O VÍCIO PROCEDIMENTAL NO PROCEDIMENTO DE ADJUDICAÇÃO DE CONTRATOS PÚBLICOS: UM ESTUDO DE CASO
O VÍCIO PROCEDIMENTAL NO PROCEDIMENTO DE ADJUDICAÇÃO DE CONTRATOS PÚBLICOS: UM ESTUDO DE CASO
Xxxxxxxx Xxxxxxx Dias1
O
INTRODUÇÃO
s contratos públicos estão intimamente ligados ao processo de desenvolvimento, seja em nível local, regional ou global. Ainda que o contexto interna- cional apresente diferentes realidades econômi- cas, sociais, ambientais e políticas, o caráter glo-
bal permite que o Direito dos Contratos Públicos esteja presente em todos os lugares e seja objeto de interesse também de orga- nismos privados e/ou internacionais.
Na União Europeia, por exemplo, o Direito dos Contra- tos Públicos encontrou a resistência generalizada dos Estados- membros, que o utilizavam como instrumento de politicagem (e não de política pública, seu verdadeiro cerne). No entanto, a compreensão acerca da importância de um Direito dos Contratos Públicos da União Europeia enquanto instrumento de concreti- zação do mercado interno e do projeto europeu corroborou para aplicação e transposição das Diretivas sobre a matéria.
Assim sendo, o estudo do tema dá-se pela necessidade de promover a reflexão sobre o procedimento de adjudicação de contratos públicos enquanto um procedimento mais flexível e proporcional. Ainda que uma visão radical-estadista tenda a as- sociar a modernização da matéria de contratos públicos à
1 Mestranda em Direito Administrativo pela Universidade do Minho. Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Ba- charela em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Servidora pública federal. Advogada.
Ano 6 (2020), nº 4, 641-654
violação dos princípios da legalidade e da transparência – este trabalho procura defender a desburocratização do procedimento de adjudicação de contratos públicos.
O presente estudo pretende responder a seguinte hipótese de pesquisa: “Qual é o tratamento dado ao vício procedimental no procedimento de adjudicação de contratos públicos?”. Para isso, fez-se a análise bibliográfica da doutrina, de artigos cientí- ficos, da legislação relacionada à matéria e, sobretudo, do Acór- dão de 2 de maio de 2019 (Lavorgna, C-309/18, EU:C:2019:350). Distribuído em três subdivisões, o artigo apre- senta, primeiro, um estudo sobre os Contratos Públicos a partir de perspetiva global e europeia. Depois, trata dos elementos for- mais no procedimento de adjudicação e, por fim, apresenta ano- tações ao acórdão escolhido.
DIREITO DOS CONTRATOS PÚBLICOS: PERSPETIVA GLOBAL E EUROPEIA
O Direito Administrativo pode ser tradicionalmente con- ceituado como um “conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgão, os agentes e as atividades públicas tenden- tes a realizar a concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado”2. Ainda que a definição seja atribuída à doutrina administrativista brasileira, o conceito de direito administrativo interno, regra geral, está relacionado à compreensão clássica de Estado3.
Todavia, a globalização, fenômeno de dispersão que
2 HELY XXXXX XXXXXXXXX, XXXX XXXXXXX XXXXX XXXXX. Direito Adminis-
trativo Brasileiro, Editora Malheiros, São Paulo, 2016, p. 42.
3 “O conceito de Estado varia segundo o ângulo em que é considerado. Do ponto de vista sociológico, é corporação territorial dotada de um poder de mando originário (Jellinek); sob o aspeto político, é comunidade de homens, fixada sobre um território, com potestade superior de ação, de mando e de coerção (Malberg); sob o prisma cons- titucional, é pessoa jurídica territorial soberana (Biscaretti di Ruffia)”. XXXX XXXXX XXXXXXXXX, XXXX XXXXXXX XXXXX XXXXX. Direito Administrativo Brasileiro, Editora Malheiros, São Paulo, 2016, p. 64.
ocorre face ao Estado soberano, é um dos responsáveis pela emergência do Direito Administrativo Global. Diante disso, a compreensão de direito administrativo enquanto “realidade jurí- dica de um fenómeno exclusivamente estatal de Administração Pública”4 tem se mostrado insuficiente diante das crescentes for- mas de regulamentação e administração transnacionais5.
Nesse sentido, XXXXX XXXXXXX XX XXXXX afirma que o Direito Administrativo português foi – e anda é – forte- mente influenciado pelo Direito Administrativo sem Fronteiras, sendo maior o impacto no âmbito da organização administrativa, das formas de atuação administrativa, dos princípios gerais e do contencioso administrativo. Sendo assim, a contratação pública possui laços estreitos com o Direito Administrativo Global6.
No âmbito da contratação pública, há dois importantes documentos: a Lei Modelo sobre Contratação Pública da Comis- são das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional (CNUDMI), aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2011; e o Acordo sobre Compras Governamentais (GPA) da Organi- zação Mundial do Comércio (OMC), cuja última atualização é de 2014.
Consoante estudo aqui já realizado, o estudo do Direito dos Contratos Públicos, não deve ser feito a partir da visão clás- sica de direito administrativo, e sim, como um direito adminis- trativo para além das fronteiras dos Estados, eminentemente evolutivo e com uma vocação aplicativa permanente7. Tal
5 XXXXXXXX XXXXXXXXX, XXXX XXXXXX, XXXXXXX X. XXXXXXX. <<A emer-
gência de um direito administrativo global>>, in: Ensaios sobre o direito administra- tivo global e sua aplicação no Brasil, XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX XXXXX (Org.), FGV Direito SP, São Paulo, 2016, pp. 11-12, p. 26.
6 «O impacto do Direito Administrativo sem Fronteiras no Direito Administrativo Português». Atas do XII Colóquio Luso-Espanhol de Professores de Direito Admi- nistrativo, Universidade Lusíada, 2016, p. 59.
7 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx, do- cente da unidade curricular de Direito dos Contratos Públicos, disciplina integrante
afirmação reside no facto de que o exercício da função adminis- trativa na União Europeia está centralizado nas Administrações Públicas dos Estados-Membros, ou seja, coexistem dois ordena- mentos jurídicos distintos (o da União Europeia e o nacional), paralelos e autônomos, mas interdependentes8.
Dada essa configuração jurídica, há um regime de coo- peração entre União Europeia e Estados-Membros, bem como entre os próprios Estados-Membros, conforme estabelecem os artigos 4.º, n.º 3, e 13.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia, que tratam do princípio da cooperação leal. Além disso, com emba- samento nos princípios da proibição de discriminação, da inte- gração normativa e da cooperação, ocorreu a integração das ad- ministrações dos Estados-Membros com a administração da União Europeia propriamente dita9.
São definidos e sistematizados na legislação, desse modo, os actos jurídicos da União Europeia, sendo eles: regula- mentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. Con- forme dispõe o artigo 288.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, apenas as recomendações e os pareceres não são vinculativos. Assim, a diretiva, instrumento mais utilizado em matéria de Contratos Públicos, vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no en- tanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.
Além disso, cada directiva possui um prazo para que seja transposta para a legislação nacional e, depois disso, a Comissão Europeia seja comunicada acerca da transposição. Para garantir
do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Uni- versidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
8 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, docente da unidade curricular de Direito Administrativo Global, disciplina in- tegrante do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Universidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
9 XXXXX XXXXXXX XX XXXXX, <<O impacto do Direito Administrativo sem Fron- teiras no Direito Administrativo português>>, Actas do XII Colóquio Luso-Espanhol de Professores de Direito Administrativo, Universidade Lusíada, 2016, p. 36.
uma aplicação homogênea do direito da União Europeia, a Co- missão oferece assistência aos Estados-Membros para que seja realizada a correta interpretação e aplicação do conteúdo norma- tivo da União10.
Havendo diretivas, regulamentos ou decisões em direito dos Contratos Públicos, faz-se necessário aplicá-los em detri- mento do direito nacional. Se, ainda, o juiz nacional possuir dú- vidas acerca da aplicabilidade do Direito da União Europeia ao caso em concreto, pode-se recorrer ao instituto do reenvio pre- judicial. Por fim, cabe salientar que se o Estado-membro não fi- zer valer o Direito da União Europeia, pode ser admitida a pro- positura de uma ação por incumprimento frente ao Estado-mem- bro e o posterior dever de indenizar11.
Em matéria de contratos públicos, estão a ser aplicadas, atualmente, as Diretivas 2014/23/EU, 2014/24/EU e 2014/25/EU, que tratam dos contratos de concessão, da contra- tação pública em si e dos contratos públicos celebrados nos se- tores de energia, água, transporte e correio postal, respectiva- mente12. A necessidade de transposição das diretivas europeias sobre contratos públicos fez com que o Código dos Contratos Públicos (CCP) português, promulgado em 2008, sofresse uma atualização em 2017.
Importante ressaltar que a contratação pública é trazida como uma das áreas estratégicas da Estratégia Europa 2020. E qual o porquê de tamanha relevância da contratação pública?
10 XXXX XXXXXX XXXX XXXXXXX. «Nótulas sobre o conceito de acto administrativo da União Europeia», Revista Eletrônica de Direito Público, 03, v. 04, 2018, pp. 102. 11 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx, do- cente da unidade curricular de Direito dos Contratos Públicos, disciplina integrante do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Uni- versidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
12 XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXXX. «A exigência de certificação voluntária nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos no Brasil e em Portugal», Re- vista de Direito Administrativo, AAFDL, 04, 2019, p. 62.
Segundo dados13, 19% do Produto Interno Bruto da União Eu- ropeia possui relação direta com a contratação pública. Em tem- pos críticos na economia global, uma única área corresponder a um quinto do PIB europeu demonstra a importância de boa ges- tão da Administração Pública para a correta prossecução dos fins a que se destinam os contratos públicos14.
ELEMENTOS FORMAIS NO PROCEDIMENTO DE ADJU- DICAÇÃO
São vários os procedimentos15 cabíveis, caso a caso, nos procedimentos adjudicatórios de contratos públicos, apresen- tando, regra geral, as seguintes fases: preparatória (subdividida em fase de iniciativa do procedimento e fase de instrução), prin- cipal ou conclusiva e integrativa de eficácia ou complementar16. Outra classificação das fases é dada por XXXXX XXXX XXXXXXXXXX00, sendo elas: fase inicial; fase de qualificação; fase de apresentação e aceitação de propostas; fase de avaliação de propostas e de preparação da adjudicação; fase de adjudica- ção; fase da preparação da celebração do contrato e outorga do contrato. Independentemente da posição doutrinária adotada, contudo, ressalta-se que o procedimento de adjudicação de
13 AUTORIDADE DE GESTÃO DO PROGRAMA OPERACIONAL COMPETITI- VIDADE E INTERNACIONALIZAÇÃO (COMPETE 2020). Disponível em:
«xxxx://xxx.xxxx-xxxxxxx0000. pt/regulamentacao/Contratacao_Publica». Acesso em 22 de maio de 2019.
14 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx, do- cente da unidade curricular de Direito dos Contratos Públicos, disciplina integrante do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Uni- versidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
15 São eles: ajuste direto, consulta prévia, concurso público, concurso limitado por prévia qualificação, procedimento de negociação, diálogo concorrencial e parceria para inovação. Artigo 16.º do CCP.
16 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX. Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Co- imbra, 2018, pp. 104-105.
17 Apud XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXXX. «A exigência de certificação voluntária nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos no Brasil e em Portugal», Revista de Direito Administrativo, AAFDL, 04, 2019, p. 63.
contratos públicos “é um procedimento complexo, que integra vários procedimentos ou subprocedimentos (…) sendo o ato principal do procedimento (complexo) de adjudicação a decisão de adjudicar”18.
Os actos administrativos, a fim de que sejam válidos e eficazes na esfera jurídica, deverão preencher uma série de ele- mentos necessários para tal fim, a saber: sujeito, objecto e esta- tuição19. Quanto aos aspetos formais da estatuição cabe, ainda, salientar que há uma divisão entre o procedimento e a forma: este trata da manifestação exterior do acto administrativo; aquele, da correta realização dos trâmites legalmente fixados20. Nesse sentido, é indispensável que os actos praticados no decorrer do procedimento de adjudicação de contratos públicos preencham os elementos supracitados. Mas, uma vez eivado de vício, qual será a melhor atitude perante a situação? Com o in- tuito de responder essa questão, mais especificamente aos vícios
procedimentais, faz-se o presente estudo.
Para XXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX00, os vícios
concernentes ao elemento forma podem assumir dois vieses: o de formalidade essencial ou de formalidade não essencial. As- sim, há formalidade essencial “quando, quaisquer que sejam as consequências da sua omissão ou irregularidade, a invalidade do acto administrativo se produza inelutavelmente” e, por outro lado, há formalidade não essencial “só produz a invalidade do acto quando o interesse ou efeito que, através da sua previsão, a lei queira garantir, não se alcançou por outra via”22.
18 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX. Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Co- imbra, 2018, p. 349.
19 XXXX XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXX. Lições de Direito Administrativo, Co- imbra, 2017, pp. 206-209.
20 XXXX XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXX. Lições… , Coimbra, 2017, p. 214.
21 Apud XXXXXXXX XXXXXX XXX XXXXXX XXXXX. «Algumas reflexões sobre o artigo 163.º, n.º 5 do CPA: o «novo» princípio do aproveitamento do acto adminis- trativo», Revista e-Pública, 04, n.º 1, 2016, pp. 146-164.
22 Para a correta utilização da ideia trazida pelo autor, depreende-se que as formalida- des por ele apresentadas englobam os aspetos formais propriamente ditos e os
Ainda que o Código de Procedimento Administrativo (CPA) português trate da hipótese de nulidade quando violada a regularidade procedimental exigida em lei23, a posição doutriná- ria não vai de encontro com o estabelecido no ordenamento ju- rídico. Isso porque o diploma legal não fala em mera irregulari- dade24, e sim, em uma carência absoluta de respeito ao procedi- mento (passível, portanto, de nulidade).
Nesse sentido, de forma geral, o CPA admite a possibili- dade de aproveitamento do acto administrativo, ainda que ei- vado de vício passível de anulabilidade, conforme estabelecem as alíneas do n.º 5 do artigo 163.º do referido Código. Quando à matéria de contratos públicos, tanto a Diretiva 2014/24/EU quando o Código de Contratos Públicos (CCP) português pre- veem a possibilidade de suprimir as irregularidades causadas por formalidades não essenciais25.
Ainda que parte da doutrina26 assevere que a teoria do
procedimentais, conforme classificação apresentada por XXXXXX XX XXXXXXX em
Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 2017, pp. 206-209.
23 Conforme estabelece o Artigo 161.º, n.º 2, alínea “x”, xx XXX, xxx xxxxx “os atos praticados, salvo em estado de necessidade, com preterição total do procedimento le- galmente exigido”.
24 Nesse caso, aplica-se a regra da anulabilidade, em virtude do exposto no Artigo 163.º do CPA.
25 Diz o artigo 72.º, n.º 3, do CCP, que: “O júri deve solicitar aos candidatos e con- correntes que, no prazo máximo de cinco dias, procedam ao suprimento das irregula- ridades das suas propostas e candidaturas causadas por preterição de formalidades não essenciais e que careçam de suprimento, incluindo a apresentação de documentos que se limitem a comprovar factos ou qualidades anteriores à data de apresentação da pro- posta ou candidatura, e desde que tal suprimento não afete a concorrência e a igual- dade de tratamento.” e diz o artigo 56.º, n.º3, da Diretiva 2014/24/EU que: “Quando a informação ou documentação a apresentar pelos operadores económicos for ou pa- recer incompleta ou incorreta, ou quando faltarem documentos específicos, as autori- dades adjudicantes podem, salvo disposição em contrário da legislação nacional que der execução à presente diretiva, solicitar aos operadores económicos em causa que apresentem, acrescentem, clarifiquem ou completem a informação ou documentação pertinentes num prazo adequado, desde que tal seja solicitado no respeito integral dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência.”
26 Nesse sentido, XXXXX XXXXX XXXXXXXXX. Direito dos Contratos Públicos, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 776-778.
aproveitamento do acto administrativo e a previsão de regulari- zação de irregularidade formal não essencial no procedimento de adjudicação de contratos públicos não estejam diretamente conectadas, a posição aqui adotada é de que o conceito apresen- tado por XXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX coaduna sim com a evolução da compreensão das irregularidades formais no pro- cedimento de adjudicação27.
Além disso, a jurisprudência principialista do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), positivada na reforma de 2014, reforçou a aplicação do princípio da proporcionalidade no Direito dos Contratos Públicos da União Europeia28. Para além da proporcionalidade, o aproveitamento do acto administrativo fundamenta-se nos princípios da economia dos actos públicos, da boa administração e do interesse público29.
O primeiro dos objetivos a serem alcançados pela con- tratação pública, conforme estabelece a Lei Modelo sobre Con- tratação Pública, documento das Nações Unidas sobre o tema, é “alcanzar una máxima economía y eficiencia en la contratación pública”. Tal objetivo não deve ser promovido apenas na adju- dicação propriamente dita, ou seja, na escolha da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, e sim em todos os actos e procedimentos abrangidos pelo procedimento de adjudicação de contratos públicos, desde a fase pré-contratual até a fase de
27 Tal posição é adotada com base na compreensão da “irrelevância do vício de pro- cedimento ou de forma quando o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via (…) que corresponde à situação tradicio- nalmente formulada pela jurisprudência como ‘degradação das formalidades essenci- ais em não essenciais’”. XXXX XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXX. Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 2017, p. 220.
28 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx, do- cente da unidade curricular de Direito dos Contratos Públicos, disciplina integrante do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Uni- versidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
29 XXXX XXXXXX XXXXXX XX XXXXXXX apud XXXXXXXX XXXXXX DOS
XXXXXX XXXXX. «Algumas reflexões sobre o artigo 163.º, n.º 5 do CPA: o «novo» princípio do aproveitamento do acto administrativo», Revista e-Pública, 04, n.º 1, 2016, pp. 146-164.
execução.
O caso a ser discutido neste trabalho está intimamente ligado à Directiva 2014/24/EU. Trata-se do Acórdão do Pro- cesso C-309/19, Lavorgna Srl contra Comune di Montelanico e outras três cidades italianas, do Tribunal de Justiça da União Eu- ropeia (TJUE), de 02 de maio de 2019.
A escolha do acórdão se deu pelos seguintes motivos: atualidade, em virtude de ser uma decisão judicial recentemente prolatada; tema, em razão do fato de que, em aula30, a carga prin- cipiológica da jurisprudência do TJUE e a necessidade de uma visão mais flexível do Direito dos Contratos Públicos foram questões amplamente debatidas.
Resumidamente, Lavorgna Srl, empresa italiana, partici- pou de procedimento de adjudicação de contrato público, tendo ficado em 2º lugar. No entanto, todas as empresas participantes
– incluindo a vencedora – não cumpriram um elemento formal estabelecido no Código de Contratos Públicos italiano.
A inobservância do requisito formal se deu por erro da Administração, que omitiu dos documentos relativos ao proce- dimento, inclusive do formulário a ser preenchido pelas propo- nentes, qualquer espaço ou possibilidade de sanação do referido vício. Assim, ainda que o direito italiano referisse tal erro como insanável, foi dada a oportunidade para que as participantes re- gularizassem a situação.
A questão foi parar no Tribunal Administrativo Regional do Lácio (Itália) que, por sua vez, perguntou ao TJUE a seguinte questão: Diante do caso, a legislação nacional, ao não possibili- tar a sanação do vício, viola os princípios estabelecidos pela
30 Extraído de aula expositiva ministrada pela Professora Doutora Xxxxxxx Xxxxx, do- cente da unidade curricular de Direito dos Contratos Públicos, disciplina integrante do quadro de unidades curriculares do Mestrado em Direito Administrativo da Uni- versidade do Minho no ano letivo 2018/2019.
Diretiva 2014/24/EU?
Conforme já apresentado no trabalho, a Diretiva supraci- tada admite a possibilidade de regularizar o vício que ocorreu no decorrer do procedimento de adjudicação. Ocorre que, no caso aqui apresentado, o direito italiano rechaçava tal possibilidade. Tratava-se, portanto, aos olhos do direito nacional, de uma for- malidade essencial para a realização do procedimento de adjudi- cação de contratos públicos.
Assim, a oportunidade de regularização acabou por con- trariar a vedação imposta pelo Código de Contratos Públicos ita- liano. Há que se refletir sobre os seguintes aspetos: a) o procedi- mento, ainda que eivado de vício considerado insanável, ocorreu de forma plena e eficaz; b) quando corrigida a situação, consta- tou-se que não havia obstáculos de ordem material; c) se o pro- cedimento ocorreu perfeitamente, se a proposta mais vantajosa foi escolhida, se o conjunto de princípios e objetivos da contra- tação pública foi realizado, cabe mesmo a nulidade do procedi- mento inteiro por um vício de ordem meramente procedimental? Diante disso, o princípio da proporcionalidade foi defen-
dido pelo TJUE como baluarte para a declaração a regularidade do procedimento de adjudicação de contrato público aqui rela- tado. Se o próprio anúncio do concurso não obedeceu à disposi- ção do Código de Contratos Públicos e isso não foi levantado em outro momento, qual seria o porquê de desperdiçar os esforços da Administração – e das proponentes também –? A mera posi- tivação?
Ressalta-se, no entanto, que a análise aqui realizada não busca menosprezar o direito nacional e o princípio da legalidade, sob uma perspetiva restrita. Trata-se, justamente, de uma perce- ção da legalidade com um amplo espectro, que assegura não ape- nas e somente o disposto nos artigos, e sim, os princípios gerais buscados pela Administração no procedimento de adjudicação de contratos públicos: economia, eficiência e seleção da pro- posta mais vantajosa.
Além disso, o procedimento de adjudicação de contratos públicos tem adotado um viés estratégico: o de garantidor de po- líticas públicas sociais, ambientais e laborais. Ora, se a imposi- ção do Código de Contratos Públicos italiano visa, justamente, assegurar a política laboral, e tal fim foi atingido, seria contra- producente a realização de um novo procedimento de adjudica- ção. Isso acarretaria mover toda a “máquina pública”, gerar cus- tos e ainda correr o risco de o novo procedimento conter algum vício.
A partir desse estudo, conclui-se pela relevância do de- bate acerca do Direito dos Contratos Públicos e do caráter trans- nacional do Direito Administrativo. Ressalta-se, ainda, a impor- tância da referida unidade curricular, uma vez que aborda o tema e apresenta aos alunos uma perspetiva mais afastada da visão publicista clássica e, até mesmo, “burocraticamente estadista” do Direito dos Contratos Públicos.
O Direito Administrativo da União Europeia, de igual forma, é uma matéria interessante, uma vez que demonstra que actos administrativos podem ter validade e eficácia para além das fronteiras de um só Estado. A aplicação do Direito Adminis- trativo da União Europeia, no entanto, não é uma verticalização do Direito, uma imposição. Cabe aos Estados-Membros adequa- rem o Direito da União Europeia, fonte imediata de direito, ao seu ordenamento jurídico nacional.
Exalta-se, portanto, a interdependência entre a actuação administrativa dos Estados-Membros e da União Europeia e a importância da correta transposição das diretivas. A atuação das instituições europeias são fundamentais para a aplicação homo- gênea do Direito dos Contratos Públicos da União Europeia e, consequentemente, do fortalecimento dessa administração em rede.
O procedimento de adjudicação de contratos públicos deixou de ser “um fim em si mesmo” e passou a ser uma ferra- menta de auxílio para a prossecução de outros fins. A teoria do aproveitamento do acto administrativo (com o poder de trans- mutar uma formalidade essencial em não essencial) e a possibi- lidade legal de regularização da formalidade não essencial são instrumentos que fomentam a eficiência em um contexto que, por vezes, é demasiadamente burocrático. Assim, ao aplicar o princípio da proporcionalidade, promove-se um ambiente com- petitivo e vantajoso, tanto para a Administração Pública quanto para os operadores econômicos.
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