais de administração do futebol: (...) XVI. Federação Mineira de Futebol
Art. 18 – São obrigações das Federações filiadas: (...) V – observar os Estatutos, os Regulamentos e quaisquer disposições ou normas da FIFA, CONMEBOL e CBF; (...) IX – cumprir e fazer cumprir as determinações deste Estatuto, as decisões da CBF, bem como as oriundas da FIFA e CONMEBOL;
Art. 23 – As Federações filiadas e todos os clubes disputantes de competições oficiais constantes do calendário anual do futebol brasileiro, assim com todos os jogadores, árbitros, treinadores, intermediários, médicos e quaisquer outros dirigentes ou profissionais pertencentes aos clubes ou ligas das Federações filiadas se comprometem a acatar as decisões da Justiça Desportiva, do Tribunal Arbitral, da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) e da Comissão de Ética.
26. Além da submissão do clube às regras das referidas entidades, torna-se ele jurisdicionado dos respectivos Tribunais de Justiça Desportiva e de outros órgãos associativos de resolução de disputas inseridos no âmbito da CBF e da FIFA, submetendo- se às suas decisões.
27. No âmbito da CBF, destaca-se a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (“CNRD”), cujo Regulamento indica sua competência para resolver litígios envolvendo clubes13. O mesmo Regulamento aponta, ainda, a possibilidade de aplicação de sanções esportivas em caso de descumprimento de decisões da Câmara14, dentre as quais
12 Disponível em xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxx/000000/00000000000000_000.xxx. Acesso em 3.6.2022
13 Disponível em xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxx/000000/00000000000000_000.xxx. Acesso em 3.6.2022
14 Art. 42 – Por força do art. 15 do Código Disciplinar da FIFA, não ocorrendo o cumprimento voluntário das decisões da CNRD, do CBMA, do CRL ou do TAS, no prazo de dez dias corridos contados de intimação expedida pela Secretaria da CNRD, a CNRD deve determinar, de ofício ou a requerimento da parte interessada, a imposição, isolada ou cumulativamente, das sanções previstas no § 1o do art. 40 do presente Regulamento.
§ 1º – Se, ainda assim, a parte deixar de cumprir integralmente a obrigação que lhe couber no prazo fixado pela CNRD, a CNRD pode determinar a imposição das seguintes sanções, cumulativas entre si e com as anteriores, fixando novo prazo para cumprimento da obrigação: (...) II – as sanções previstas nas alíneas I a V do § 3º do art. 40 deste Regulamento;
merece maior atenção a proibição de registro de novos atletas (popularmente conhecida como transfer ban)15.
28. A aplicação dessa sanção, na prática, impede que o clube sancionado reforce seu elenco com novas contratações, ensejando o enfraquecimento de sua equipe em relação aos demais competidores, que se mantêm aptos a contratar reforços.
29. No âmbito da FIFA, destaca-se o FIFA Football Tribunal, cuja competência é definida nos regulamentos da Entidade e inclui litígios de dimensão internacional (i) entre dois clubes ou (ii) entre um clube e um atleta ou treinador. Considera-se como de dimensão internacional o litígio quando as partes envolvidas têm nacionalidades distintas. Portanto, o FIFA Football Tribunal é competente para julgar qualquer caso envolvendo, por exemplo, um clube brasileiro e um atleta ou treinador estrangeiro.
30. Também nesse caso, eventual descumprimento de decisão do Órgão enseja graves sanções esportivas ao clube. Segundo o art. 15.1.c do Código Disciplinar da FIFA (FIFA Disciplinary Code)16, um clube que deixe de pagar valor devido a outro, após decisão da FIFA nesse sentido, fica sujeito a sanções que vão desde o transfer ban até o rebaixamento, passando pela perda de pontos em competições.
15 Art. 40 – No exercício de suas funções, a CNRD pode aplicar as seguintes sanções, cumulativamente ou não: (...) § 3º – Às pessoas jurídicas, no que couber: (...) III – proibição de registrar novos atletas, por período determinado não inferior a seis meses nem superior a dois anos; IV – proibição de registrar novos atletas por um ou dois períodos completos e, se for o caso, consecutivos de registro internacional;
16 Íntegra da norma, no original em inglês:
15 Failure to respect decisions: 1. Anyone who fails to pay another person (such as a player, a coach or a club) or FIFA a sum of money in full or part, even though instructed to do so by a body, a committee or an instance of FIFA or a CAS decision (financial decision), or anyone who fails to comply with another final decision (non-financial decision) passed by a body, a committee or an instance of FIFA, or by CAS: (…) c) in the case of clubs, upon expiry of the aforementioned final deadline and in the event of persistent default or failure to comply in full with the decision within the period stipulated, a transfer ban will be pronounced until the complete amount due is paid or the non-financial decision is complied with. A deduction of points or relegation to a lower division may also be ordered in addition to a transfer ban in the event of persistent failure, repeated offences or serious infringements or if no full transfer could be imposed or served for any reason (disponível em xxxxx://xxxxxxxxxx.xxxx.xxx/x/0x0x0x00xx000x00/xxxxxxxx/xxx0xxx0xx0xxxxxxx0x-xxx. Acesso em 3.6.2022)
32. A menção nesta petição a esse conjunto normativo e à jurisdição exercida pelas Entidades acima citadas decorre do fato de que a Recuperanda, no curso deste processo, será obrigada a combinar as diretrizes originadas desse sistema com as premissas do ordenamento concursal, de modo que o objetivo de superação da crise econômico-financeira seja efetivamente alcançado.
- IV -
Causas da Crise Econômico-Financeira e Passivo do Cruzeiro-Associação
33. A prática esportiva do futebol, no Brasil, teve início no final do século XIX, por meio de métodos amadores, no seio da aristocracia, que recebia a influência do jogo desenvolvido na Inglaterra. Sua efetiva profissionalização ocorreu apenas na década de 1930, com a consolidação das equipes e o surgimento das federações. A partir daí, o esporte se disseminou no País e tornou-se, sem qualquer dúvida, um fenômeno social de grande repercussão, mobilizando pessoas e recursos em torno de sua prática.
34. Na esteira do desenvolvimento profissional do esporte, os clubes brasileiros, embora organizados majoritariamente sob a forma de associações civis, viram- se na contingência de gerir um verdadeiro negócio, lidando com contratos e cifras de elevada monta. Os desafios naturais da gestão de empreendimentos desse porte se somaram à pressão para investimentos em equipes que viabilizassem a conquista de títulos, forjando-se ambiente ideal para que as estratégias de gestão, em alguns casos, focassem no imediatismo e em resultados de curto prazo.
36. Contudo, a crise financeira do Cruzeiro-Associação adquiriu dimensão mais sensível em gestões recentes, que antecederam a atual, com o aumento do endividamento, a assunção de compromissos de difícil cumprimento, a majoração de salários e a queda do desempenho desportivo da equipe masculina de futebol profissional, com o rebaixamento para a Série B do Campeonato Brasileiro, em 2019.
37. De fato, o Cruzeiro-Associação viu-se, nos últimos anos, na contingência de superar o desafio de obter recursos para o pagamento de obrigações de curtíssimo prazo, com orçamento muito limitado pela perda de receitas e sem condições de realizar investimentos. Para se ter ideia, no ano posterior ao descenso, a receita operacional bruta da Associação caiu mais da metade, tendo passado de R$ 289 milhões (em 2019) para R$ 123 milhões (em 2020). Só nesse primeiro ano, os direitos de transmissão, por exemplo, caíram de R$ 102,5 milhões para R$ 40,4 milhões. Isso sem contar o relevante impacto na arrecadação de bilheteria decorrente das restrições impostas pelas Autoridades Públicas em função da pandemia do Covid-1918. Veja-se abaixo o gráfico que representa o decréscimo de receitas:
17 Entre várias fontes, confiram-se os dados compilados pela consultoria Sports Value (disponível em
xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxxx. Acesso em 9.7.2022).
18Disponível em xxxxx://xx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxx-xx-x- 17-milhoes-ao-cruzeiro-em-bilheteria-receitas-tem-queda-brusca.ghtml. Acesso em 3.6.2022
Comparativo de Receita 2020 x 2019 (R$ Milhões)
Receita Operacional Bruta
2018
Direitos de Transmissão
2019
40,4
102,5
123
289
38. A análise do passivo atual da Associação é reveladora do quadro de crise econômico-financeira, senão veja-se:
Classes | Valor (R$ M) | Head count |
Classe I | 190 | 433 |
Classe II | - | - |
Classe III | 316 | 225 |
Classe IV | 30 | 149 |
Total | 537 | 807 |
39. O Quadro-Resumo permite constatar a existência de expressivo passivo trabalhista (Classe I) e quirografário (Classe III), além de obrigações de menor valor junto a empresas de pequeno porte e microempresas (EPP/ME – Classe IV). Não há credores com garantia real.
40. Em resumo, o Cruzeiro-Associação, em fins de 2021, viu-se imerso em crise econômico-financeira que comprometia até mesmo o cenário de curto prazo, o que exigiu da atual gestão a adoção imediata de medidas graves voltadas à reestruturação da Associação, que se mostraram disponíveis principalmente com a edição da Lei da SAF.
- V -
A Reestruturação do Cruzeiro-Associação
Gestão financeira responsável
Constituição da SAF
Operação com Tara Sports
Pedido de recuperação judicial
41. Desde o início da atual gestão (junho/2020), o Cruzeiro-Associação vem promovendo uma série de medidas voltadas ao saneamento da situação financeira da entidade e à recuperação da capacidade de retomada dos investimentos, com vistas principalmente ao alcance dos objetivos do departamento de futebol
42. Nesse sentido, contratou empresa de consultoria financeira (Alvarez & Marsal) para promover análise aprofundada do passivo da Associação, a fim de auxiliá-la na gestão de suas receitas, redução de custos e implementação de medidas necessárias à sua viabilidade econômica.
43. Diversas iniciativas no sentido do corte de despesas e adequação do orçamento à realidade da Associação foram adotadas, mas o quadro de desestabilização não foi superado, principalmente em razão da diminuição das fontes de receitas decorrentes do desempenho da equipe profissional de futebol masculino e da pandemia do Covid-19.
44. Em 2021, apesar dos esforços descritos, o Cruzeiro-Associação vivenciava situação de dificuldade para o custeio de gastos corriqueiros de curto prazo e não logrou a classificação para a Série “A” do Campeonato Brasileiro, o que apontava para um novo ciclo de escassez de rendas.
45. Ocorre que, em agosto de 2021, deu-se a promulgação da Lei da SAF, com a criação de mecanismos efetivos para a reorganização dos clubes de futebol brasileiro, em especial a possibilidade de constituição de sociedade anônima do futebol
(“SAF”) e, junto dela, a conceção de modelo que permite a segregação das atividades do futebol em veículo sujeito a regramento próprio, dissociado da gestão direta do clube.
46. Além da referida segregação, a Lei previu mecanismos para a restruturação financeira dos clubes, por meio de recuperação judicial ou extrajudicial ou através do regime centralizado de execuções.
47. A partir da edição da Lei da SAF, o Cruzeiro-Associação passou a atuar em diversas frentes simultâneas para viabilizar a superação da crise vivenciada.
48. Nesse sentido, organizou-se para constituir uma sociedade anônima do futebol, com o propósito de transferir para ela suas atividades de futebol e buscar investidores para desenvolver projeto empresarial capaz de reestruturar passivos e contingências da Associação e promover o incremento das receitas, restaurando a capacidade de investimento no futebol.
49. Deu-se, assim, a constituição pela Associação, em 6.12.2021, da sociedade empresária Cruzeiro Esporte Clube – Sociedade Anônima do Futebol (“Cruzeiro- SAF”), com fundamento nos arts. 2º, II, e 3º da Lei da SAF (doc. 3, anexo)19.
50. No ato de constituição, o Cruzeiro-Associação, na qualidade de acionista fundador, integralizou 100% (cem por cento) das ações de emissão do Cruzeiro-SAF, todas Ações Ordinárias Nominativas da Classe “A”, mediante transferência de direitos federativos e econômicos de jogadores de futebol.
51. Nos termos do art. 2º, § 1º, II, da Lei da SAF, com a constituição do Cruzeiro-SAF, houve a transferência para a sociedade do vínculo desportivo/federativo então detidos pela Associação relacionado ao futebol, incluindo a participação nas
19 O Cruzeiro-SAF, enquanto entidade de prática desportiva, está sujeita às normas e decisões inerentes ao sistema jurídico autônomo do futebol, tal como descritas no capítulo III-B desta petição.
52. Na sequência, em 17.12.2021, foi aprovada, no âmbito da Assembleia Geral Extraordinária do Conselho Deliberativo da Associação, a possibilidade de alienação de 90% (noventa por cento) das ações do Cruzeiro-SAF.
53. Em paralelo, o Cruzeiro-Associação ajuizou pedido para instauração de Regime Centralizado de Execuções na esfera cível (perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais) e trabalhista (perante o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região), vindo a obter tutelas de urgência em ambos os procedimentos (docs. 4 e 5, anexos).
54. Constituído o Cruzeiro-SAF, a Associação passou também a buscar investidor interessado em participar do projeto de soerguimento do Clube, para o que contou com a assessoria da XP Investimentos, reconhecido banco de investimentos do Brasil20. Com isso, almejou-se formar uma equipe de futebol apta a gerar renda suficiente para a estabilização das relações comerciais e financeiras, que retomasse a posição de destaque nacional e internacional do clube, tão esperada pelos associados e pelos milhões de torcedores.
55. O plano começou a se concretizar com a oferta de proposta pela Tara Sports SL (liderada pelo ex-jogador Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxx, de reconhecida história com o Clube e um dos principais atletas do futebol mundial), que contemplava possível investimento no Cruzeiro-SAF de R$400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), mediante o aporte inicial de R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) na sociedade e a geração de receitas incrementais e/ou aportes de até R$350.000.000,00 (trezentos e cinquenta milhões de reais), em cinco anos. Em contrapartida, a Investidora receberia
20 Durante a consultoria, a XP Investimentos buscou potenciais investidores, tendo recebido duas propostas, das quais uma foi considerada inviável por conter condição imposta pelo investidor que escapava ao controle da Associação (obtenção de 80% de desconto sobre o passivo total da Associação).
56. Após cuidadoso exame da oferta, a Associação houve por bem aceitar a proposta da Tara Sports SL, o que se deu em 18.12.2021, daí se seguindo para as demais providências destinadas à concretização do negócio.
57. Logo de imediato, estabeleceu-se um Comitê de Transição para funcionar até a conclusão da operação com a Tara Sports, formado por representantes da Associação e do Investidor, de modo que nele se discutissem e adotassem as decisões mais relevantes do departamento de futebol (e.g. contratações e transferências de jogadores e formação da comissão técnica), ficando estabelecido que a decisão final sempre seria do Cruzeiro- Associação.
58. Além disso, ao se deparar com a real situação financeira do Cruzeiro- Associação naquele momento, o Investidor antecipou parte do aporte inicial para o Cruzeiro-SAF, antes mesmo da assinatura dos documentos definitivos da operação, a fim de viabilizar a temporada de 2022 e evitar maiores prejuízos para o departamento de futebol.
59. Os recursos foram utilizados para quitação de obrigações financeiras cobradas perante a FIFA, que geravam punições desportivas de “transfer ban”, impedindo o reforço da equipe para a temporada de 2022 e ensejando inclusive sanções mais graves, como a perda de pontos.
60. A gestão do Cruzeiro-SAF pelo Comitê de Transição, em poucos meses, obteve bons resultados esportivos, como o retorno do time de futebol masculino profissional às finais do Campeonato Mineiro e sua manutenção nas primeiras posições da tabela de classificação do Campeonato Brasileiro de 2022, entre outros bons resultados.
necessárias ao saneamento do passivo do Clube.
62. Diante desse conjunto de dados, as Partes avançaram no acerto negocial, vindo a ajustar duas medidas de grande importância: (i) a venda dos imóveis da “Toca 1” e da “Toca 2” pela Associação para o Cruzeiro-SAF, em contrapartida da assunção pelo Cruzeiro-SAF da obrigação de disponibilizar à Associação os recursos necessários para que o Cruzeiro-Associação pague sua dívida tributária objeto de transações; e (ii) o ajuizamento de pedido de recuperação judicial pelo Cruzeiro-Associação, para viabilizar a restruturação das atividades remanescentes da Associação e a adequação do passivo existente à sua capacidade de geração de receitas futuras, observada sua participação societária no Cruzeiro-SAF.
63. Em 7.4.2022, o Cruzeiro-Associação, o Cruzeiro-SAF e a Tara Sports Brasil Participações Ltda. (“Tara Sports Brasil”) assinaram os documentos definitivos do negócio21, que confirmaram as bases do acerto firmado pelas Partes, já comentadas acima.
64. Assim, o Cruzeiro-Associação vem trilhando com perseverança o caminho de superação da crise econômico-financeira, o que faz desde o início da atual gestão com o saneamento da situação do Clube e, mais recentemente, com a constituição do Cruzeiro-SAF e a concretização do acordo de investimento com a Tara Sports Brasil.
65. Para o avanço desse programa de reestruturação de suas atividades, a Associação efetivamente precisa instaurar procedimento de recuperação judicial, de modo a, no âmbito do Poder Judiciário, negociar e aprovar Plano de Recuperação junto a seus credores, que viabilize a solução do passivo acumulado.
21 Os documentos definitivos da operação não são apresentados com essa petição em razão do compromisso de confidencialidade assumido pelas Partes.
ATENDIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS
66. O Cruzeiro-Associação reúne todas as condições para formular pedido de recuperação judicial, seja porque precisa se valer do instituto para superar a crise econômico-financeira e preservar sua atividade22, seja porque estão contemplados os requisitos formais da LRE, senão veja-se.
67. Atendendo aos arts. 48 e 51 da LRE, o Cruzeiro-Associação junta a esta petição os seguintes documentos:
a) autorização do Conselho Deliberativo da Associação para a propositura deste pedido de recuperação judicial (doc. 6);
b) prova do exercício regular das atividades da Associação há mais de 2 (dois) anos (doc. 7);
c) prova de não ter tido sua falência decretada (doc. 8);
d) prova de não ter requerido sua recuperação judicial, nos últimos 5 (cinco) anos (doc. 8);
e) prova de não ter havido condenação por crime tipificado na LRE (doc. 9);
f) demonstrações contábeis dos 3 (três) últimos exercícios sociais da Associação e as levantadas para instruir este pedido recuperacional, compondo-se do balanço patrimonial, da demonstração do resultado do último ano, do relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; (docs. 10);
g) ato constitutivo do Cruzeiro-SAF, que é a única pessoa jurídica vinculada à Associação (doc. 3);
h) relação nominal completa de credores (doc. 11);
22 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica
Pessoas Jurídicas de Belo Horizonte e cópia dos atos constitutivos e dos documentos de nomeação dos dirigentes (doc. 13);
k) relação dos bens particulares dos dirigentes (docs. 14);
l) extratos atualizados de contas bancárias e aplicações financeiras da Associação (docs. 15);
m) certidões dos cartórios de protesto da sede da Associação (doc. 16);
n) relação dos processos judiciais e arbitrais em que a Associação é parte (doc. 17);
o) relatório detalhado do passivo fiscal da Associação (doc. 18); e
p) relação de xxxx e direitos integrantes do ativo não-circulante da Associação, incluídos os que não se sujeitam à recuperação judicial, bem como de negócios de mesma característica (doc. 19).
68. Em relação ao item “f” acima, relativo às demonstrações contábeis, a Associação está empenhada no fechamento da escrituração dos meses de janeiro a julho de 2022, o que não logrou concluir, em razão das várias incumbências que assoberbaram o seu departamento financeiro e contábil, relacionadas com a operação celebrada com a Tara Sports Brasil.
69. Contudo, a premência de ajuizar este pedido de Recuperação Judicial, em função da crise econômico-financeira vivenciada, conduziu o Cruzeiro-Associação a formular os pedidos que a seguir serão apresentados, mesmo pendente o referido fechamento.
70. A Recuperanda tem condições de apresentar de forma completa os documentos mencionados no art. 51, inciso II, da LRE no prazo de 60 (sessenta) dias contados da data do ajuizamento deste pedido e pondera que essa limitada falta não há de prejudicar o processamento da Recuperação Judicial, já que as demonstrações financeiras já entregues são suficientes para os fins da lei.
legais para pleitear sua recuperação judicial.
- VII - PEDIDOS
72. Por todo o exposto, o Cruzeiro-Associação requer:
i. o deferimento do processamento desta recuperação judicial, com a adoção das providências previstas no art. 52 da LRE, ordenando-se, em especial, a suspensão de todas as ações ou execuções em trâmite, pelo prazo legal de 180 (cento e oitenta) dias; e
ii. após o seu regular processamento, conceda a recuperação judicial à Associação, submetendo os direitos de seus credores aos termos do Plano de Recuperação Judicial que for homologado.
73. O Cruzeiro-Associação declara, sob a fé dos patronos desta ação, que as cópias de documentos que acompanham a petição inicial são autênticas.
74. Dá-se à causa o valor de R$ 536.745.678,27 (quinhentos e trinta e seis milhões, setecentos e quarenta e cinco mil, seiscentos e setenta e oito reais e vinte e sete centavos), que correspondente à somatória dos créditos sujeitos a esta recuperação judicial.
75. Requer, por fim, o cadastramento do advogado Xxxxxx Xxxxx Xxxx, inscrito na OAB/MG sob o nº 74.368, para que, em seu nome, sejam expedidas todas as intimações deste processo, sob pena de nulidade.
Pede deferimento.
Belo Horizonte, 11 de julho de 2022.
Xxxxxx Xxxxx Xxxx
OAB/MG 74.368
Xxxxxxxx Xxxxxxx
OAB/MG 87.995
Rafhael Frattari
OAB/MG 75.125
Xxxxxxxxx Xxxxx
OAB/MG 74.351
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx
OAB/MG 128.771
Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxx
OAB/MG 206.780
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx
OAB/MG 138.596
Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx
OAB/MG 192.955