CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO:
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CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO:
OS DESAFIOS E AS PERSPECTIVAS DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO MERCOSUL À LUZ DO PRECEDENTE EUROPEU
Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas/Menção em Direito Internacional Público e Europeu JULHO/2016
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CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO:
OS DESAFIOS E AS PERSPECTIVAS DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO MERCOSUL À LUZ DO PRECEDENTE EUROPEU
ELECTRONIC CONSUMER CONTRACTS:
CHALLENGES AND PROSPECTS OF THE CONSUMER PROTECTION IN MERCOSUR IN THE LIGHT OF THE EUROPEAN PRECEDENT
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Políticas/ Menção em Direito Internacional Público e Europeu.
Orientador: Prof. Dr. Xxx Xxxxxx Gens de Xxxxx Xxxxx
Coimbra 2016
A Xxxxxx Xxxx xxx Xxxxxx, minha inspiração, meu exemplo, meu pai.
AGRADECIMENTOS
O maior educador não é o que controla, mas o que liberta. Não é o que aponta os erros, mas o que os previne. Não é o que corrige comportamentos, mas o que ensina a refletir.
Xxxxxxx Xxxx
Ao Professor Doutor Xxx Xxxxx Xxxxx, por toda a atenção e disponibilidade demonstradas ao longo da elaboração desse trabalho acadêmico, mas, sobretudo, pela generosidade e humildade que nortearam as suas atitudes e o tornaram um verdadeiro exemplo de mestre.
O jurista do século XXI tem que estar preparado para articular o direito nacional, o direito europeu e o direito internacional, com uma atitude humanista e uma mentalidade transcultural.
Prof. Dr. Xxxxxxx Xxxxxxx
Ao corpo docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pelo esmero ao proporcionar uma formação de excelência a seus alunos, ajudando-nos a galgar mais um degrau em direção ao almejado êxito profissional.
Je tiens à remercier les membres du CeDIE de l’Université Catholique de Louvain pour le soutien dont vous avez fait preuve à mon égard tout au long de mon séjour de recherche en Belgique. À Madame Xxxxxxxxx Xxxxxx et au Monsieur Xxxx Xxxxxx, je suis particulièrement reconnaissante pour la gentilesse, l'implication et l'attention que vous avez toujours eus avec moi dès que je suis arrivée à l’UCL.
Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos. Mas o verdadeiro grande homem é aquele
que faz com que todos se sintam grandes.
Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx
Aos Professores Xxxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx e Xxxx-Xxxxx Xxxxxxx, grandes homens que, generosamente, nunca pouparam esforços para que eu me sentisse grande.
Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.
Cora Coralina
Às Professoras Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxx e à Sra. Xxx Xxxxxxx Xxxxx, pela atenção, presteza e solicitude, especialmente, ao proporcionar-me o privilégio de ter acesso ao projeto do Protocolo sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais de Consumo do Mercosul, documento de valor inestimável à completude do estudo da temática proposta.
Capa negra de saudade No momento da partida Segredos desta cidade Levo comigo p'ra vida
Balada da Despedida do 5º Ano Jurídico
À Coimbra, pelo amor maternal que sempre destinou àqueles que a si recorrem, dando-nos, independentemente de qualquer circunstância pessoal, o privilégio de nos sentir em casa.
O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.
Xxxxxxxx Xxxxxx
Aos colegas do curso de Mestrado, em especial Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxxx, pela amizade, pelo auxílio mútuo e pela parceria de vida.
E toda essa longa viagem que me fez afastar da minha casa foi, afinal, um lento e perceptível regresso.
Xxx Xxxxx
Aos meus amados amigos brasileiros, pelo apoio transoceânico, atemporal e constante.
O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim, esquenta e esfria, aperta e depois afrouxa, aquieta e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio da alegria. E ainda mais no meio da tristeza. Todo o caminho da gente é resvaloso, mas cair não prejudica demais, a gente levanta, a gente sobe, a gente volta”.
Xxxx Xxxxxxxxx Xxxx
Ao Dr. Xxxxxx Xxxxxxx, pelo companheirismo diário que me encorajou a enfrentar, destemidamente, das mais simples às mais complicadas querelas, xxxxxxx desenvolver raciocínios nem sempre tão evidentes àqueles que, como eu, estão acostumados a lidar apenas com a letra fria e peculiar da lei positiva.
Mais, si tu m’apprivoises, nous aurons besoin l’un de l’autre. Tu seras pour moi unique au monde. Je serai
pour toi unique au monde...
Xxxxxxx xx Xxxxx-Xxxxxxx
À ma chère famille belge, dont l’affection, l’amour, le soutien et l’encouragement constants m’ont été d’un grand réconfort et ont contribué à l’aboutissement de ce travail.
A Xxxxx Xxxxx e Xxxxxxx, amigos queridos que, desde a minha chegada a Portugal, eu tenho a honra de considerar, também, como minha família.
À minha irmã Xxxxxxx, aqui, também, a representar a minha estimada família brasileira, por ser o meu porto seguro, a minha alegria, a minha sensatez.
Tudo o que um sonho precisa para ser realizado é alguém que acredite que ele possa ser realizado.
Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx
Aos meus pais: os quais sempre destinaram aos meus sonhos uma credulidade incondicional, pelos quais a minha gratidão transcende a manifestação verbal e os limites do infinito, com os quais aprendi os mais valiosos ensinamentos e sem os quais nada disso teria sido possível. Obrigada por serem aquilo que eu tenho de melhor! Meu amor por vocês é incomensurável!
Vocês são jovens. Ser jovem é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é historicamente produtivo. [...] Não sejam jovens de alma envelhecida. [...] O nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Xxx Xxxxx
RESUMO
A configuração de um mercado comum enseja, dentre outros aspectos, a consolidação de um ordenamento jurídico comunitário que estabeleça as bases para uma união cada vez mais estreita entre as nações envolvidas e viabilize o desenvolvimento econômico com justiça social. Em tempos de significativos avanços tecnológicos e de globalização das relações de consumo, torna-se ainda mais relevante à persecução de tal objetivo, a elaboração de diplomas legais que tratem, satisfatória e especificamente, do Direito do Consumidor na busca por uma máxima proteção. Infelizmente, bem distante da realidade almejada, encontra-se o quadro normativo do Mercosul. Nesse contexto, entende-se que somente a partir de um confronto interno do sistema protetivo mercosulino e da análise pormenorizada da experiência da União Europeia, exemplo mais bem-sucedido de mercado comum, é que será possível ao Mercosul, através da passagem de uma simples cooperação judiciária para uma forma mais sofisticada de integração, traçar um caminho próprio e eficaz para alcançar as características essenciais à sustentação de um direito comunitário forte e organizado que assegure um tratamento adequado ao consumidor. Eis precisamente a espécie de saber que o presente estudo se propõe a construir.
Palavras-chave: Direito do Consumidor. Contratos Eletrônicos de Consumo. Processo Civil Internacional. Cooperação Judiciária. Mercosul. União Europeia.
ABSTRACT
Setting up a common market entails, among other things, the consolidation of a communitarian law that is able to establish the foundation of an even closer union between the nations involved and to allow an economic development with social justice. In times of significant technological advances and globalization of consumer relations, it becomes even more relevant the pursuit of this goal, the development of a legislation that deals, satisfactory and specifically, with the Consumer Law aiming a maximum protection. Unfortunately, the framework of Mercosur is far from the desired reality. In this context, it is known that only from an internal confrontation of the protective system of Mercosul and a detailed analysis of the European Union’s experience, the most successful example of a common market, will be possible to Mercosur, through the passage of a single judicial cooperation for a more sophisticated form of integration, draw a proper and effective way to accomplish the essential features to support a strong and organized communitarian law to ensure adequate consumer treatment. This is precisely the kind of knowledge that the present study aims to build.
Keywords: Consumer Law. Electronic Contracts. International Civil Procedure. Jurisdictional Cooperation. Mercosul. European Union.
LISTA DE SIGLAS
BRASILCON – Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor
B-to-B – Business to business
B-to-C – Business to consumer
CCI – Câmara de Comércio Internacional CCM – Comissão de Comércio do Mercosul CDC – Código de Defesa do Consumidor CE – Conselho Europeu
CEE – Comunidade Econômica Europeia
CF – Constituição Federal
CIDIP – Convenção Interamericana de Direito Internacional Privado
CMC – Conselho do Mercado Comum
CPC – Código de Processo Civil
CT-7 – Comitê Técnico número sete (Mercosul)
GMC – Grupo Mercado Comum MERCOSUL – Mercado Comum do Sul MJ – Ministério da Justiça
OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
ONU – Organização das Nações Unidas
PB – Protocolo de Brasília
PO – Protocolo de Olivos de Solução de Controvérsias
POP – Protocolo de Ouro Preto PROCON – Procuradoria do Consumidor REsp – Recurso Especial
SGT-10 – Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx xxxxxx 00 (Xxxxxxxx) SNDC – Sistema Nacional de Defesa do Consumidor STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TFUE – Tratado sobre o funcionamento da União Europeia
TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia
TPR – Tribunal Permanente de Revisão
TUE – Tratado da União Europeia
UE – União Europeia
UNCITRAL – Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO. 12
1 A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR 16
1.1 A proteção internacional do consumidor 16
1.2 A proteção do consumidor na União Europeia 22
1.3 A proteção do consumidor no Mercosul 29
1.4 A proteção do consumidor no comércio internacional eletrônico 34
2.1 O alvo prático das regras de proteção no comércio eletrônico 45
2.1.1 O Foro privilegiado do consumidor na União Europeia – Regulamento Bruxelas I 45
2.1.2 O Foro privilegiado do consumidor no Mercosul – O Protocolo de Santa Maria54
3.1 A harmonização legislativa na União Europeia: um paradigma de sucesso 60
3.1.5 Regulamento (CE) n. 593/2008 – Roma I 68
3.2 A harmonização legislativa no Mercosul: desafios e perspectivas 72
3.2.1 A diversidade legislativa em matéria de proteção do consumidor no Mercosul 80
CONCLUSÃO. 97
BIBLIOGRAFIA. 99
JURISPRUDÊNCIA 120
ANEXO. 122
INTRODUÇÃO
Se, há alguns anos, a proteção do consumidor era um tema de direito interno, em que a atuação social era tipicamente nacional e desprovida de qualquer elemento de estraneidade; com o advento de uma infraestrutura tecnológica capaz de suprimir barreiras geográficas e de propiciar a livre circulação mundial de informações, o mundo deparou-se com uma nova realidade no que toca às relações privadas de consumo.
A evolução da Internet, combinada com o crescente acesso da população ao sistema informático, permitiu o surgimento de uma nova modalidade comercial, a qual propicia ao consumidor um acesso singular à “vitrine” do comerciante, “sem que este precise sair de sua casa ou de seu escritório para vê-la. Ao mesmo tempo o comerciante não precisa mais de um estabelecimento real, passando a usar um estabelecimento virtual”1.
Trata-se de uma “decorrência da internacionalização de toda a cadeia produtiva e, também, do aprimoramento das tecnologias nos diversos ramos de atividades”2, o que favorece o desenvolvimento de relações cada vez mais estreitas e diversificadas entre pessoas naturais e jurídicas de nacionalidades distintas. O comércio eletrônico influencia, ainda, as tradicionais noções de tempo e espaço, estimulando a criação de novos parâmetros em matéria de Direito Internacional Privado que melhor se adequem às diferentes situações jurídicas que agora se impõem no cenário internacional e regional.
O aumento considerável de contratos eletrônicos de consumo transfronteiriços reforça a figura do consumidor internacional e torna obrigatória a revisão dos existentes mecanismos legais de proteção. “Em teoria, o consumidor não deve ser prejudicado, seja sob o plano da segurança, da qualidade, da garantia ou do acesso à justiça somente porque adquire produto ou utiliza serviço proveniente de um outro país ou fornecido por empresa com sede no exterior”3. É seu direito, portanto, ser sempre amparado, seja interna ou externamente, em especial quando inserido no contexto de blocos econômicos de integração.
1 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Comércio Eletrônico: uma visão do Direito Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 94, 1999, p. 84.
2 XXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx de. A proteção do consumidor internacional no comércio internacional eletrônico. 2002. 300f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, p. 11.
3 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. A insuficiente proteção do consumidor nas normas de Direito Internacional Privado: Da necessidade de uma Convenção Interamericana (CIDIP) sobre a lei aplicável a alguns contratos e relações de consumo. 2001, p. 2. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxx/xxx/XXXXXXXX_xxxx_xxxxx_xxxxx- vii_proteccionalconsumidor_leyaplicable_apoyo_propuestabrasil_port.pdf>.
Assim, no intuito de se obter um resultado efetivamente palpável e condizente com o real panorama mundial, foram privilegiados, para o fim desse estudo, blocos integracionistas ativos, que, concretamente, possuem atuações significativas em matéria de proteção do consumidor. Por essa razão, foram escolhidos como objetos desse trabalho acadêmico, o Mercosul, na qualidade de foco principal da investigação, e a União Europeia, utilizada como um paradigma de sucesso.
Em um primeiro momento, propõe-se contextualizar, no tempo e no espaço, o desenvolvimento da proteção legal do consumidor nos âmbitos internacional, europeu e mercosulino, intencionando conhecer o caminho até então percorrido em cada esfera e apontar o “amadurecimento dos problemas e das soluções que neste domínio se vão encontrando”4. Ademais, traz-se à baila a conceituação do comércio internacional eletrônico e as especificidades que o circundam quando o negócio jurídico é estabelecido entre um profissional e um consumidor. Identifica-se, também, o que eminentemente caracteriza a relação de consumo internacional, qual a real posição ocupada pelo consumidor nessa circunstância e o que, de fato, ocasiona a sua vulnerabilidade nos contratos eletrônicos de consumo e justifica a necessidade de, a si, ser concedido um tratamento diferenciado.
Posto isso, inevitável é encarar duas importantes questões teórico-práticas que exsurgem da referida condição de hipossuficiência do consumidor associada à existência, à operação e ao efeito do tradicional elemento de conexão pertinente às disputas envolvendo o comércio eletrônico. A primeira, refere-se à determinação da jurisdição competente para dirimir conflitos oriundos de uma relação comercial online entre um consumidor e um fornecedor estrangeiro, e, a segunda, é relativa à qual lei deve ser aplicada pelo tribunal competente na apreciação da lide. Eis, precisamente, os temas a que se dedicam, respectivamente, os subsequentes capítulos dessa dissertação.
Considerando, então, que, nesse contexto, as querelas jurídicas costumam se ver carentes de um resultado uniforme que as assegure que a decisão obtida é incontroversa frente a mais de um ordenamento, a adoção de uma postura mais proativa por parte do Direito Internacional Privado mostra-se imperativa. No plano regional, tanto a União Europeia quanto o Mercosul se mobilizaram, ainda que em intensidades diferentes, em prol de que tal
4 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, n. I, 1999, p. 206.
déficit legislativo não perdurasse. Contudo, o dilema que se impõe é se tais esforços realizados têm sido, de fato, suficientes ou se ainda necessitam de aperfeiçoamento.
Da análise do acquis communautaire europeu, é possível verificar uma significativa ampliação da competência da União sobre o ramo do Direito Internacional Privado, direcionando a sua aplicação à “proteção dos mais fracos”. Para tanto, novos elementos de conexão foram criados de modo a atender os anseios particulares da “tutela do vulnerável”, “até que a harmonização das normas materiais de defesa do consumidor, pelo menos nos temas principais da internacionalização então vivida, acontecesse na Europa”5.
O respeito ao instituto da supranacionalidade pelo bloco europeu possibilita a criação de um direito comunitário forte e organizado, que, ao atender os interesses dos Estados-membros de forma igualitária e permitir a participação direta destes na elaboração de seu corpo normativo, viabiliza a ampliação da estrutura jurídico-institucional da Comunidade, transformando a União Europeia no modelo atual mais avançado e bem- sucedido de bloco integracionista nessa seara.
Guardadas as devidas proporções, pode-se dizer que, enfim, fenômeno semelhante chegou ao Mercosul. O bloco sul-americano ambiciona declaradamente, desde a assinatura do Tratado de Assunção, estabelecer as bases para uma união cada vez mais estreita entre seus povos e vê na integração a condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social.
No entanto, o seu ordenamento jurídico não condiz com tal pretensão, mostrando- se, ainda, incipiente e incapaz de proteger satisfatoriamente os consumidores. Por isso, em certos momentos ao longo da explanação, far-se-á menção direta às leis nacionais de proteção do consumidor dos quatro Estados fundadores do Mercosul, tidos, do princípio até a atualidade, como os pilares políticos da organização.
Por conseguinte, faz-se necessário confrontar o atual mecanismo de cooperação judiciária mercosulino com os objetivos e ideais basilares do bloco, visando impulsionar, assim, o desenvolvimento do Mercosul em direção a uma forma mais sofisticada de integração. Contudo, vale dizer que as referidas considerações não pressupõem que a
5 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. A insuficiente proteção do consumidor nas normas de Direito Internacional Privado: Da necessidade de uma Convenção Interamericana (CIDIP) sobre a lei aplicável a alguns contratos e relações de consumo. 2001, p. 5. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxx/xxx/XXXXXXXX_xxxx_xxxxx_xxxxx- vii_proteccionalconsumidor_leyaplicable_apoyo_propuestabrasil_port.pdf>.
estrutura europeia alcançou a perfeição em sua plenitude, nem mesmo que a mercosulina não conseguirá prosperar.
O tema enfocado no título do presente trabalho justamente nos instiga a realizar um estudo comparado das duas situações fáticas, subsumindo a teoria ao caso concreto, de modo a distinguir os acertos e erros de cada bloco em matéria de defesa do consumidor, a elencar as vantagens e as desvantagens de seus sistemas protetivos e a perceber a maturidade jurídico-econômica adquirida em suas relações internacionais. Desse modo, vislumbra-se, a partir dos referidos enfrentamentos e da análise pormenorizada da experiência da União Europeia, identificar qual a maneira mais eficaz de se alcançar o ideal de mercado comum cabível à realidade específica do Mercosul, principalmente no tocante à proteção do consumidor que contrata por via eletrônica.
1 A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
1.1 A proteção internacional do consumidor
O Direito do Consumidor, como ramo específico da ciência jurídica, é produto da crise do modelo liberal deflagrada em meados do século XX. Fruto de uma “doutrina defensora da livre concorrência e da não-intervenção estatal na economia”, o capitalismo se consolidou com o advento da sociedade de consumo, a qual teve na produção em série, na concentração dos meios produtivos e na ânsia incontrolável de ampliar o seu campo de influência, os seus maiores alicerces. Indissociável tornou-se, portanto, o consumo do sistema econômico vigente.
Nesse contexto, não haveria consequência mais natural do que a evolução do Direito – instrumento protetor – em prol do atendimento das novéis necessidades oriundas da conjuntura socioeconômica ora instalada6. Contudo, “mesmo sendo o consumidor figura imprescindível ao processo produtivo, sua fragilidade e vulnerabilidade perante o poderio econômico da classe produtora” (XXXXXXXX, 2005, p. 118) permaneceram latentes e irresolúveis.
A até então eficiente ordem jurídica liberal, caracterizada eminentemente pelo Princípio da Liberdade, exteriorizado na autonomia da vontade (pacta sunt servanda), no efeito relativo (contractus ex convention partium legem accipiunt) e na responsabilização da parte por dano gerado (ainda que este não tenha sido fruto de má-fé), e pelo Princípio da Igualdade, manifestado seja em sua vertente formal7, seja na modalidade de desigualdade
6 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, 1999, p. 207. “Com tudo o que de artificial, simplista e reductor pode encerrar a divisão do processo por fases, diria, ainda assim, que o tema da protecção do consumidor se pode equacionar em três momentos: numa primeira fase, avulta a denúncia da situação de debilidade do consumidor, enquanto vítima indefesa da sociedade de consumo; num segundo momento, é o direito do consumo que desponta, em resultado da imensa legislação que prolifera e da reflexão que a doutrina lhe vai dedicando; por último, no momento actual, é a um código que se apela, como que a coroar todo este movimento e a reconhecer ao direito do consumidor a maioridade e a autonomia que uma codificação requerem”.
7 A qual presume a condição equiparada das partes envolvidas na relação obrigacional.
abstrata8; mostrou-se “incapaz de suprir as necessidades e as expectativas dos indivíduos em interação com os meios de produção inseridos no sistema capitalista” (XXXXX, 2002, p. 39)9. Assim, a fim de enfrentar e superar o colapso do modelo político liberal clássico, necessário foi reformular o ordenamento jurídico vigente, compatibilizando-o ao fenômeno social em que as relações de consumo não eram mais estabelecidas “entre sujeitos livres e conscientes de suas consequências, mas entre grupos econômicos (representados por
empresas com grande aporte financeiro) e sujeitos isolados” (CARVALHO, 2005, p. 119).
Tendo isso em mente e assumindo o contrato como a forma principal de concretização das relações comerciais, oportuna é a ponderação de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx de que “os contratantes, em grande número de vezes e até na maioria das vezes, encontram-se em posições de notório desequilíbrio, seja moral, seja econômico, seja técnico, seja mesmo de compreensão e discernimento” (2000, p. 8).
O Direito do Consumidor, portanto, tem como principal intuito o reequilíbrio das “relações mantidas no mercado entre fornecedor e consumidor, assimétricas em razão da massificação da produção, da contratação e do consumo decorrente da evolução tecnológica capitalista e das modernas técnicas de marketing” (KLAUSNER, 2008, p. 60). Desse modo, mister foi estabelecer novos fundamentos teóricos que atendessem às expectativas desse ramo do Direito, dentre os quais destacam-se o Princípio do Dirigismo Estatal, o qual consagra a primazia do interesse público sobre o particular; o Princípio da Inversão do Ônus da Prova, como instrumento de proteção do consumidor – parte hipossuficiente da relação comercial –; e o Princípio da Vontade Real do Consumidor, que vislumbra resguardar a genuinidade do elemento volitivo exteriorizado pelo consumidor ao contratar, especialmente quando assume obrigações por mera adesão10.
8 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx da. Código de Defesa do Consumidor e Mercosul: Vicissitudes em sua Coexistência. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 23, set. 2002, p. 38. É caracterizada pelo “estabelecimento de situações suscetíveis de desequiparação, das quais apenas a parte amparada por suporte técnico pode alcançar”.
9 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, 1999, p. 207. “A proclamada “soberania” do consumidor no processo econômico passou a confrontar-se com a racionalidade e o ‘diktat’ da produção, cedeu perante a arte do ‘marketing’, submeteu-se à ‘linguagem do mercado’ e soçobrou perante os ritos sedutores da ‘cultura do consumo’. A liberdade de escolha aparece viciada por técnicas subtis e ardilosas de persuasão”.
10 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, p. 201-214, 1999, p. 207. “De ‘invenção admirável’, de expressão da personalidade humana, de encontro de vontades livres e iguais, o contrato massifica-se, agrava iniquidades e chega a ser condenado como meio de opressão. Em vez da ‘mão invisível’ que tudo harmonizaria, num optimista mercado de ‘felicidade’, apela-se agora à mão visível de um Estado intervencionista, que impeça abusos, corrija desequilíbrios e promova a justiça”.
Ensina-nos, ainda, Xxxxxxx (2014, p. 61) que:
A essência da proteção do consumidor está direcionada à tutela coletiva de direito, de natureza transindividual, demandando uma perspectiva inovadora tanto do direito material quanto do direito processual, e superando a clássica visão do mero direito individual entre partes privadas ou públicas e atrelado exclusivamente, no que tange à sua proteção, à ação do Estado.
Nessa toada, tem-se que o desenvolvimento de uma legislação de caráter efetivamente protetivo ao consumidor, em âmbito internacional, deu-se em 1890, com o Sherman Antitrust Act, o qual autorizou o governo federal estadunidense a instituir medidas de combate e dissolução de cartéis. Como bem explicou a Corte Suprema dos Estados Unidos da América no julgamento do caso Spectrum Sports Inc. x McQuillan 506 U.S. 447, 458 (1993):
A finalidade desta lei [Sherman] não é proteger as empresas do funcionamento do mercado; é proteger o público do fracasso do mercado. A própria lei não se dirige contra uma conduta que é competitiva, mas contra uma conduta que injustamente tende a destruir a competição em si11.
Contudo, o marco inicial da proteção organizada do consumidor deu-se apenas em 15 de março de 1962, dia em que o então Presidente dos Estados Unidos da América, Xxxx
F. Xxxxxxx, apresentou ao Congresso de seu país a Special message to the Congress on protecting the consumer interest, através da qual consolidou-se a importância do papel do consumidor no mercado de consumo e o estabelecimento de quatro direitos basilares, a saber: o direito à segurança, resguardando a saúde e a vida; o direito à informação, assegurando a veracidade dos informes veiculados no mercado de consumo; o direito de escolha, preservando, assim, o acesso do consumidor a uma variada gama de produtos e serviços de boa qualidade a preços competitivos e justos; e o direito de ser ouvido, segundo o qual garante-se, no momento da elaboração de políticas públicas e da resolução de conflitos em tribunais administrativos, uma atenção especial por parte do Estado aos interesses do consumidor.
Outro aspecto relevante também abordado pela referida mensagem diz respeito à crescente impessoalidade assumida pelas técnicas de marketing e a sua direta influência no processo decisório do consumidor de bens e serviços. Sob o ponto de vista de Xxxx X. Kennedy, a comercialização de produtos de baixa qualidade e de medicamentos ineficientes,
11 Texto original: “The purpose of the [Sherman] Act is not to protect businesses from the working of the market; it is to protect the public from the failure of the market. The law directs itself not against conduct which is competitive, even severely so, but against conduct which unfairly tends to destroy competition itself”.
a cobrança de preços abusivos e o comprometimento da livre escolha do consumidor, motivado pela falta de informação a si disponibilizada, atentam diretamente contra o interesse nacional, cabendo ao Estado “fazer a economia servir adequadamente o consumidor” (XXXXXXXX, 2008, p. 56).
Nesse contexto, tem-se que:
A luta por essa reforma confundiu-se, por vezes, de início, com a contestação mais ampla, de cariz social e político, aos excessos da sociedade de consumo. E não deixou de ser mesmo influenciada, aqui e ali, por princípios da doutrina marxista, afirmando-se que, tal como o trabalhador, também o consumidor se encontrava alienado e manipulado, sendo a própria sociedade capitalista e o sistema de economia de mercado que haveria que mudar. (XXXXXXXX, 1999, p. 208)
O reconhecimento internacional da inequívoca pertinência, originalidade temática e completude da manifestação presidencial in voga consagrou-a como um verdadeiro paradigma no que toca à proteção do consumidor12. Seus valores e suas premissas serviram de inspiração para todo um conjunto de normas a respeito da matéria, seja no seio da Organização das Nações Unidas (ONU), seja na legislação interna de diversos países – essa originária de exercício legislativo nacional ou comunitário, como no caso, por exemplo, dos Estados-membros da União Europeia e do Mercosul13.
Em 16 de abril de 1985, a Assembleia Geral da ONU adota, por consenso, aquela que seria o expoente máximo da cooperação internacional em matéria de proteção do consumidor, a Resolução n. 39/248. Tal instrumento normativo é fruto direto do trabalho do Conselho Econômico e Social da organização, que, por meio da Resolução n. 1979/74, “solicitou ao Secretário Geral da ONU a elaboração de relatório a fim de propor padrões adequados de consumo a serem seguidos pelas nações integrantes [...], considerando especialmente os problemas e as necessidades dos países em desenvolvimento” (SANTANA, 2014, p. 57).
Tendo isso em mente, estruturou-se de forma quadripartida o anexo da Resolução
n. 39/248, a fim de agrupar em torno da temática principal de cada capítulo, as diretrizes mais relevantes para a persecução de uma proteção satisfatória do consumidor. A primeira
12 Não é por acaso, então, que o dia 15 de março é considerado, internacionalmente, como o dia mundial de proteção do consumidor.
13 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, 1999, p. 210. “Tal legislação, porém, não se circunscreve ao campo do direito substantivo, assistindo-se progressivamente à reformulação de institutos processuais – maxime a legitimidade e o caso julgado – com o objectivo de os adaptar à realização da tutela efectiva de direitos pertencentes a uma pluralidade indeterminada de sujeitos, sem que isso envolva diminuição das garantias judiciárias dos litigantes”.
parte destinou-se aos objetivos da proteção, os quais estão amparados nos interesses e nas necessidades dos consumidores de todos os países – com especial ênfase nos provenientes de países em desenvolvimento –; na condição de hipossuficiência econômica, educacional e negocial frequentemente assumida pelo consumidor e no direito ao acesso a produtos seguros e a um desenvolvimento socioeconômico justo, equitativo e sustentável.
A segunda parte, por sua vez, dedica-se aos princípios gerais que devem nortear a proteção do consumidor no cenário internacional. Assim, é recomendado aos governos a elaboração, o aprimoramento ou a manutenção de políticas protetivas fortes no que diz respeito ao consumidor, devendo ser observadas, para tanto, as diretrizes elencadas na própria Resolução n. 39/248 e as prioridades e circunstâncias socioeconômicas de cada país. Ademais, propõe-se, também, uma eventual cooperação entre os governos, as instituições públicas e privadas de pesquisa e as universidades no desenvolvimento de novas políticas de proteção que atendam às necessidades de todos os setores da população.
No quesito detalhamento, é a terceira parte do instrumento jurídico em estudo que se destaca, uma vez que se destina às normas (guidelines) gerais de proteção do consumidor em si. Assegura-se o alcance universal dos dispositivos ali previstos, isto é, que a sua aplicação não esteja restrita apenas aos produtos e serviços nacionais, mas também aos importados; e explicita-se a preocupação a propósito da correção das medidas adotadas em prol da proteção do consumidor, para que elas não se tornem verdadeiros empecilhos ao comércio internacional e estejam em total acordo com as obrigações comerciais internacionais.
Cumpre destacar, ainda, que:
[...] as normas relativas à proteção da segurança do consumidor enfatizam deveres governamentais quanto à adoção de leis que garantam produtos eficientes e seguros, bem como a prestação por parte dos fornecedores de informações adequadas sobre a correta utilização dos produtos pelos consumidores com o propósito de evitar acidente de consumo. (XXXXXXX, 2014, p. 56)
No que toca à proteção dos interesses econômicos do consumidor, a Resolução dispõe que as políticas governamentais devem proporcioná-lo a possibilidade de obter um ótimo aproveitamento de seus recursos econômicos, bem como devem buscar alcançar uma produção satisfatória e uma performance padrão. Exige-se, ainda, a qualidade dos produtos e serviços ofertados e a disponibilização de informações a seu respeito; resguarda-se a proteção do consumidor contra eventuais práticas abusivas adotadas contra si; incentiva-se a concorrência leal entre fornecedores; entre outras previsões.
As normas relacionadas aos padrões de segurança e qualidade de bens e serviços orientam que os governos se ocupem em formular e implementar padrões dessa natureza tanto no plano interno quanto no externo, revisando-os periodicamente e adaptando-os aos padrões internacionais de normatização, caso necessário. Em adendo, recomenda-se que, caso o padrão nacional adotado seja inferior ao padrão internacional e assim o seja em razão das condições econômicas locais, todo esforço deve ser feito para alterar, o mais rápido possível, tal discrepância.
A distribuição de bens e serviços essenciais para o consumidor deve ser garantida para toda a população do Estado, alcançando, inclusive, consumidores que habitem regiões mais distantes, como os residentes da zona rural. A criação de cooperativas de consumo também é encorajada.
No campo do direito de reparação do consumidor:
Há indicação para a disponibilização de acesso à justiça e aos órgãos administrativos para a solução de controvérsias concernentes à relação de consumo, inclusive pela via informal, com atenção especial aos consumidores de baixa renda. Registre-se a importante recomendação para que as empresas sejam responsáveis pela solução do conflito diretamente com o consumidor, de maneira justa, eficiente e informal. (XXXXXXX, 2014, p. 58)
Além disso, sugere-se a adoção prioritária de medidas referentes à saúde do consumidor no campo dos alimentos, da água e da indústria farmacêutica; de modo a compatibilizá-las com os padrões internacionais de controle, inspeção e avaliação. Resta, ainda, inequívoca a responsabilidade estatal quanto à realização de ações em prol da educação e da conscientização consumerista.
Por fim, a quarta e última parte da Resolução n. 39/248 da ONU dispõe sobre a cooperação internacional, a qual compreende, em especial, o compartilhamento de informações sobre os mecanismos nacionais de proteção do consumidor, o estabelecimento de medidas comuns que viabilizem melhores resultados na exploração dos recursos disponíveis, o melhoramento das condições de oferta de bens essenciais nos quesitos preço e qualidade e a busca por uma maior igualdade entre os produtos e serviços oferecidos por países distintos.
É válido ressaltar, ainda, que a Resolução n. 39/248 da ONU foi alterada, em 26 de julho de 1999, pela Resolução n. 1999/7 do Conselho Econômico e Social da organização, “para o fim de incluir disposições relativas ao consumo sustentável das presentes e futuras gerações quanto aos aspectos econômicos, sociais e ambientais” (XXXXXXX, 2014, p. 58).
1.2 A proteção do consumidor na União Europeia
No continente europeu, as primeiras manifestações do movimento consumerista começaram em meados do século XX, com a criação de organismos administrativos de proteção ao consumidor em países como a França, a Inglaterra14, a Suécia15 e a Holanda. Contudo, foram os alemães, com a Lei sobre as Condições Gerais de Contratação de 1976, os grandes pioneiros na regulamentação dos contratos de adesão, especialmente no que toca à normatização das cláusulas abusivas16.
Na década de 70, foi, também, a vez da Europa, em conjunto, se manifestar sobre o assunto, primeiramente no Conselho da Europa em 1973 e, dois anos depois, no seio da própria Comunidade Europeia. Nesse contexto, tem-se que a consolidação da proteção jurídica ao consumidor “surgiu do esforço em tutelar o coletivo, ‘sendo secundária a preocupação de reparar os danos sofridos pelos consumidores’, distintamente do que ocorreu nos Estados Unidos” (XXXXXXXX, 2005, p. 122).
Tendo em vista que a livre circulação de pessoas é uma das quatro liberdades basilares da União Europeia, tem-se que a consolidação de um espaço europeu de justiça é uma consequência natural do desenvolvimento da comunidade como espaço sem fronteiras. Sob essa perspectiva, assumiram os consumidores, especialmente aqueles envolvidos em relações comerciais transfronteiriças, uma posição de destaque frente à proteção engendrada pelo novel Direito Internacional Privado europeu.
Nesse sentido, ensina McParland (2015, p. 496) que:
14 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Proteção jurídica ao consumidor no Mercosul. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun. 2005, p. 121. “Em 1957, surge, na Inglaterra, a Consumers Association. Um ano mais tarde, instaura-se a comissão especial no Parlamento inglês, o Committee on Consumer Protection. Como resultado do trabalho, promulgou-se, em 1961, o Consumer Protection Act, e publicou-se, em 1963, o Molony Report (Final Report of the Committee on Consumer Protection) ”.
15 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Proteção jurídica ao consumidor no Mercosul. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun. 2005, p. 121. “No início da década de 70, é criado, na Suécia, o ombdusman, órgão público especializado em atendimento de reclamações de consumidores com competência para dar o prosseguimento judicial cabível caso a mediação não resulte em satisfação a ambas as partes (reclamante e reclamado). O modelo é seguido pelos demais países escandinavos”.
16 XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxxx. La transposition des directives communautaires em matière de protection du consommateur et le droit internacional privé portugais. In.: XXXXXX, Xxxxx-Xxxxx et al. Festschrift fur Xxxx Xxxxx. Vol. 1 Berlim: Sellier European Law Publishers. 2004, p. 615 e 616. Em Portugal, “[...], ce fût avec le Décret-Loi n.º 446/85, qui a introduit, [...], la réglementation des conditions générales des contrats, que des dispositions on été créées dans le but de protéger le consommateur en tant que partie plus faible dans les rapports privés internationaux”.
Ver: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. O novo regime jurídico dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais.
Revista da Ordem dos Advogados, ano 62, vol. 1, jan. 2002. Disponível em:
<xxxx://xxx.xx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxx/xxxxxxx_xxxxxx.xxxx?xxxxx0000&xxxx0000>.
Tal proteção compartilha um objetivo comum com a proteção encontrada na harmonização parcial da lei doméstica dos Estados-membros. Ambas estão baseadas na ideia de que o consumidor é a parte mais fraca em comparação ao vendedor ou ao fornecedor de bens ou serviços, no que respeita ao seu poder de barganha e a seu nível de conhecimento17.
Contudo, ao observar o desenvolvimento do processo de integração europeu, é possível perceber que, a priori, o instituto da cooperação judiciária, seja ele relativo à matéria civil como um todo ou especificamente à matéria consumerista, não estava contemplado como um dos objetivos precípuos da então Comunidade Econômica Europeia (CEE) aquando da assinatura, em 1957, na cidade de Roma, de seu tratado constitutivo. O principal intuito da CEE referia-se à “criação de uma política econômica comum que permitisse uma expansão contínua, uma estabilidade crescente e um aumento acelerado do nível de vida” (ACCIOLY, 2010, p. 47), além, é claro, à busca pela manutenção da paz entre os povos.
Desse modo, tem-se que apenas o artigo 220º do Tratado Constitutivo da Comunidade Econômica Europeia – Tratado de Roma – versava sobre questões concernentes à cooperação judiciária, especialmente no tocante à competência e à obrigatoriedade delegada aos Estados-membros de adotarem mecanismos simplificadores das “formalidades a que se encontram subordinados o reconhecimento e a execução recíprocos tanto das decisões judiciais como das decisões arbitrais”. Haja vista que, de acordo com a referida base legal, para exercer tal “poder-dever”, os Estados-membros deveriam celebrar convenções internacionais, adotou-se, em 27 de setembro de 1968, a Convenção de Bruxelas sobre Competência Judicial e Reconhecimento de Decisões Judiciais em Matéria Civil e Comercial18.
17 Texto original: “Consumers engaged in certain cross-border transactions are a specially protected species in European private international law. These protections share a common objective with those found in the partial harmonization of Member States’ domestic laws. They are based on the idea that the consumer is in a weak position vis-à-vis the seller or supplier of goods or services, as regards both his bargaining power and his level of knowledge”.
18 XXXXXXX, Xxxxxxxx. O Espaço Judicial Europeu: A Cooperação Judiciária Penal e Civil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v.49, n.79, jan./jun.2009, p. 166. “O Regulamento n. 44/2001 do Conselho, e 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judicial, o reconhecimento e a execução de decisões judiciais em matéria civil e comercial veio substituir a referida Convenção de Bruxelas nas relações entre todos os Estados-membros, exceto a Dinamarca, de modo que, a respeito desta, a citada Convenção de Bruxelas continuou em vigor. Pois bem, a Comunidade Europeia e a Dinamarca adotaram, em 19 de outubro de 2005, o Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judicial, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial para efeito de estender a aplicação das disposições do Regulamento n. 44/2001 e as suas normas de aplicação nas relações entre a Comunidade Europeia e a Dinamarca”.
A instituição da proteção do consumidor na Europa tem sido, portanto, progressiva. O Tratado de Roma concentrou-se apenas em referenciá-la, de forma indireta, em seus artigos 2º, relativo à promoção de um mais alto nível de vida; 36º, referente à legitimidade da adoção de medidas restritivas desde que no interesse da proteção da saúde e da vida das pessoas; 39º, voltado à política agrícola; e nos artigos destinados ao Direito da Concorrência.
Alguns anos mais tarde, em 1961, reconheceu-se, mediante pronunciamento oficial da Comissão Europeia, que os “interesses gerais dos consumidores no mercado comum não estão representados na mesma medida que os dos produtores”19. Nessa toada, é apresentado, durante a Cimeira de Paris de 1972, o primeiro plano de ação europeu relativo à proteção do consumidor, no qual foram previstas “cinco categorias de direitos fundamentais que deveriam constituir a base da legislação comunitária no que se referia à tutela do consumidor”, a saber: “a) direito à proteção da saúde e da segurança; b) direito à proteção dos direitos econômicos; c) direito à reparação de danos; d) direito à informação e à educação; e e) direito à representação” (ABREU, 2005, p. 4).
Contudo, cumpre salientar que nem o já referido plano de ação de 1972 nem os seus sucessores apresentavam natureza obrigatória ou vinculativa, sendo considerados, pelo contrário, como simples instrumentos norteadores da ação estatal em matéria de proteção do consumidor, nos quais o valor político se sobrepunha ao jurídico. “A Comunidade, no início, legislou em matéria de segurança dos cosméticos, de rotulagem dos produtos alimentares, de publicidade enganosa e de venda em domicílio” (ABREU, 2005, p. 4).
A previsão legal dessa realidade foi trazida à baila, primeiramente, em 1986, com o advento do Ato Único Europeu, o qual introduziu no texto do artigo 100A do Tratado de Roma, a competência comunitária de intervenção direta na tutela do consumidor20. A Comissão Europeia torna-se, assim, capaz de efetivamente propor medidas de amparo ao consumidor, vislumbrando, sempre, o mais elevado grau de proteção. “No entanto, a interferência dava-se apenas no âmbito interno, o que impedia a ingerência do direito comunitário na defesa dos consumidores” (SANTOS, 2013, p. 15).
19 Texto original (referenciado por Xxxxxxx XxXxxxxxx em The Rome I regulation on the law applicable to contractual obligations, 2015, p. 496): “the general interests of consumers in the Common Market are not represented to the extent as those of producers”.
20 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx de. A proteção do consumidor no âmbito dos tratados da União Europeia, Nafta e Mercosul. Revista Jurídica da Presidência da República do Brasil, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul. 2005, p. 4. “Outro avanço do Ato Único foi a suspensão da regra da unanimidade na adoção de diretivas relativas a algumas matérias ligadas à proteção dos consumidores”.
Tendo em isso em mente, tem-se que:
Em janeiro de 1993, com a supressão das fronteiras e a efetivação do mercado único, o mercado de mais de 340 milhões de consumidores precisava de regras de acompanhamento e os seguintes aspectos foram abordados pelos novos programas de ação: a) a representação dos consumidores; b) a informação dos consumidores;
c) a segurança dos produtos; e d) as transações. Durante este período foram tomadas medidas nas seguintes áreas: segurança dos brinquedos e segurança geral dos produtos, pagamentos transfronteiriços, cláusulas abusivas nos contratos, venda à distância, timesharing. (ABREU, 2005, p. 4)
Assim, coube ao Tratado de Maastricht, vigente a partir de 1 de novembro de 1993, o aprofundamento dos progressos alcançados pelo Ato Único Europeu. Consagrados foram, portanto, o instituto da cooperação judiciária21 como questão de interesse comum aos Estados-membros e como o terceiro elemento da nova estrutura tripartida instituída ao bloco22; e a consequente positivação das normas de defesa do consumidor.
No tocante à criação do terceiro pilar e a institucionalização da cooperação na seara da justiça e dos assuntos internos, verifica-se o não afastamento da natureza intergovernamental da matéria. Manteve-se a sua efetivação atrelada à vontade dos Estados- membros e a sua regulamentação dissociada da ordem jurídica europeia, ainda que parcialmente integrante do sistema institucional do bloco.
Além disso, ainda que as inovações trazidas pelo Tratado de Maastricht em matéria de cooperação judiciária tenham sido modestas, seria equivocado ignorar a preocupação dos Estados-membros em garantir que o mercado comum por eles consolidado não colocasse em risco a segurança de seus cidadãos, a ordem e a liberdade públicas. Assim, foi acordado, ainda no âmbito desse Tratado, um conjunto de assuntos de interesse comum23 que não constavam da égide do pilar comunitário24, relativamente aos quais os Estados-membros se comprometeram a cooperar mediante decisões unânimes e de reduzida participação dos órgãos de cúpula da União, preservando, deste modo, a sua soberania nestes domínios.
Nesse contexto normativo, haja vista o então artigo B do Tratado da União Europeia (TUE) priorizar o desenvolvimento de “uma cooperação estreita no âmbito da justiça e de
21 Título VI do TUE – Cooperação em Matéria de Justiça e de Assuntos Internos (JAI).
22 É válido ressaltar que todos os três pilares foram concebidos com o intuito de perquirir e alcançar os objetivos elencados no Título I do TUE, embora, apenas o primeiro, faça uso de instrumentos de efetiva integração.
23 Tanto em matérias de natureza cível e penal – como a política de asilo, de imigração, de controle das fronteiras – quanto de cooperação policial.
24 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx. O futuro da cooperação judiciária em matéria penal: a criação da Procuradoria Europeia (?). Periódico do CIEDA e do CEIS20, em parceria com GPE e a RCE, n.9, jul./dez. 2013, p. 334. “[...] (o primeiro que assumia a função de integração no exercício de competências de soberania), [...]”.
assuntos internos”, determinou-se, no número 6 do antigo artigo K.1 do TUE, que os Estados membros dotavam de competência para tratar de questões envolvendo a cooperação judiciária em matéria civil.
Ademais, previa o então artigo K.3 do TUE que, em quaisquer dos domínios enumerados pelo referido artigo K.1, os Estados-membros deveriam, no âmbito do Conselho, “informar-se e consultar-se mutuamente”, de modo a estabelecerem mecanismos de colaboração entre as respectivas administrações e a coordenarem as suas ações. Ao Conselho, também era concedida, por exemplo, a prerrogativa de adotar posições ou ações comuns e promover, nos termos do Tratado, qualquer cooperação relevante à prossecução dos objetivos da União e que, por algum motivo, fosse mais bem executada em conjunto do que isoladamente por cada Estado-membro, inclusive podendo decidir acerca do quórum de adoção das medidas de execução de uma ação comum.
Em se tratando da política comunitária de proteção do consumidor formalizada pelo Tratado de Maastricht, tem-se que “o direito do consumidor ganhou tutela autônoma e relevância social. A proteção do consumidor deixava de ser mero instrumento para a tutela da concorrência” (XXXXXX, 2013, p. 15). A relevância do tema resta confirmada em disposição constante dos próprios objetivos gerais do Tratado, bem como de seu Título XI, que se dedica inteiramente à política de consumo – art.129A.
É valido ressaltar, no entanto, que a referida competência concedida à Comunidade pelo Tratado era limitada nos termos do Princípio da Subsidiariedade, o qual restringe à atuação comunitária as situações de inércia dos Estados-membros ou de insuficiência de suas ações na garantia de um satisfatório nível de proteção do consumidor, um dos novos propósitos do mercado comum. Alguns dos direitos fundamentais dos consumidores, “tais como: o direito à educação, à reparação de danos, ao acesso à justiça e o direito à representação de interesses coletivos ainda ficaram sem regulamentação” (FELLOUS, 2003, p. 114).
Em adendo, acrescenta Abreu (2005, p. 4 e 5) que:
Através dos livros verdes, questões relativas a: serviços financeiros, acesso dos consumidores à justiça, legislação alimentar, venda e garantias dos bens de consumo, foram concretizados. Além disso, foram também lançadas iniciativas legislativas relativas às ações de cessação aos contratos negociados à distância, à publicidade comparativa e às transferências.
O Tratado de Amsterdã de 1999, dando continuidade às disposições já fixadas por seu antecessor, regulamentou as políticas de concessão de vistos, imigração, asilo e
quaisquer outras que estivessem diretamente relacionadas à referida livre circulação de pessoas (Título IV), tornando imprescindível, com isso, a progressiva criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça na UE. Reforçou-se, por conseguinte, a política comunitária de defesa e promoção de direitos dos consumidores em vários aspectos25, consagrando a relevância da mesma frente à definição e à execução das ações adotadas pela União (art. 27). “No que se refere à cooperação judiciária civil e penal, esse Tratado trouxe consigo
uma reestruturação dos pilares sobre os quais a União Europeia se edificava” (GARRIGA, 2009, p. 168). Assim, sob a ótica cível, verificou-se a “comunitarização” do Direito Internacional Privado, uma vez que incluiu, expressamente, às competências da Comunidade, a prerrogativa de “adotar medidas no âmbito da cooperação judiciária em matéria civil”, desde que em conformidade com o disposto em seus artigos 61, “c”, e 6526.
Desse modo, ensina Garriga (2009, p. 169 e 170) que:
O campo da cooperação judiciária em matéria civil que, até esse momento, assentara-se sobre a cooperação intergovernamental, passou a fazer parte do catálogo das chamadas competências compartilhadas entre a Comunidade Europeia e os Estados-membros mediante a transferência dessa matéria do Título VI do TUE (terceiro pilar da União Europeia) para o Título IV do CE (primeiro pilar da União Europeia), que tem como título “Vistos, asilo, imigração e outras políticas relacionadas à livre circulação de pessoas” 27.
Assim, tem-se que, conjuntamente com a Convenção de Lugano, todos os regulamentos adotados após a entrada em vigor do Tratado de Amsterdã “ilustram um
25 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. Proteção internacional do consumidor: necessidade de harmonização da legislação. Revista de Direito Internacional – Brazilian Journal of International Law, v. 11, n. 1, 2014, p.
61. “[...] especialmente quanto ao direito à informação adequada e a educação para o consumo, bem como disciplinou o inter-relacionamento dos Estados membros na proteção do consumidor com outras políticas públicas estabelecidas na União Europeia”.
26 XXXXXXX, Xxxxxxxx. O Espaço Judicial Europeu: A Cooperação Judiciária Penal e Civil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v.49, n.79, jan./jun.2009, p. 167 e 168. “Leve- se em conta que a competência comunitária no campo da cooperação judiciária em matéria civil é delimitada pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (artigo 5º do CE). O primeiro deles significa que o poder legislativo que adotar as normas deve ser aquele que mais perto dos cidadãos estiver. Nesse sentido, corresponde, em primeiro lugar, aos Estados-membros adotar as medidas dirigidas a regulamentar as relações entre indivíduos. Na sua falta, a Comunidade deverá assumir essa função. Portanto a intervenção institucional está submetida a um teste de eficácia, já que a Comunidade só poderá exercer a sua competência normativa quando esta for mais eficaz do que a atuação estatal para atingir o fim comunitário previsto. Por outro lado, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, ‘Nenhuma ação da Comunidade excederá o necessário para atingir os objetivos do presente Tratado’”.
27 Como principal consequência, apontamos o aproveitamento de determinadas convenções internacionais previamente celebradas entre os Estados-membros da União como verdadeiros instrumentos de cooperação comunitária, como se deu no caso da Convenção de Bruxelas sobre competência judicial e reconhecimento de decisões judiciais em matéria civil e comercial, de 27 de setembro de 1968, e da Convenção relativa à competência judicial, ao reconhecimento e à execução de decisões judiciais em matéria matrimonial, de 28 de maio de 1998. Com a ocorrência da “comunitarização” do Direito Internacional Privado, todas as supracitadas convenções assumiram a forma dos regulamentos comunitários adotados pelo Conselho.
considerável progresso em direção a um entendimento pacífico quanto ao Direito Internacional Privado como parte do direito comunitário” (BRAND, 2009, p. 167)28.
Na seara do direito do consumidor, por sua vez, é identificada a adoção cada vez mais frequente de diretivas europeias no sentido de harmonizar as legislações internas dos Estados membros em torno da matéria, de modo a assegurar o bom funcionamento do mercado interno e o elevado nível de proteção do consumidor almejados, respectivamente, pelos artigos 100A e 153 do TUE29.
Ademais, tem-se que:
O Tratado dispõe ainda do inter-relacionamento das medidas protetivas dos consumidores com as outras políticas comunitárias europeias. Neste mesmo sentido, o art. 174 do Tratado integra a proteção da saúde pública com as questões ambientais e o art. 95 estabelece a garantia de um nível elevado da proteção à saúde humana na definição de todas as políticas e ações da comunidade. (ABREU, 2005, p. 5)
O empenho até então empregado no seio da integração europeia para se alcançar uma verdadeira justiça comunitária foi refreado pelo Tratado de Nice, em 2001, uma vez que, diferentemente de seus antecessores, pouco acrescentou seja às disposições concernentes à cooperação judiciária seja ao Direito do Consumidor. Tal Tratado restringiu- se a ampliar a aplicação do processo legislativo de codecisão às matérias compreendidas em seu Título IV, todavia excepcionando domínios como o Direito de Família (artigo 251).
28 Texto original: “Together with the Lugano Convention on jurisdiction and the enforcement of judgments, these Regulations illustrate considerable progress toward a comprehensive approach to private international law as a part of Community law”.
29 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 373. “O art. 153 cuida da proteção da saúde, da segurança e dos interesses econômicos dos consumidores, assim como a promoção do seu direito à informação, à educação e organização para a defesa dos seus interesses, considerando assim, a tutela do consumidor, um dos objetivos políticos fundamentais da União Europeia”.
Revista LA LEY Unión Europea, ano IV, n. 38, jun. 2016, p. 164-166. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxxxx.xx>. “En aplicación de sus estrategias sobre el mercado único digital y el mercado único, la Comisión Europea ha presentado el 25 de mayo de 2016 un triple plan para impulsar el comercio electrónico combatiendo el bloqueo geográfico, haciendo más asequibles y eficientes los envíos de paquetes transfronterizos y fomentando la confianza de los clientes, gracias a la mejora de la protección y del cumplimiento de las normas. El paquete sobre el comercio electrónico presentado se compone de: una propuesta legislativa para abordar el bloqueo geográfico injustificado y otras formas de discriminación por razón de la nacionalidad o del lugar de residencia o de establecimiento; una propuesta legislativa sobre servicios de paquetería transfronterizos para aumentar la transparencia de los precios y mejorar la supervisión reglamentaria; una propuesta legislativa para reforzar la defensa de los derechos de los consumidores, y orientaciones para aclarar, entre otras cosas, qué debe considerarse una práctica comercial desleal en el mundo digital”.
Em seguida, exsurgiu o Tratado de Lisboa, assinado em 13 de setembro de 2007, com a função de tão-somente reformar os tratados preexistentes, suprimindo alguns de seus traços mais federalistas e revelando o fortalecimento da afirmação das identidades nacionais. Sob essa perspectiva, tem-se que o Tratado de Lisboa, no tocante ao instituto da cooperação judiciária intrabloco, iguala o valor jurídico dos instrumentos normativos que a regem, quais sejam o Tratado da União Europeia (TUE) o Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE); determina que a União Europeia sucederá a antiga Comunidade Europeia para todos os efeitos (artigo 1.3 do TUE); e suprime a estrutura dos três pilares, de
modo a incluir o referido instituto efetivamente ao sistema comunitário30.
Ademais, no tocante à cooperação judiciária em matéria civil e comercial, o Tratado de Lisboa submeteu ao processo legislativo ordinário todas as deliberações a ela relacionadas, com exceção daquelas envolvendo o direito de família, que permanecem sujeitas a um processo legislativo especial31.
1.3 A proteção do consumidor no Mercosul
No Mercosul, as primeiras negociações envolvendo a defesa do consumidor ocorreram em 1993, através da consolidação do Subgrupo de Trabalho de número 10 (SGT- 10), o qual tinha como objetivo precípuo harmonizar as leis consumeristas dos Estados- membros do bloco. Contudo, tal finalidade restou frustrada em razão da lacuna legislativa em matéria de Direito do Consumidor presente em três dos quatro países envolvidos32 e do próprio sistema de solução de controvérsias adotado pelo Mercosul aquando do estabelecimento do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991.
De modo semelhante ao que se passou na União Europeia, em um primeiro momento, “nenhum dos tratados do processo integracionista realizados pelo Cone Sul considerou expressamente o cuidado com a proteção do consumidor” (ABREU, 2005, p. 7).
30 O Título IV do TFUE – Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça –, nos §§ 3º e 4º do artigo 61, dispõe acerca da competência da União Europeia para tratar de assuntos relativos à cooperação judiciária em matéria civil e em matéria penal.
31 UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. A Cooperação Judiciária em Matéria Civil. Fichas técnicas sobre a União Europeia, 2014. “O Conselho delibera por unanimidade após consulta ao Parlamento”.
32 XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. A proteção contratual ao consumidor no Mercosul. Campinas: Interlex, 2001, p. 93 e 94. “Naquela época, somente o Brasil possuía legislação específica de defesa do consumidor, Lei nº 8078/90, o que tornava difícil as tentativas de harmonização, já que não havia outro parâmetro, além da legislação brasileira. [...]. Em 22.9.1993, foi promulgada a Lei nº 24.240, Lei de Defesa do Consumidor da Argentina, considerada menos rígida do que o CDC”.
As atenções direcionavam-se, sobretudo, ao desenvolvimento econômico do bloco, o qual, em prevalência, acabava por, de certa forma, ignorar os aspectos sociais a ele inerentes.
De acordo com Xxxxxxxxxx (2008, p. 296), dois são os principais traços que marcam o pactuado em Assunção, quais sejam: o “desgravamento tarifário progressivo, linear e automático” frente ao conjunto de bens originários dos Estados-membros que circulam na região; e a “eliminação total das barreiras”, a ser realizada no prazo pré-determinado de 31 de dezembro de 1994, para o Brasil e a Argentina, e um ano mais tarde, para o Uruguai e o Paraguai.
A fim de viabilizar a adoção espontânea e tempestiva de tais medidas por cada país integrante do quarteto mercosulino, alguns meses após a assinatura do Tratado de Assunção, foi firmado o Cronograma de Las Leñas.
Sob a égide do referido cronograma, em um primeiro momento, intencionava-se construir uma Zona de Livre Comércio através da eliminação de tarifas alfandegárias e não alfandegárias, visando, assim, a complementaridade entre as economias envolvidas. As maiores dificuldades enfrentadas nessa fase relacionaram-se aos setores produtivos similares com custos de produção diferenciados, como verificado na produção agroindustrial argentina.
Em ato contínuo, ambicionou estabelecer uma Tarifa Externa Comum aos Estados- partes, tendo em vista a sustentação de uma política comercial externa unificada perante terceiros e o enquadramento do bloco ao modelo de uma União Aduaneira. Infelizmente, a empreitada não restou de todo exitosa, isso porque, enquanto todos os demais países mercosulinos buscavam adotar uma tarifa externa baixa, o Brasil, em razão de possuir uma economia diversificada e competente, somente pode resguardar-se com uma alta tarifa protetora.
Entretanto, mesmo o Mercosul ainda estando diante de um grande desafio quanto à implantação da União Aduaneira, o seu principal objetivo é a formação de um Mercado Comum, de acordo com o exposto no art. 1º do Tratado de Assunção. O Mercado Comum pressupõe a liberdade comercial e um posicionamento uniforme do bloco nas relações com terceiros países, bem como requer “a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais, como as que envolvem o comércio exterior, as questões agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial, alfandegária, de capitais, serviços, transportes, comunicações, educacionais e em ciência e tecnologia” (SEINTENFUS, 2008, p. 298).
Essa é a fase que enseja a presença das cinco liberdades fundamentais – livre circulação de bens, capital, trabalho, conhecimento e pessoas – e a regulamentação de assuntos comuns. Para o alcance da aludida finalidade, contudo, mister é garantir três pressupostos basilares do processo de integração ao bloco, a saber: a) a supranacionalidade;
b) a autonomia e a independência das instituições comunitárias; e c) o estabelecimento constitucional de mecanismos de controle a fim de proporcionar maior segurança jurídica a seus cidadãos (MARQUES, 1997, p.84).
Assim, tendo em vista que, ao contrário da experiência europeia, o Mercosul optou por “um sistema de solução de controvérsias menos vinculativo e independente, incapaz de impor obrigações e o cumprimento dos deveres de integração” (ABREU, 2005, p. 8); tem- se que às instituições comunitárias foi concedido o direito de apenas externar recomendações através de suas decisões e sugerir modificações em leis e em normas administrativas nacionais. “As tentativas de harmonização se dão através de instrumentos de direito internacional público clássico, ou seja, através de tratados, protocolos, acordos. Entram como lei ordinária após sua publicação” (MARQUES, 2004, p. 406).
Sob essa perspectiva, ficou a cargo do legislador nacional de cada Estado-membro o desenvolvimento de políticas de defesa do consumidor. Atualmente, todas as quatro nações fundadoras do Mercosul possuem legislação específica a respeito da matéria, sendo elas: o Código de Defesa do Consumidor do Brasil – Lei n. 8.078/1990 –, a Ley de Defensa del Consumidor da Argentina – Lei n. 24.240/1993, modificada pela Lei n. 24.999/1998 –, Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario do Paraguai – Lei n. 1.334/1998 e a Ley de Defensa del Consumidor do Uruguai – Lei n. 17.250/2000.
Foi apenas em 1994 que o Grupo Mercado Comum (GMC) editou a primeira resolução a propósito da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo – Resolução n.126/1994. Nos termos de tal instrumento normativo, restou-se consolidada a aplicação da “regra do mercado de destino”, a qual assegura a vigência da legislação interna dos Estados-membros frente às relações de consumo intracomunitárias até a aprovação, no seio do Mercosul, de um regulamento comum para a defesa do consumidor33. Reforçou-se,
33 MERCOSUL. Resolução n. 126 do Grupo Mercado Comum de 16 de dezembro de 1994. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxx/x/0000/0/xxxxxx.xxxxx/xxxxxxx%X0%X0xx-0000>. Artigo 2º. In verbis: “Até que seja aprovado um regulamento comum para a defesa do consumidor no Mercosul, cada Estado Parte aplicará sua legislação de defesa do consumidor e regulamentos técnicos pertinentes aos produtos e serviços comercializados em seu território. Em nenhum caso, essas legislações e regulamentos técnicos poderão resultar
também, a defesa do consumidor como efetivo contribuinte na persecução do objetivo mercosulino de se inserir competitivamente no mercado mundial.
Sob essa perspectiva, em meados de 1995, o SGT-10 ganhou maior prestígio e se transformou no sétimo comitê técnico do bloco (CT-7)34, momento em que se voltou novamente “a discutir as propostas de harmonização, tendo como base a legislação brasileira, por ser considerada pelo próprio Tratado de Assunção, a mais completa e rígida” (XXXXXXXX E XXXXXXX, 2001, p. 94). Contudo, em virtude da relativa estagnação que assolou o desenvolvimento do tão almejado Regulamento Comum de Defesa do Consumidor, a delegação brasileira sugeriu, no ano seguinte, que a aprovação do referido instrumento fosse, então, fragmentada, possibilitando que as consensualidades pudessem ser aprovadas, entrando, assim, em vigor na forma de resoluções.
No início de 1997, as negociações foram retomadas no seio do CT-7, porém, em razão da inflexibilidade brasileira em abrir mão da elevada proteção jurídica já conquistada pelo consumidor a nível nacional, foram suspensas até junho do mesmo ano. Com o retorno à ativa, em julho de 1997, o Comitê “elaborou uma série com treze temas que já estavam mais adiantados, para que ao final do ano apresentassem um trabalho final” (XXXXXXXX E XXXXXXX, 2001, p. 95).
Nessa toada, tentou-se aprovar, em dezembro, um protocolo mercosulino de defesa do consumidor, o qual serviria como sustentáculo para o futuro Regulamento Comum e deveria ser internalizado por todos os Estados-membros, sobrepondo-se, assim, às legislações nacionais sobre a matéria. O Brasil, mais uma vez, opôs-se à referida aprovação35, embasando a sua recusa na suposta incompletude do instrumento e no elenco
na imposição de exigências aos produtos e serviços oriundos dos demais Estado-parte superiores àquelas vigentes para os produtos e serviços nacionais ou oriundos de terceiros países”.
34 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. Harmonização das normas de proteção ao consumidor no âmbito do Mercosul. 2010. 118 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiás. 2010, p. 93. “Comitê Técnico nº 7, trata especificamente de defesa do consumidor e se encontra subordinado à Comissão de Comércio do Mercosul (CCM). A CCM, por sua vez, está subordinada ao Grupo Mercado Comum (GMC). Os projetos de resolução harmonizados pelo comitê técnico são submetidos à consulta pública previamente à sua aprovação pelo GMC, de forma a dar transparência aos assuntos negociados e possibilitar o recebimento de críticas e sugestões da sociedade, tecnicamente fundamentadas, para o aperfeiçoamento do texto a ser harmonizado. As Resoluções do Mercosul aprovadas pelo GMC devem ser posteriormente incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais, por meio dos organismos competentes de cada país, para que assim, tenham eficácia jurídica”.
35 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Reflexões sobre a proteção do consumidor brasileiro nas relações internacionais de consumo. Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 42, jul/set. 2008, p. 64. “O regulamento comum que unificaria os direitos dos consumidores nos Estados-Partes, denominado ‘Protocolo de Defesa do Consumidor do Mercosul’, foi apresentado, aprovado e assinado pelo Ministério da Justiça brasileiro em
inferior de direitos por ele garantidos, o que prejudicaria de modo substancial o consumidor brasileiro. O protocolo restou, então, prejudicado.
As consequências desse impasse, no entanto, vão além, uma vez que “não aprovado o regulamento comum que dispunha sobre direito substantivo, ficou sem poder entrar em vigor o Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em matéria de relações de consumo aprovado pelo CMC em 1996” (XXXXXXXX, 2008, p. 64)36. O supracitado Protocolo se restringe às vendas a prazo de bens móveis corpóreos, aos empréstimos a prazo ou à outra operação de crédito ligada ao financiamento de venda de bens e a qualquer outro contrato que tenha por objeto a prestação de um serviço ou o fornecimento de um bem móvel corpóreo37.
No que toca à sua aplicação, seria oportuno recorrer ao protocolo quando “a celebração do contrato tenha sido precedida, no Estado do domicílio do consumidor, de uma proposta específica ou de uma publicidade suficientemente precisa e que o consumidor tenha realizado os atos necessários à conclusão do contrato” (ABREU, 2005, p. 10). Todavia, frustradas ainda restariam as expectativas do consumidor turista ou do consumidor que celebra um contrato de transporte, assim como desamparados estão aqueles cujo pleito recaia sobre a proteção extracontratual advinda de acidente de consumo e a proteção pré e pós- contratual em casos de publicidade, pós-venda e garantias.
Ademais, ensina Marques (2004, p. 432) que:
Por meio do Protocolo de Santa Maria, o princípio da autonomia da vontade não é aplicável para os contratos de consumo, protegendo a parte mais vulnerável da relação, o consumidor. Também ficam facilitados o reconhecimento de sentenças e o juízo à distância. Os contratos celebrados à distância e pela internet também são regulados pelo Protocolo de Santa Maria criando maior segurança aos consumidores da região.
No entanto, critica oportunamente Xxxxxxx Xxxxxxxx a referida dependência funcional imposta às regras processuais do PSM ao estabelecimento de um direito material
29/11/1997, mas foi recusado pela Delegação Brasileira na Comissão de Comércio do Mercosul em 10/12 do mesmo ano, (...)”.
36 MERCOSUL. Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo de 17 de dezembro de 1996 – Decreto MERCOSUL/CMC n. 10/96. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxx/Xxxxxx/xxxxxx_xxx/Xxxxxxxxxx/XX/Xxx_000_000_.XXX>. Art. 18. In verbis: “A tramitação da aprovação do presente Protocolo no âmbito de cada um dos Estados Partes, com as adequações que forem necessárias, somente terá início após a aprovação do ‘Regulamento Comum Mercosul de Defesa do Consumidor’ em sua totalidade, inclusive eventuais anexos, pelo Conselho do Mercado Comum”. 37 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx de. A proteção do consumidor no âmbito dos tratados da União Europeia, Nafta e Mercosul. Revista Jurídica da Presidência da República do Brasil, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul. 2005, p. 10. Salvo “os contratos de transportes e as relações de consumo do turista viajando para consumir no exterior”.
do consumidor no Mercosul. Em sua opinião, “tal fato não deveria ser impeditivo para a vigência de regras processuais que permitirão o efetivo exercício dos direitos desses consumidores, garantidos pelas leis de seus domicílios ou pelo direito indicado pela regra de conexão mercosulina de aplicação do direito material do mercado de destino” (2008, p. 65). Assim, tem-se que o grande reflexo prático do ainda inexistente Direito do Consumidor do Mercosul é o fato de que, sob a ótica do próprio consumidor mercosulino, resta indiferente a escolha de um fornecedor estrangeiro proveniente de um dos Estados- membros do Mercosul ou de um fornecedor estrangeiro de Estado terceiro. No que toca ao tratamento e a proteção que lhe são destinados em caso de demanda judicial, de acordo com a própria regra de conexão sugerida pela Resolução n. 126/94 – expoente máximo do incipiente Direito Internacional Privado comunitário a esse respeito –, a apreciação do mérito de uma eventual demanda cabe ao direito do local do fornecimento do produto ou do serviço
ao consumidor.
1.4 A proteção do consumidor no comércio internacional eletrônico
Em meados da década de 1960, com o desenvolvimento de uma infraestrutura tecnológica capaz de suprimir barreiras geográficas e de propiciar a livre circulação de informações por meio de uma rede global de comunicação38, o mundo deparou-se com uma nova realidade no que toca às relações interpessoais. A evolução da Internet, agregando “agilidade e redução de custos na concretização de negócios jurídicos”, combinada com o crescente acesso da população à rede mundial de computadores39, permitiram o surgimento de uma nova modalidade comercial.
O comércio eletrônico, como ficou conhecida, “é caracterizado pela aquisição de produtos e serviços por intermédio de qualquer ferramenta eletrônica que auxilie na concretização do negócio jurídico” (SILVA, 2013, p. 4), incluindo-se, nesse conceito, todos
38 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Xxxx Xxxxx, 2006, p. 176 e 177. « À la fin des années 1960, le ministère de la défense des USA et les chercheurs universitaries américains ressentente le même besoin. Les uns et les autres veulent pouvoir faire circuler des informations, chacun dans sa communauté. Pour le premier, il s’agit de bâtir une infrastructure ‘qui soit capable de résister à une déflagration nucléaire’; pour les autres, il était intéressant de pouvoir se transmettre et s’échanger rapidement des données scientifiques ‘en suprimant les barrières imposées par la géographie’ ».
39 GUILLEMARD, Sylvette. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 181. « Réseaux: à la base se trouve le réseau, soit un lien entre plusieurs ordinateurs, grâce auquel ils échangent des informations. Des auteurs font justement remarquer que ‘[l]e réseau est l’élément névralgique de cet environnement virtuel [...]’».
os meios de telecomunicação em massa40. No que toca à manifestação das atividades comerciais desenvolvidas no ciberespaço, tem-se que elas podem ocorrer entre profissionais
– sejam eles fabricantes, produtores, importadores ou fornecedores – (business to business ou “B-to-B”) ou entre um profissional e um consumidor (business to consumer ou “B-to- C”)41.
A paulatina abertura dos mercados e a massificação do consumo favoreceram o incremento de relações cada vez mais estreitas e diversificadas entre pessoas naturais e jurídicas advindas de diferentes nações, o que, consequentemente, veio a interferir de forma direta no aumento da presença de um elemento de estraneidade nas lides apreciadas pelas instâncias judiciais dos Estados em matéria de Direito do Consumidor. Significa dizer, então, que os novos conflitos passaram a vislumbrar soluções de caráter plurinacional, isto é, que atendam às expectativas de todos os ordenamentos e jurisdições envolvidos, de modo a assegurar a efetiva prestação jurisdicional.
No momento em que as querelas jurídicas se veem órfãs de um resultado uniforme e pacífico que as assegure que a decisão obtida é incontroversa frente a mais de uma legislação, é que se mostra imperiosa uma postura mais proativa do Direito Internacional Privado42. Sob essa perspectiva, tem-se no contrato de consumo internacional concretizado por via eletrônica o seu mais fértil campo de atuação43.
Nesse sentido, ensina Geib (2012, p. 183) que tal instrumento jurídico “nada mais é que um contrato que possui um elemento de estraneidade e que é firmado através do uso da Internet”44, tendo como partes contratantes obrigatórias um profissional – fornecedor de
40 Expressão trazida por Cláudia Lima Marques em Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 35.
41 SILVA, Fagner Gomes da. Código de Defesa do Consumidor e Mercosul: Vicissitudes em sua Coexistência. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 23, set. 2002, p. 6. “Esta prática é denominada de ‘varejo eletrônico’”.
42 GILLIES, Lorna E. Electronic Commerce and International Private Law: A Study of Electronic Consumer Contracts. Oxford: Ashgate, 2008, p. 3. “When a consumer contract is entered into between parties across borders by electronic means and a dispute arises between the parties, the effective application of certain and predictable jurisdiction and choice of law rules to determine which jurisdiction will hear the dispute and what law will apply is crucial”.
43 Cumpre salientar que o contrato daí resultante não é considerado nem uma espécie inovadora nem uma forma atípica de contratação. Pelo contrário, trata-se de mero contrato celebrado à distância, que tem como particularidade, a concretização efetivada por meio eletrônico.
Ver: MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 31.
44 GUILLEMARD, Sylvette. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 242. « Nous appelons ‘contrats électroniques’ les contrats ‘signés’ sous forme électronique, en ligne ou en temps différé, quelle que soit la forme prise par la négociation elle-même ou
bens e serviços – e um consumidor. É válido ressaltar, contudo, que, nesse caso, o consumidor deve ser passivo, isto é, deve “contratar com o fornecedor estrangeiro em seu domicílio, atendendo a uma oferta que lhe é dirigida pelo fornecedor, sem deslocamento físico ao exterior (passive verbraucher) ” (KLAUSNER, 2008, p. 61).
Nesse contexto, verifica-se um “bombardeamento” diário do consumidor mundial com incontáveis ofertas de bens e serviços estrangeiros, sendo o facilitado acesso a eles – realizado diretamente por meio de um simples click do mouse –, o estímulo que faltava para uma participação mais ativa do consumidor no mercado de consumo45. A comodidade que tanto seduz, no entanto, acaba, paradoxalmente, por intensificar a já inerente vulnerabilidade do consumidor.
Assim, inegável é a insegurança gerada pelos contratos de consumo eletrônicos aos consumidores internacionais. “A contratação à distância por si só já dificulta a percepção dos produtos e serviços a serem adquiridos”, porém, em se tratando de relações comerciais estabelecidas via Internet, tais dificuldades são ainda mais agravadas. Além das condições gerais de contratação normalmente impostas ao consumidor pelo fornecedor, a “impossibilidade de análise do produto, [...]; risco de erros e manipulações na concretização ou arrependimento do negócio; [...]; perda do valor pago; demora na entrega do produto ou execução do serviço; riscos de perturbação da privacidade, [...]; uso indevido de dados”; são alguns exemplos dos riscos a que se expõem os consumidores ao recorrerem a este tipo de comércio (SILVA, 2013, p. 5)46.
Para Marques (2004, p. 72), a “capacidade de controle [do consumidor] é diminuída, pois é guiado por links e conexões, recebendo as informações que desejam lhe fornecer, limitando sua capacidade de escolha ao extremo déficit informacional”. Reforça, ainda, Gillies (2008, p. 1) que “a extensão da proteção substantiva do consumidor para o ambiente eletrônico é necessária devido à ‘desigualdade do poder de negociação’
l’exécution de ce contrat. Tout en adoptant cette définition, nous privilégions l’expression ‘contrat cyberspatial’, plutôt que numérique ou électronique, afin de mettre en relief non pas le type de technique utilisée mais le fait que les relations d’affaire se nouent dans l’espace virtuel ».
45 Acrescenta GUILLEMARD, Sylvette. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 228. « Du côté du consommateur, le commerce en ligne présente plusieurs avantages. Il reste chez lui et évite la cohue des centres commerciaux, ayant tout facilement à portée de la main, à toute heure du jour ou de la nuit, 365 jours par an. Et il peut acheter à peu près n’importe quel bien ou service, assis confortablement, en se contentant de cliquer ».
46 Ver: GILLIES, Lorna E. Electronic Commerce and International Private Law: A Study of Electronic Consumer Contracts. Oxford: Ashgate, 2008, p. 1; e DEMOULIN, Marie; GOBERT, Didier; MONTERO, Etienne. Commerce électronique de la théorie à la pratique. Bruxelas : Bruylant, 2003, p. 2.
experimentada pelos consumidores na contratação por via eletrônica com os vendedores em jurisdições estrangeiras”47.
Por outro lado, argumenta Coelho (2006) que “a exposição do consumidor a constrangimentos é visivelmente maior no comércio físico do que no eletrônico”, uma vez que ao realizar uma compra via Internet, a tranquilidade da pesquisa por melhores preços e condições e a análise do próprio produto restam preservadas. “Sua vulnerabilidade, nesse sentido, tende a ser um tanto menor neste último ambiente de consumo”.
A tendência mundial no âmbito da proteção do consumidor, por sua vez, tem sido, desde o princípio da atividade comercial online, a favor da necessidade de regulamentação das operações e disputas comerciais eletrônicas através da implementação de convenções e leis-modelo relativas ao comércio eletrônico no plano internacional, bem como do reforço de legislações específicas a esse respeito a nível nacional. Nesse diapasão, tais instrumentos normativos contêm regras protetivas aplicáveis em diferentes jurisdições, a fim de propiciar “uma extensão da política de defesa do consumidor, assegurando que o consumidor que tirou proveito da contratação com um fornecedor estrangeiro via um sítio eletrônico, ainda possa contar com o nível de proteção proporcionado pela sua própria lei” (GILLIES, 2008, p. 1)48.
Com a globalização, a internacionalização das relações privadas tornou-se uma realidade caracterizada pela pluralidade, velocidade, fluidez e ubiquidade49, estando essa
47 Texto original: “The extension of substantive consumer protection to the electronic environment is necessary due to the ‘inequality of bargaining power’ experienced by consumers when contracting by electronic means with business sellers in foreign jurisdictions”.
48 Texto original: “In the context of consumer protection these model laws, frameworks and statutes contain specific rules to regulate commercial activity between businesses and consumers in different jurisdictions in order to provide an extension of consumer protection policy by ensuring that the consumer who takes advantage of contracting with a foreign business via a web site can still rely on the level of protection provided by his own law”.
49 GUILLEMARD, Sylvette. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 187 e 188. « L’ubiquité est la ‘possibilité d’être présent en plusieurs lieux à la fois’. Dans le monde virtuel, l’ubiquité se manifeste de différentes façons. D’une part, il arrive parfois qu’une même information ou un même ensemble d’informations soient disponibles en même temps à plusieurs endroits sur le réseau [...]. D’autre part, une même information peut se trouver, au gré des consultations, simultanément à Paris et au Québec, qu’il s’agisse d’une page Web ou du texte d’une lettre expédiée par messagerie électronique à plusieurs destinataires ».
última, no contexto virtual, intimamente ligada à noção de délocalisation50. Ensina Guillemard (2006, p. 189), então, que:
Com efeito, dizer que todas as informações são acessíveis simultaneamente em diversos ‘lugares’ significa que elas estão disponíveis ao mesmo tempo no ciberespaço. Elas circulam de uma vez só por tudo e sem destino certo, uma vez que, essencialmente, a transmissão digital é efetuada por meio da rede e não por via terrestre. E, do ponto de vista da transmissão de dados digitais, o fluxo de informação ignora as fronteiras terrestres. Importa somente a localização das máquinas no espaço virtual, localização determinada pelo sistema em função do endereço IP51.
Nesse sentido, tem-se que um dos grandes desafios gerados pelo comércio eletrônico é a desmaterialização da localização das partes e do lugar onde suas atividades contratuais ocorrem. Ao mesmo tempo em que a ausência de materialização oferece ao mercado de consumo inúmeras vantagens, como uma maior rapidez, flexibilidade e facilidade de acesso e a diminuição considerável dos problemas advindos da estocagem e dos custos de produção; por outro lado, torna-se bem mais difícil precisar qual é a “proteção jurídica substantiva”52 mais adequada a ser garantida ao consumidor em cada caso.
A desmaterialização, para a maior parte da doutrina especializada, “pode ser definida como o processo pelo qual a manipulação de papel é suprimida”. Entretanto, no entender de Guillermard (2006, p. 191), “seria melhor evitar falar de ausência de ‘materialização’ e preferir a expressão ‘ausência de tangibilidade’”53.
No mundo virtual, as partes podem celebrar contratos em que a sua execução, ou ao menos uma parte dela, seja realizada de modo tangível, como nas vendas de bens materiais; ou em que todas as fases sejam concluídas online, como nas vendas de bens imateriais. Sob essa ótica, identifica-se, no primeiro caso, o contrato eletrônico como apenas uma variante do contrato à distância, em que a Internet substitui o telefone, por exemplo. Já
50 Expressão trazida por Sylvette Guillemard em Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 187.
51 Texto original: « En effet, dire que toutes les informations sont accessibles simultanément en divers ‘lieux’ signifie qu’elles sont disponibles en même temps dans le cyberespace. Elles circulent à la fois partout et en aucun endroit déterminé puisque par essence la transmission numérique s’effectue par le biais du réseau et non par voie terrestre. Et, du point de vue de la transmission des données numérisées, le flux d’information ignore les frontières terrestres. Seule importe la localisation des machines dans l’espace virtuel, localisation déterminée par le système en fonction de l’adresse IP.
52 Expressão trazida por Lorna E. Gillies em Electronic Commerce and International Private Law: A Study of Electronic Consumer Contracts. Oxford: Ashgate, 2008, p. 2.
53 Texto original: « La dématérialisation ‘peut être définie comme le processus par lequel la manipulation de papier est supprimée’. [...] Il vaudrait mieux éviter de parler d’absence de ‘matérialisation’ pour préférer l’expression ‘absence de tangibilité’ ».
no segundo caso, concede-se ao contrato eletrônico uma posição de real novidade dentre os demais, uma vez que se trata de operação comercial inteiramente desmaterializada54.
Nessa toada, destaca-se, ainda, a despersonalização contratual, a qual pode ser considerada, também, uma consequência inerente à dificuldade de situação, no espaço, das relações comerciais estabelecidas por via eletrônica. Aliado a ela, tem-se o sistema de produção e distribuição em massa, contribuinte direto para o aparecimento dos métodos de contratação “standard”55 – contratos de adesão e condições gerais dos contratos – predominantes, atualmente, no cenário negocial.
A esse respeito, salienta Geib (2012, p. 186) que:
O que se percebe é que o consumidor, simplesmente, adere às cláusulas preestabelecidas, acreditando na ética e na boa-fé do fornecedor. Todavia, em muitos casos, esta preelaboração das cláusulas contratuais visa, exclusivamente, o favorecimento do fornecedor. Muitos destes contratos, inclusive, possuem diversas cláusulas abusivas.
De um modo geral, em matéria de contratos, as regras de Direito Internacional Privado privilegiam a autonomia das partes na definição dos termos e interesses de seus acordos. Todavia, quando a apreciação recai sobre os contratos eletrônicos de consumo, uma atenção especial deve ser dada a duas das quatro condições essenciais de validade de um contrato, quais sejam: a capacidade e o consentimento56.
Assim, ainda que, teoricamente, a celebração de um contrato eletrônico desse tipo propicie a ambas as partes o exercício de um papel mais dinâmico, a vulnerabilidade do consumidor resta latente. O entrave linguístico muitas vezes existente entre ele e o
54 GUILLEMARD, Sylvette. Le droit international privé face au contrat de vente cyberspatial. Quebec: Éditions Yvon Blais, 2006, p. 198 e 199. « Dans le cyberespace, les parties peuvent conclure des contrats dont l’exécution, ou une partie au moins, se fera de façon tangible. On pense ici aux contrats ayant pour objet la vente de biens matériels. D’autres contrats portent en revanche sur la vente de biens dématérialisés – logiciels, photos et ouvrages numérisés, pour ne citer qu’eux – vente exécutée entièrement en ligne. Le premier cas n’est qu’une variante d’un nouveau type des contrats à distance les plus classiques : l’internet remplace le téléphone [...] mais aussi la commande papier telle qu’elle se fait de longue date à partir d’un catalogue de vente par correspondance par exemple [...] Le second cas – de totale dématérialisation – fait, en revanche, figure de réelle nouveauté.
Le commerce par voie numérique est mieux adapté aux sexteurs où l’on vend des ‘biens non tangibles’ que des objets palpables ».
55 Expressão trazida por António Pinto Monteiro em Contratos de adesão/Cláusulas contratuais gerais. Estudos de Direito do Consumidor. Coimbra, v. 3, 2001, p. 133. “Dir-se-á que à produção e distribuição ‘standard’ corresponde, no plano negocial, a contratação ‘standard’: produção em massa, distribuição em cadeia, contratos em série. São necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia que levam as empresas a recorrer a este modo de contratar, eliminando ou esvaziando consideravelmente as negociações prévias entre as partes”.
56 Nesse sentido, ver: MONTEIRO, António Pinto. O novo regime da contratação à distância: breve apresentação. Estudos de Direito do Consumidor. Coimbra, n. 9, 2015, p. 16.
fornecedor, a insuficiência de informação adequada sobre o produto ou serviço ofertado57 e o “desconhecimento da legislação aplicável à relação de consumo ou à eventual demanda surgida com o fornecedor, somado à complexidade do Direito Internacional Privado e às questões de acesso à Justiça” (GEIB, 2012, p. 188), acarretam insegurança e até mesmo prejuízo efetivo ao consumidor no mercado internacional.
No que se refere aos encargos assumidos pelo consumidor no caso de vir a enfrentar o fornecedor em tribunal internacional:
Não há dúvida que o baixo valor da transação inviabiliza o acesso à Justiça. A lide fica reprimida, pois o consumidor não tem condições de assumir os gastos do processo, seja para reclamar ou para procurar novamente o fornecedor, ou ainda para fazer valer a sua garantia. Essa é uma das grandes diferenças de perspectivas entre negócios internacionais entre comerciantes e aqueles que envolvem consumidores. (ARAÚJO, 2008, p. 388)
Outra especificidade do consumo internacional refere-se à descontinuidade das relações consumeristas. Os contratos internacionais de consumo eletrônicos são, de forma geral, efêmeros, não tendo como objetivo precípuo a consolidação de laços duradouros de cooperação entre as partes. Portanto, hipossuficiente mantém-se o consumidor frente ao fornecedor e aos riscos do negócio jurídico, dos quais, na maioria das vezes, não chega a sequer ter ciência. A confiança do consumidor na boa-fé do fornecedor permanece a ser, por conseguinte, a grande força motriz do mercado de consumo.
Contudo, a ignorância do consumidor no tocante à idoneidade do fornecedor e à inviolabilidade de seu sítio eletrônico e a sua consequente insegurança ao efetuar o pagamento de compras de produtos estrangeiros via Internet representam os maiores empecilhos na efetivação do consumo online. A incerteza quanto aos direitos do consumidor aplicáveis à pós-venda é outra agravante de tal hesitação, uma vez que os referidos direitos podem estar indisponíveis no país do domicílio do consumidor ou, simplesmente, ser inviável o seu usufruto, deixando o consumidor, em quaisquer das duas hipóteses, em situação de desamparo.
Diante disso, “coube ao Estado intervir nas relações de consumo, reduzindo o espaço para a autonomia da vontade e impondo normas imperativas de maneira a restabelecer o equilíbrio e a igualdade de forças nas relações entre consumidores e
57 Como preço, qualidade, riscos, questões cambiais, condições de pagamento, garantia, entre outros.
fornecedores” (GEIB, 2012, p.188)58. No entanto, não obstante a crescente importância do mundo virtual na movimentação do mercado de consumo e a quantidade cada vez maior de demandas judiciais daí advindas, tanto as atuais regras de conexão do Direito Internacional Privado quanto a legislação internacional de defesa do consumidor no comércio eletrônico ainda se mostram insuficientes.
Tendo isso em mente, “várias entidades revelaram preocupações semelhantes e adoptaram documentos que, não tendo embora carácter vinculativo, visam regulamentar estas questões, assumindo, em alguns casos, indicações específicas de protecção dos consumidores” (OLIVEIRA, 2003, p. 4). Como exemplos, é válido citar: a Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) sobre Comércio Eletrônico59, de 16 de dezembro de 1996; a Recomendação do Conselho da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE) relativa às linhas diretrizes para a proteção do consumidor no contexto do comércio electrónico, de 8 de dezembro de 1999; e as Diretrizes da Câmara de Comércio Internacional (CCI) sobre Publicidade e Marketing na Internet, de 2 de abril de 199860.
No plano regional, tanto a União Europeia quanto o Mercosul se mobilizaram, ainda que em intensidades diferentes, em prol de que o déficit legislativo não perdurasse. No bloco europeu, destacam-se: a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à proteção dos consumidores em matéria de contratos celebrados à distância, de 20 de maio de 1997; a Diretiva 1999/93/CE do Parlamento e do Conselho relativa a um quadro legal
58 TEIXEIRA, Pedro Gustavo Magalhães do Nascimento. A questão da protecção dos consumidores nos contratos plurilocalizados. Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, v. 1, abril. 1994, p. 201. Disponível em:
<http://www.oa.pt/Publicacoes/revista/default.aspx?idc=1&idsc=2691&volumeID=54701&anoID=54695>. “É possível ousadamente, afirmar que o consumidor investe com a sua liberdade negocial de modelar o conteúdo de determinado contrato particular corrente, na eficácia do mercado, sabendo que os seus interesses estão salvaguardados pelo equilíbrio da cooperação entre as forças do mercado, cuja quebra por parte de determinada empresa poderá representar o suicídio econômico (surge como característica da comunidade interactiva de consumidores – e não de um consumidor – o facto de ser um countervailing power). Além disso, não parece necessário ao indivíduo ter uma esfera de liberdade necessária e útil para cada tipo de relação contratual, e uma relação empresa/consumidor de tipo corrente e instantânea no aspecto de aquisição do produto não é ideal para pré-negociações com o fim de modelar o conteúdo do contrato, e pelo que já foi descrito, nem é do interesse do consumidor, devendo-se entender, assim, a limitação da liberdade negocial do consumidor”.
59 Resolução 51/162 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.
OLIVEIRA, Elsa Dias. Tutela do Consumidor na Internet. 2003. Disponível em:
<http://www.apdi.pt/APDI/DOUTRINA/Tutela%20do%20Consumidor%20na%20Internet.pdf>. “Embora, na sua elaboração, não se tenham verificado preocupações com a protecção dos consumidores, nada justifica que a estes se não aplique [...]”.
60 ICC Guidelines on Advertising and Marketing on the Internet.
comunitário para assinaturas eletrônicas, de 13 de dezembro de 1999; e a Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, de 8 de junho de 200061. Na organização mercosulina, por sua vez, tem-se: a Resolução 123/96, “que traz os conceitos básicos da relação de consumo, como consumidor, fornecedor, produtos e serviços”; a Resolução 124/96, “que elenca, em seu anexo, os direitos básicos dos consumidores”; a Resolução 125/96, “que defende a proteção à saúde e à segurança do consumidor”; a Resolução 126/96, “que estabeleceu standards mínimos de proteção ao consumidor no que se refere à publicidade”; e a Resolução 127/9662, “que dispõe sobre a garantia contratual na relação de consumo”63.
Nessa toada, tem-se que a vulnerabilidade do consumidor associada à existência, à operação e ao efeito do tradicional elemento de conexão aplicável a disputas envolvendo o comércio eletrônico, levanta, ainda, duas importantes questões teórico-práticas: a primeira, referente à qual será a jurisdição competente para dirimir um conflito oriundo de uma relação comercial online entre um consumidor de bens e serviços e um fornecedor estrangeiro, e, a segunda, relativa à qual lei deve ser aplicada pelo tribunal competente64.
61 Com especial ênfase no comércio eletrônico.
62 Foi substituída pela Resolução 42/98, porém o seu conteúdo permaneceu inalterado.
63 Todas as resoluções datam de 13 de dezembro de 1996.
CARVALHO, Andréa Benneti. Proteção Jurídica ao Consumidor no Mercosul. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun. 2005, p. 125, 126 e 127. “No ano de 1996, o GMC aprovou cinco capítulos do que viria a ser o Regulamento Comum sobre Defesa do Consumidor no Mercosul, sob a forma de Resoluções. [...]. Note-se que todas as Resoluções adotam fórmula minimalista, afirmando, em todos os considerandos, que, em sendo a harmonização parcial, na medida em que se avançar no processo, os conceitos poderão ser ampliados e/ ou complementados”.
64 GILLIES, Lorna E. Electronic Commerce and International Private Law: A Study of Electronic Consumer Contracts. Oxford: Ashgate, 2008, p. 2. “The existence, operation and effect of traditional connecting factor to electronic consumer contract disputes raises two important theoretical and practical questions – first, in which jurisdiction should consumers who buy goods online from foreign sellers seek redress and second, what law should the court apply?”
2 A DETERMINAÇÃO DA JURISDIÇÃO COMPETENTE AOS CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO: AS EXPERIÊNCIAS EUROPEIA E MERCOSULINA
Haja vista as particularidades inerentes aos contratos internacionais eletrônicos de consumo, em especial a desmaterialização da localização das partes e do lugar onde suas atividades contratuais ocorrem, bem como a sua qualificação como principal expoente do comércio à distância atual, mister é resguardar, ao consumidor, uma proteção material e jurídica adequada e, no mínimo, equivalente à engendrada pelas suas próprias jurisdição e lei. Trata-se de consubstanciar a premissa na qual está amparado o objetivo precípuo do Direito Internacional Privado, isto é, o “‘desejo de fazer justiça’ às partes envolvidas em um litígio transfronteiriço”65, pressupondo, nesse caso, a “debilidade estrutural”66 dos consumidores.
Em termos de jurisdição, preleciona TANG (2009, p. 11) que:
[...] o consumidor tem sempre o direito de processar ou ser processado no tribunal de seu domicílio, e o efeito de uma cláusula de jurisdição é geralmente restrita; [...]. Exigir que os consumidores litiguem no exterior pode levar a dificuldades processuais e a desvantagens que poderiam privá-los de seu direito de acesso à justiça. No entanto, é certamente errado presumir que, dadas as regras de competência protetivas, todos os obstáculos processuais para o acesso transfronteiriço à justiça são removidos67.
65 GILLIES, Lorna E. Electronic Commerce and International Private Law: A Study of Electronic Consumer Contracts. Oxford: Ashgate, 2008, p. 3. “The aim of international private law is premised on a ‘desire to do justice’ to the parties involved in a cross-border dispute”
GEIB, Geovana. A necessidade de regras específicas de Direito Internacional Privado no contrato de consumo internacional eletrônico – principais aspectos quanto ao foro competente e à lei aplicável. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, 2012, p. 190 e 191. “Nos contratos internacionais entre profissionais, a clausula de eleição do foro é a extensão da autonomia de vontade no que tange à competência para processar e julgar a lide advinda do contrato. Tal clausula está inserida no âmbito da liberdade contratual e na autonomia de vontade. O princípio da liberdade de eleição do foro tem por efeito a derrogação da competência internacional. Essa escolha estaria sujeita ao limite já estabelecido pela autonomia: a ordem pública.
Nos contratos internacionais entre profissionais, o que vigora é o princípio da autonomia de vontade das partes contratantes. Quando firmam o contrato internacional, os contratantes podem eleger o foro que mais lhe convenha para dirimir eventuais controvérsias, sem implicar na vinculação da lei aplicável, já que, conforme mencionado, se tratam de clausulas distintas.
Deste modo, se caso os contratantes elegerem um foro competente, nada os impede de definir que deva incidir sobre aquele contrato a lei aplicável de outro pais. Entretanto, caso a lei do foro escolhido proíba a aplicação da autonomia de vontade, a clausula da lei aplicável poderá ser invalidada. As consequências de determinada escolha de foro influem na clausula de lei aplicável”.
66 Expressão trazida por Eduardo Antônio Klausner em Reflexões sobre a proteção do consumidor brasileiro nas relações internacionais de consumo. Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 42, jul/set. 2008, p. 63.
67 Texto original: “In terms of jurisdiction, a consumer is always entitled to sue or to be sued in the court of his domicile, and the effect of a jurisdiction clause is generally restricted; […]. Requiring consumers to sue abroad might lead to procedural difficulties and disadvantages which could deprive them of their right to access to justice. However, it is certainly wrong to presume that given the protective jurisdiction rules, all procedural obstacles to cross-border access to justice are removed”.
Nesse diapasão, a doutrina especializada destaca duas categorias distintas de relações de consumo transfronteiriço estabelecidas online: a primeira, composta por contratos de consumo especiais de alto valor agregado, e a segunda, pelos ditos contratos de consumo gerais. Usualmente, é a essa última categoria, a qual inclui a maior parte das transações consumeristas, que se concentram os maiores impasses.
No caso da contratação consumerista especial, levando em conta que o valor da causa ultrapassa significativamente o das custas processuais, ainda que “o consumidor não tenha direito de processar a empresa em casa, poucos iriam desistir simplesmente por causa das dificuldades processuais de litigar no exterior” (TANG, 2009, p. 12)68. Por outro lado, quando se trata dos contratos de consumo gerais, o cenário é distinto. O valor da causa é pequeno e normalmente bem inferior aos gastos que porventura o consumidor teria ao optar pela litigância internacional para resolver as querelas dali advindas.
Interessante é observar que esse não é um problema exclusivo das transações transfronteiriças, sendo também verificado, de modo proporcional, nas causas judiciais domésticas envolvendo contratos de consumo de pequena monta. “O máximo que o direito internacional privado protetivo pode fazer é colocar o consumidor em uma posição não inferior à que teria em uma transação doméstica” (TANG, 2009, p. 12)69.
Haja vista as regras de conexão de Direito Internacional Privado não serem, de um modo geral, adaptadas aos contratos de consumo, o célebre jurista alemão Erik Jayme (2005, p. 142 e 143) sugere duas soluções para o impasse: a primeira refere-se à restrição da competência judiciária ao domicílio do consumidor, e a segunda propõe a criação de uma nova “espécie” de magistrado, chamado de juiz virtual internacional, o qual tornar- se-á competente para julgar os litígios advindos de negócios estabelecidos online. “O usuário da Internet poderia recorrer a este juiz através do seu computador. Assemelhar-se-ia a um tribunal arbitral competente de acordo com as cláusulas compromissórias estipuladas pelas partes. As partes permaneceriam online, sem dar preferência a um juiz territorial. Presenciaríamos uma lex informática que se tornaria a lei aplicável a estes litígios, determinadas através de um código de conduta dos usuários da Internet”.
68 Texto original: “Even if the consumer has no right to sue the company at home, few would give up simply because of the procedural difficulties of suing abroad”.
69 Texto original: “The most that protective private international law can do is to put consumers in a position no worse than in a domestic transaction”.
Dolinger (1997, p. 261) é a favor de estender o benefício assegurado pela norma de competência interna às hipóteses de pleitos extraterritorias, utilizando-se do então privilégio concedido à mulher casada, pelo artigo 100, inciso I, do antigo CPC brasileiro, de processar e ser processada em seu país, como exemplo da pertinência de se assegurar legalmente tal foro privilegiado, também, em caso de litígio internacional. “O raciocínio realizado por Jacob Dolinger deve ser aplicado ao consumidor. O consumidor é vulnerável na relação de consumo e hipossuficiente quando precisa exercer seus direitos; e, por isso, a lei assegura a ele o privilégio de litigar em seu domicílio. Como necessita de um foro privilegiado nas lides sustentadas dentro do País, com mais razão precisa dessa proteção nos litígios internacionais, em que exercer seus direitos será ainda mais difícil, motivo pelo qual se deve considerar a norma que assegura em favor do consumidor a competência privilegiada do foro de seu domicílio como também determinante da jurisdição internacional” (KLAUSNER, 2008, p. 64).
2.1 O alvo prático das regras de proteção no comércio eletrônico
2.1.1 O Foro privilegiado do consumidor na União Europeia – Regulamento Bruxelas I
A natureza ubiquitária da Internet projeta-se diretamente nos contratos de consumo celebrados em linha a partir do momento em que uma querela entrepartes é instaurada tendo- os como objeto. Com o intuito, então, de terem resguardados os seus interesses no caso de uma eventual disputa judicial, é comum às partes a aposição, de plano, nos contratos internacionais, de cláusulas atributivas de jurisdição, tendo nos Princípios da Liberdade Contratual e da Autonomia da Vontade os seus maiores sustentáculos.
O Regulamento (CE) 44/2001 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria civil e comercial – Bruxelas I70, expoente máximo do acquis communautaire na construção jurídica da liberdade de circulação das decisões judiciais nos domínios cível e comercial71, inclusive, valida
70 Disponível em:
<http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32001R0044&from=PT>.
O advento do novo Regulamento e a adesão dos Estados-membros às suas disposições suplantou os ditames constantes da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial de 27 de setembro de 1968, salvo nas relações com a Dinamarca e com os territórios dos Estados-Membros excluídos do presente Regulamento por força do artigo 299º do Tratado (Considerandos n. 5, 22 e 23).
“Pois bem, a Comunidade Europeia e a Dinamarca adotaram, em 19 de outubro de 2005, o Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judicial, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial para efeito de estender a aplicação das disposições do Regulamento
n. 44/2001 e as suas normas de aplicação nas relações entre a Comunidade Europeia e a Dinamarca” (GARRIGA, 2009, p. 166).
A Convenção de Lugano relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial de 16 de Setembro de 1988 “não foi afectada pela entrada em vigor do citado Regulamento já que é aplicável nas relações entre os Estados comunitários e os Estados não comunitários que são parte dessa Convenção: Islândia, Noruega e Suíça” (OLIVEIRA, 2002, p. 234).
71 Considerando n. 6.
BRAND, Ronald A. Evolving Competence for Private International Law in Europe: The External Effects of Internal Developments. In.: New Instruments of Private International Law. Milão: Giuffré, 2009, p. 164 e
165. “Three specific developments provide particular focus on the evolution of competence for private international law matters in the EU. The first came in the treaty process by which the EU has developed, and is played out in the package of Regulation that has been promulgated pursuant to the expanded authority of Community institutions resulting from the Treaty of Amsterdam. […].
The second development came through judicial decisions, culminating in the decision of the European Court of Justice in the Lugano Convention Opinion, issued on February 7, 2006. That opinion applied the ERTA principle of progressive parallel external competence to Art. 65 of the EC Treaty, and held that the Community has exclusive competence to set the rules for jurisdiction and the recognition and enforcement of judgments among Member States.
The third development occurred on April 3, 2007, when the European Community became a member of The Hague Conference on PIL.
[…] These developments raise both internal competence questions for those within Europe who are affected by this evolutionary transfer of competence, as well external competence questions for other States engaged in the global development of private international law.
expressamente tal aspiração das partes no número 1 de seu artigo 23º, o qual determina ser o tribunal (ou os tribunais) de um Estado-membro por elas escolhido, o único competente para “decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica”, sendo tal competência exclusiva, salvo acordo em contrário72. Acrescenta, ainda, que tal convenção interpartes deve ser celebrada por “escrito”, “verbalmente com confirmação escrita” ou “em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si”; admitindo, também, que a comunicação seja feita por via eletrônica, desde que permita um registro duradouro do pacto (art. 23º, 2).
Contudo, “em matéria de contrato celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional73, a seguir denominada ‘o consumidor’74”, a competência será determinada pela Seção 4 do Regulamento (art. 15º), sendo a regra a de que “o consumidor pode intentar uma acção contra
[…] The transfer of competence for private international law rules to Community institutions is in some ways a natural result of the maturation of basic Community trade law competence”.
72 TANG, Zheng Sophia. Electronic Consumer Contracts in the Conflict of Laws. Oxford: Hart Publishing, 2009, p. 40. “The basic jurisdiction rule in the Brussels I Regulation is founded on the doctrine of actor sequitur forum rei. It has provided that ‘jurisdiction is generally based on the defendant’s domicile and jurisdiction must always be available on this ground save in a few well-defined situations’”.
73 MAGNUS, Ulrich; MANKOWSKI, Peter. European Commentaries on Private International Law: Brussels I Regulation. 2ª Ed. Munique: SELP, 2012, p. 370 e 373. “The concept of a contract has caused some difficulties with respect to Section 4 of the Brussels I Regulation. The ECJ has been faced with three requests for interpretation of the concept in Gabriel [Rudolf Gabriel, Case C-96/00, 2002, ecr i-6367, i-6399 para. 36], in Engler [Petra Engler v. Janus Versand GmbH, Case C-27/02, 2005, ECR I-481] and Ilsinger [Remate Ilsinger v. Martin Dreschers, acting as administrator in the insolvency of Schlank & Schick GmbH, Case C- 180/06, 2009, ECR I-3961]. […] The Court added that as regards that condition, it is, of course, conceivable, in the context of (1)(c), that one of the parties merely indicates its acceptance, without assuming itself any legal obligation to the other party to the contract. However, it is necessary, for a contract to exist within the meaning of that provision, that the latter party should assume such a legal obligation by submitting a firm offer which is sufficiently clear and precise with regard to its object and scope as to give rise to a link of a contractual nature as referred to by the provision”.
74 LEIN, Eva; DICKINSON, Andrew. The Brussels I Regulation Recast. Oxford University Press: Oxford, 2015, p. 218. “According to the CJEU, the concept of ‘consumer’ must be given a narrow interpretation, as the provisions of Section 4 derogate from the general principles of the Recast Regulation, namely the jurisdiction of the courts at the defendant’s domicile. The Court thus held that de protective rules only refer to a private final consumer. By contrast, a claimant having concluded a contract for the performance of a future, rather than current, professional activity or trade cannot be regarded as a consumer. […] On the other hand, if a contract is truly concluded for a private purpose, the nature or value of that contract is irrelevant: millionaires resident in the EU are, in principle, as much entitled to the benefit of Section 4 as those possessing more limited resources. […] The definition of ‘consumer’, based on the purpose of the contract, implies that one and the same person may be regarded as a consumer in certain contracts and as a trader in others, depending on the purpose of each contract at issue. […] It is worth noting that if the trader does not know (and has no reason to know) that the other party to the contract is acting in a private capacity, the provisions of Section 4 are not applicable. […] The burden of proof regarding whether a person is a ‘consumer’ is on the party seeking to benefit from the protective rules of Section 4. In particular, when the contract had a dual purpose, it is for the person relying of Section 4 to show that the business use was negligible. On the other hand, the trader must prove allegations that he had a legitimate belief that the contract was concluded for a non-private purpose”.
a outra parte no contrato, quer perante os tribunais do Estado-Membro em cujo território estiver domiciliada essa parte, quer perante o tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio”, mas, por sua vez, só poderá ser demandado perante os tribunais do Estado- membro em cujo território estiver domiciliado (art. 16º, 1 e 2)75. Verifica-se aí uma legítima limitação dos princípios supramencionados por meio da ascensão de uma forte tendência de proteger o consumidor enquanto parte mais fraca nas relações transnacionais, tendência essa inerente à própria gênese da normativa (Considerando n. 13).
Nesse sentido, apropriado e tempestivo continua a ser o posicionamento do Tribunal de Justiça da União Europeia exarado no Processo C-89/71, Shearson x TVB (1993), Col. I-139, parágrafo 18, no âmbito interpretativo da anterior Convenção de Bruxelas, em que afirma ser importante:
[...] reconhecer, [...], que o regime especial instituído pelos artigos 13° e seguintes da convenção é inspirado pela preocupação de proteger o consumidor enquanto parte do contrato reputada economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o seu co-contratante e que, por isso, não deve ser desencorajado de actuar judicialmente pelo facto de ser obrigado a intentar uma acção junto dos órgãos jurisdicionais do Estado em cujo território o seu co-contratante tem o seu domicílio76.
75 TANG, Zheng Sophia. Private International Law in Consumer Contracts: A European Perspective. Journal of Private International Law, v. .6, n..1, 2010, p. 242. “It has been suggested by the European Commission in the Green Paper that protective jurisdiction should not be used in representative actions. The suggestion is probably right, as protective jurisdiction enables an individual consumer to sue or to be sued always in his domicile. This benefit is not compatible with the nature of cross-border collective redress, where consumers may come from different Member States. Furthermore, collective redress changes the presumed inequality of litigation power between consumers and businesses. Where a large number of consumers bring actions together, or an association or a public authority represents consumers, against one business defendant, the collective strength of the claimants largely increases the litigation power of the traditional ‘weaker’ party, which is sufficient reason to abandon the protective jurisdiction in collective redress”.
76 Disponível em:
<http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=9ea7d2dc30d59f80e9470d34458f890ef72f8078cb44.e34 KaxiLc3qMb40Rch0SaxuSc310?text=&docid=97667&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=fir st&part=1&cid=693152>.
No mesmo sentido, manifesta-se, por exemplo, Rui Moura Ramos (1997, p. 356) ao analisar a influência dos benefícios trazidos pela então Convenção de Bruxelas no direito interno português (art. 19, g,, do DL 446/85): “proíbe a electio judicis quando ela envolva graves inconvenientes para uma das partes sem que os interesses da outra o justifiquem (não leva a palma em vantagens à prevista na Convenção de Bruxelas que, nos contratos em que intervém o consumidor ou o segurado, apenas admite a estipulação convencional de competência quando ela é posterior ao litígio, aumenta o leque de escolhas oferecidas à parte mais fraca ou quando o pacto atribui competência jurisdicional aos tribunais dos Estados onde residem ambas as partes, a menos que a lei desse estado a não aceite”.
Ver, ainda: PINHEIRO, Luís de Lima. Direito aplicável aos contratos com consumidores. Estudos do Direito do Consumo I, 2002, p. 94; VICENTE, Dário Moura. A competência judiciária em matéria de conflitos de consumo nas Convenções de Bruxelas e de Lugano: Regime Vigente e Perspectivas de Reforma. Estudos do Instituto de Direito do Consumo, I, 2002, p. 123.
No entanto, alerta Tang (2009, p. 40) que “a jurisdição de base protetiva não deve ser aplicada a um nível que irá prejudicar as atividades comerciais e lesar a economia”77. Sob essa perspectiva, “argumentou-se que esta solução poderia paralisar o comércio eletrônico, uma vez que o exercício de atividades comerciais ou profissionais através da Internet ficaria potencialmente sujeito a litígios em todos os Estados-membros” (PEREIRA, 2001, p. 288). Assim, “a fim de alcançar um equilíbrio razoável entre a defesa do consumidor e a promoção dos negócios, o Regulamento Bruxelas I limita a aplicação das regras de competência protetivas, fornecendo determinados pré-requisitos nos termos do artigo 15” (TANG, 2009, p. 40 e 41)78.
Nesse diapasão, tem-se que o regime especial de competência em matéria de contratos celebrados por consumidores somente será aplicável “quando se trate de venda, a prestações, de bens móveis corpóreos”; “de empréstimo a prestações ou de outra operação de crédito relacionados com o financiamento da venda de tais bens”; ou de qualquer outra modalidade contratual concluída “com uma pessoa que tem actividade comercial ou profissional no Estado-Membro do domicílio do consumidor ou dirige essa actividade, por quaisquer meios, a esse Estado-Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado-membro, e o dito contrato seja abrangido por essa atividade” (art. 15º, 1, a, b e c)79.
No que se refere ao disposto nas alíneas a e b do número 1 do artigo 15º do Regulamento e o seu alcance prático no comércio eletrônico, critica-se a escolha de apenas uma pequena gama de contratos de consumo celebrados online para ser agraciada por seu manto protetor, bem como a leve imprecisão e dubiedade que paira sobre os conceitos de “bens” e “serviços” quando adaptados à realidade particular do e-commerce. Além disso, entende-se desnecessário restringir a proteção conferida ao consumidor que negocia a crédito aos contratos de compra e venda. Tang (2009, p. 48) defende que “não há razão suficiente para excluir um contrato de prestação de serviços a crédito, o que também é comum em e-
77 Texto original: “The protective jurisdiction basis should not be applied to a level that will prejudice business activities and damage the economy”.
78 Texto original: “In order to achieve a reasonable balance between consumer protection and business promotion, the Brussels I Regulation limits the application of the protective jurisdiction rules by providing certain pre-requisites under Article 15”.
79 PEREIRA, Alexandre Dias. Os Pactos Atributivos de Jurisdição nos contratos eletrônicos de consumo. Revista Estudos do Direito do Consumidor, n. 3, Coimbra, 2001, p. 285. “Ao referir que essa atividade pode ser dirigida ‘por quaisquer meios’ parece o Regulamento abranger também o comércio electrónico na Internet”.
commerce, do mesmo nível de proteção que receberia um contrato de venda de bens em condições de crédito parcelado”80.
A alínea c do número 1 do artigo 15º, por sua vez, traz até uma proposta interessante ao alargar o âmbito de proteção a todos os outros consumidores contratantes, desvinculando- o do objeto do contrato por eles concluído e seguindo em sentido oposto ao adotado por suas antecessoras. No entanto, o grande dilema que norteia tal disposição incide sobre as duas situações alternativas de enquadramento de um contrato na proteção engendrada, no contexto do comércio eletrônico.
Uma resolução cabível seria a de considerar que a condição de o fornecedor ter atividade comercial ou profissional no domicílio do consumidor faz alusão ao comércio tradicional e a de o fornecedor dirigir atividades comerciais ou profissionais para o domicílio do consumidor ou para demais Estados, estando aquele englobado, seria especificamente direcionada ao e-commerce. “Essa interpretação torna o artigo 15(1)(c) mais rígido ao limitar claramente as duas condições a diferentes tipos de comércio. Por uma questão de fato, as atividades de segmentação no comércio tradicional e no e-commerce podem ser permutáveis” (TANG, 2009, p. 49)81.
Sob essa ótica, ter atividade comercial ou profissional pressupõe a realização de atividades “ativas, deliberadas, sistemáticas e planejadas” por parte do fornecedor no domicílio do consumidor, certificando a existência de uma conexão estreita, duradoura e expectável entre tais atividades e o Estado-Membro em questão. Dirigir atividades comerciais ou profissionais, por outro lado, apresenta um elo de natureza mais impessoal, ocasional e incerta com o Estado-membro de domicílio do consumidor, podendo vir a abranger toda e qualquer espécie de atividade comercial empreendida via website, via e-mail e via transações que combinam o uso do e-mail e do website82.
80 Texto original: “If so, there is no sufficient reason to exclude a contract for the provision of services by consumer credit, which is also common in e-commerce, from the same standard of protection that he would get in a contract for the sale of goods on instalment credit terms. Many online education companied or information services providers use marketing strategy such as ‘buy now and pay later’ policy to attract consumers. The situation to induce someone to buy and the possible price misleading equally exist, but consumers in these contracts will get the lower standard of protection than those buying goods under the same credit terms”.
81 Texto original: “This interpretation makes Article 15(1)(c) over rigid as it clearly limits the two conditions to different types of commerce. As a matter of fact, the targeting activities in traditional commerce and e- commerce can be interchangeable”.
82 TANG, Zheng Sophia. Electronic Consumer Contracts in the Conflict of Laws. Oxford: Hart Publishing, 2009, p. 52 e ss.
Website trading: “is the most popular and common type of e-commerce. In website trading, communications between a business and a consumer are completed through multipurpose websites. A business could establish
Haja vista a aplicação do regime especial de competência in voga encontrar-se, espacialmente, adstrita ao território dos Estados-membros da União Europeia, o Regulamento Bruxelas I, no intuito de proteger o consumidor local em um número ainda maior de casos, optou por estender as regras protetivas de jurisdição pertinentes às relações de consumo aos contratos celebrados entre consumidores europeus e comerciantes estrangeiros. Como consequência, “o co-contratante do consumidor que, não tendo domicílio no território de um Estado-Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado-Membro será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração daqueles, como tendo domicílio no território desse Estado”, nos termos do número 2 do artigo 15º83.
a website purely for advertisement; it could have an interactive website to have direct communications with potential consumers; it could have a website to receive all the orders; it could have a website that automatically deals with the whole procedure of commercial transactions, including the delivery of information products and provision of online services. Generally, there are five theories which might provide the potential resolution: accessibility, profitability, the existence of country-specific indicia, activity, ring-fencing.
It is suggested that a combination of these five theories, especially the last three, would be effective when deciding whether a business directs its commercial activities to a consumer’s domicile. A business can only be regarded as having been targeting a consumer’s domicile when it actively seeks the consumer or the benefit in a particular country. The intention os a business should be determined by the objective factors of the business’s commercial activities, including whether the business has adoptes the appropriate ‘ring-fencing’ method, whether the website holds certain specific indicia pointing to certain states, whether the website is totally passive as a pure advertisement and whether the business has other activities which indicate its authentic intention”.
E-mail: “By sending email, a business can easily contact its potential consumers worldwide with almost no costs. Although an email has similar characteristics to a website, it is far more controllable. The unsolicited email, when the business sends promotion information to the consumer’s email address without receiving any invitation or inquiry from the consumer (in this case, it can be interpreted that the business ‘directs’ commercial activities to the consumer’s domicile, no matter where it is, except where the business indicates in this email that it does not intend to have business in this State and acts accordingly); email responding to a consumer’s invitation, it seems that it is the consumer who targets the jurisdiction of the business at the first place (however, the response of the business shows that the business is not completely passive, as it has conducted necessary activities in order to have the contract concluded. It is the business’s responsibility to prevent any unwanted transaction. Otherwise, the business will still be regarded as directing its commercial activities to the consumer’s domicile)”.
Website combined with e-mail: “In this cases, the nature of the business’s commercial activities should be determined according to the mechanism that primarily leads to the contract”.
Em sentido contrário, ver: PEREIRA, Alexandre Dias. Os Pactos Atributivos de Jurisdição nos contratos eletrônicos de consumo. Revista Estudos do Direito do Consumidor – n. 3, 2001, Coimbra, p. 288; LEIN, Eva; DICKINSON, Andrew. The Brussels I Regulation Recast. Oxford : Oxford University Press, 2015, p. 226 a 228; MAGNUS, Ulrich; MANKOWSKI, Peter. European Commentaries on Private International Law: Brussels I Regulation. 2ª Ed. Munique: SELP, 2012, p. 381.
83 TANG, Zheng Sophia. Electronic Consumer Contracts in the Conflict of Laws. Oxford: Hart Publishing, 2009, p. 66. “Where an EU consumer concluded a contract with a non-EU business, the consumer cannot rely on the protective rule to sue the defendant in the consumer’s home, unless the domestic law of the Member State asserts jurisdiction”.
RAMOS, Rui Manuel Moura. A Convenção de Bruxelas sobre Competência Judiciária e Execução de Decisões: sua adequação à realidade juslaboral actual. In.: Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 42. “A Convenção [e, consequentemente, o Regulamento] não se fica pela ultrapassagem das intenções dos pais fundadores da Comunidade ao prever
Nessa toada, acrescenta Tang (2009, p. 66) que:
Estender regras de proteção para as empresas não pertencentes à UE é necessário, especialmente em e-commerce, onde as empresas podem atingir o mercado europeu sem serem domiciliadas em qualquer dos Estados-membros. Também é injusto e pode vir a comprometer o desenvolvimento do mercado interno, no qual todas as empresas europeias estão sujeitas às disposições de proteção, o que poderia potencialmente aumentar os custos do comércio, enquanto companhias fora da UE poderiam ser livres para receber os benefícios do mercado da UE sem estarem sujeitas às regras de proteção84.
Importa salientar, ainda, que “o disposto na presente secção não se aplica ao contrato de transporte, com excepção do contrato de fornecimento de uma combinação de viagem e alojamento por um preço global” (art. 15, 3). Tal exclusão justifica-se pelo fato de que “esses contratos são sujeitos, no âmbito dos acordos internacionais, de conjuntos especiais de regras com consideráveis ramificações e a inclusão desses contratos [...], puramente, para fins jurisdicionais apenas complicaria a situação jurídica" (Schlosser Report, tópico 160)85.
Ademais, é válido lembrar que as disposições da Seção 4 do Regulamento – artigos
15 ao 17 – são inderrogáveis, salvo se as partes convencionarem algo em contrário posteriormente ao nascimento do litígio ou se a conclusão do acordo se der “entre o consumidor e o seu co-contratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado-Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado-Membro, salvo se a lei desse Estado-Membro não permitir tais convenções” (artigo 17º, 1 e 3)86.
No que toca à regra especial de competência em matéria de responsabilidade contratual, tem-se que “o devedor poderá ser demandado perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em causa”, isto é, o local pactuado para a entrega dos
que o sistema por si criado seja colocado à disposição de outras pessoas que não os nacionais dos Estados- membros”.
84 Texto original: “Extending protective rules to non-EU businesses is necessary, especially in e-commerce, where businesses can target the European market without being domiciled in any Member States. It is also unfair and may damage the development of internal market where all European businesses are subject to the protective provisions, which would potentially increase commerce costs, while companied outside the EU could be free to get benefits from the EU market without being subject to the protective rules”.
85 Texto original: “The reason for leaving contracts of transport out of the scope of the special consumer protection provisions in the 1968 Convention is that such contracts are subject under international agreements to special sets of rules with very considerable ramifications and the inclusion of those contracts in the 1968 Convention purely for jurisdictional purposes would merely complicate the legal position”. Disponível em:
<http://aei.pitt.edu/1467/1/commercial_reports_schlosser_C_59_79.pdf>.
86 Artigo 23º, 5: “Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de actos constitutivos de ‘trust’ não produzirão efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 13º, 17º e 21º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 22º”.
bens ou para a prestação do serviço, a depender do objeto do contrato (art. 5º). Tratando-se de comércio eletrônico indireto, nenhuma questão relevante se impõe nesse aspecto; porém, o mesmo não ocorre em sede de comércio eletrônico direto, em especial na determinação do que é “venda de bens” e o que é “prestação de serviços”87.
Desse modo, ao priorizar o Princípio da Proteção da Parte mais Fraca e fixar, para celeumas contratuais consumeristas, o foro do domicílio do consumidor como o competente, o Regulamento Bruxelas I nulifica tanto a regra geral do domicílio, constante do art. 2º, quanto a regra especial do lugar do cumprimento do contrato trazida pelo art. 5º. Todavia, preleciona Pereira (2001, p. 294), que “é prevista uma possibilidade de derrogação à regra especial de competência que não se afigura muito consonante” com o princípio-chave da lógica protetiva regulamentar. “Com efeito, é admitida a eficácia do pacto atributivo de jurisdição, celebrado mesmo antes do litígio, se permitir ao consumidor recorrer aos tribunais que não sejam os indicados na secção 4”88.
Contraditória e, de certa forma, temerosa é a conivência demonstrada pelo Regulamento para com os pactos atributivos de jurisdição que afastam discricionariamente o foro do domicílio do consumidor em detrimento de uma jurisdição terceira, uma vez que poderá representar, sobretudo nos contratos eletrônicos de consumo, um passaporte para o fórum-shopping e, consequentemente, uma ameaça real à aplicabilidade prática de todos os benefícios até então conquistados pelo consumidor em seu próprio texto89. Por conseguinte,
87 Como exemplo, Pereira (2001, p. 291) convida-nos a refletir acerca da natureza da relação de “compra e venda de programas de computador efetuada exclusivamente por meios eletrônicos, com encomenda, pagamento e entrega em linha mediante transferência eletrônica de dados. Trata-se de venda de bens ou antes de prestação de serviços?”. Segundo o seu entendimento, o próprio direito comunitário – através das Diretivas 2000/31/CE, cons. 18; 96/9/CE, art. 5º e cons. 33; e 2001/29/CE, cons. 19 – aponta no sentido de que se trata de prestação de serviços. Contudo, admite não estar encerrada a discussão, uma vez que “o grupo de peritos da Conferencia de Haia debateu a questão em face de um artigo idêntico do Projeto, tendo concluído que esse preceito não seria aplicável no domínio dos contratos do comercio eletrônico direto e que seria necessário um preceito de teor semelhante ao art. 15,4 da Lei Modelo da UNCITRAL”.
88 Fonte normativa: Artigo 17º, 2.
PEREIRA, Alexandre Dias. Os Pactos Atributivos de Jurisdição nos contratos eletrônicos de consumo. Revista Estudos do Direito do Consumidor – n. 3, 2001, Coimbra, p. 297. “[...] trata-se de norma de aplicação não imediata. No direito comunitário a cláusula é meramente indicativa. Em princípio, o tribunal deverá considerar tal cláusula inválida, uma vez que poderá afetar, desde logo, o princípio do equilíbrio entre as partes, que norteia o problema da competência judiciária internacional e justifica a existência de um princípio da protecção da parte mais fraca impondo limites à liberdade contratual ao nível da celebração de pactos atributivos de jurisdição”.
89 Abrir-se-ia margem, inclusive, à primazia das cláusulas abusivas e impositivas convencionadas mediante adesão à distância – via eletrônica – às condições gerais do contrato (click-wrapping/ aceitação por clic). Sobre as particularidades da referida técnica, ver o acórdão prolatado pela Terceira Seção do TJUE, em 21 de maio de 2015, no processo C-322/14 – Jaouad El Majdoub x CarsOnTheWeb.Deutschland GmbH, disponível em:
<http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62014CJ0322&from=PT>.
para evitar mal-entendidos e incongruências interpretativas, Pereira (2001, p. 295) sugere que se associe “essa cláusula derrogatória com a parte final do preceito, integrada na terceira cláusula derrogatória, que ressalva a possibilidade de a lei do Estado-membro do domicílio do consumidor não permitir tais convenções”90.
O advento do Regulamento n. 44/2001 deixa clara a evolução das regras de Direito Internacional Privado como componentes de um quadro mais amplo do Direito do Consumo, “fornecendo uma compreensão clara de que a livre circulação das decisões é agora uma parte estabelecida da regulamentação comunitária relativa à livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas” (BRAND, 2009, p. 171)91. As referidas considerações, no entanto, não intencionam afirmar que a estrutura normativa europeia alcançou a perfeição em sua plenitude, pelo contrário:
O Regulamento Bruxelas I parece uma casa renovada, onde a antiga estrutura é coberta pela decoração. À primeira vista, é especialmente reprojetado para cobrir o comércio eletrônico, mas com um controle rigoroso é possível perceber que muitos conceitos importantes no conjunto da Seção 4 são termos tradicionais sem o esclarecimento atualizado de seu significado exato no e-commerce (TANG, 2009, p. 73)92.
A almejada elucidação conceitual fica a cargo, então, do Tribunal de Justiça da União Europeia, ainda que a sua atuação nessa novel seara jurídica não seja, de fato, recorrente. A expectativa justifica-se pela própria trajetória da instituição, a qual, desde a sua criação, acabou por tornar o processo de interpretação e integração do direito
Ademais, nessas circunstâncias, tais pactos atributivos de jurisdição poderiam ser enquadrados como verdadeiras cláusulas abusivas, nos termos do disposto no artigo 3, 3, q do Anexo da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. In verbis: “Suprimir ou entravar a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor, nomeadamente obrigando-o a submeter-se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não abrangida por disposições legais, limitando indevidamente os meios de prova à sua disposição ou impondo-lhe um ónus da prova que, nos termos do direito aplicável, caberia normalmente a outra parte contratante”. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31993L0013&from=FR>.
90 Amparando-se, portanto, nos Princípios da Proteção da Parte mais Fraca, do Acesso à Justiça e do Equilíbrio das Partes, “leit-motiv do direito internacional privado e do direito processual civil internacional dos nossos dias” (RAMOS, 2002, p. 226), nada mais natural do que esperar, por parte dos órgãos jurisdicionais, posicionamento favorável à invalidação de cláusulas atributivas de jurisdição em contratos de consumo que atribuam competência a tribunais que sejam, a eles, totalmente desconexos.
91 Texto original: “[…] by providing a clear understanding that the free movement of judgments is now an established part of Community rules on the free movement of goods, services, capital and persons”.
92 Texto original: “The Brussels I Regulation looks like a renovated house, where the old structure is covered under the decoration. At the first sight, it is specially re-designed to cover the electronic commerce, but with a close scrutiny one would realize that many important concepts in the whole of Section 4 are traditional terms without the updated clarification on their accurate meaning in e-commerce”.
comunitário por ela encabeçado um “verdadeiro Poder Legiferante, criando o direito através de suas decisões” (FERREIRA; FRAGOSO, 2008, p. 127).
2.1.2 O Foro privilegiado do consumidor no Mercosul – O Protocolo de Santa Maria
O Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em matéria de relações de consumo (PSM)93, aprovado pelo Conselho Mercado Comum em 17 de dezembro de 1996, é tido como o mais avançado instrumento jurídico de proteção ao consumidor já acordado entre os Estados-membros do Mercosul. A sua elaboração foi motivada principalmente pelo compromisso – por eles assumido aquando do Tratado de Assunção – de harmonizar as legislações nacionais em determinadas matérias; pela vontade conjunta “de acordar soluções jurídicas comuns para o fortalecimento do processo de integração” e pela “necessidade de proporcionar ao setor privado dos Estados Partes um marco de segurança jurídica que garanta soluções justas e a harmonia das decisões jurisdicionais vinculadas às relações de consumo”94.
Sob essa perspectiva, resulta do artigo 4 do Protocolo a inaplicabilidade do Princípio da Autonomia da Vontade das partes no que toca às cláusulas de eleição de foro em contratos internacionais de consumo, sempre que as demandas ajuizadas pelo consumidor versem sobre relações de consumo transfronteiriças e as partes tenham domicílio em diferentes Estados-membros do bloco. A jurisdição impenderá, então, aos juízes ou aos tribunais do Estado em cujo território esteja domiciliado o consumidor95, com exceção do
93 MERCOSUL. Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo de 17 de dezembro de 1996 – Decreto MERCOSUL/CMC n. 10/96. Disponível em:
<http://www.mercosur.int/msweb/Normas/normas_web/Decisiones/ES/Dec_010_096_.PDF>.
94 BERGMAN, Eduardo Tellechea. Panorama de las soluciones concluidas en el ámbito del Mercosur en materia de jurisdicción internacional. In.: MARQUES, Cláudia Lima; ARAÚJO, Nádia de. O novo direito internacional: estudos em homenagem à Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 620. “Mientras Uruguay, Argentina y Paraguay se encontraban vinculados al comienzo del proceso de integración por distintos textos supranacionales reguladores de la jurisdicción internacional, con Brasil se carecía de respuestas supranacionales en tanto dicho país no era parte de los Tratados de Montevideo de 1940 y tampoco en dicha época, diciembre de 1991, de aquellas Convenciones aprobadas por las CIDIPs reguladoras de ciertos temas jurisdiccionales ya vigentes para los otros socios del Mercosur. El panorama descripto determinó la necesidad de abordar el tratamiento de la jurisdicción internacional a través de textos elaborados en el ámbito del Mercosur”.
Hoje a situação mudou e o Brasil está vinculado a algumas Convenções Interamericanas que atendem aspectos específicos da jurisdição internacional, como a Convenção sobre a Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, a Convenção sobre Conflitos de Leis em Matéria de Sociedades Mercantis, etc.
95 BERGMAN, E. T. Panorama de las soluciones concluidas en el ámbito del Mercosur en materia de jurisdicción internacional. In: MARQUES, Cláudia Lima; ARAÚJO, Nádia de. O novo direito internacional: estudos em homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 638. “Respecto al concepto de conexión domiciliar, básico de acuerdo al texto de Santa María tanto para calificar la relación
disposto no artigo subsequente, o qual prevê que “também terá jurisdição internacional, excepcionalmente e por vontade exclusiva do consumidor, manifestada expressamente no momento de ajuizar a demanda”, o Estado da celebração do contrato, do cumprimento da prestação de serviços ou da entrega dos bens, ou do domicílio do demandado96.
No que se refere ao âmbito material de aplicação do PSM, tem-se que as suas disposições apenas serão imperativas na determinação da jurisdição internacional em matéria de relações de consumo quando essas advirem de “a) contratos resultantes de vendas a prazo de bens móveis corpóreos”; “b) empréstimos a prazo ou de outra operação de crédito ligada ao financiamento na venda de bens”; ou “c) qualquer outro contrato que tenha por objeto a prestação de um serviço ou fornecimento de bem móvel corpóreo” (artigo 1)97. É válido ressaltar, ainda, no contexto da terceira alínea mencionada, que “este dispositivo se
como internacional cuanto para la determinación de la jurisdicción internacional competente, es proporcionado por el art. 3 en definición directa coincidente en sus aspectos sustanciales con las acogidas en el Mercosur por los anteriores Protocolos de Buenos Aires sobre Jurisdicción Internacional en Materia Contractual, art. 9 y de San Luis sobre Responsabilidad Civil en Materia de Accidentes de Tránsito, art. 2”.
No Brasil, o novo Código Processo Civil, em vigor desde março deste ano, representou um grande avanço no tocante às regras sobre a jurisdição dos tribunais nacionais aplicáveis aos contratos internacionais de consumo, uma vez que dispõe, expressamente, em seu art. 22, II, que “compete, [...], à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil”. “Meritória, a proposta de reforma do CPC cria um sistema coeso e responde adequadamente à tormentosa pergunta sobre qual o foro competente para julgar um litigio contratual de índole internacional” (ARAÚJO et al, p. 1), afastando a “perigosa inconstância da jurisprudência nacional acerca do tema” (GEIB, 2012, p. 192).
Cita-se, a título de exemplo da atuação assertiva do STJ, os arestos prolatados no REsp n. 247.724/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 12.06.2000 e no REsp n. 63.981/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 11.04.2000.
96 MERCOSUL. Protocolo de Santa Maria sobre Jurisdição Internacional em Matéria de Relações de Consumo de 17 de dezembro de 1996 – Decreto MERCOSUL/CMC n. 10/96. Disponível em:
<http://www.mercosur.int/msweb/Normas/normas_web/Decisiones/ES/Dec_010_096_.PDF>. Artigos 4. In verbis:
Capítulo III: Jurisdição Artigo 4: Regra Geral
1. Terão jurisdição internacional nas demandas ajuizadas pelo consumidor, que versem sobre relações de consumo, os juízes ou tribunais do Estado em cujo território esteja domiciliado o consumidor.
2. O fornecedor de bens ou serviços poderá demandar contra o consumidor perante o juiz ou tribunal do domicílio deste.
Importa salientar, nesse caso, que os artigos 6 e 7 do PSM dispõem, respectivamente, que se o demandado tiver domicílio em um Estado Parte e, em outro, filial, sucursal, agência, ou qualquer outra espécie de representação com a qual realizou as operações que geraram o conflito, por critério opcional a favor do consumidor, a demanda poderá ocorrer perante os tribunais de qualquer dos Estados referidos; e, em caso de pluralidade de litisconsórcio passivo, o Protocolo confere a jurisdição ao judiciário do Estado-membro de domicílio de qualquer dos demandados.
97 ABREU, Paula Santos de. A proteção do consumidor no âmbito dos tratados da União Europeia, Nafta e Mercosul. Revista Jurídica da Presidência da República do Brasil, Brasília, v. 7, n. 73, jun/jul. 2005, p. 10. “Cabe ressaltar que algumas áreas ficam excluídas do protocolo de Santa Maria, como os contratos de transportes (art. 1, 2) e as relações de consumo do turista viajando para consumir no exterior. Além disso, o Protocolo cuida apenas das relações contratuais de consumo, não abordando a proteção extracontratual (acidente de consumo) pré e pós- contratual (publicidade, pós-venda, garantias)”.
aplicará sempre que a celebração do contrato tenha sido precedida, no Estado do domicílio do consumidor, de uma proposta específica ou de uma publicidade suficientemente precisa e que o consumidor tenha realizado os atos necessários à conclusão do contrato”.
O artigo 2 do Protocolo de Santa Maria estabelece que, do ponto de vista espacial, tal instrumento jurídico se aplicará “às relações de consumo que vinculem fornecedores e consumidores: a) com domicílio em diferentes Estados Partes do Tratado de Assunção; b) com domicílio em um mesmo Estado Parte, desde que a prestação característica da relação de consumo tenha ocorrido em outro Estado Parte”. No entanto, o artigo 18 condiciona expressamente o trâmite de sua aprovação e a sua consequente entrada em vigor no seio de cada Estado-membro à “aprovação do ‘Regulamento Comum MERCOSUL de Defesa do Consumidor’ em sua totalidade, inclusive eventuais anexos, pelo Conselho do Mercado Comum”.
Sobre tal previsão legal, remetemo-nos à oportuna manifestação de Klausner (2008,
p. 65), trazida à baila no primeiro capítulo desse trabalho acadêmico (1.3):
Não há justificativa para vincular o Protocolo de Santa Maria a futuras resoluções do Mercosul, pois tanto aquele quanto estas tratam de matérias diferentes. O Protocolo dispõe sobre Direito Processual e o futuro regulamento sobre direito material. Se não existe acordo no pertinente ao estabelecimento de um direito material comum para os consumidores mercosulinos, tal fato não deveria ser impeditivo para a vigência de regras processuais que permitirão o efetivo exercício dos direitos desses consumidores, garantidos pelas leis de seus domicílios ou pelo direito indicado pela regra de conexão mercosulina de aplicação do direito material do mercado de destino98.
Assim, na ausência de instrumento jurídico específico que regulamente regras processuais de determinação de foro competente em matéria de conflitos de consumo transfroiteiriços no Mercosul, ao consumidor litigante restará contar com previsões comunitárias gerais constantes do Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em
98 TEIXEIRA, Pedro Gustavo Magalhães do Nascimento. A questão da protecção dos consumidores nos contratos plurilocalizados. Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, v. 1, abril. 1994, p. 229. Disponível em:
<http://www.oa.pt/Publicacoes/revista/default.aspx?idc=1&idsc=2691&volumeID=54701&anoID=54695>. “A justiça surge pela realização dos valores do sistema em causa; por isso, pretender que a justiça conflitual não constitui uma justiça material por não promover o mesmo tipo de valores que os sistemas substantivos é ilógico: só o observar rigoroso dos princípios estruturantes do sistema conflitual permitirá as soluções justas a nível conflitual”.
matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa (Protocolo de Las Leñas)99 e do
Protocolo de Medidas Cautelares (Protocolo de Ouro Preto)100.
Nessa toada, para que obtenham eficácia extraterritorial, as sentenças prolatadas nesse contexto deverão ter o seu reconhecimento e a sua execução solicitados pelas autoridades jurisdicionais mediante carta rogatória, por intermédio da Autoridade Central (Artigo 11). Os demais atos processuais que porventura venham a ser realizados no exterior seguirão o mesmo padrão, sendo válido lembrar que “o cumprimento da carta rogatória não poderá acarretar reembolso de nenhum tipo de despesa, exceto quando sejam solicitados meios probatórios que ocasionem custos especiais, ou sejam designados peritos para intervir na diligência” – artigo 15 do Protocolo de Las Leñas.
Ademais, é concedido aos nacionais, cidadãos e residentes habituais de cada um dos Estados-membros do Mercosul e das Repúblicas da Bolívia e do Chile, no território dos demais Estados envolvidos e em igualdade de condições com seus nacionais, cidadãos e residentes habituais; os benefícios da justiça gratuita e da assistência jurídica gratuita (Decisões CMC n. 49/00 e 50/00101).
No que se refere à solução de controvérsias surgidas entre os Estados-membros por motivo da aplicação, interpretação ou descumprimento das disposições contidas no presente Protocolo, tem-se que elas:
Serão resolvidas mediante negociações diplomáticas diretas. Se tais negociações não resultarem em acordo, ou se a controvérsia somente for solucionada parcialmente, aplicar-se-ão os procedimentos previstos no Sistema de Solução de
99 MERCOSUL. Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa – Protocolo de Las Leñas. Disponível em:
<https://www.oas.org/dil/esp/Protocolo%20de%20Coopera%C3%A7%C3%A3o%20e%20Assist%C3%AAn cia%20Jurisdicional%20em%20Mat%C3%A9ria%20Civil,%20Comercial,%20Trabalhista%20e%20Adminis trativa%20%E2%80%93%20MERCOSUL%20Brasil.pdf>.
100 MERCOSUL. Protocolo de Ouro Preto – Protocolo de Medidas Cautelares. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/forumCorteSupremaNorma/forumCorteSupremaNorma_AP_75312.pdf>.
101 MERCOSUL. Acordo sobre o benefício da justiça gratuita e assistência jurídica gratuita entre os Estados Partes do Mercosul – MERCOSUL/CMC/DEC n. 49/00. Disponível em:
<http://gd.mercosur.int/SAM%5CGestDoc%5Cpubweb.nsf/DD17731470CC233B03257FCD003219E5/$File
2000_PT_FERR_Acordo%20Benef%C2%A1cio%20Justi%E2%80%A1a%20Assist%20Gratuita_Ata%20% 202_00.pdf>.
MERCOSUL. Acordo sobre o benefício da justiça gratuita e assistência jurídica gratuita entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia e a República do Chile – MERCOSUL/CMC/DEC n. 50/00. Disponível em:
<http://gd.mercosur.int/SAM%5CGestDoc%5Cpubweb.nsf/016E44C067D30AAC03257FCD00321B39/$Fil e/DEC_050- 2000_PT_FERR_Ac%20Benef%20Just%20Assist%20Grat%20MCS%20Bol%20Chile_Ata%20%202_00.pd f>.
Controvérsias vigente entre os Estados Partes do Tratado de Assunção (artigo 13)102.
Contudo, imprescindível é, à assumpção pelo consumidor da real condição de agente econômico no processo de integração mercosulino, consolidar um contexto de segurança jurídica intrabloco sustentado por uma “plataforma de Direito Processual Civil internacional segura e eficiente, capaz de superar as fronteiras jurisdicionais dos Estados- sócios de maneira eficaz” (KLAUSNER, 2008, p. 66), nos moldes da experiência europeia de Bruxelas I. Por ora, o Mercosul ainda está distante de transformar essa perspectiva em realidade. As normas que dispõem sobre o foro competente continuam a ser de direito nacional e a produzir efeitos apenas no Estado-membro de sua proveniência, o que por vezes ocasiona conflitos positivos e negativos de jurisdição103 em julgamento de demandas eminentemente “mercosulinas”.
102 Desde 1991, o sistema de solução de controvérsias do Mercosul era organizado sob a égide das previsões do Protocolo de Brasília (PB) e do Anexo do Protocolo de Ouro Preto (POP). Contudo, com o advento do Protocolo de Olivos para Solução de Controvérsias, em 2002, tal organização foi alterada. “O Protocolo de Olivos (PO), artigo 4º estabelece que os Estados-Partes, numa controvérsia, procurarão resolvê-la, antes de tudo, mediante negociações diretas. Estas não poderão, salvo acordo entre as partes, exceder o prazo de quinze
(15) dias a partir da data em que uma delas comunicou à outra a decisão de iniciar a controvérsia. Os Estados- Partes em uma controvérsia informarão ao Grupo Mercado Comum, por intermédio da Secretaria Administrativa do Mercosul, sobre as gestões que se realizarem durante as negociações e os resultados das mesmas. Se, mediante as negociações diretas, não se alcançar um acordo, ou se a controvérsia for solucionada apenas parcialmente, qualquer dos Estados-Partes na controvérsia poderá iniciar diretamente o procedimento arbitral” (MARTINS, 2006, p. 83).
Dentre os grandes avanços trazidos pelo PO em relação à sistemática anterior do PB, destacam-se:
a) a criação de um Tribunal Permanente de Revisão (TPR), o qual tem seu caráter jurisdicional caracterizado pelo desenvolvimento de atividade revisional e consultiva e pelo exercício, em casos específicos, de funções próprias de órgão de instância única. É válido ressaltar que os tribunais arbitrais ad hoc apenas serão suprimidos quando as partes, voluntariamente, decidirem se submeter, em única instância, ao TPR. Nessas condições, os laudos do TPR serão obrigatórios para as partes integrantes da demanda, não estando sujeitos a recursos de revisão. Têm, em relação aos envolvidos, força de coisa julgada (art. 23, PO).
b) a implementação de mecanismos de regulamentação das medidas compensatórias;
c) a criação de normas procedimentais inspiradas no modelo da Organização Mundial do Comércio;
d) a intervenção opcional do Grupo Mercado Comum (GMC);
e) a possibilidade de eleição de foro;
f) a possibilidade de reclamação dos particulares, normatizada nos artigos 39 a 41 do PO e aplicável em casos de sanção ou aplicação, por qualquer dos Estados-membros, de medidas legais ou administrativas de efeito restritivo, discriminatório ou de concorrência desleal, violando o Tratado de Assunção, o POP, dentre outros. Por fim, no que tange à solução de conflitos entre o Mercosul e terceiros países, tem-se que eventuais controvérsias serão solucionadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, salvo nos casos envolvendo a Bolívia e o Chile, quando os conflitos poderão ser resolvidos de acordo com os regimes de solução de controvérsias previstos nos acordos de livre comércio celebrados com o Mercosul.
103 PORTUGAL. Código de Processo Civil - Lei n. 41/2013. Disponível em: < http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugalcpcivilnovo.pdf>. Artigo 109º, 1. In verbis: “Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas atividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo”.
Nesse sentido, depreende-se da análise das regras do Protocolo de Santa Maria sobre a “dimensão jurisdicional do caso privado internacional” no Mercosul, que “[...] uma resposta efetiva e homogênea para tais questões impõe compromissos inevitáveis aos Estados e à própria institucionalidade do Mercado” (BERGMAN, 2005, p. 643)104. Quando se trata de proteger internacionalmente o consumidor, a existência ou não de normativas comunitárias que versem sobre a determinação da competência em matéria de relações de consumo influencia diretamente na obtenção real e efetiva da justiça por parte do consumidor, libertando-o ou condenando-o da vulnerabilidade intrínseca que o caracteriza sobretudo no plano processual.
A consequência prática de tal lacuna legal é que, no final das contas, a origem mercosulina do fornecedor em nada favorecerá as condições do consumidor local envolvido em demandas judiciais internacionais. Independentemente se o fornecedor estrangeiro está situado em Estado-membro do bloco ou não, a regra de conexão comunitária exarada da Resolução GMC n. 126/94 remete a apreciação do mérito da lide à legislação de defesa do consumidor e regulamentos técnicos do local onde é comercializado o produto ou o serviço (artigo 2).
“Espera-se que as autoridades mercosulinas ultrapassem este verdadeiro estado de letargia” e, estimuladas pela celebração dos vinte e cinco anos do Mercosul, “despertem para a necessidade de aprofundar a integração incluindo o consumidor no processo econômico por meio de um efetivo e adequado cabedal de instrumentos que proporcionem segurança jurídica” (KLAUSNER, 2008, p. 64).
104 Texto original: “Del análisis llevado a cabo en relación a la normativa convenida en el ámbito del Mercosur en materia de tratamiento de la dimensión jurisdiccional del caso privado internacional entendemos que una efectiva y homogénea respuesta a tales cuestiones impone compromisos insoslayables a los Estados y a la propia institucionalidad del Mercado”.
3 A DETERMINAÇÃO DA LEI APLICÁVEL AOS CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO: O ÊXITO EUROPEU EM DIÁLOGO COM O IMPASSE MERCOSULINO
3.1 A harmonização legislativa na União Europeia: um paradigma de sucesso
“A utilização da Internet para a transmissão de mensagens potencia o surgimento de situações que estão em contacto com mais do que um ordenamento jurídico” (OLIVEIRA, 2003, p. 17). Visando uma justa e uniforme defesa do consumidor no seio da União, à UE coube determinar qual a lei aplicável a essas situações e qual a forma mais adequada para empreender a harmonização das regras materiais de proteção preexistentes em cada Estado- membro.
O direito comunitário é o ramo do direito cujo objetivo é estudar “os tratados constitutivos da Comunidade Europeia, bem como, a evolução jurídica resultante da regulamentação de caráter derivado, combinada com a aplicação jurisprudencial progressiva dos dispositivos desses mesmos Tratados” (CASELLA, 1994, p. 248-249).
O ordenamento jurídico comunitário é constituído por diversas fontes, as quais, em razão de apresentarem naturezas jurídicas distintas, estão organizadas de forma hierarquizada. No topo desta pirâmide encontra-se o direito comunitário primário (originário), representado pelos Tratados Constitutivos, e o direito comunitário não escrito, consubstanciado nos princípios gerais do direito da União; seguidos dos tratados internacionais celebrados pela UE e do direito comunitário derivado, que, segundo a redação do art. 288 do TFUE, emana das instituições comunitárias no exercício das suas competências e materializa-se em regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres por elas expedidos.
No que toca à concretização prática da harmonização e uniformização de leis, assumem as diretivas e os regulamentos, respectivamente, a posição de principal expoente. Os primeiros instrumentos normativos destinam-se exclusivamente aos Estados-membros, cabendo a estes definir qual a forma jurídica mais adequada à produção do resultado por eles almejado, bem como quais os meios mais convenientes a serem por si utilizados105.
105 UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Disponível em: < http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Artigo 115º. In verbis: “Sem prejuízo do disposto no artigo 114º, o Conselho, deliberando por unanimidade, de acordo com um processo legislativo especial, e após consulta do Parlamento Europeu e do Comité Económico e Social, adopta directivas para a aproximação das
A esse respeito, ressalta-se que:
Só com o ato expresso de transposição da diretiva no Direito nacional e, portanto, com adoção pelo Estado destinatário das medidas necessárias ao cumprimento da diretiva é que os efeitos desta se repercutem quanto aos particulares e a diretiva se insere na Ordem Jurídica estadual, [...] a diretiva procura respeitar e manter uma diversidade entre os Estados-membros: [...] a diretiva exprime a atuação nacional no seio das Comunidades. (QUADROS, 1983, p. 81 e 83)
Deduz-se daí que as diretivas gozam de efeito direto, isto é, suas disposições produzem a plenitude de seus efeitos de modo uniforme e homogêneo em todos os Estados- membros, da sua entrada em vigor até o final do seu período de vigência106. O instituto do efeito direto é uma criação jurisprudencial do TJUE, que pretende assegurar a primazia do Direito Comunitário sobre a ordem jurídica estadual e garantir a uniformidade de sua aplicação.
O regulamento, por sua vez, é tido como a lei da União, apresentando, também, normas de aplicabilidade direta. É considerado um fator de integração.
Sobre o regulamento, tem-se que:
Pela sua definição vemos que o regulamento é fonte de Direito – a generalidade caracteriza-o. [...] Enfim, a aplicabilidade direta significará que os regulamentos passam a compor a ordem jurídica dos Estados-membros automaticamente, independentemente de qualquer ato de recepção ou até meramente de publicação por parte destes. (...) vinculam as pessoas no âmbito dos Estados, e não apenas os respectivos Governos, podendo, desde logo, ser invocados pelos interessados. (ASCENSÃO, 2001, p. 252)
Tendo isso em mente, nada mais natural do que destacar as principais normativas comunitárias que compõem o atual arcabouço legal que ampara e favorece, intrabloco, a defesa do consumidor no comércio eletrônico.
A Diretiva 85/577/CEE relativa à proteção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais, emanada pelo Conselho em 20 de dezembro de 1985, foi o primeiro instrumento de harmonização concernente ao direito dos contratos. Sob sua perspectiva, tal modalidade contratual é caracterizada “pelo facto de a
disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que tenham incidência directa no estabelecimento ou no funcionamento do mercado interno”.
106 Nesse caso, aos particulares é legitimado invocá-las nos tribunais nacionais apenas quando o prazo de transposição estabelecido não tiver sido cumprido ou suas normas forem incondicionais e informais, não apresentando, assim, qualquer óbice à sua aplicação imediata.
iniciativa das negociações provir normalmente do comerciante e que o consumidor não está, de forma nenhuma, preparado para tais negociações e que foi apanhado desprevenido”, comprometendo ou dificultando o exercício imparcial e independente de seu poder de escolha.
O instrumento normativo, ao entrar em vigor, privilegiava eminentemente os contratos celebrados entre um comerciante107 de bens ou serviços e um consumidor “durante uma excursão organizada pelo comerciante fora dos seus estabelecimentos comerciais” ou “durante uma visita do comerciante ao domicílio ou ao local de trabalho do consumidor final” ou, ainda, “ao domicílio de outro consumidor, quando a visita não se efectuava a pedido expresso desse”. Estavam compreendidos, ainda, “os contratos respeitantes ao fornecimento de outro bem ou serviço que não o bem ou serviço a propósito do qual o consumidor tenha pedido a visita do comerciante”108 e os “contratos relativamente aos quais tenha sido feita uma oferta pelo consumidor em condições semelhantes às descritas nos nº 1 e nº 2”, tendo esse ficado ou não vinculado por essa oferta109.
É válido ressaltar que, até o advento, em 25 de outubro de 2011, da Diretiva 2011/83/UE relativa aos direitos dos consumidores – a qual revogou expressamente o instrumento normativo ora em estudo –, as disposições da Diretiva 85/577/CEE eram
107 UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31985L0577&from=PT>. Art. 2º. In verbis: “Para efeitos da presente directiva, entende-se por: [...] «comerciante» qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao concluir a transacção em questão, age no âmbito da sua actividade comercial ou profissional, bem como qualquer pessoa que age em nome ou por conta de um comerciante”.
108 Isso desde que o consumidor desconhecesse, de plano, “que o fornecimento desse outro bem ou serviço fazia parte das actividades comerciais ou profissionais do comerciante”.
109 UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31985L0577&from=PT>. Art. 1º. In verbis:
1. A presente directiva é aplicável aos contratos celebrados entre um comerciante que forneça bens ou serviços e um consumidor: — durante uma excursão organizada pelo comerciante fora dos seus estabelecimentos comerciais, ou — durante uma visita do comerciante: i) a casa do consumidor ou a casa de outro consumidor;
ii) ao local de trabalho do consumidor, quando a visita não se efectua a pedido expresso do consumidor.
2. A presente directiva é igualmente aplicável aos contratos respeitantes ao fornecimento de outro bem ou serviço que não o bem ou serviço a propósito do qual o consumidor tenha pedido a visita do comerciante, desde que o consumidor, ao solicitar a visita, não tenha tido conhecimento ou não tenha podido razoávelmente saber que o fornecimento desse outro bem ou serviço fazia parte das actividades comerciais ou profissionais do comerciante.
3. A presente directiva é igualmente aplicável aos contratos relativamente aos quais tenha sido feita uma oferta pelo consumidor em condições semelhantes às descritas nos nº 1 e nº 2, embora o consumidor não tenha ficado vinculado por essa oferta antes da aceitação desta pelo comerciante.
4. A presente directiva é igualmente aplicável às ofertas contratuais feitas pelo consumidor em condições semelhantes às descritas nos nº 1 ou no nº 2 quando o consumidor fica vinculado pela sua oferta.
também aplicadas aos contratos estabelecidos online, frutos do novel comércio eletrônico. O conceito de vendas a domicílio, nesse caso, foi estendido a todas as relações de consumo realizadas em local diverso do estabelecimento comercial do fornecedor110.
Outro importante direito assegurado ao consumidor pela diretiva in voga refere-se a sua prerrogativa de “renunciar aos efeitos do compromisso que assumiu desde que envie uma notificação, no prazo de pelo menos sete dias a contar da data em que recebeu a informação referida no artigo 4º, em conformidade com as modalidades e condições prescritas pela legislação nacional” (Artigo 5º). O na Europa denominado de “direito de reflexão” é, portanto, irrenunciável e tem por finalidade proporcionar ao consumidor um tempo maior para avaliar as obrigações decorrentes do contrato celebrado, desvinculando-o de tal compromisso se acionado, tempestivamente, o mecanismo.
A Diretiva 97/7/CE111 do Parlamento Europeu e do Conselho norteou a política de proteção do consumidor em matéria de contratos à distância desde seu advento, em 20 de maio de 1997, até a sua substituição – e consequente revogação – pela Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2011 relativa aos direitos dos consumidores. Foi a partir de seus ditames que primeiramente se definiu, a nível legislativo europeu, o conceito, as características e as consequências da contratação à distância, tendo eles servido como base para as demais conceituações posteriormente adotadas pelo bloco em suas normativas.
Sob essa ótica, considera-se contrato à distância, todo contrato referente a bens ou serviços, “celebrado entre um fornecedor e um consumidor, que se integre num sistema de venda ou prestação de serviços à distância organizado pelo fornecedor, que, para esse contrato, utilize exclusivamente uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração” (Artigo 2º). Nesse diapasão, acautela
110 SANTOS, Maria Laura Lopes Nunes. Proteção ao Consumidor nos Contratos Eletrônicos na União Europeia. Revista Arquivo Jurídico - Revista Jurídica Eletrônica da Universidade Federal do Piauí, Teresina, v. 1, n. 1, jan./jun. 2013, p. 18. “Consideram-se vendas em domicílio uma espécie de contrato, proposto e concluído no domicílio do consumidor pelo vendedor ou pelos seus representantes, sem que tenha havido um prévio pedido expresso por parte do consumidor”.
111 UNIAÕ EUROPEIA. Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 1997, relativa à proteção dos consumidores em matéria de contratos à distância. Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31997L0007&from=PT>.
a própria diretiva acerca da inviabilidade de se elaborar uma lista exaustiva de modalidades de comunicação que se encaixem ao conceito supracitado, resguardando, assim, através da proposição de princípios neutrais válidos, o enquadramento de eventuais técnicas que venham a ser desenvolvidas a esse respeito às suas disposições112.
Ademais, regulamenta-se, cuidadosamente, a obrigatoriedade do fornecimento de informações claras e compreensíveis ao consumidor e a sua confirmação por escrito e atribui aos Estados-membros a responsabilidade de “tomar as medidas necessárias para que o consumidor não seja privado da protecção conferida pela presente directiva”, seja em assuntos relacionados ao pagamento por cartão (Artigo 8º), ao fornecimento ou prestação não solicitados (Artigo 9º), às restrições à utilização de determinadas técnicas de comunicação à distância (Artigo 10º), ao processo judicial ou administrativo (Artigo 11º), entre outros.
No tocante ao direito de reflexão do consumidor trazido pela Diretiva 85/577/CE, tem-se a manutenção da previsão com algumas modificações. Tal direito passa a ser referido expressamente como “direito de rescisão”; o prazo de pelo menos sete dias para o seu exercício passa a englobar apenas os dias úteis e os custos a serem suportados pelo consumidor ao rescindir o contrato à distância limitam-se às despesas diretas de devolução do bem.
A Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrônico, no mercado interno – Diretiva do Comércio Eletrônico – foi emanada em 8 de junho de 2000, com o intuito de viabilizar, aos cidadãos e aos operadores europeus, o acesso pleno e ilimitado a todos os benefícios e oportunidades proporcionadas pelo comércio eletrônico, consolidando um “real espaço sem fronteiras internas para os serviços da sociedade da informação”.
Nos termos do Considerando número 10, constante da própria exposição de motivos da diretiva em comento, as medidas por ela previstas limitam-se ao “mínimo estritamente necessário para alcançar o objectivo do correcto funcionamento do mercado
112 Vide rol exemplificativo trazido pelo Anexo I da Diretiva 97/7/CE.
interno”. Ficam, então, liberados os Estados-membros a determinar normas que ofereçam uma maior proteção para complementar às já existentes; bem como a eles é incumbido o dever de materializar e instrumentalizar as previsões trazidas pela normativa comunitária.
A priori, “a presente diretiva não deve aplicar-se aos serviços provenientes de prestadores estabelecidos em países terceiros. Dada a dimensão mundial do comércio eletrônico, deve, no entanto, ser garantida a coerência do quadro comunitário com o quadro internacional” (Considerando n. 58). A aplicação da lei do local da residência do consumidor, por sua vez, mantém-se em casos em que essa lhe for mais favorável.
No que toca à lei que rege a prestação de serviços da sociedade da informação, dispõe a Diretiva 2000/31/CE que os prestadores estarão sujeitos às disposições nacionais do Estado-membro onde estão estabelecidos (Artigo 3º)113, ficando a cargo do direito interno garantir “que o prestador do serviço faculte aos destinatários do seu serviço e às autoridades competentes um acesso fácil, directo e permanente” a, pelo menos, algumas informações gerais devidamente elencadas no texto normativo em estudo e no direito comunitário como um todo (Artigo 5º).
Nos termos do artigo 9º, “os Estados-membros assegurarão que os seus sistemas legais permitam a celebração de contratos por meios eletrônicos”, não obstaculizando, assim, a utilização e a consequente validade e promoção de efeitos legais dos referidos contratos no mundo jurídico. Outros requisitos a serem observados pelos Estados-membros no que se refere aos contratos celebrados por meios eletrônicos encontram-se expressamente previstos na Seção 3 da diretiva em estudo.
Importa salientar, ainda, que “a presente diretiva não estabelece normas adicionais de direito internacional privado em matéria de conflitos de leis, nem abrange a jurisdição
113 UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio electrónico»). Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32000L0031&from=PT>. Considerando n. 19. In verbis: “A determinação do local de estabelecimento do prestador deve fazer-se de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual do conceito de estabelecimento é indissociável a prossecução efetiva de uma atividade econômica, através de um estabelecimento fixo por um período indefinido. Este requisito encontra-se igualmente preenchido no caso de uma sociedade constituída por um período determinado. O local de estabelecimento, quando se trate de uma sociedade prestadora de serviços através de um sítio internet, não é o local onde se encontra a tecnologia de apoio a esse sítio ou o local em que este é acessível, mas sim o local em que essa sociedade desenvolve a sua atividade económica. Quando um prestador está estabelecido em vários locais, é importante determinar de que local de estabelecimento é prestado o serviço em questão. Em caso de dificuldade especial para determinar a partir de qual dos vários locais de estabelecimento é prestado o serviço em questão, considera-se que esse local é aquele em que o prestador tem o centro das suas atividades relacionadas com esse serviço específico”.
dos tribunais” (Considerando n. 23) e que legisla a respeito de todos os serviços de informatização, “tais como serviços entre empresas, negócios e serviços de consumo, serviços prestados gratuitamente ao destinatário, e serviços que permitem transações eletrônicas (incluindo as televendas de bens e serviços e centros de compras on-line)” (SANTOS, 2013, p. 22).
A presente diretiva, fruto de ação legislativa conjunta empreendida pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho em 25 de outubro de 2011, destina-se a concentrar em “um quadro regulamentar único, [...] noções jurídicas claramente definidas destinadas a reger certos aspectos dos contratos celebrados na União entre empresas e consumidores” (Considerando
n. 7). Sua aplicação restringe-se “aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor” e “aos contratos de fornecimento de água, gás, eletricidade ou aquecimento urbano, incluindo fornecedores públicos, na medida em que estes produtos de base sejam fornecidos numa base contratual” (Artigo 3º).
“Com vista a simplificar e actualizar as regras aplicáveis, eliminar incoerências e colmatar as lacunas indesejáveis dessas regras”, o legislador comunitário optou, então, por revisar certos ditames das diretivas 93/13/CEE do Conselho e 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho114 e revogar as diretivas 85/577/CEE do Conselho e 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. O novel instrumento normativo importou ao seu texto as disposições mais significativas de ambos os instrumentos revogados, substituindo-os e tornando-se referência no que toca à normalização dos aspectos comuns dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial e dos contratos à distância, “afastando-se, [assim], do princípio de harmonização mínima subjacente às diretivas anteriores e permitindo aos Estados-membros manter ou adotar regras nacionais” (Considerando n. 2).
114 UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31993L0013&from=PT>.
UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. Disponível em:
<http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31999L0044&from=PT>.
UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores. Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2011:304:0064:0088:pt:PDF>. Considerando n. 63. In verbis: “As Directivas 93/13/CEE e 1999/44/CE deverão ser alteradas de forma a exigir que os Estados- Membros informem a Comissão da adopção de disposições nacionais específicas em determinados domínios”.
A harmonização dos referidos aspectos regulamentares de defesa do consumidor almejada pela Diretiva 2011/83/UE representa, portanto, verdadeiro incremento à segurança jurídica que circunda as relações de consumo no seio da União, propiciando tanto ao profissional115 quanto ao consumidor “a eliminação dos entraves resultantes da fragmentação das normas e a plena concretização do mercado interno nesta área”116. Vale lembrar que a diretiva em estudo é completamente compatível ao disposto no Regulamento (CE) n. 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (Roma I), sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, e na Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (Diretiva sobre Comércio Eletrônico), no que toca a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrônico.
O direito de reflexão trazido pela Diretiva 85/577/CEE e parcialmente adaptado pela Diretiva 97/7/CEE (nesse âmbito, denominado de direito de rescisão), nos termos do artigo 9º e seguintes do presente instrumento normativo, é completamente reformulado. Sua denominação passa a ser “direito de retratação” e o prazo de até então sete dias úteis disponíveis ao consumidor celebrante de contrato à distância ou fora do estabelecimento comercial estende-se para quatorze dias.
Os efeitos da retratação mantêm-se os mesmos da então reflexão/revisão, isto é, extinguem-se as obrigações das partes de executar o contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial ou de celebrá-los, “nos casos em que tenha sido apresentada uma oferta pelo consumidor” (Artigo 12º). As obrigações do consumidor ao exercer o seu direito restringem-se a “devolver os bens ou entregá-los ao profissional, ou a uma pessoa autorizada pelo profissional a recebê-los, sem demora injustificada e o mais tardar 14 dias a
115 UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores. Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2011:304:0064:0088:pt:PDF>. Artigo 2º, 2. In verbis: “«Profissional»: qualquer pessoa singular ou colectiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue, incluindo através de outra pessoa que actue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
116 MONTEIRO, António Pinto. O novo regime da contratação à distância: breve apresentação. Estudos de Direito do Consumidor. Coimbra, n. 9, 2015, p. 17 e 18. “Mesmo assim, [...], a Directiva 2011/83/EU acabou por ficar bastante aquém da Proposta de Directiva, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de outubro de 2008, que, entre outras medidas, e a fim de ‘reduzir a fragmentação’ e de regular de ‘forma sistemática’ o acervo legislativo respeitante à defesa do consumidor, ‘eliminando incoerências e colmatando lacunas’ – tudo isto a fazer lembrar a necessidade de um Código! –, se propunha fundir aquelas quatro diretivas num único instrumento horizontal e de harmonização total. Embora a harmonização plena se tenha mantido na actual Directiva, ainda que de forma mais mitigada, pois o art. 4º admite excepções – não sendo isenta de reparos esta viragem para directivas de harmonização plena, compreendendo-se em parte, mas contrariando a índole souple deste instrumento de harmonização –, a Directiva de 2011, repete-se, não foi tao longe quanto pretendia a Proposta de 2008”.
contar do dia em que tiver informado o profissional da sua decisão de retractação do contrato”; e os custos por si suportados referem-se apenas àqueles da devolução dos bens, “salvo se o profissional concordar em suportar o referido custo ou se o profissional não tiver informado o consumidor de que este último tem de suportar o custo” (Artigo 14º).
3.1.5 Regulamento (CE) n. 593/2008 – Roma I
O Regulamento (CE) n. 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, aberto à assinatura em 17 de junho de 2008, substituiu a Convenção 80/934/CEE (Convenção de Roma)117 no tocante à regulamentação das obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis (artigo 1º e 24º). Nos termos de seu artigo 3º, de modo geral, às partes é garantida a liberdade de escolher a lei de regência total ou parcial do contrato118, devendo tal escolha “ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das circunstâncias do caso”. Qualquer alteração quanto à determinação da referida lei, independentemente de quando for empreendida, não afeta a validade formal do contrato nem prejudica os direitos de terceiros.
O artigo 6º, 1, por sua vez, relativiza tal regra quando os contratos celebrados envolvam consumidores, estabelecendo que a eles será aplicada a lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual, desde que o profissional ali exerça as suas
117 UNIÃO EUROPEIA. Convenção 80/934/CEE sobre a lei aplicável às obrigações contratuais aberta à assinatura em Roma em 19 de junho de 1980 (Convenção de Roma). Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:41980A0934&from=PT>.
PINHEIRO, Luís de Lima. Direito Internacional Privado. 2º vol. Coimbra: Almedina, 2015, p. 314. “Segundo os Considerandos nºs 45 e 46 do Regulamento, nos termos dos arts. 1º e 2º dos Protocolos relativos à posição do Reino Unido e da Irlanda, e da Dinamarca, o Reino Unido e a Dinamarca não participaram na aprovação do Regulamento e não são por ele vinculados. Já a Irlanda comunicou a sua intenção de participar na aprovação e na aplicação do Regulamento (Considerando n. 44). Todavia, por força da Decisão da Comissão de 22 de dezembro de 2008 relativa ao pedido apresentado pelo Reino Unido com vista a aceitar o Regulamento (2009/26/CE) [JOCE L 10/22, de 15/1/2009], o Regulamento vincula o Reino Unido.
Sobre a aplicabilidade do art. 7º do Regulamento aos Estados-membros não sujeitos à aplicação do Regulamento, ver art. 178º da Dir. 2009/138/CE”.
118 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n. 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32008R0593&from=PT>. Artigo 12º, 1. In verbis: “A lei aplicável ao contrato por força do presente regulamento regula nomeadamente: a) A interpretação; b) O cumprimento das obrigações dele decorrentes; c) Nos limites dos poderes atribuídos ao tribunal pela respectiva lei de processo, as consequências do incumprimento total ou parcial dessas obrigações, incluindo a avaliação do dano, na medida em que esta avaliação seja regulada pela lei; d) As diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade; e) As consequências da invalidade do contrato”.
Ver: PINHEIRO, Luís de Lima. Direito Internacional Privado. 2º vol. Coimbra: Almedina, 2015, p. 337 e 338.
atividades comerciais ou profissionais ou, “por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas atividades”.
Salienta, contudo, o número 2 da referida norma, que a liberdade de escolha prevista no artigo 3º também poderá ser aplicada aos contratos de consumo, na medida em que não prejudique o disposto no número precedente; não prive o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições inderrogáveis da lei que, na falta de escolha, seria a aplicável; ou se tratem de relações contratuais estabelecidas de modo diverso às elencadas nas alíneas
a) e b) do número 1.
Nessa toada, acrescentam os Considerandos n. 27 e 28 do regulamento em estudo, que “deverão ser abertas várias excepções à norma geral de conflitos de leis para os contratos celebrados por consumidores”, como, por exemplo, “aos contratos que têm por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de tais bens, salvo se o contrato tem por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial”119, aos direitos e as obrigações constitutivas de um instrumento financeiro120 e aos contratos celebrados no âmbito dos sistemas multilaterais ou com o operador desses sistemas121. O próprio artigo 6º, ainda que aplicável à generalidade dos contratos obrigacionais celebrados por um consumidor, também exclui expressamente, em seu número 4, certas modalidades contratuais da sua área de abrangência122.
119 Ver: UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 94/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 1994, relativa à proteção dos adquirentes quanto a certos aspectos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis. Disponível em: < http://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31994L0047>. Acesso em: 17 de maio de 2016.
120 A exceção justifica-se para preservar, por meio da aplicação de uma única lei, a sua natureza e as eventuais negociações e ofertas enquadrando-os na qualidade de bens fungíveis.
PINHEIRO, Luís de Lima. Direito Internacional Privado. 2º vol. Coimbra: Almedina, 2015, p. 344. “Quanto ao conceito de instrumento financeiro, o preceito remete ao ponto 7 do art. 4º/1 da Diretiva 2004/39/CE que, por seu turno, remete para a Secção C do Anexo I. [...] A partir de 3 de janeiro de 2017 estas referências devem considerar-se feitas aos pontos 21 e 22 do art. 4º/1 da Dir. 2014/65/UE (art. 94º desta Diretiva)”.
121 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n. 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32008R0593&from=PT>. Artigo 4º, 1, “h”. In verbis: “Um contrato celebrado no âmbito de um sistema multilateral que permita ou facilite o encontro de múltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos financeiros, na acepção do ponto 17) do nº 1 do artigo 4º da Directiva 2004/39/CE, de acordo com regras não discricionárias e regulado por uma única lei, é regulado por essa lei”.
PINHEIRO, Luís de Lima. Direito Internacional Privado. 2º vol. Coimbra: Almedina, 2015, p. 344 e 345. “A partir de 3 de janeiro de 2017 esta referência deve considerar-se feita ao ponto 15 do art. 4º/1 da Diretiva 2014/65/EU que, por seu turno, remete para a Secção C do anexo I (art. 94º desta Diretiva)”.
122 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n. 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). Disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32008R0593&from=PT>. Artigo 6º, 4. In verbis:
Ademais, mister é ressaltar a importância das disposições do artigo 6º do Regulamento Roma I na resolução de questões que até então se impunham aos contratos eletrônicos no que toca à conexão destes com o país da residência habitual do consumidor. À época da Convenção de Roma, a aplicação do artigo 5º estava condicionada ao preenchimento alternativo de um dos pressupostos elencados em seu número 2, “que traduz[iam] situações em que o consumidor assume um comportamento passivo, em que é convencido, incentivado, pelo fornecedor, no país da sua residência habitual, a consumir, a adquirir bens ou serviços” (OLIVEIRA, 2003, p. 19)123.
Contudo, nesses termos, restavam legalmente desregulamentadas “as situações em que o consumidor acede a uma página na Internet e aí vê um anúncio publicitário relativo a algum bem ou serviço, e, nessa sequência celebra um contrato”. A esse respeito, coube, então, à doutrina especializada se manifestar em busca de uma solução para o impasse, tendo duas vertentes antagônicas se consolidado:
Segundo uma orientação doutrinária, pelo facto de um anúncio publicitário ser divulgado através da Internet, não se poderá considerar que seja direccionado ao país da residência habitual de consumidores determinados [...], mas para o mundo inteiro, e como tal não se aplicaria o art. 5º. Nesta hipótese consideram que o consumidor que acede à Internet, e aí procura os sítios que lhe interessam – celebrando ou não contratos – já não se poderá considerar como um consumidor passivo, que seria justamente a categoria visada pelo art. 5º.124
Seguindo uma orientação doutrinária divergente, outros autores consideram que bastará que o consumidor possa aceder às mensagens publicitárias que o fornecedor divulgou na Internet para que o parágrafo primeiro do art. 5º, nº 2, se considere preenchido. Entendendo-se também que a própria distinção entre consumidor passivo e activo se encontra já relativamente esbatida face à
Os nº 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes:
a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente numpaís diferente daquele em que este tem a sua residência habitual;
b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma viagem organizada na acepção da Directiva 90/314//CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (¹);
c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre umbem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE;
d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;
e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alínea h) do nº 1 do artigo 4º.
123 Ver: TEIXEIRA, Pedro Gustavo Magalhães do Nascimento. A questão da protecção dos consumidores nos contratos plurilocalizados. Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, v. 1, abril. 1994, p.285 e ss. Disponível em:
<http://www.oa.pt/Publicacoes/revista/default.aspx?idc=1&idsc=2691&volumeID=54701&anoID=54695>.
124 Ver: VICENTE, Dário Moura. Comércio electrónico e responsabilidade empresarial, in Direito da Sociedade da Informação, vol. IV, Coimbra Editora, 2003, págs. 241-289, págs. 279 ss.
globalização, rapidez e facilidade de acesso permitida pela Internet125. (OLIVEIRA, 2003, p. 20)
O Considerando número 24 do Regulamento Roma I contém indicações pontuais para exaurir as controvérsias ainda inerentes à matéria ora explanada. Exige-se, primeiramente, que, em prol de sua coerência com o Regulamento (CE) n. 44/2001 do Conselho relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I); “se faça referência à noção de ‘actividade dirigida’ como condição para a aplicação da regra de protecção do consumidor” – alinhando-se os âmbitos de aplicação dos artigos 6º e 15º dos Regulamentos Roma I e Bruxelas I, respectivamente.
Por outro lado, clama que tal noção seja objeto de uma interpretação harmonizada de ambos os regulamentos, remetendo-se ao proposto pela Declaração Conjunta do Conselho e da Comissão sobre os artigos 15º e 73º do Regulamento Bruxelas I. Sob essa perspectiva, “o simples facto de um sítio da internet ser acessível não basta para tornar aplicável o artigo 15º, é preciso também que esse sítio internet convide à celebração de contratos à distância e que tenha efectivamente sido celebrado um contrato à distância por qualquer meio”126.
Em adendo, dispõe a aludida Declaração que os sítios por si visados:
[...] não são necessariamente sítios ditos ‘interativos’: assim um sítio que convida ao envio de uma encomenda por fax destina-se a celebrar contratos à distância. Em contrapartida, não visa a celebração de um contrato à distância o sítio que, dirigindo-se aos consumidores do mundo inteiro com a intenção de prestar informações sobre um produto, os remete seguidamente para um distribuidor ou agente local para a celebração do contrato. Contrariamente ao n. 2 do artigo 5º da Convenção, o regulamento proposto já não exige que o consumidor tenha executado os atos necessários à celebração do contrato no país da sua residência
125 Ver: PINHEIRO, Luís de Lima. Direito aplicável aos contratos celebrados através da internet. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, v. 1, ano 66, jan. 2006. Disponível em:
<http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=47773&ida=47803>.
126 Em relação ao Regulamento Bruxelas I, o TJUE adotou, em 2010, no julgamento dos casos Peter Pammer (C‑585/08) e Hotel Alpenhof (C‑144/09), o entendimento: “Para determinar se um comerciante que apresenta a sua actividade no seu sítio na Internet ou no sítio de um intermediário «dirige» a sua actividade ao Estado‑Membro do domicílio do consumidor, na acepção do artigo 15.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 44/2001, é necessário apurar se, antes da eventual celebração de um contrato com o consumidor, resulta desses
sítios na Internet e da actividade global do comerciante que este pretendia estabelecer relações comerciais com consumidores domiciliados num ou vários Estados‑Membros, incluindo o do domicílio do consumidor, no sentido de que estava disposto a com eles contratar”. Disponível em:
<http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=9ea7d0f130d52ef5bb3744c54e45890de4cdf9 bf184a.e34KaxiLc3eQc40LaxqMbN4OchuLe0?text=&docid=83437&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst &dir=&occ=first&part=1&cid=320649>.
Pinheiro (2015, p. 362) salienta que “é presumível uma extensão deste entendimento ao Regulamento Roma I, uma vez que o Considerando nº 24 deste Regulamento e a decisão do TUE favorecem uma convergência na interpretação destes Regulamentos”.
habitual, condição que deixa de ter sentido para os contratos celebrados através da Internet.
No tocante à articulação do artigo 6º com o artigo 9º do Regulamento Roma I, referentes às normas de aplicação imediata, preleciona Pinheiro (2015, p. 364) que “se o fim do legislador europeu é proteger o consumidor, não se pode inferir do art. 6º nenhum limite à aplicação do art. 9º”, não obstando, assim, “que a aplicação cumulativa de normas protetoras de sistemas diferentes possa ser limitada, ou mesmo excluída, em caso de contradição normativa ou valorativa entre as normas em presença, nos termos gerais”.
3.2 A harmonização legislativa no Mercosul: desafios e perspectivas
Nos termos do artigo 1º do Tratado de Assunção127, a constituição do Mercado Comum do Sul implica, dentre outros, “a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países”, “a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados” e “a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados Partes [...], a fim de assegurar condições adequadas de concorrência” entre eles. Desse modo, nada mais compreensível do que a preocupação expressa – e de materialização imperativa – do referido texto institucional de que os Estados-membros harmonizem suas legislações em áreas pertinentes. Trata-se de pressuposto basilar do fortalecimento do processo de integração.
Por conseguinte, preleciona Basso (1995, p. 216) que:
Sem harmonização legislativa entre os países do Mercosul, os produtos do bloco continuarão a ser produzidos de acordo com a regulamentação de cada Estado- Membro, o que limita o comércio, inibe a produção em escala e impossibilita a tentativa de redução dos preços, prejudicando, consequentemente, a concorrência entre mercados. Por outras palavras, o processo de formação do mercado comum, cujo pilar é a livre circulação das mercadorias, fica seriamente ameaçado.
Tratando-se, então, a proteção transfronteiriça do consumidor de uma das áreas diretamente correlatas aos objetivos da integração econômica e sendo recomendável que as legislações internas das nações mercosulinas sejam, tanto quanto possível, assemelhadas, imprescindível é compatibilizar, de maneira adequada, a defesa do consumidor no seio do
127 MERCOSUL. Tratado de Assunção – Tratado para a Constituição de um Mercado Comum entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai de 26 de março de 1991. Disponível em:
<http://www.bcb.gov.br/rex/sgt4/Ftp/CD%20Fluxograma/Tratados%20e%20Protocolos/Tratado%20de%20 Assun%C3%A7%C3%A3o.pdf>.
Mercosul para o sucesso das relações intra e extrabloco. Assim, “sob a alegação de ‘harmonizar’ as legislações nacionais, está o Comitê Técnico n. 7 da Comissão de Comércio do Mercosul [CCM] tentando editar um novo corpo completo de leis unificadas e uniformes para os quatro países, denominado de Protocolo de Defesa do Consumidor128” (MARQUES, 1998, p. 53).
Contudo, por trás de tal considerável tentativa, esconde-se uma dupla polêmica, a qual erige-se sob a escolha do método mais indicado de compatibilização de normas à realidade da organização, isto é, se o dito Protocolo deve ser “um conjunto de normas básicas, aproximando de forma flexível as legislações dos países-membros” – harmonização de leis – ou uma legislação unitária média para os quatro países do Mercosul – unificação de leis; e sob a própria legitimação do bloco para legislar em matéria de Direito do Consumidor. É válido lembrar que a proposta inicial do CT7 era de elaborar um instrumento normativo complementar ao Tratado de Assunção, que trouxesse um rol de normas comunitárias de proteção minimamente satisfatório para nortear a defesa do consumidor nos quatro mercados envolvidos. O resultado prático de tal iniciativa, no entanto, mostrou-se bem diverso do esperado.
A elaboração de um Regulamento Comum de Defesa do Consumidor no Mercosul com efeitos unificadores desencadeou inúmeras críticas por parte da doutrina especializada, sendo considerado por muitos um “perigo de retrocesso”129 ao já conquistado a esse respeito no ordenamento jurídico interno de cada Estado-membro. A análise, nesse caso, é realizada comparando a realidade mercosulina com a experiência europeia, na qual:
Adapta[ra]m-se as legislações nacionais, harmonizando-as, numa forma de aproximação integradora de mercados, diminuindo a diferença legislativa em seu espírito, retirando o que discrimina produtos estrangeiros, o que é efetivamente restrição ou barreira, propondo normas acessórias e complementares as já existentes, propondo leis-modelo e diretivas mínimas, para os países que não possuem ainda legislação, criando algumas regras básicas comuns, declarações de direitos comuns e recomendações de objetivos comuns. (JACYNTHO e ARNOLDI, 2001, p. 99)
“A harmonização das legislações em matérias conexas ou importantes para a defesa dos interesses dos consumidores é pratica comum e, geralmente, positiva para a eficácia e realização dos direitos dos consumidores em mercados unificados” (MARQUES, 1998, p.
128 Ver anexo.
129 Expressão trazida por Cláudia Lima Marques em Mercosul como legislador em matéria de Direito do Consumidor – Crítica ao Projeto de Protocolo de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n. 26, abril/jun. 1998, p. 54.
54). De acordo com esse método, os países membros são autorizados a manter níveis mais altos de proteção ao consumidor no mercado nacional, restando ao bloco de integração estabelecer o mínimo a ser respeitado por todas as legislações consumeristas envolvidas em âmbito comunitário.
No Mercosul, a preocupação de regulamentar devidamente os direitos do consumidor se deu, pela primeira vez, em 1993, durante a X Reunião do Grupo Mercado Comum (GMC), na qual recomendou-se ao então SGT10 a elaboração de Pautas Básicas de Defesa do Consumidor, isto é, um conjunto de diretrizes que servissem de sustentáculo para uma futura política consumerista comunitária, a ser efetivada pela Comissão de Comércio do bloco. Inicialmente, propôs-se expandir o campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor do Brasil para todo o território mercosulino, tornando-o verdadeiro standard da defesa do consumidor no Mercosul. No entanto, tal proposta não prevaleceu130.
Desse modo, coube ao novo CT7 desenvolver um regulamento comum131 de defesa do consumidor que agradasse e atendesse a todas as exigências dos quatro Estados-membros da organização. Assim, em 1996132, após inúmeras tratativas diplomáticas em prol de sua elaboração no seio do Mercosul, cinco capítulos do projeto do novel Protocolo foram aprovados na forma de resoluções do Grupo Mercado Comum133. A versão final do referido instrumento, por sua vez, apesar de assinada pelos representantes dos Ministérios da Economia e da Justiça dos Estados-membros, teve a sua entrada em vigor frustrada pela recusa, em dezembro de 1997, da delegação brasileira na CCM134.
130 SANTANA, Hector Valverde Proteção internacional do consumidor: necessidade de harmonização da legislação. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 11, n. 1, 2014, p. 59. “Ocorre que há resistência dos demais países em adotar a ampliação da proteção do consumidor brasileiro. Ao contrário, pretendem que seja reduzida a proteção do consumidor brasileiro em prol do mercado comum do bloco. A discordância reside especialmente em relação a alguns institutos do direito material e também de direito processual da legislação brasileira, a exemplo do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor na relação jurídica de consumo e a possibilidade de inversão do ônus da prova, no processo civil, a favor do consumidor, quando presente a alegação verossímil ou a hipossuficiência (técnica, econômica ou informacional) do consumidor. O Uruguai resistiu especialmente quanto ao modelo brasileiro de previsão de nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas previstas nos contratos de consumo, na medida em que naquele país o contrato é elaborado com o auxílio do tabelião, não havendo razão para igualar os sistemas distintos”.
131 Tal projeto inicialmente foi denominado de Regulamento Comum, porém acabou por ser chamado de Tratado internacional ou Protocolo.
132 Na XI Reunião do Conselho do Mercado Comum ocorrida na cidade de Fortaleza, em dezembro de 1996.
133 O Protocolo de Defesa do Consumidor do Mercosul foi organizado em doze capítulos, dentre os quais cinco
— II, III, IV, IX e X, nessa ordem — tornaram-se resoluções independentes do GMC.
134 Com a pressão realizada pelas organizações de defesa do consumidor brasileiras e do BRASILCON, o texto foi considerado mero “texto de trabalho”, que não deveria ser colocado para a assinatura dos Presidentes em dezembro.
Tal rejeição foi motivada por desacordo expresso do Brasil com a evidente diminuição do grau de proteção conferida ao consumidor pelo projeto protocolar mercosulino – em comparação com o CDC – e com a metodologia ineficaz e inadequada adotada pelo CT7 no exercício dessa atividade legislativa. Além disso, afirmou a delegação tupiniquim que o texto apresentado:
Não atende à orientação estabelecida no Mercosul, segundo a qual no processo de harmonização, ter-se-á como referência a legislação mais exigente e os standards internacionais. A delegação do Brasil já havia manifestado, no âmbito do CT n. 7, sua discordância com a proposta de conferir ao documento o status de protocolo, tendo sublinhado que o mesmo carecia de consistência. (MERCOSUL/CCM XXV/Ata n. 07/97, CtN. 7 – Defensa del Consumidor)135
Acrescenta Marques (1998, p. 57 e 58) que, se aprovado e incorporado esse novo diploma legal mercosulino, a legislação consumerista dos Estados-membros seria substituída por um texto elaborado por “um órgão do Mercosul, [...] não autônomo ou supranacional, [...] formado por servidores públicos designados pelos países, economistas em sua maioria, e sem a participação democrática, seja da população, seja de seus representantes eleitos”136. Tal feito representaria o caminhar da comunidade “na contramão da história e da experiência europeia, que editou uma legislação mínima e extremamente social em matéria de direito do consumidor”.
Assim, ao considerarmos o Mercosul como mais um legislador do Cone Sul, mister é analisar de que modo a estrutura jurídico-institucional a ele imposta influencia em sua legitimação para o exercício da atividade legislativa. Não obstante vislumbrar a consolidação de um mercado comum, o Mercosul, por opção dos próprios Estados-membros, permanece fiel ao modelo de intergovernabilidade, submetido à regra da unanimidade e da cooperação (art. 2 do POP).
“Sabe-se que o modelo intergovernamental foi o único caminho possível quando da criação do Mercosul, haja vista as Cartas Constitucionais não viabilizarem a criação de um
135 Texto original: “El documento no atiende a la orientación establecida en el Mercosur, según la cual en el proceso de armonización, se tendrá como referencia la legislación más exigente y los standards internacionales. Por este motivo la delegación de Brasil no aprobó dicho documento en la CCM. La delegación de Brasil ya había manifestado, en el ámbito del CT n. 7, su disconformidad con la propuesta de conferir al documento el status de protocolo, habiendo subrayado que el mismo carecía de consistencia”.
136 Como se sabe, os textos dos Tratados ou Protocolos internacionais são submetidos à aprovação dos Parlamentos, mas estes não podem rever os artigos unificados, só aprová-los com as reservas ou recusá-los na integra. Acrescenta o artigo 1 do Projeto de Protocolo em estudo que tais normas unificadoras irão reger “todas as relações de consumo, isto é, vigorarão para todos os fornecedores e consumidores nestes quatro mercados não importando a origem da mercadoria”.
bloco supranacional” (ACCIOLY, 2010, p. 148). Atualmente, apenas o Paraguai137 e a Argentina138, após processos de revisão constitucional ocorridos, respectivamente, em 1992 e 1994, autorizaram em seus textos a delegação de competências a organismos supranacionais. O Uruguai e o Brasil permanecem reticentes quanto a esse tema, sendo que, para esse último, os principais obstáculos encontram-se no art. 5º, XXXV, e no art. 92, ambos da Constituição Federal de 1988139.
Contudo, a experiência do processo de integração da União Europeia – ainda em aperfeiçoamento – associou o sucesso das empreitadas integracionistas à presença de instituições dotadas de supranacionalidade, capazes de superar divergências circunstanciais entre os participantes. O entendimento majoritário da doutrina especializada, nesse caso, refere-se à imprescindibilidade da existência de um ordenamento jurídico comunitário para a configuração de um legítimo mercado comum. Desse modo, por óbvio, se o Mercosul realmente almejar essa audaciosa pretensão, deverá adequar-se às necessidades que lhe são inerentes, compreendendo que este caminho é árduo e muito mais longo do que previu, imaturamente, o Tratado de Assunção.
Nesse diapasão, “estamos todos frente a um paradoxo: o Mercosul ainda não tem base jurídica sólida, mas já atua e até mesmo legisla sobre direito do consumidor” (MARQUES, 1998, p. 57). Segundo Lambert (2002, p. 285), é valido ressaltar que, até a entrada em vigor do Protocolo de Ouro Preto, não era possível afirmar seguramente acerca
137 PARAGUAY. Constitución Nacional de la República del Paraguay de 20 de junio de 1992. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/par_res3.htm>. Artigo 145. In verbis: “La República del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Estados, admite un orden jurídico supranacional que garantice la vigencia de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarrollo, en lo político, económico, social y cultural”.
138 ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina sancionada en 1853 con las reformas de los años 1860, 1866, 1898, 1957 y 1994 – Ley n. 24.430. Disponível em:
<http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/804/norma.htm>. Artigo 75, inc. 24. In verbis: “Aprobar tratados de integración que deleguen competencias y jurisdicción a organizaciones supraestatales en condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respeten el orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas en su consecuencia tienen jerarquía superior a las leyes”.
139 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Artigo 4º, parágrafo único. In verbis: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
“Francisco Rezek [1997], analisando o parágrafo único do artigo 4° da Constituição Federal brasileira de 1988, afirma que o referido dispositivo pode compreender duas formas de interpretação: a primeira, mais conservadora, no sentido de que a referida norma, por ser programática, não admitiria a delegação de poderes; e a segunda, faria constatar a ausência de entraves à delegação de poderes, em uma realidade em que a integração não se mostra mais estranha. Dessa forma, poder-se-ia entender que o parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal brasileira constituiria o autorizativo para a delegação de poderes” (BRINGEL, 2010, p. 86 e 87).
da existência de um ordenamento jurídico do Mercosul, isso porque o Tratado de Assunção não dispunha de forma taxativa sobre a obrigatoriedade das normas emanadas dos órgãos comuns com capacidade decisória. A omissão legislativa a esse respeito permitia afirmar que a fonte primeira e única da obrigação comunitária encontrava-se na vontade dos Estados- membros.
Porém, com a enumeração expressa das fontes jurídicas do Mercosul no POP, o problema foi de certa forma sanado, restando assim delineada uma ordem jurídica de caráter obrigatório, dotada de nomenclatura precisa e de fontes autônomas. Contudo, tal obrigatoriedade não pressupõe que as decisões, resoluções e diretrizes do Mercosul devam ser internalizadas, haja vista que é prerrogativa estatal decidir sobre a possível incorporação de um tratado ou ato internacional ao seu ordenamento. Adota-se, portanto, o tradicional processo de recepção previsto pela Teoria Dualista do Direito Internacional Clássico140.
A experiência da UE ensina que um dos maiores desafios enfrentados por uma comunidade ao iniciar sua construção integracionista é a aceitação, por parte dos Estados- membros, da soberania partilhada. No caso europeu, os Estados-membros do bloco incluíram em suas respectivas constituições dispositivos que expressamente previam a delegação do exercício de certas competências para o poder supranacional, estabelecendo mecanismos de recepção e aplicação das leis comunitárias, que atuariam nos limites por eles delegados. O mesmo não foi feito no Mercosul.
140 Nesse contexto, estabeleceu-se nos artigos 38 e 40 do POP, o procedimento de “internalização” da norma comunitária aos sistemas jurídicos nacionais e o instituto da vigência simultânea, o qual materializa o excepcional cabimento da incorporação obrigatória.
MERCOSUL. Protocolo de Ouro Preto. Artigos 38 e 40. In verbis:
Artigo 38. Os Estados Partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias para assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no artigo 2 deste Protocolo.
Parágrafo único. Os Estados Partes informarão à Secretaria Administrativa do Mercosul as medidas adotadas para esse fim.
Artigo 40. A fim de garantir a vigência simultânea nos Estados Partes das normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo, deverá ser observado o seguinte procedimento:
i) Uma vez aprovada a norma, os Estados Partes adotarão as medidas necessárias para a sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional e comunicarão as mesmas à Secretaria Administrativa do Mercosul;
ii) Quando todos os Estados Partes tiverem informado sua incorporação aos respectivos ordenamentos jurídicos internos, a Secretaria Administrativa do Mercosul comunicará o fato a cada Estado Parte;
iii) As normas entrarão em vigor simultaneamente nos Estados Partes 30 dias após a data da comunicação efetuada pela Secretaria Administrativa do Mercosul, nos termos do item anterior. Com esse objetivo, os Estados Partes, dentro do prazo acima, darão publicidade do início da vigência das referidas normas por intermédio de seus respectivos diários oficiais. (Grifos nossos)
Posto isso, “a não ser que se aceite o princípio da Kompetenz-Kompetenz, da competência implícita na sua própria criação com finalidade integrativa, não pode haver hoje, igualmente, clareza sobre quais poderes soberanos dos Estados-partes teriam sido transferidos ao Mercosul” (MARQUES, 1998, p. 65). Os artigos 34 e 35 do POP limitaram- se, respectivamente, a reconhecer a personalidade jurídica de Direito Internacional do bloco e a expressamente autorizar o Mercosul a praticar, “no uso de suas atribuições, todos os atos necessários à realização de seus objetivos”. Pela doutrina, tal “autorização” é denominada de “supranacionalidade mínima” e é nessa exceção que o bloco ampara a sua suposta legitimação para legislar em matéria de direito do consumidor.
No entanto, ainda que o Mercosul encontre meios para legitimar a elaboração do Protocolo de Defesa do Consumidor, o referido instrumento deverá, ainda, enfrentar o maior de seus obstáculos, a inexistência de um tribunal de justiça supranacional responsável por aplicar as normas de Direito Comunitário e harmonizar a sua interpretação, mostrando-se, assim, um órgão a serviço da comunidade, “capaz de manter a coerência da estrutura legal da zona de integração e adaptar-se às novas demandas de mercado que, com certeza, aparecerão” (SIQUEIRA, 2006, p. 67-68).
Nessa toada, restam deveras comprometidos os esforços empreendidos pelo projeto de Protocolo em uniformizar as legislações consumeristas nacionais e estabelecer princípios orientadores gerais para a interpretação judicial da norma – por meio de glossários, decretos regulamentadores e decisões centralizadas do CT7. A aplicação prática das disposições protocolares continuará fadada à apreciação dos juízes e dos órgãos executivos dos sistemas nacionais de defesa do consumidor de cada Estado-membro e da supremacia de seus próprios valores e tradições.
Assim, relembra Monaco (1960, p. 62) que, teoricamente, “no domínio da unificação do direito, não poderemos unificar setor por setor, mas deve-se, ao contrário, unificar lei por lei”141. É, então, em detrimento de seu grande alcance e da série interminável de setores normativos envolvidos, que tal metodologia torna-se inaplicável à estrutura de um mercado comum. “Para alcançar os princípios normativos do Tratado, é necessário se servir de um sistema mais flexível e um tanto mais amplo do que o da unificação”142.
141 Texto original: On sait que dans le domaine de l'unification du droit on ne saurait unifier secteur par secteur, mais qu'il faut, au contraire, unifier loi par loi.
142 Texto original: [... ] pour réaliser les principes normatifs du Traité, il est nécessaire de se servir d'un système plus souple et à la fois plus large que celui de l'unification.
Ressalta, ainda, o emérito professor italiano, que:
“[...] a harmonização representa, por assim dizer, um sistema mais evoluído, porque ao harmonizar duas normas, procura-se eliminar tudo que se opõe ao que as normas produzem de efeitos similares em sua aplicação. Evidentemente, a harmonização pode também afetar a substância das regras envolvidas, mas, em princípio, ela deixa subsistir as diversidades de origem, de estrutura e de redação das regras em questão (MONACO, 1960, p. 64 e 65)143.
Nesse aspecto, tem-se, na Resolução n. 126/1994 do GMC, o principal instrumento de Direito Internacional Privado em matéria de direito do consumidor do Mercosul. Nos termos de seu artigo 2º, “até que seja aprovado um regulamento comum para a defesa do consumidor no Mercosul cada Estado Parte aplicará sua legislação de defesa do consumidor e regulamentos técnicos pertinentes aos produtos e serviços comercializados em seu território”, desde que de forma não-discriminatória.
Sob essa perspectiva, entende-se, nos moldes do direito europeu, que “os produtos e serviços que circulam livremente no Mercosul devem respeitar, quanto à tutela do consumidor, a lei do país onde serão comercializados, lei do mercado de destino” (SILVA, 2011, p. 16). Marques (2005, p. 168 e 169), por sua vez, é um tanto reticente a esse respeito, apontando duas eventuais falhas inerentes à máxima adotada:
A primeira diz respeito à utilização das normas nacionais de destino da relação comercial que deixa o consumidor turista, também chamado de consumidor ativo, sem proteção quando retorna ao seu país, pois sua proteção pressuporia a extraterritorialidade destas leis, as quais têm como característica essencial, justamente, a territorialidade. Destarte, o consumidor turista só estaria protegido quando a autoridade judiciária nacional aplicasse a lex fori a estas relações internacionais.
A segunda falha situa-se no fato de que a inserção da regra postulada implica na desproteção do consumidor interamericano, quando o foro provável de
MARQUES, Cláudia Lima. Mercosul como legislador em matéria de Direito do Consumidor – Crítica ao Projeto de Protocolo de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n. 26, abril/jun. 1998, p.
63. “A necessidade desta unificação/revogação através de leis internacionais é desmentida pela experiência da NAFTA, do BENELUX, da União Europeia, do Pacto Andino e da nossa ALADI, onde não se fizeram leis únicas e exaustivas, mas sim leis modelos, leis patamares, leis básicas, mantendo as normas mais estritas e rigorosas nacionais em matéria de garantias, direitos, saúde e segurança do consumidor!”
143 Texto original: [...] l'harmonisation représente pour ainsi dire un système plus évolué parce que en harmonisant deux normes on cherche à éliminer tout ce qui s'oppose à ce que les normes produisent des effets similaires dans leur application. Evidemment l'harmonisation peut aussi toucher à la substance des règles envisagées, mais en principe elle laisse subsister les divers ités d'origine, de structure et de libellé des règles en question.
MARQUES, Cláudia Lima. Mercosul como legislador em matéria de Direito do Consumidor – Crítica ao Projeto de Protocolo de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, n. 26, abril/jun. 1998, p.
61. “Adaptam-se as legislações nacionais para esta aproximação de mercados, diminuindo a diferença legislativa em seu espirito, retirando o que discrimina produtos estrangeiros, o que é efetivamente restrição ou barreira, propondo normas acessórias e complementares as já existentes, propondo leis-modelo para os países que não possuem ainda legislação, criando algumas regras básicas comuns ou declarações de direitos comuns”.
sua demanda for em país estrangeiro, o que comumente ocorre no comércio eletrônico de consumo. Em não havendo uma convenção internacional específica que estabeleça a aplicação de normas imperativas ou de ordem pública do país de domicílio do consumidor não é seguro que serão preservados os direitos garantidos no território nacional do adquirente. (Grifos nossos)
É preciso ter em mente, portanto, que para que a proteção do consumidor no Mercosul seja efetivamente alcançada, a insegurança oriunda dos instrumentos jurídicos propostos em si, da controversa legitimação do bloco para legislar, da metodologia legislativa adotada e da própria finalidade das normas emanadas, precisa ser superada.
“A passagem de um sistema de defesa esporádico e pontual, baseado na qualificação de determinadas relações jurídicas isoladas como portadoras de um grau de risco que justifica certas restrições à autonomia privada” (MONTEIRO, 1999, p. 212), para a ascensão de um direito mercosulino do consumidor forte e organizado, viabilizará a supressão da condição de “agente esquecido”144 assumida pelo consumidor no processo de integração e a consequente consolidação de sua defesa no âmbito da organização145.
3.2.1 A diversidade legislativa em matéria de proteção do consumidor no Mercosul
Haja vista a insuficiência de normas mercosulinas de Direito Internacional Privado que priorizem a tutela consumerista em detrimento da lógica de mercado, relevante é discorrer, brevemente, sobre a legislação interna em matéria de proteção do consumidor de cada Estado-membro fundador do Mercosul, enfatizando suas implicações na dinâmica das relações de consumo estabelecidas em âmbito interno e comunitário.
3.2.1.1 Brasil
As relações de consumo no Brasil, até a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 e, dois anos depois, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), eram regidas, primordialmente, pelas regras ultrapassadas do então Código Civil de 1916 e, em caráter excepcional, por normativas especiais que tutelavam, direta ou indiretamente, os direitos do
144 Expressão trazida por Jean Michel Arrighi em La Protección de los Consumidores y el Mercosur, Revista de Direito do Consumidor, Brasília, n. 2, 1990, p. 126.
145 Nesse sentido, também entende Monteiro (2000, p. 337) ao afirmar que “[...] a aprovação de um Código do Consumidor que unifique, sistematize e racionalize o direito do consumo compensará tais inconvenientes. Ao dizer isto, não estou a pensar num simples código-compilação, [...], traduzido numa mera recolha do direito do consumo já existentes, [...], [mas, sim] ao que pode chamar-se de código-inovação, isto é, ao código que inova, que introduz modificações na área jurídica a que respeita”.
consumidor em determinadas matérias. Com a redemocratização do Estado brasileiro e a promulgação da nova Carta Magna, a política de defesa do consumidor no Brasil passou a constar expressamente do rol de direitos e garantias fundamentais trazido pelo texto constitucional em seu artigo 5º, XXXII146, e a ser considerada um dos princípios fundamentais da atividade econômica, como previsto em seu artigo170, V147.
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro, fruto de atividade legislativa obrigatória imposta pelo artigo 48 da nova Constituição Federal148, foi aprovado em 11 de setembro de 1990, na forma da Lei n. 8.078149. O novo CDC foi organizado em cinco títulos principais, os quais dispõem sobre os direitos dos consumidores, as infrações penais, a defesa do consumidor em juízo, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a Convenção Coletiva de Consumo; e, por um último, que trata das disposições finais.
Tal dever constitucional incumbiu o Estado brasileiro de intervir a favor do consumidor sempre que necessário, determinando que a Política Nacional das Relações de Consumo por ele engendrada deverá objetivar “o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das
146 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Artigo 5º. In verbis: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; [...].
147 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Artigo 170. In verbis:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
V - defesa do consumidor; [...].
148 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Artigo 48. In verbis: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
149 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>.
PAVAN, Luiz Carlos. La Protección del Consumidor en el Mercosur: Análisis comparativo de los sistemas de Argentina, Brasil y Chile. Serie II: Estado y Sociedad, Documento n. 31. Instituto Nacional de la Administración Pública: Buenos Aires, 1997, p. 16. “Este texto legal fue gestado en un momento de euforia democrática. Los brasileños recién estaban saliendo de un largo período dictatorial, y la presencia de un fuerte movimiento popular en la "constituyente", […] se generó en el seno de la sociedad la convicción de que los problemas debían ser enfrentados con soluciones modernas que dieran lugar a transformaciones profundas, lo que se reflejó en la edición del código apuntado”.
relações de consumo” (art. 4º, caput). Na aplicação da referida política, estabelece o CDC, nos incisos de seu artigo 4º150 e no inteiro teor de seu artigo 5º151, quais os princípios que a nortearão e com quais instrumentos o poder público poderá contar ao implementá-la.
Nesse sentido, inequívoco é o caráter abrangente da proteção destinada ao consumidor no Brasil, caracterizado por alcançar, “além das relações de consumo, as operações de crédito, securitárias e um elenco de direitos básicos dos consumidores, que o protege contra todos os desvios de quantidades e qualidades” (BRINGEL, 2010, p. 76). Por outro lado, importa salientar que tal alcance estendido da Lei n. 8.078/1990 restringe-se apenas ao campo de aplicação ratione personae, uma vez que, nesse caso, tanto os direitos assegurados aos consumidores quanto os deveres fixados aos fornecedores são devidos a toda pessoa física ou jurídica (pública ou privada, bem como os entes despersonalizados – quando se trata de fornecedores), independentemente se nacional ou estrangeira152. Extensão
150 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Artigo 4º, incisos. In verbis: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa- fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
151 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Artigo 5°. In verbis:
Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:
I - manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente;
II - instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;
III - criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo;
IV - criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo;
V - concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor.
152 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>.
similar mostra-se impossível frente às regras internacionais de aplicação ratione loci das leis, estando o manto protetor do CDC limitado, portanto, ao território brasileiro.
Outra importante consequência que emana da origem constitucional do referido diploma legal e que age como verdadeiro “abre-alas” de suas disposições é o enquadramento das normas consumeristas no critério da “ordem pública e do interesse social” (art. 1º). Isso significa que estamos diante de um “conjunto de [...] normas que, num sistema jurídico dado, revestem natureza imperativa (normas inderrogáveis, ius cogens)” (FERRER CORREIA, 2000, p. 405), ou seja, que não toleram renúncia. “Normas em relação às quais são inválidos eventuais contratos ou acordos que busquem afastar sua incidência” (NETTO, 2016, p. 43)153.
Nessa toada, acrescenta MARQUES et al (2008, p. 54) que “o Código de Defesa do Consumidor é uma lei de função social, traz normas de direito privado, mas de ordem pública (direito privado indisponível), e normas de direito público”154. Por isso, autoriza-se, em tese, o juiz de conhecer de ofício as normas do CDC, salvo as concernentes aos contratos
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
153 Nesse sentido, ver: RIZZATTO NUNES, Luis Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 91; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 11; e TARTUCE, Flávio; MARTOS, José Antônio de Faria. O diálogo das fontes e a hermenêutica consumerista no Superior Tribunal de Justiça. In.: KNOERR, Viviane Coêlho de Séllos; CARVALHO NETO, Frederico da Costa; ANDRADE, Ronaldo Alves. XXII Encontro Nacional do CONPEDI/NINOVE: Sociedade global e seus impactos sobre o estudo e a afetividade do direito na contemporaneidade. 1ªed. Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p. 156-188; KASSIS, Antoine. Le nouveau droit européen des contrats internationaux. LGDJ: Paris, 1993, p. 177 e ss.
Na jurisprudência: “As normas de proteção e defesa do consumidor têm índole de ‘ordem pública e interesse social’. São, portanto, indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ‘ex ante’ e no atacado” (STJ, REsp 586.316, Rel. Min. Herman Benjamin, 2a T., DJ 19/03/09).
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA
INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. [...].STF - RE 351750, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJe 25.09.2009, RJSP v. 57, n. 384, 2009, pp. 137-143.
154 MONTEIRO, António Pinto. Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor. Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, 1999, p. 210. “O direito do consumidor emerge, assim, também como manifestação da insuficiência, perante a realidade contemporânea, da dicotomia tradicionalmente estabelecida entre direito público e direito privado”.
bancários, declaradamente vedadas pela jurisprudência155. Contudo, importa salientar que, nos termos do artigo 10 do novo Código de Processo Civil brasileiro156, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Ademais, viabiliza o CDC que, nos conflitos de consumo, o consumidor possa demandar e ser demandado em seu domicílio (art. 101, I), ter a sua defesa facilitada com a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII) e, a favor de seus direitos, que seja desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade fornecedora quando houver: abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, ou, ainda, em caso de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração (art. 28). No que tange à responsabilização pelos fatos e vícios do produto e do serviço, determina que o fabricante, o produtor, o construtor
– nacional ou estrangeiro – e o importador respondam, independentemente da existência de culpa, solidária e objetivamente (arts. 12, 13, 14, 18, 19, 20)157.
A defesa do consumidor em juízo dar-se-á no seio da jurisdição comum, sob a égide dos ritos previstos no Código de Processo Civil, ou no âmbito da jurisdição dos Juizados Especiais Cíveis, cujo procedimento é simplificado e orienta-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação (art. 2º da Lei n. 9.099/1995). Ao consumidor também é assegurada a assistência jurídica integral e gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos para arcar com as custas processuais sem prejuízo de seu próprio sustento ou de sua família (art. 5º, LXXIV, CF)158.
155 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 38 de 22 de abril de 2009. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>. In verbis: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de oficio, da abusividade das cláusulas”.
Em sentido contrário, ver Felipe P. Braga Netto em Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ, 11ª ed., Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 43.
156 BRASIL. Código de Processo Civil – Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.
157 PAVAN, Luiz Carlos. La Protección del Consumidor en el Mercosur: Análisis comparativo de los sistemas de Argentina, Brasil y Chile. Serie II: Estado y Sociedad, Documento n. 31. Buenos Aires: Instituto Nacional de la Administración Pública, 1997, p. 17. “Rige excepción a este principio para los profesionales liberales, ya que la responsabilidad sólo ocurre después de probada la culpa (art. 14 § 4º. del CDC)”.
158 KLAUSNER, Eduardo Antônio. Reflexões sobre a proteção do consumidor brasileiro nas relações internacionais de consumo. Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 42, jul/set. 2008, p. 62. “Apesar dessas disposições, o acesso aos juizados especiais cíveis, para causas cujo valor não ultrapasse quarenta salários mínimos e que sejam de menor complexidade15, é gratuito a todos, independentemente da condição econômica
No âmbito das ações coletivas, “não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogados, custas e despesas processuais” (art. 87). Para tanto, são legitimados ativos concorrentes, o Ministério Público; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear (art. 82).
Almejando estabelecer um ambiente de completa e precisa informação para o desenvolvimento das relações de consumo e neutralizar o poder de manipulação dos meios de comunicação, proíbe, o Código brasileiro, toda forma de publicidade enganosa ou abusiva. Nesse diapasão, dispõe o artigo 30, que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.
No que tange à proteção contratual, ressalta-se a completude do Capítulo VI do Título I do CDC, o qual vincula a clareza e a objetividade dos contratos à sua própria vigência entrepartes; consagra o princípio interpretativo do in dubio pro consumptore na análise das cláusulas contratuais e o direito de arrependimento do consumidor, aplicável nos casos de contratação à distância159; e considera nulas de pleno direito as cláusulas abusivas, destinando a elas tratamento rígido. E quanto às infrações penais, tem-se que o título subsequente se ocupa das “figuras especiais de crimes praticados contra as relações de consumo, sem prejuízo do disposto no Código Penal e leis especiais” (PAVAN, 1997, p. 19)160.
particular das partes, e não existe hipótese de condenação do sucumbente a arcar com honorários e custas em primeiro grau de jurisdição. Nesse caso, o vencido só arca com custas e honorários de advogado no caso de recurso”.
159 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Artigo 49. In verbis: “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”.
160 Texto original: “[…] figuras especiales de crímenes practicados contra las relaciones de consumo, sin perjuicio del dispuesto en el Código Penal y leyes especiales”.
Assim, a fim de propiciar à sociedade brasileira o correto exercício de todos os elementos da Política Nacional das Relações de Consumo constantes do Código de Defesa do Consumidor e da própria Carta Magna de 1988, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) foi organizado de modo a integrar todos os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades privadas de defesa do consumidor. Cabe ao Departamento Nacional de Defesa do Consumidor, da Secretaria Nacional de Direito Econômico (MJ) – ou ao órgão federal que venha a substituí-lo –, coordenar a política do SNDC (arts. 105 e 106), com o auxílio dos PROCON’s, das delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo, das Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, das Associações de Defesa do Consumidor e da Defensoria Pública.
No que se refere às regras de Direito Internacional Privado aplicáveis às obrigações contratuais, tem-se que, no Brasil, empregar-se-á a lei do país em que essas se constituírem, reputando tal feito ao lugar em que residir o proponente do contrato, nos termos do artigo 9º, caput e § 2º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei n. 4.657/1942161. “Esta regra está obsoleta e não acompanha a dinâmica comercial instaurada com o processo globalizante e integracionista, posto que não consagra a liberdade das partes de escolherem a lei aplicável ao contrato internacional [...]” (AURELIANO, 2011, p. 19). “A LICC, no artigo 9º, não menciona o princípio da autonomia da vontade e, embora, muitos juristas sejam a favor, o princípio é proibido” (ARAÚJO, 2004, p. 329)162.
É inegável que “estes instrumentos tornaram, mesmo que existam virtuais falhas, o direito do consumidor efetivamente aplicado no Brasil como um direito moderno, acessível, democrático e, na maioria dos casos, simples, gratuitos para o consumidor” (BATISTI, 2001,
p. 181). Desse modo, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor tornou-se um verdadeiro
161 BRASIL. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>.
Até 2010, tal lei era denominada de Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro – LICC.
162 Ver, também, RODAS, João Grandino. Elementos de conexão do direito internacional privado brasileiro relativamente às obrigações contratuais. In: RODAS, João Grandino (coord.). Contratos Internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Em sentido contrário, ver TENÓRIO, Oscar. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1976, p. 393.
Sustenta-se, ainda, que a autonomia seria aceita de forma indireta, por exemplo, no caso das convenções de arbitragem. Ver: SILVA, Izabela Guimarães Cunha. A Proteção dos Consumidores no Direito Internacional Privado – Análise das Regras sobre a Lei Aplicável aos Contratos Internacionais de Consumo por meio Eletrônico. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, janeiro de 2010, p. 173 e ss.
paradigma no desenvolvimento das legislações consumeristas dos demais Estados-membros do Mercosul.
3.2.1.2 Argentina
Nos termos dos artigos 42 e 43 da Constituição da Nação Argentina, aos consumidores e usuários de bens e serviços é assegurado, no âmbito da relação de consumo, o direito de proteção à saúde, à segurança e aos interesses econômicos, de informação adequada e verídica, de liberdade de escolha e de condições de tratamento equitativas e dignas163; bem como o direito de interpor ação de amparo contra todo ato ou omissão de autoridades públicas ou particulares, que de modo atual ou iminente, lesione, restrinja, altere ou ameace, com arbitrariedade ou ilegalidade manifesta, direitos e garantias a si reconhecidos164. No campo infraconstitucional, a proteção do consumidor é regulamentada pela Lei n. 24.240 de 22 de setembro de 1993 – Ley de Defensa del Consumidor165 – em conjunto com leis, resoluções, disposições e decretos que dispõem sobre matérias específicas a ela relacionadas166.
163 ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina sancionada en 1853 con las reformas de los años 1860, 1866, 1898, 1957 y 1994 – Ley n. 24.430. Disponível em:
<http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/804/norma.htm>. Artigo 42. In verbis: “Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno”.
164 ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina sancionada en 1853 con las reformas de los años 1860, 1866, 1898, 1957 y 1994 – Ley n. 24.430. Disponível em:
<http://infoleg.mecon.gov.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/804/norma.htm>. Artigo 43. In verbis:
Toda persona puede interponer acción expedita y rápida de amparo, siempre que no exista otro medio judicial más idóneo, contra todo acto u omisión de autoridades públicas o de particulares, que en forma actual o inminente lesione, restrinja, altere o amenace, con arbitrariedad o ilegalidad manifiesta, derechos y garantías reconocidos por esta Constitución, un tratado o una ley. En el caso, el juez podrá declarar la inconstitucionalidad de la norma en que se funde el acto u omisión lesiva.
Podrán interponer esta acción contra cualquier forma de discriminación y en lo relativo a los derechos que protegen al ambiente, a la competencia, al usuario y al consumidor, así como a los derechos de incidencia colectiva en general, el afectado, el defensor del pueblo y las asociaciones que propendan a esos fines, registradas conforme a la ley, la que determinará los requisitos y formas de su organización.
[…]. (Grifos nossos)
165 ARGENTINA. Ley de Defensa del Consumidor de 22 de septiembre de 1993 – Ley 24.240. Disponível em: <http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/638/texact.htm>.
166 Como exemplo, citam-se: a Lei 22.802/1983 sobre lealdade comercial, a Lei n. 25.156 de Defesa da Competência, o Decreto n. 276/1998 sobre arbitragem de consumo, as Resoluções n. 212/1998 e n. 314/1998 sobre tribunais arbitrais, a Lei n. 25065/1998 e a Resolução n. 134/1998 sobre cartões de crédito, a Resolução
n. 616/98 que dispõe sobre o Conselho Consultivo dos Consumidores, a Resolução n. 906/98 sobre os contratos escritos de consumo, entre outras.
Tendo em vista que o legislador argentino tomou como fonte de inspiração o Código de Defesa do Consumidor brasileiro ao elaborar a lei de defesa do consumidor de seu país, inevitável é identificar pontos de convergência entre o instrumento protetivo da Argentina e o de seu vizinho. No que se refere ao caráter público dos dispositivos da lei in voga, do princípio interpretativo do in dubio pro consumptore167, da extensão da proteção aos bens usados e do objeto da proteção a partir de então engendrada, ambos os ordenamentos se assemelham.
A defesa do consumidor na Argentina, nos termos do artigo 41 da lei em comento168, é de responsabilidade da Secretaria do Comércio Interior – integrante do Ministério da Economia e da Produção –, no papel de “autoridade nacional de aplicação”, e das administrações provinciais e da administração autônoma da cidade de Buenos Aires, como “autoridades locais de aplicação”. Às autoridades de aplicação cabem o controle, a vigilância e o julgamento do cumprimento da Ley de Defensa del Consumidor e de suas normas regulamentares aquando de eventuais infrações cometidas em suas respectivas jurisdições.
No que tange ao direito de ação do consumidor, “um ponto positivo da lei é a disposição do artigo 52 que brinda ao consumidor [...] o direito de ingressar em juízo para defender seus direitos afetados ou ameaçados, sem a necessidade do dano concreto” (PAVAN, 1997, p. 28)169. Isso representa o evidente caráter protetivo almejado pela lei
167 ARGENTINA. Ley de Defensa del Consumidor de 22 de septiembre de 1993 – Ley 24.240. Disponível em: <http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/638/texact.htm>. Artigo 3º. In verbis: “[…] En caso de duda sobre la interpretación de los principios que establece esta ley prevalecerá la más favorable al consumidor. […]”.
AURELIANO, Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas. Direito do Consumidor no Mercosul. Revista Eletrônica FEATI – Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti, v. 7, 2009, p. 9. Disponível em:
<http://www.feati.edu.br/revistaeletronica/downloads/numero7/direitoConsumidorMercosul.pdf>. “O Código de Defesa do Consumidor do Brasil [art. 47] tem dispositivo expresso de interpretação mais favorável ao consumidor, porém em relação a cláusulas contratuais. A Lei Argentina traz o dispositivo de modo a não suscitar dúvida de que o princípio se dirige a todas as relações entre fornecedor e consumidor, o que caracteriza um aperfeiçoamento não contido no Código Brasileiro”.
168 ARGENTINA. Ley de Defensa del Consumidor de 22 de septiembre de 1993 – Ley 24.240. Disponível em: <http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/638/texact.htm>. Artigo 41. In verbis: “Aplicación nacional y local. La Secretaría de Comercio Interior dependiente del Ministerio de Economía y Producción, será la autoridad nacional de aplicación de esta ley. La Ciudad Autónoma de Buenos Aires y las provincias actuarán como autoridades locales de aplicación ejerciendo el control, vigilancia y juzgamiento en el cumplimiento de esta ley y de sus normas reglamentarias respecto de las presuntas infracciones cometidas en sus respectivas jurisdicciones”.
169 Texto original: “Un punto positivo de la ley es la disposición del artículo 52 que brinda al consumidor o usuario el derecho de ingresar en juicio para defender sus derechos afectados o amenazados, sin la necesidad del daño concreto”.
argentina, concedendo ao consumidor e aos demais legitimados ativos a oportunidade de se prevenir ao invés de simplesmente remediar um problema. Nesse sentido, é válido ressaltar a assumpção, pelo Ministério Público Fiscal, da titularidade ativa de ações ingressadas pelas associações de consumidores e usuários judicialmente legitimadas, em caso de desistência ou abandono da causa170.
No que diz respeito às condições da oferta e da venda, são vedadas as condutas que coloquem os consumidores em situações vergonhosas, vexatórias ou intimidantes (artigo 8º bis) ou que concedam tratamento diferenciado a consumidores estrangeiros, seja sobre os preços, qualidades técnicas ou qualquer outro aspecto relevante dos bens e serviços comercializados. A lei inova ao permitir a oferta pública de produtos defeituosos, usados ou reconstituídos aos consumidores, desde que tais circunstâncias sejam indicadas de forma precisa e notória (artigo 9º). Quanto à publicidade enganosa ou abusiva, a regulamentação fica à cargo da Lei n. 22.802 – Ley de Lealdade Comercial.
Na Argentina, o Direito Internacional Privado não contempla normas especificamente destinadas a proteger o consumidor – principalmente o consumidor turista e aquele que contrata à distância ou por meios eletrônicos –, indicando a aplicação das leis do lugar da execução e da celebração a todas as modalidades contratuais. Entrementes, Araújo (2004, p. 335) “propõe que apesar da existência destas regras de lei aplicável o consumidor possa escolher entre a ley del lugar de adquisición del producto e uma conexão para a lei mais favorável ao consumidor”, remetendo-se, assim, ao “art. 5º da Convenção de Roma de 1980, que na ausência de manifestação de vontade concede preferência à lei do país de residência habitual do consumidor, fixando uma regra de conexão rígida (art.5, inc.3)” (AURELIANO, 2011, p. 18).
170 ARGENTINA. Ley de Defensa del Consumidor de 22 de septiembre de 1993 – Ley 24.240. Disponível em: <http://www.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/0-4999/638/texact.htm>. Artigo 52. In verbis: Acciones Judiciales. Sin perjuicio de lo dispuesto en esta ley, el consumidor y usuario podrán iniciar acciones judiciales cuando sus intereses resulten afectados o amenazados.
La acción corresponderá al consumidor o usuario por su propio derecho, a las asociaciones de consumidores o usuarios autorizadas en los términos del artículo 56 de esta ley, a la autoridad de aplicación nacional o local, al Defensor del Pueblo y al Ministerio Público Fiscal. Dicho Ministerio, cuando no intervenga en el proceso como parte, actuará obligatoriamente como fiscal de la ley.
En las causas judiciales que tramiten en defensa de intereses de incidencia colectiva, las asociaciones de consumidores y usuarios que lo requieran estarán habilitadas como litisconsortes de cualquiera de los demás legitimados por el presente artículo, previa evaluación del juez competente sobre la legitimación de éstas. […]
En caso de desistimiento o abandono de la acción de las referidas asociaciones legitimadas la titularidad activa será asumida por el Ministerio Público Fiscal.
3.2.1.3 Paraguai
A defesa do consumidor na República do Paraguai está prevista expressamente nos artigos 27171, 38172 e 72173 da Constituição Nacional de 1992 e é eminentemente regulamentada, a nível infraconstitucional, pela Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de outubro de 1998 – Lei n. 1.334174. Haja vista a lei paraguaia ter tido como principais fontes de inspiração o Código de Defesa do Consumidor do Brasil e a Ley de Defensa del Consumidor da Argentina, tem-se que boa parte de suas disposições almejam a mesma proteção ao consumidor mercosulino já engendrada pelas legislações nacionais preexistentes.
Em aspectos relacionados à ordem pública e ao princípio interpretativo do favorecimento do consumidor em casos de dubiedade, bem como ao rol de direitos básicos do consumidor, as previsões paraguaias não deixam a desejar frente às legislações vizinhas. No entanto, o mesmo não pode ser dito com relação à proibição de vantagem manifestamente excessiva, à obrigatoriedade de se compatibilizar os produtos ofertados às normas dos órgãos competentes e ao aumento injustificado de preços. O direito de alterar cláusulas contratuais costumeiramente garantido ao consumidor e a responsabilização por defeitos do produto ou
171 PARAGUAY. Constitución Nacional de la República del Paraguay de 20 de junio de 1992. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/par_res3.htm>. Artigo 27. In verbis:
El empleo de los medios de comunicación es de interés público; en consecuencia, no se los podrá clausurar ni suspender su funcionamiento.
No se admitirá la prensa carente de dirección responsable.
Se prohibe toda práctica discriminatoria en la provisión de insumos para la prensa, así como interferir las frecuencias radioeléctricas y obstruir, de la manera que fuese, la libre circulación, la distribución y la venta de periódicos, libros, revistas o demás publicaciones con dirección o autoría responsable.
Se garantiza el pluralismo informativo.
La ley regulará la publicidad a los efectos de la mejor protección de los derechos del niño, del joven, del analfabeto, del consumidor y de la mujer. (grifo nosso)
172 PARAGUAY. Constitución Nacional de la República del Paraguay de 20 de junio de 1992. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/par_res3.htm>. Artigo 38. In verbis: “Toda persona tiene derecho, individual o colectivamente, a reclamar a las autoridades públicas medidas para la defensa del ambiente, de la integridad del hábitat, de la salubridad pública, del acervo cultural nacional, de los intereses del consumidor y de otros que, por su naturaleza jurídica, pertenezcan a la comunidad y hagan relación con la calidad de vida y con el patrimonio colectivo”.
173 PARAGUAY. Constitución Nacional de la República del Paraguay de 20 de junio de 1992. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/spanish/par_res3.htm>. Artigo 72. In verbis: “El Estado velará por el control de la calidad de los productos alimenticios, químicos, farmacéuticos y biológicos, en las etapas de producción, importación y comercialización. Asimismo facilitará el acceso de factores de escasos recursos a los medicamentos considerados esenciales”.
174 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>.
do serviço também ficaram prejudicados em razão da lei não se ocupar de regras contratuais nem de acidentes de consumo.
No que toca à conceituação dos elementos fundamentais da relação de consumo, as únicas excentricidades verificadas na lei do Paraguai se referem à equiparação do conceito de usuário ao de consumidor, ambos considerados como a “pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira que adquira, utilize ou disfrute como destinatário final de bens ou serviços de qualquer natureza”; e à referência ao consumo sustentável, definido como o “ato de consumo destinado a satisfazer necessidades humanas, realizado sem comprometer, prejudicar ou afetar significativamente a qualidade do meio ambiente e a sua capacidade para satisfazer as necessidades das gerações presentes e futuras”175.
Com relação à regulamentação dos mecanismos de marketing, a legislação paraguaia abarca apenas a publicidade enganosa ou abusiva, sendo as demais modalidades normatizadas em apartado. O instrumento normativo também se exime da tipificação penal de condutas contrárias à proteção do consumidor, cabendo ao Código Penal pátrio resguardar o seu patrimônio e a sua segurança frente a fraudes e a riscos coletivos.
Ao Estado do Paraguai – seja a nível nacional, regional ou municipal – é atribuída a formulação e a divulgação de planos de educação do consumidor, fomentando a criação e o funcionamento das associações de consumidores e a consequente participação social176. A aplicação dos ditames da Ley de Defensa del Consumidor, por sua vez, fica sob o cuidado do Ministério da Indústria e do Comércio e, no âmbito local, dos municípios, podendo ambas as autoridades atuarem de forma concorrente177.
175 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>. Artigo 4°, “a” e “g”. In verbis:
A los efectos de la presente ley, se entenderán por:
a) CONSUMIDOR Y USUARIO: a toda persona física o jurídica, nacional o extranjera que adquiera, utilice o disfrute como destinatario final de bienes o servicios de cualquier naturaleza;
(…)
g) CONSUMO SUSTENTABLE: es todo acto de consumo, destinado a satisfacer necesidades humanas, realizado sin socavar, dañar o afectar significativamente la calidad del medio ambiente y su capacidad para dar satisfacción a las necesidades de las generaciones presentes y futuras.
176 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>. Artigo 48. In verbis: “Incumbe al Estado, las gobernaciones y municipalidades, la formulación de planes de educación para el consumo y su difusión pública, fomentando la creación y el funcionamiento de las asociaciones de consumidores y la participación de la comunidad en ellas”.
177 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>. Artigo 40. In verbis: “En el ámbito nacional será autoridad de aplicación de la presente ley el Ministerio de Industria y Comercio, y en el ámbito local, las municipalidades; pudiendo ambos actuar en forma concurrente”.
Nessa toada, e de modo completamente original, tem-se que, no Paraguai:
A defesa dos interesses individuais, habitualmente cabível ao titular do direito, somente pode ser feita por ASSOCIAÇÃO, em caráter subsidiário, e, desde que não se demande indenização por danos ou prejuízos. Já a defesa coletiva dos interesses coletivos e difusos pode ser feita por associação, autoridade competente nacional ou local ou pelo Ministério Público. (BATISTI, 2001, p. 453)178
Nos termos do artigo 45 da lei em comento, as referidas associações de consumidores são definidas como organizações constituídas por pessoas físicas, sem interesses econômicos, comerciais ou políticos, e cujo objeto é garantir a proteção e a defesa dos consumidores e usuários e promover a informação, a educação, a representação e o respeito de seus direitos179. Requisitos estritos a serem cumpridos para que uma organização possa atuar na condição de “associação de consumidores” são elencados no artigo subsequente.
Ademais, ao contrário do que acontece no Brasil, a “exploração comercial seletiva de informação [por parte das empresas beneficiadas], ou seja, quando a associação promove tecnicamente uma análise de produtos e conclui que determinado produto tem vantagem sobre outros”, é proibida pela lei paraguaia. Destaca, todavia, Aureliano (2009, p. 13) que a “omissão mais gritante que apresenta a Lei do Paraguai” diz respeito:
[...] [a]os vícios de quantidade e qualidade, já que considera inexistente a responsabilidade por vício oculto quando a diminuição no valor ou a qualidade do bem forem de pouca monta, atribuindo, inclusive, a prova ao adquirente, permitindo também às partes renunciarem, restringirem ou ampliarem a responsabilidade pelos vícios redibitórios, sempre que não houver dolo.
178 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>. Artigo 43. In verbis: “La defensa en juicio de los derechos que esta ley precautela podrá ser ejercida a título individual como a título colectivo. Será ejercida colectivamente cuando se encuentren involucrados intereses o derechos difusos o colectivos. Tendrán acción el consumidor o usuario, las asociaciones de consumidores que cumplan con los requisitos de los Arts. 45, 46, y 47, la autoridad competente nacional o local y la Fiscalía General de la República. Las acciones tendientes al resarcimiento por daños y perjuicios sólo podrán promoverse por los consumidores o usuarios afectados”.
179 PARAGUAY. Ley de Defensa del Consumidor y del Usuario de 27 de octubre de 1998– Ley n. 1.334. Disponível em: <http://www.sedeco.gov.py/PDF/Ley1334-98_modif_2340-03.pdf>. Artigo 45. In verbis: “Se entenderá por asociación de consumidores, toda organización constituida por personas físicas, que no tenga intereses económicos, comerciales o políticos, y cuyo objeto sea garantizar la protección y la defensa de los consumidores y usuarios y promover la información, la educación, la representación y el respeto de sus derechos”.
Silva (2011, p. 18) arremata que, “o Código Civil paraguaio é de 1985 e não menciona a defesa do consumidor, ademais de em matéria contratual indicar a aplicação da lei do lugar de execução da obrigação (art. 17)”180.
3.2.1.4 Uruguai
A República Oriental do Uruguai, ao contrário do que se observa nos demais Estados-membros do Mercosul, não possui, em sua Constituição181, nenhuma previsão expressa no que toca à proteção do consumidor, valendo-se, apenas, de tímidas referências à matéria nos artigos 24182, 44183 e 52184 da Carta de1967. À espera da aprovação de um Regulamento Comum de Proteção do Consumidor pelo Mercosul, o país retardou ao máximo a elaboração de uma lei própria a esse respeito, porém, com a dificuldade do bloco em alcançar tal objetivo, acabou publicando, em 17 de agosto de 2000, a Ley de Defensa del Consumidor - Lei n. 17.250.
Não obstante a manifestação derradeira do Uruguai quanto à adoção de uma normativa específica de defesa do consumidor no âmbito do Mercosul, é válido lembrar que
180 PARAGUAY. Código Civil del Paraguay – Ley n. 1183/85. Disponível em:
<https://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_Paraguay.pdf>. Artigo 17. In verbis: “Los derechos de crédito se reputan situados en el lugar donde la obligación debe cumplirse. Si éste no pudiere determinarse se reputarán situados en el domicilio que en aquel momento tenía constituido el deudor”.
181 Constitución de la República Oriental del Uruguay de 1967 con las modificaciones plebiscitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de noviembre de 1994, el 8 de diciembre de 1994, el 8 de diciembre de 1996 y el 31 de octubre de 2004.
182 URUGUAY. Constitución de la República Oriental del Uruguay de 1967 con las modificaciones plebiscitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de noviembre de 1994, el 8 de diciembre de 1994, el 8 de diciembre de 1996 y el 31 de octubre de 2004. Disponível em:
<http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Artigo 24. In verbis: “El Estado, los Gobiernos Departamentales, los Entes Autónomos, los Servicios Descentralizados y, en general, todo órgano del Estado, serán civilmente responsables del daño causado a terceros, en la ejecución de los servicios públicos, confiados a su gestión o dirección”.
183 URUGUAY. Constitución de la República Oriental del Uruguay de 1967 con las modificaciones plebiscitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de noviembre de 1994, el 8 de diciembre de 1994, el 8 de diciembre de 1996 y el 31 de octubre de 2004. Disponível em:
<http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Artigo 44. In verbis: “El Estado legislará en todas las cuestiones relacionadas con la salud e higiene públicas, procurando el perfeccionamiento físico, moral y social de todos los habitantes del país. Todos los habitantes tienen el deber de cuidar su salud, así como el de asistirse en caso de enfermedad. El Estado proporcionará gratuitamente los medios de prevención y de asistencia tan sólo a los indigentes o carentes de recursos suficientes”.
184 URUGUAY. Constitución de la República Oriental del Uruguay de 1967 con las modificaciones plebiscitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de noviembre de 1994, el 8 de diciembre de 1994, el 8 de diciembre de 1996 y el 31 de octubre de 2004. Disponível em:
<http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/const004.htm>. Artigo 52. In verbis: “Prohíbese la usura. Es de orden público la ley que señale límite máximo al interés de los préstamos. Esta determinará la pena a aplicarse a los contraventores. Nadie podrá ser privado de su libertad por deudas”.
o consumidor uruguaio não se encontrava, até então, completamente desprotegido, haja vista a existência de certas leis esparsas que, ainda que indiretamente, se ocupavam da matéria, como a Lei n. 8.933/1932185, sobre concorrência desleal, a Lei n. 10.940/1947, sobre questões de abastecimento, e a Lei n. 14.095/1972, sobre a prevenção e a repressão dos delitos econômicos.
O instrumento protetivo uruguaio, assim como as legislações brasileira, argentina e paraguaia, traz em seu texto a definição de consumidor e de fornecedor, compreende a relação de consumo como toda a relação jurídica entre eles estabelecida e elenca os direitos essenciais a serem garantidos ao consumidor186. No que se refere aos aspectos gerais concernentes à ordem pública, à proteção do menor impúbere e a sua capacidade para figurar
185 FEKETE, Elisabeth Kasznar. A proteção ao consumidor como instrumento de aperfeiçoamento da integração econômica no Mercosul: com especial relevo para seu relacionamento com o direito das marcas e da concorrência desleal. Revista de Direito do Consumidor, Brasília, n. 20, out/dez. 1996, p. 115. “Em 1982, o Poder Executivo promulgou novos dispositivos para proteger o consumidor contra a concorrência desleal, pelo Dec. 264/82”.
186 URUGUAY. Ley de Defensa del Consumidor de 17 de agosto de 2000 – Ley n. 17.250. Disponível em:
<http://www.parlamento.gub.uy/leyes/AccesoTextoLey.asp?Ley=17250&Anchor=>. Artigo 6º. In verbis: Son derechos básicos de consumidores:
A) La protección de la vida, la salud y la seguridad contra los riesgos causados por las prácticas en el suministro de productos y servicios considerados peligrosos o nocivos.
B) La educación y divulgación sobre el consumo adecuado de los productos y servicios, la libertad de elegir y el tratamiento igualitario cuando contrate.
C) La información suficiente, clara, veraz, en idioma español sin perjuicio que puedan emplearse además otros idiomas.
D) La protección contra la publicidad engañosa, los métodos coercitivos o desleales en el suministro de productos y servicios y las cláusulas abusivas en los contratos de adhesión, cada uno de ellos dentro de los términos dispuestos en la presente ley.
E) La asociación en organizaciones cuyo objeto específico sea la defensa del consumidor y ser representado por ellas.
F) La efectiva prevención y resarcimiento de los daños patrimoniales y extra patrimoniales.
G) El acceso a organismos judiciales y administrativos para la prevención y resarcimiento de daños mediante procedimientos ágiles y eficaces, en los términos previstos en los capítulos respectivos de la presente ley.
como consumidor187, à proibição de práticas abusivas188 e de publicidade enganosa e comparativa189, inspira-se a lei uruguaia nos ditames da lei brasileira.
Contudo, ainda carecem de regulamentação os institutos que envolvem a inversão do ônus da prova, a proibição de exigência de vantagem manifestamente excessiva, a obrigatoriedade de se compatibilizar os produtos ofertados às normas dos órgãos competentes e o aumento injustificado de preços. Nesse sentido, fica à cargo do Ministério da Economia e Finanças, por meio da Direção Geral de Comércio, fiscalizar, a nível nacional, o cumprimento dos dispositivos legais in voga, aplicar sanções e formular e colocar em prática as políticas de defesa do consumidor.
Importa salientar, também, que a Ley de Defensa del Consumidor do Uruguai é a única, dentre os demais instrumentos normativos nacionais presentes no Mercosul, a prever, expressamente – artigo 1º190 –, a aplicação complementar e subsidiária do Código Civil191. Ademais, tem-se que a presente lei estabelece como decadencial o prazo de reclamação do consumidor quanto a eventuais vícios do produto – salvo no caso de vícios aparentes, os quais são tolerados – e que a “doutrina uruguaia admite as ações coletivas, proporcionando legitimidade indistinta ao Ministério Público, a qualquer interessado e a associações, sendo cabíveis todos os tipos de ações, inclusive as antecipatórias” (AURELIANO, 2009, p. 17).
187 AURELIANO, Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas. Direito do Consumidor no Mercosul. Revista Eletrônica FEATI – Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti, v. 7, 2009, p. 16. Disponível em:
<http://www.feati.edu.br/revistaeletronica/downloads/numero7/direitoConsumidorMercosul.pdf>. “Estabelece no seu Código Civil que não podem contratar os impúberes (menores de 16 anos) e que seus atos sequer produzem obrigação natural, neste caso, o impúbere tem maior proteção do que o consumidor que não o seja, já que a disciplina reconhece inclusive graus”.
188 BRINGEL, Lara Lívia Cardoso Costa. Harmonização das normas de proteção ao consumidor no âmbito do Mercosul. 2010. 118 f. Dissertação (Mestrado em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento), Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2010, p. 83. “A lei uruguaia diferentemente da lei argentina e paraguaia traz inovação em relação às práticas consideradas abusivas nas ofertas [...]”.
189 AURELIANO, Gislaine Fernandes de Oliveira Mascarenhas. Direito do Consumidor no Mercosul. Revista Eletrônica FEATI – Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti, v. 7, 2009, p. 9. Disponível em:
<http://www.feati.edu.br/revistaeletronica/downloads/numero7/direitoConsumidorMercosul.pdf>. Caracterizada “através de declarações gerais ou indiscriminadas que induzam o consumidor a estabelecer a superioridade de produto ou serviço em relação aos outros”.
190 URUGUAY. Ley de Defensa del Consumidor de 17 de agosto de 2000 – Ley n. 17.250. Disponível em:
<http://www.parlamento.gub.uy/leyes/AccesoTextoLey.asp?Ley=17250&Anchor=>. Artigo 1º. In verbis: “La presente ley es de orden público y tiene por objeto regular las relaciones de consumo, incluidas las situaciones contempladas en el inciso segundo del artículo 4º. En todo lo no previsto, en la presente ley, será de aplicación lo dispuesto en el Código Civil.
191 Em casos como o da adoção de sanções cominatórias (astreintes) frente ao descumprimento de uma de suas previsões e a responsabilidade por acidente de consumo, por exemplo.
Não há tipificação penal específica à defesa do consumidor no ordenamento jurídico uruguaio.
No tocante à lei aplicável às relações obrigacionais, “o Código Civil (1868) deste país, com modificação datada de 1994, por ser anterior à edição da lei em defesa do consumidor também não contribuiu para maximizar a tutela deste”, estabelecendo como pertinente à matéria a lei do lugar de execução da obrigação (art. 2.399)192, “sem atentar-se para o domicílio do consumidor ou, mesmo que não totalmente seguro, para a aplicação da regra do mercado de destino” (SILVA, 2011, p. 18).
192 URUGUAY. Código Civil del Uruguay. Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_Uruguay.pdf>. Artigo 2399. In verbis: “Los actos jurídicos se rigen, en cuanto a su existencia, naturaleza, validez y efectos, por la ley del lugar de su cumplimiento, de conformidad, por otra parte, con las reglas del interpretación contenidas en los artículos 34 a 38 inclusive del Tratado de Derecho Civil de 1889”.
CONCLUSÃO
Com o advento da Internet, o contato progressivo e facilitado da população com os serviços informáticos e a consequente internacionalização das relações privadas, o consumidor mundial passou a ter acesso a diversas ofertas de bens e serviços estrangeiros a partir de um simples click do mouse. A comodidade que estimulou tal participação mais ativa no mercado de consumo, no entanto, acabou, também, por intensificar a sua já inerente hipossuficiência estrutural.
Diante disso, ao Estado restou intervir nas relações de consumo por meio da imposição de normas imperativas que vislumbrassem superar o desequilíbrio entre consumidores e fornecedores incitado pelo novel modelo de contratação. Contudo, não obstante a crescente importância do ciberespaço na movimentação do mercado de consumo e a quantidade cada vez maior de querelas jurídicas daí oriundas, tanto as existentes regras de conexão do Direito Internacional Privado quanto a legislação específica de defesa do consumidor no comércio eletrônico ainda se mostram insuficientes.
Ao consumidor internacional, é necessário resguardar uma proteção legal adequada e, no mínimo, equivalente à assegurada pelas suas próprias jurisdição e lei, em especial quando ele está inserido no contexto de um bloco de integração. Trata-se de subsumir à prática o “‘desejo de fazer justiça’ às partes envolvidas em um litígio transfronteiriço”.
Assim, mesmo que, ao contrário da experiência europeia, a estrutura mercosulina destinada a solucionar eventuais conflitos seja, ainda, deficiente – em especial devido ao caráter provisório empreendido, à ausência de instrumentos específicos destinados a participação do particular, à falta de supranacionalidade e ao procedimento burocrático interno aplicável quando do exercício da jurisdição delibatória por parte de cada Estado- membro –, quando se trata de proteger internacionalmente o consumidor, é possível identificar certo empenho por parte do Mercosul em elaborar normas comunitárias que consolidem um contexto de segurança jurídica intrabloco sustentado por elementos de conexão comuns eficientes, capazes de superar, substancial e processualmente, a supremacia dos valores e tradições particulares de cada Estado-membro.
Infelizmente, o Mercosul ainda está distante de transformar essa perspectiva em realidade. As normas que dispõem sobre o foro competente em matéria de proteção do consumidor continuam a ser de direito interno e a produzir efeitos apenas no Estado-membro
de origem. A harmonização legislativa das regras nacionais nesse domínio, por sua vez, depara-se com a quase irresolúvel dicotomia da escolha do método mais indicado para a compatibilização das normas à realidade do bloco e da sua controversa legitimação para legislar em matéria de Direito do Consumidor.
Contudo, ainda que o Mercosul encontre meios para legitimar a elaboração de um Regulamento Comum de Defesa do Consumidor, viabilizando a entrada em vigor do já existente Protocolo de Santa Maria sobre jurisdição internacional em matéria de relações de consumo, ambos os instrumentos deverão, ainda, enfrentar o maior de seus obstáculos, a inexistência de um tribunal de justiça supranacional responsável por aplicar o Direito Comunitário e harmonizar a sua interpretação. Nesse diapasão, é válido ressaltar que, assim como no caso do consumidor turista, o consumidor que contrata eletronicamente continuará desamparado, haja vista os referidos diplomas não assumirem o domicílio do consumidor como o foro competente de uma possível demanda.
É preciso ter em mente, portanto, que para que a proteção do consumidor no Mercosul seja efetivamente alcançada, o material legislativo proposto deve ser repensado, aproveitando o que é interessante, eliminando o que é supérfluo ou inconveniente, colmatando as eventuais lacunas e inovando onde se justifique. Deve-se propiciar que a “law in the books venha a corresponder a uma efetiva law in action”193, mediante a ascensão de um direito mercosulino do consumidor forte e organizado. Apenas ao atender, equitativamente, os interesses dos Estados-membros e permitir a participação social na elaboração de seu corpo normativo, é que será viável a supressão da condição de “agente esquecido” assumida pelo consumidor no processo de integração e a consequente consolidação de sua defesa no âmbito da organização.
Expressando, então, que o processo de integração constitui uma resposta adequada aos objetivos dos Estados-membros e que, desde o princípio, eles voluntariamente se comprometeram a harmonizar suas legislações, entendendo ser a justiça jurídico-social uma garantia fundamental a ser assegurada aos seus cidadãos, mister é produzir novos elementos de juízo de oportunidade política aptos a instruir uma decisão racional.
193 Expressão trazida por António Pinto Monteiro em Do Direito do Consumo ao Código do Consumidor, Estudos de Direito do Consumidor, Coimbra, v. I, 1999, p. 213.