EXCERTOS
CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA NO ORDENAMENTO PORTUGUÊS
Xxxxx Xxxx e Costa
Assessora jurídica da ACOP – Associação de Consumidores de Portugal
EXCERTOS
“O fornecimento de água é tido como um serviço de natureza essencial que se espraia pelos diversos setores de atividade económica, sem esquecer o seu enorme valor social e ambiental”
“A prestação de serviços de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos consubstancia serviços que visam a prossecução do interesse público, atingindo um conjunto indeterminado de pessoas”
“O regime específico dos serviços públicos essenciais alarga o âmbito da proteção jurídica de quem contrata estes serviços, considerando para o efeito o conceito de utente”
“No domínio da prestação de serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, a celebração do contrato assenta nos comumente designados contratos de adesão”
“O contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, garantindo a proteção do utilizador do serviço solicitado, é formalizado através de documento escrito, cuja cópia é entregue no momento da celebração”
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CAPÍTULO I
A
Princípios aplicáveis
água é suporte de vida, é essencial a todos os seres vivos.
Na Grécia Antiga, Tales de Mileto defendia que o elemento água era o princípio de todas as coisas, era a substância primordial que constituía
a essência do universo. Ao longo dos tempos, a água foi assumindo um papel fundamental no desenvolvimento das civilizações, até, hodiernamente, se tornar um recurso imprescindível do quotidiano, nas mais diversas atividades da vida humana. Por esse motivo, o direito à água consagrou-se como direito humano essencial à sobrevivência, à qualidade e à plena fruição da vida.
Assim, nas sociedades modernas, o fornecimento de água é tido como um serviço de natureza essencial que se espraia pelos diversos setores de atividade económica, sem esquecer o seu enorme valor social e ambiental.
Em Portugal, a opção do legislador foi a de definir, entre os diversos serviços públicos prestados pelo Estado ou concessionários, aqueles considerados como essenciais. Entre eles encontra-se a prestação de serviços de água, que visa responder às necessidades básicas e essenciais dos cidadãos, sendo, por isso, classificada pelo ordenamento jurídico como serviço público essencial, que a lei fundamental protege enquanto direitos económicos, sociais e culturais, a que o Estado ou concessionários se obrigam a respeitar, a proteger e a facultar o acesso ao abastecimento de água e ao saneamento de águas residuais.
No que concerne ao regime jurídico aplicável à exploração e gestão dos serviços de água, que engloba, simultaneamente, o fornecimento de água e drenagem de águas residuais e o serviço de gestão de resíduos urbanos, aquele assenta num sistema de atribuições partilhadas entre os municípios (sistemas municipais e sistemas intermunicipais) e o Estado (sistemas multimunicipais), cfr. Lei 159/99, de 14 de setembro, Decreto-Lei 379/93, de 5 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei 195/2009, de 20 de agosto, e Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Deste modo, sendo serviços essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente, a sua concretização deve nortear-se pelos princípios gerais enunciados nas alíneas do n. 1 do artigo 5º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto: princípio da promoção tendencial da sua universalidade e a garantia da igualdade no acesso; princípio da garantia da qualidade do serviço e da proteção dos interesses dos utilizadores; princípio do desenvolvimento da transparência na prestação dos serviços; princípio da protecão da saúde pública e do ambiente;
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princípio da garantia da eficiência e melhoria contínua na utilização dos recursos afetos, respondendo à evolução das exigências técnicas e às melhores técnicas ambientais disponíveis; princípio da promoção da solidariedade económica e social, do correto ordenamento do território e do desenvolvimento regional.
No essencial, a atividade destes serviços deve pautar-se por critérios que permitam a todos os cidadãos ter acesso à água em condições adequadas ao consumo humano e ao saneamento de forma contínua, respondendo assim às necessidades básicas de todos os utilizadores, sem esquecer, claro, a segurança ambiental, cfr. artigo 8º do Decreto-Lei 306/2007, de 27 de agosto. Bem como o preço a pagar deve ser justo, de molde a não comprometer a capacidade de pagamento de outros serviços essenciais à vida de todos aqueles que deles necessitam.
CAPÍTULO II
Seção I
Da formação do contrato
1. Preliminares
A prestação de serviços de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, consubstanciam serviços que visam a prossecução do interesse público, atingindo um conjunto indeterminado de pessoas; todavia, este tem de ser prosseguido sem esquecer o parâmetro fundamental do enquadramento desta atividade, isto é, sem olvidar os direitos e interesses legítimos dos utilizadores dos serviços, cfr. n. 1 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa.
Não obstante a sua classificação como serviços de caráter público, estes são de índole universal e essencial, daí que a sua prestação esteja sujeita a obrigações específicas, traduzidas na imposição e cumprimento destas, harmonizando o interesse público e os direitos individuais, de forma que a realização do interesse comum não extinga ou limite os direitos e interesses dos utilizadores dos serviços, ou, fazendo-o, o faça com a necessária proporcionalidade, cfr. artigo 3º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Neste domínio, a relação de prestação de serviços de água, de saneamento e de gestão de resíduos assenta na celebração de um negócio jurídico bilateral, num contrato entre as entidades gestoras (públicas ou privadas) que exploram o serviço público essencial de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais e os utilizadores destes mesmos serviços, distinguindo-se entre utilizadores domésticos
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(serviços utilizados para fins habitacionais) e utilizadores não domésticos (serviços utilizados para outros fins), sujeito a normas de cariz específico, dado que se está perante uma relação jurídica à qual subjaz um contrato de consumo, que tem de obedecer a determinados requisitos, indispensáveis à salvaguarda dos direitos daqueles que com as entidades gestoras contratam.
O regime específico dos serviços públicos essenciais alarga o âmbito da proteção jurídica de quem contrata estes serviços, considerando para o efeito o conceito de utente. Ou seja, os agentes económicos prestadores de serviços públicos essenciais obrigam-se não só perante a pessoa singular, que seja consumidor tal como definido na Lei 24/96, de 31 de julho, alterado pelo Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, e pela Lei 10/2013, de 28 de janeiro – Lei de Defesa do Consumidor (LDC) –, no n. 1 do artigo 2º: “(…) todo aquele a quem sejam (…) prestados serviços (…), destinados a uso não profissional, (…)”, mas também perante a pessoa coletiva.
É a estes sujeitos, pessoa singular e pessoa coletiva, pública ou privada, os utilizadores finais, que não têm como objeto de atividade a prestação desse mesmo serviço a terceiros, a quem deve ser assegurado de forma continuada o serviço de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, cfr. Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
A relação jurídica estabelecida entre a entidade gestora dos serviços (de água, de saneamento e de recolha de resíduos) e os utilizadores finais, para além de se encontrar estabelecida pelo Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, encontra-se, igualmente, submetida às normas particulares do regime jurídico da Lei 23/96, de 26 de julho (alterada pelas Leis 12/2008, de 26 de fevereiro, 24/2008, de 2 de junho, 6/2011, de 10 de março, 44/2011, de 22 de junho, e 10/2013, de 28 de janeiro), vulgo Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE), que regula de forma especial a prestação dos serviços considerados fundamentais. Esta tem como escopo a proteção dos utentes dos serviços públicos essenciais, de molde a assegurar o equilíbrio das partes nas relações jurídicas que se estabelecem nos diversos setores de prestação de serviços, cfr. artigo 1º da LSPE.
Desde logo, a proteção reflete-se nos utilizadores que adquirem os serviços para fins alheios à sua atividade profissional, não lhes podendo ser exigida qualquer caução no momento da contratação, cfr. n. 2 do artigo 1º do Decreto-Lei 195/99, de 8 de junho, alterado pelo Decreto-Lei 100/2007, de 2 de abril, bem como não podem ser cobrados juros comerciais em caso de mora no pagamento da utilização do serviço, como previsto no artigo 559º do Código Civil, que remete para a Portaria 291/2003, de 8 de abril, que fixa em 4% a taxa anual do juro a cobrar.
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2. Dos requisitos de fundo
Na celebração do negócio jurídico bilateral são duas as declarações negociais indispensáveis à formação do contrato: a proposta e a aceitação, que, não obstante o fato de serem manifestações de vontade opostas, convergem, com vistas a produzir o efeito jurídico unitário desejado. É neste domínio que a autonomia privada, enquanto liberdade contratual, cfr. artigo 405º do Código Civil, tem a sua ampla concretização, quer como liberdade de celebração do contrato quer como liberdade de modelação do conteúdo contratual.
No entanto, no domínio da prestação de serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, a celebração do contrato assenta nos comumente designados contratos de adesão, compostos por condições previamente redigidas, às quais o utilizador se limita a aderir, ou não, sem qualquer possibilidade de discussão ou de introdução de modificações, contrariando, assim, os princípios da liberdade de celebração do contrato e da modelação do conteúdo contratual.
Ora, estando em causa a prestação de serviços públicos essenciais, e por força do dever de informação que impende sobre o prestador de serviços, ao abrigo do artigo 4º da LSPE, o regulamento aplicável deve garantir que a apresentação das regras seja feita de forma clara, adequada, detalhada e de modo a permitir o efetivo conhecimento, por parte dos utilizadores, do conteúdo e da forma de exercício dos respectivos direitos e deveres, cfr. artigo 2º e ss. da Portaria 34/2011, de 13 de janeiro.
Assim sendo, antes de formalizado o contrato de prestação de serviços, a entidade gestora, em conformidade com as disposições legais aplicáveis à data da celebração do contrato, pautada pelos princípios da boa-fé e da informação, ambos enunciados na LSPE (artigos 3º e 4º) e na LDC (alínea d) do artigo 3º e artigos 8º e 9º), e ao abrigo do artigo 61º do Decreto- Lei 194/2009, de 20 de agosto, deve disponibilizar toda informação, de forma clara, rigorosa e íntegra, referente às condições em que o serviço será prestado ao utilizador, e que irão condicionar o relacionamento entre este e a entidade gestora, nomeadamente no que diz respeito à medição, à faturação, à cobrança, às condições de interrupção e suspensão do serviço, aos tarifários aplicáveis à prestação do serviço, às instâncias para apresentar as reclamações e os meios ao dispor para resolução dos conflitos, cfr. n. 1 do artigo 61º e 63º, cumprindo, desta forma, a obrigação que lhe é imposta pelo regime jurídico aplicável: transmitir toda a informação referente aos direitos e obrigações de ambos os contraentes.
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Por outro lado, ainda ao abrigo do referido artigo 61º do diploma citado, a entidade gestora, através dos meios de comunicação eletrónicos, deve dispor no sítio da internet, criado para o efeito, “informação essencial sobre a sua atividade, nomeadamente: a) Identificação da entidade gestora, suas atribuições e âmbito de atuação; b) Estatutos e contrato relativo à gestão do sistema e suas alterações, quando aplicável; c) Relatório e contas ou documento equivalente de prestação de contas; d) Regulamentos de serviço; e) Tarifários; f ) Condições contratuais relativas à prestação dos serviços aos utilizadores; g) Resultados da qualidade da água, no caso de entidades gestoras do serviço de abastecimento de água, bem como outros indicadores de qualidade do serviço prestado aos utilizadores; h) Informações sobre interrupções do serviço; i) Contactos e horários de atendimento” (n. 2 do artigo).
3. Dos requisitos de forma
O contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, garantindo a proteção do utilizador do serviço solicitado, é formalizado através de documento escrito, cuja cópia é entregue no momento da celebração, cfr. n. 3 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Este, para além de identificar as partes e o local do consumo, enuncia as cláusulas contratuais gerais que irão nortear o relacionamento entre as partes, e que dizem respeito aos elementos mencionados supra, considerados essenciais na contratação.
No entanto, a disponibilização das condições gerais do serviço, por escrito, logo no momento da celebração do contrato, pode não acontecer, podendo ter lugar posteriormente. Neste particular inserem-se as situações em que a entidade gestora prestadora do serviço de fornecimento de água não coincide com as entidades responsáveis pelo saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos. Quando assim seja, as entidades responsáveis pela prestação de serviço de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos dispõem de um prazo de 30 dias para remeter aos utilizadores as respectivas condições contratuais, a contar da recepção da comunicação da listagem mensal efetuada pela entidade responsável pelo abastecimento de água, referente aos novos utilizadores contratantes, considerando- se, assim, o contrato celebrado desde o início do serviço de fornecimento de água. Não obstante, pode existir acordo entre as entidades gestoras no sentido das condições contratuais serem disponibilizadas no momento da celebração do
contrato de fornecimento de água, cfr. n.s 4 e 5 do artigo 63º.
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A falta de prestação de informação das condições contratuais dos serviços, bem como o incumprimento da obrigação de envio da listagem mensal de utilizadores, constitui contraordenação, punível com coima de € 7 500,00 a € 44.890,00, cfr. xxxxxxx x) e l) do n. 1 do artigo 72º e 73º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Ao invés de um contrato único, quando o serviço de saneamento e de resíduos seja disponibilizado em momento posterior ao serviço de abastecimento de água, aquele pode ser alvo de um contrato autónomo, designadamente quando se proceda à ligação à rede predial ou quando seja contratado o serviço de limpeza de fossas sépticas, cfr. n. 4 do artigo 63º e n. 3 do artigo 59º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Por outro lado, o conteúdo contratual tem obrigatoriamente de respeitar o disposto no regulamento de serviço, “sendo o contrato tipo aprovado pela entidade titular”, cfr. n. 8 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, ou seja, as cláusulas que compõem o contrato, para além de obedecerem às normas legais, gerais e especiais aplicáveis, também têm de obedecer ao que se encontra definido no regulamento de serviço, expressamente previsto no n. 1 do artigo 62º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, que remete para a Portaria 34/2011, de 13 de janeiro, que estipula o conteúdo mínimo, identificando um conjunto de matérias que devem constar do regulamento de serviço, sempre em obediência às normas legais imperativas.
Seção II Do contrato
1. Condições gerais
Para que seja possível a prestação dos serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais é necessário que existam infraestruturas que permitam a ligação da rede pública à rede predial, através do ramal de ligação.
Para o efeito, a lei considera que sempre que o sistema de infraestruturas de fornecimento de água e de saneamento de águas residuais da entidade gestora se encontre disponível, o mesmo é dizer, quando o limite da propriedade do utilizador se encontre a uma distância igual ou inferior a 20 m da infraestrutura pública, cfr. n. 2 do artigo 59º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, é dever deste a ligação da rede predial ao sistema de rede pública, cfr. n. 1 do artigo 69º do diploma.
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Já não será assim “quando a rede de saneamento de águas residuais esteja localizada a uma distância superior à referida no número anterior e não seja solicitado o prolongamento do ramal”; nesse caso “a entidade gestora deve assegurar, através de meios próprios e ou de terceiros, a provisão do serviço de limpeza de fossas sépticas, no cumprimento da legislação ambiental” (n. 3 do artigo 59º).
Não obstante, em situações pontuais é possível admitir a não obrigatoriedade de ligação à rede pública, designadamente quando a propriedade se encontre a mais de 20 m da rede pública, ou quando se disponham de sistemas próprios de abastecimento ou saneamento devidamente licenciados, isto é, que respeitem as normas legais referentes ao licenciamento de sistemas de captação de água e de rejeição de águas residuais, cfr. Lei 58/2005, de 29 de setembro (Lei da Água), e Decreto-Lei 226-A/2007, de 31 de maio, mas que não se destinem ao consumo humano, cfr. artigo 42º do Decreto-Lei 226-A/2007, de 31 de maio.
Neste âmbito, entende-se que o sistema predial e a sua instalação e conservação em boas condições de funcionamento e salubridade é da responsabilidade do proprietário, cfr. n. 4 do artigo 69º.
Deste modo, sempre que o serviço se encontre disponível e quem o pretenda se encontre validamente legitimado, a entidade gestora não pode recusar a prestação do serviço, uma vez que este é um direito de quem o solicita, cfr. n. 1 do artigo 59º. Sendo que, se a entidade gestora se recusar a prestar o serviço incorrerá em contraordenação, punível com coima que pode variar entre € 7 500,00 e € 44.890,00, cfr. alínea e) do n. 1 do artigo 72º e 73º do referido diploma.
No entanto, no que concerne à responsabilidade pelo pagamento do ramal de ligação que procede à ligação da rede predial à rede pública, têm sido suscitadas questões de difícil solução, uma vez que os entes responsáveis, nomeadamente municípios e entidades gestoras, insistem na violação das regras vigentes, persistindo na cobrança de quantias de elevado valor pecuniário pela instalação do ramal de ligação, em completo arrepio dos princípios fundamentais que regem a atividade das entidades que prestam este serviço que, obrigatoriamente, têm de conciliar os legítimos interesses dos utentes e as normas aplicáveis.
O Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, determina que “a execução de ligações aos sistemas públicos ou a alteração das existentes compete à entidade gestora” (n. 9 do artigo 69º), devendo “com uma antecedência mínima de 30 dias notificar os proprietários dos edifícios abrangidos pelo serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais das datas previstas para início e conclusão das obras dos ramais de ligação para a disponibilização dos respectivos serviços” (n. 8 do artigo 69º).
É fato assente que o ramal de ligação, que assegura o abastecimento predial de água à propriedade afeta ao serviço, é parte integrante da rede pública de
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distribuição de água e de drenagem de águas residuais, cfr. artigo 282º do Decreto Regulamentar 23/95, de 23 de agosto. Ora, isto significa que o ramal de ligação faz parte de um todo, que é o sistema público de distribuição e drenagem de águas, a cargo da entidade gestora, do qual é proprietária.
Por outro lado, como se referiu, é à entidade gestora que compete a instalação do ramal de ligação, ao abrigo do artigo 283º do Decreto Regulamentar, que refere: “Se o proprietário ou usufrutuário requerer para o ramal de ligação do sistema predial à rede pública, modificações, devidamente justificadas, às especificações estabelecidas pela entidade gestora, nomeadamente do traçado ou do diâmetro, compatíveis com as condições de exploração e manutenção do sistema público, esta entidade pode dar-lhe satisfação desde que aquele tome a seu cargo o acréscimo nas respectivas despesas, se o houver.”
Deste modo, conjugando estas duas normas, dissipam-se quaisquer dúvidas que possam advir acerca de a quem se deve imputar o encargo pela instalação do ramal de ligação. Sem qualquer dúvida que deve ser suportado, única e exclusivamente, pela entidade gestora, e não pelo utilizador; a este caberá somente os encargos decorrentes de modificações que tenha solicitado, mas tão só se dessa alteração resultar um excedente das despesas realizadas pela entidade gestora. A esta caberá ainda a conservação e substituição do ramal de ligação, cfr. artigos 284º e 285º do Decreto Regulamentar, e n. 9 do artigo 69º do diploma.
Deste modo, atendendo às normas aplicáveis, não pode ser assacada qualquer responsabilidade ao utilizador pelo pagamento das infraestruturas da rede pública.
2. Elementos essenciais
2.1. Fornecer a água
Para que se inicie o fornecimento de água e de saneamento de águas residuais é necessário a contratação de tais serviços; todavia, é indispensável que quem requeira os serviços à entidade gestora possua a respectiva legitimidade para o fazer. Para o efeito, será necessário demonstrar a proveniência dessa qualidade para titular o contrato a celebrar.
Deste modo, a propriedade do local de consumo é demonstrada mediante a apresentação “de título válido para a ocupação do imóvel” objeto da prestação dos serviços por parte da entidade gestora, ou seja, através da escritura de compra e venda, da caderneta predial, do contrato de arrendamento, e outros, que demonstre corretamente a ocupação como proprietário, arrendatário, usufrutuário ou comodatário, cfr. n. 1 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto,
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ou pela exibição de outro tipo de documento que permita a ocupação legítima do imóvel, como nos casos de celebração de contratos especiais, previstos no artigo 65º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, cujas respectivas licenças ou autorizações são títulos bastante para legitimar a celebração do contrato.
No entanto, como já se referiu, não pode ser exigida qualquer caução, aquando da celebração do contrato de prestação de serviços de abastecimento, de saneamento e de recolha, a quem, como utilizador, seja considerado consumidor, isto é, todo aquele que não utiliza os serviços para fins profissionais (utilizador doméstico).
Assim, encontrando-se os serviços, de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais, e de recolha de resíduos, disponíveis, aqueles iniciam-se no prazo de cinco dias úteis a contar da respectiva recepção do pedido de contratação dos serviços, cfr. n. 2 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
No entanto, este prazo pode ser alargado sempre que existam situações que impeçam uma disponibilização mais atempada dos serviços contratados, designadamente quando seja necessário proceder à ligação do prédio à rede pública de saneamento, através do ramal de ligação, quando o imóvel ainda não possua as infraestruturas necessárias.
Por outro lado, a natureza dos serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais implica o respeito pelo princípio geral da garantia da qualidade, continuidade e universalidade da prestação do serviço. Daí que, após a contratação, o utilizador adquire um direito à continuidade da prestação do serviço, cfr. artigo 60º do diploma referido. Deste modo, este serviço é prestado de forma contínua, só podendo ser interrompido em casos excepcionais, por razões de ordem técnica da atividade de exploração do serviço ou por causas imputáveis ao utilizador.
O deficitário nível de qualidade do serviço prestado aos utilizadores constitui contraordenação, punível com coima que pode variar entre € 7 500,00 e € 44.890,00, cfr. alínea e) do n. 1 do artigo 72º e 73º do diploma.
O fornecimento da água é sujeito a controle metrológico, cfr. Decreto-Lei 291/90, de 20 de setembro, Decreto-Lei 71/2011, de 16 de junho, e Portaria 21/2007, de 5 de janeiro, através de contadores instalados nos locais de consumo pela entidade gestora que, como proprietária daqueles, é responsável pela colocação, manutenção e substituição, cfr. n. 2 do artigo 66º do Decreto- Lei 194/2009, de 20 de agosto, sendo os utilizadores, como depositários que são, por seu lado, obrigados a reportar quaisquer anomalias no contador de medição, “tendo direito à sua verificação extraordinária em instalações de ensaio devidamente credenciadas, bem como a receber cópia do respectivo boletim de ensaio”, cfr. n. 5 do artigo 66º.
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Nas situações de “substituição de instrumentos de medição por motivos de anomalia, exploração e controle metrológico, a entidade gestora deve avisar o utilizador da data e do período previsível para a intervenção que não ultrapasse as duas horas” (n. 7 do artigo 66º). E nessa data “deve ser entregue ao utilizador um documento de onde constem as leituras dos valores registados pelo instrumento de medição substituído e pelo que, a partir desse momento, passa a registar o consumo de água ou a produção de águas” (n. 8 do artigo 66º), cabendo à entidade gestora a responsabilidade pelo pagamento dos custos inerentes à substituição ou reparação dos contadores quando a anomalia não seja imputável ao utilizador, cfr. n. 9 do artigo 66º.
2.2. Pagar o preço
O contrato de abastecimento de água e de saneamento, como negócio jurídico sinalagmático que é, obriga o utilizador a pagar a respectiva contrapartida pela prestação do serviço: o preço.
O preço é um elemento essencial para o cumprimento do negócio jurídico, devendo ser um dos dados constantes na informação transmitida a quem pretenda celebrar o contrato, tal como o é a informação sobre as consequências do seu não pagamento.
A este propósito, visando garantir uma maior transparência na informação prestada ao utente, prescreve o artigo 8º da LDC, na sua última redação resultante das alterações introduzidas pela Lei 10/2013, de 28 de janeiro: “1 – O fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar de forma clara, objetiva e adequada o consumidor, nomeadamente sobre características, composição e preço do bem ou serviço, (…) e consequências do não pagamento do preço do bem ou serviço. (…) 7 – O incumprimento do dever de informação sobre as consequências do não pagamento do preço do bem ou serviço determina a responsabilidade do fornecedor de bens ou prestador de serviços pelo pagamento das custas processuais devidas pela cobrança do crédito”.
O preço do serviço, de harmonia com o princípio da proteção dos interesses económicos, enunciado na alínea e) do artigo 3º e 9º da LDC, deve ser justo e global, onde devem ser incluídos todos as taxas e encargos, não devendo refletir mais do que aquilo que o utilizador efetivamente consumiu, de acordo com a máxima “o consumidor pagará só o que consome na exata medida do que e em que consome”, afastando quaisquer possibilidades de vantagens ilícitas que contrariem aquele princípio. Bem como o princípio da boa-fé que se exige aos prestadores de serviços desta natureza: “O prestador do serviço deve proceder de boa-fé e em
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conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger” (artigo 3º da LSPE).
Na verdade, estes serviços são fornecidos em regime de monopólio, por isso, em relação a este particular, não existe uma uniformidade, não obstante a Recomendação IRAR 01/2009, do Instituto Regulador de Águas e Resíduos, atualmente Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) – “Recomendação Tarifário” –, e a Recomendação ERSAR 02/2010 – “Critérios de Cálculo” –, que adverte para a necessidade de os tarifários possuírem uma estrutura uniforme em todo o território nacional, simples e transparente quanto possível, de molde a facilitar a respectiva compreensão por parte dos utilizadores finais.
Neste particular, por se tratar de serviços públicos essenciais prestados em forma de monopólio, na esteira da LDC (alínea h) do n. 1 do artigo 18º, a LSPE consagrou no seu artigo 2º o direito de participação dos utentes dos serviços, através das suas associações representativas, quer na definição dos contratos a celebrar (n. 1 do artigo 2º) quer na definição das grandes opções estratégicas das entidades gestoras (n. 3 do artigo 2º).
No que concerne à periodicidade da faturação, entende a legislação aplicável que a informação pecuniária pela prestação do serviço de fornecimento e saneamento de águas e de resíduos urbanos deve ser comunicada mensalmente pela entidade gestora através da emissão da respectiva fatura, nos termos dos n.s 1 e 2 do artigo 9º da LSPE: “1 – O utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta. 2 – A fatura a que se refere o número anterior deve ter uma periodicidade mensal, devendo discriminar os serviços prestados e as correspondentes tarifas.”
Significa que a fatura deverá ser uma comunicação mensal, com uma terminologia simples e acessível, em harmonia com o princípio da transparência, cujo conteúdo deve conter toda a informação respeitante à entidade gestora e ao utilizador, nomeadamente a informação sobre todos os serviços prestados, de molde a que o utilizador compreenda quais os serviços faturados, o volume de consumo de água e de águas residuais (consumo medido ou estimado), a forma de cálculo das tarifas e encargos de disponibilidade e de utilização aplicados, a forma de pagamento, cfr. Recomendação ERSAR 01/2010 – “Conteúdos das Faturas”.
Este é o parâmetro seguido pelo Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, que determina no n. 1 do artigo 67º que “a faturação dos serviços objeto do presente decreto-lei deve possuir periodicidade mensal, podendo ser disponibilizados ao utilizador mecanismos alternativos e opcionais de faturação, passíveis de serem
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por este considerados mais favoráveis e convenientes”, sem, contudo, olvidar o caráter injuntivo dos direitos firmados na LSPE, que no artigo 13º determina a nulidade de “qualquer convenção ou disposição que exclua ou limite os direitos atribuídos aos utentes”, ficando, no entanto, “ressalvadas todas as disposições legais que, em concreto, se mostrem mais favoráveis ao utente” (artigo 14º da LSPE). Deste modo, é de todo ilícita a emissão de faturas com uma periodicidade bimestral.
Por outro lado, dispõe o n. 2 daquele artigo que: “Para efeitos de faturação, a entidade gestora deve proceder à leitura real dos instrumentos de medição por
intermédio de agentes devidamente credenciados, com uma frequência mínima de duas vezes por ano e com um distanciamento máximo entre duas leituras consecutivas de oito meses”, ou seja, quando não haja leitura do contador, a leitura será estimada em função do consumo médio entre as duas leituras reais efetuadas pela entidade gestora, cfr. alínea a) do n. 6 do artigo 67º. E, nos casos em que não haja leitura a seguir à instalação do contador, o consumo será estimado em função do consumo médio de utilizadores similares no ano anterior, cfr. alínea
b) do n. 6 do artigo 67º.
Por esta razão, a faturação por estimativa deve considerar-se como atentatória do princípio da proteção dos interesses económicos do utilizador, uma vez que vai permitir quer uma sobrefaturação quer uma subfaturação, cujos acertos podem provocar desequilíbrios, comprometendo os orçamentos familiares no seu quotidiano, com consequências na qualidade de vida das famílias.
Sendo certo que, “sempre que, em virtude do método de faturação utilizado,
seja cobrado ao utente um valor que exceda o correspondente ao consumo efetuado, o valor em excesso é abatido da fatura em que tenha sido efetuado o acerto, salvo caso de declaração em contrário, manifestada expressamente pelo utente do serviço” (artigo 12º da LSPE).
Contudo, na verdade, poucos são aqueles que solicitam a devolução das importâncias monetárias cobradas em excesso, acabando por passar de fatura em fatura, em sucessivos acertos.
De qualquer das formas, para evitar a faturação calculada com base em estimativa, a legislação impõe que a entidade gestora disponibilize “aos utilizadores, de forma acessível, clara e perceptível, meios alternativos para a comunicação das leituras, como a Internet, o serviço de mensagem curta de telemóvel (sms), os serviços postais ou o telefone” (n. 8 do artigo 67º). Estas leituras comunicadas pelos utilizadores devem ser consideradas na faturação, desde que realizadas nos períodos indicados e a entidade gestora não disponha de informação mais atualizada.
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No que respeita à exigibilidade do pagamento do preço do serviço prestado, esta depende da interpelação do utilizador para o efeito, ou seja, o pagamento da dívida torna-se exigível a partir do momento em que o utilizador recepciona a comunicação da fatura emitida pela entidade gestora.
Esta interpelação tem de ser efetuada por escrito, “com uma antecedência
mínima de 10 dias úteis relativamente à data fixada para efetuar o pagamento”, ao abrigo do n. 3 do artigo 10º da LSPE.
No que se refere à liquidação da fatura pela prestação dos serviços, dispõe a LSPE que pode ser dada a quitação parcial daquela, sem que a entidade gestora se possa recusar a aceitar o pagamento de um serviço prestado, quando emitido na mesma fatura, exceto quando os serviços sejam funcionalmente indissociáveis, cfr. n. 4 do artigo 5º e artigo 6º da LSPE.
Nestes termos, entende a lei que a quitação parcial da fatura não pode ser razão suficiente para
O direito à água consagrou-se como direito humano essencial à sobrevivência, à
qualidade e à plena fruição da vida
a entidade gestora proceder à suspensão do serviço prestado, cfr. n. 4 do artigo
5º da LSPE.
Ainda no que diz respeito ao pagamento dos serviços de águas e resíduos, prescreve a LSPE a regra de que o utilizador só está obrigado ao pagamento de faturas emitidas há menos de 6 meses, ou seja, “o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”, cfr. n. 1 do artigo 10º.
Assim, na sequência deste entendimento, o n. 2 do artigo 10º estabelece que “se, por qualquer motivo, incluindo erro do prestador de serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”, isto é, a caducidade opera no prazo de 6 meses a contar do pagamento inicial.
Todavia, o prazo de caducidade não opera quando a ausência de leituras se deva a fato imputável ao utilizador, ou seja, neste caso o direito da entidade gestora ao pagamento não se extingue enquanto não cessar o impedimento que afeta a leitura por parte desta, cfr. n. 5 do artigo 67º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
Em qualquer dos casos, o envio da fatura não interrompe os prazos de prescrição e caducidade, cfr. artigo 323º do Código Civil.
Não se efetuando o pagamento da prestação do serviço, a entidade gestora para obter o pagamento coercivo pode recorrer ao tribunal, no prazo de seis
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meses, ao abrigo do n. 4 do artigo 10º da LSPE, cabendo a esta o ónus da prova de que procedeu em conformidade com o preceituado no artigo 11º da LSPE: “1 – Cabe ao prestador do serviço a prova de todos os fatos relativos ao cumprimento das suas obrigações e ao desenvolvimento de diligências decorrentes da prestação dos serviços a que se refere a presente lei. 2 – Incide sobre o prestador do serviço o ónus da prova da realização das comunicações a que se refere o artigo 10º, relativas à exigência do pagamento e do momento em que as mesmas foram efetuadas.”
Deste modo, se o utilizador não efetuar o pagamento voluntário, não houver acordo de pagamento para liquidar a dívida e a entidade gestora não recorrer à via judicial para pagamento coercivo da dívida no prazo de seis meses, o utilizador pode recusar o pagamento invocando a prescrição, cfr. artigo 303º do Código Civil. Contudo, se o utilizador pagar voluntariamente a dívida prescrita, sem que tenha invocado a prescrição, não pode exigir a devolução do valor pago, cfr. artigos 402º e 403º do Código Civil.
No que concerne à invocação da prescrição, uma vez que estamos no âmbito das relações de consumo, designadamente no campo da contratação de serviços essenciais, imprescindíveis à satisfação das necessidades básicas e indispensáveis dos cidadãos, entende-se que, ao contrário do que acontece, quando seja intentada ação judicial pela entidade gestora, naquelas circunstâncias, a exceção da prescrição deveria ser de conhecimento oficioso, e não dependente de invocação por parte do utilizador, sob pena de ser condenado a pagar os montantes peticionados.
3. A proibição de contratos forçados
A prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, como se referiu supra, é prestado através das infraestruturas de ligação da rede predial à rede pública.
No entanto, em situações muito particulares, nomeadamente quando as infraestruturas são criadas em momento posterior aos edifícios existentes, têm sido suscitadas questões pelos utilizadores que dispõem de captação de água própria (poços e furos privados) e de fossas sépticas, ou seja, soluções particulares de abastecimento de água para consumo ou de drenagem de águas residuais, da obrigatoriedade ou não de celebrar o respectivo contrato com a entidade gestora, abandonando as soluções privativas que tinham até aí.
Nestes casos, a ERSAR, os municípios e as entidades gestoras têm defendido acerrimamente a impossibilidade de manutenção daquelas soluções simplificadas,
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designadamente quando a captação de água se destine a consumo humano, cfr. Decreto-Lei 226-A/2007, de 31 de maio, sujeitando os utilizadores à celebração forçada do contrato de águas, mesmo que devidamente licenciados e cumprindo todas as normas de segurança, cfr. artigo 82º do Decreto Regulamentar 23/95, de 23 de agosto.
Na verdade, podem ser aduzidos argumentos contra este entendimento, através quer de uma interpretação da letra do diploma aplicável às relações com os utilizadores quer, ainda, a partir de elementos retirados da nova Diretiva Europeia dos Direitos dos Consumidores 2011/83/EU, de 25 de outubro, publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 22 de novembro, que entrou em vigor em 12 de dezembro de 2012 no espaço europeu, e que deverá ser transposta e publicada até 13 de dezembro de 2013, que atestam que não podem existir contratos forçados neste domínio contratual.
Antes do mais, a LDC, no n. 4 do artigo 9º, estabelece imperativamente que: “O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido”.
O Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, prescreve no n. 1 do artigo 63º que quem pretenda os serviços de abastecimento e de saneamento pode celebrar contrato para a sua prestação, e não que é obrigado a celebrar o contrato, não se encontrando a liberdade contratual coartada, pois cabe a quem pretende contratar a opção pelo que mais e melhor lhe convém. Não obstante o fato de, no artigo 64º, o diploma se referir que só pode denunciá-lo por desocupação do prédio, o que pode deixar transparecer uma certa ideia de obrigatoriedade que aqui se refuta.
Por outro lado, existem, ainda, argumentos decisivos extraídos da nova diretiva europeia, em vigor já no espaço europeu, que não podem ser ignorados, e que é bastante esclarecedora quanto à celebração de contratos forçados no âmbito dos serviços públicos essenciais, cfr. n. 1 do artigo 3º: “A presente diretiva aplica-se, nas condições e na medida prevista nas suas disposições, aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor. Aplica-se também aos contratos de fornecimento de água, (…), na medida em estes produtos de base sejam fornecidos numa base contratual”, designadamente o disposto, imperativamente, no artigo 27º da diretiva, que refere que o consumidor não pode ser obrigado a pagar qualquer valor se não tiver celebrado o contrato de modo voluntário: “O consumidor está isento da obrigação de pagar qualquer contrapartida nos casos de fornecimento não solicitado de bens, água”, in casu, se não tiver requerido a instalação da água ou se não tiver solicitado o seu fornecimento.
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Ainda, um outro argumento se pode aduzir, que é o fato de estes contratos poderem ser celebrados à distância, e, como tal, poder ser sempre exercido o direito de retratação. Deste modo, se no prazo de 14 dias subsequentes à celebração do contrato se pode dar o dito pelo não dito, é porque, na verdade, o consumidor não é obrigado a contratar.
No que toca ao tema, refere o n. 3 do artigo 42º do Decreto-Lei 226- A/2007, de 31 de maio, que “um sistema de abastecimento particular produz água para consumo humano sob responsabilidade de uma entidade particular, só podendo funcionar na condição de impossibilidade de acesso ao abastecimento público, ficando sujeito aos requisitos legais para este tipo de utilização”. Mas, não obstante este artigo parecer contrariar o disposto no n. 1 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, a verdade é que ele não tem qualquer aplicabilidade, de acordo com o princípio jurídico “lex posteriori derogat legi priori”, ou seja, lei posterior derroga lei anterior.
Deste modo, atento o exposto, a contratação de serviços públicos essenciais não pode assentar em contratos forçados, implicando, pois, uma mudança de atuação, para o futuro, por parte das entidades envolvidas.
4. A proibição de consumos mínimos
A LSPE, no n. 1 do artigo 8º, proíbe “a imposição e a cobrança de consumos mínimos” aos utentes dos serviços essenciais, proibindo, no n. 2 do artigo, a cobrança de “a) Qualquer importância a título de preço, aluguer, amortização ou inspecção periódica de contadores ou outros instrumentos de medição dos serviços utilizados; b) Qualquer outra taxa de efeito equivalente à utilização das medidas referidas na alínea anterior, independentemente da designação utilizada; c) Qualquer taxa que não tenha uma correspondência direta com um encargo em que a entidade prestadora do serviço efectivamente incorra, (…); d) Qualquer outra taxa não subsumível às alíneas anteriores que seja contrapartida de alteração das condições de prestação do serviço ou dos equipamentos utilizados para esse fim, excepto quando expressamente solicitada pelo consumidor”.
E, no n. 3 do mesmo artigo, prescreve-se: “Não constituem consumos mínimos,
para efeitos do presente artigo, as taxas e tarifas devidas pela construção, conservação e manutenção dos sistemas públicos de água, de saneamento e resíduos sólidos, nos termos do regime legal aplicável.”
No entanto, o que tem vindo a acontecer é que, perante a proibição dos consumos mínimos plasmados na LSPE, as entidades gestoras dos serviços de
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abastecimento de água, de saneamento e de recolha de resíduos, eximindo-se ao cumprimento das normas legais, têm vindo, de forma dissimulada, a cobrar autênticos consumos mínimos que se encontram impedidas por lei, atribuindo- lhes diversas denominações, desde taxas ou quotas de serviço a tarifas fixas ou de disponibilidade, mas sempre com um único intuito, a receita da taxa de contador que a lei eliminou.
A verdade é que, na maioria dos casos, a cobrança de tais importâncias não têm correspondência direta com qualquer tipo de encargo, que, caso contrário, justificaria a sua cobrança, mas apenas com o facto de o serviço se encontrar à disposição do utilizador dos serviços.
Assim sendo, através destas cobranças, numa clara violação do direito à proteção dos direitos económicos dos utilizadores dos serviços, as entidades gestoras vão obtendo o seu lucro para além da sua sustentabilidade económica.
CAPÍTULO III
Das vicissitudes do contrato
1. Generalidades
A atividade dos agentes económicos é pautada pelo princípio da qualidade e eficiência dos serviços prestados, nos termos do artigo 4º da LDC: “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequada às legítimas expectativas do consumidor.”
Nestes termos, e especificamente, a entidade gestora dos serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais é responsável pelo cumprimento dos padrões de qualidade e eficiência, cfr. artigo 7º da LSPE: “A prestação de qualquer serviço deverá obedecer a elevados padrões de qualidade, neles devendo incluir-se o grau de satisfação dos utentes, especialmente quando a fixação do preço varie em função desses padrões.” Bem como tem a obrigação de assegurar os serviços de água de forma continuada, tal como estabelece o artigo 60º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto: “1 – O abastecimento de água aos utilizadores deve ser assegurado de forma contínua.”
No entanto, quer por motivos de ordem técnica, inerentes à própria atividade de exploração dos serviços de água, quer por motivos imputáveis aos utilizadores finais, a continuidade do serviço pode sofrer um revés.
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2. Da interrupção
A interrupção programada dos serviços de água só é admitida em situações excepcionais, e que se encontram previstas na lei, cfr. 2a parte do n. 1 do artigo 60º do diploma citado.
Assim, as situações enunciadas, quando imputáveis à atividade de exploração dos serviços, dizem respeito aos casos de deterioração na qualidade da água distribuída ou previsão da sua ocorrência eminente (alínea a) do n. 1); trabalhos de reparação ou substituição do sistema público ou dos sistemas prediais (alínea d) do n. 1); trabalhos de reparação ou substituição de ramais de ligação, quando não seja possível recorrer a ligações temporárias (alínea c) do n. 1 e alínea a) do
n. 2); e, casos fortuitos ou de força maior, entendidos como “os acontecimentos imprevisíveis ou inevitáveis que impeçam a continuidade do serviço, apesar de tomadas pela entidade gestora as precauções normalmente exigíveis”, cfr. alínea e) do
n. 1, alínea b) do n. 2 e 4, não se incluindo neste conceito a greve, cfr. n. 4 in fine.
No mesmo artigo se enunciam as situações imputáveis ao utilizador em que será admissível a interrupção dos serviços de água: ausência de condições de salubridade do sistema predial (alínea b) do n. 1); detecção de ligações clandestinas, anomalias ou irregularidades do sistema público (alínea f) e g) do n. 1 e alínea c) do n. 2 do artigo 60º); verificação de descargas com características de qualidade em violação dos parâmetros legais e regulamentares aplicáveis (alínea d) do n. 2 do artigo 60º); e recusa de acesso à rede predial para a realização de inspeção, sendo esta medida a mais adequada para evitar a contaminação ou poluição, bem como quando seja detectada a utilização de meios fraudulentos de utilização dos serviços de água (n. 4 do artigo 70º).
Nos casos de interrupção programada, e na esteira do cumprido das exigências decorrentes do dever de informação (cfr. xxxxxx x) do artigo 61º e artigo 4º da LSPE), não sendo possível à entidade gestora garantir a continuidade dos serviços pelos quais é responsável, deve, desde logo, veicular toda a informação aos utilizadores, com a antecedência mínima de 48 horas, cfr. n. 5 do artigo 60º, através de todos os meios disponíveis: avisos ou editais, comunicação social ou no sítio da internet, ou, até mesmo, através de comunicação individual aos utilizadores atingidos, sendo a disponibilização da informação de forma mais pormenorizada possível, indicando o período durante o qual o serviço se encontrará interrompido e a área atingida.
Nestas situações, se a entidade gestora não cumprir a obrigação de comunicação prévia a que se encontra adstrita, incorre em contraordenação punível com coima, variável entre € 7 500,00 e € 44.890,00, cfr. alínea f) do n. 1 do artigo 72º e 73º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
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Já no caso de ocorrer uma interrupção não programada, caberá à entidade gestora o dever de informar a duração estimada daquela medida, sempre que os utilizadores solicitem algum esclarecimento. Informação que deve ser, ainda, disponibilizada no sítio da internet e difundida nos meios de comunicação social ao dispor. Em qualquer dos casos, a entidade gestora deve, sempre que possível, minimizar o impacto das diligências levadas a cabo na interrupção, de modo a suavizar todos os incómodos eventualmente causados aos utilizadores dos serviços de água, tal como decorre do n. 7 do artigo 60º.
É certo que “a entidade gestora do sistema público não assume qualquer
responsabilidade por danos que possam sofrer os utilizadores em consequência de perturbações ocorridas nos sistemas públicos que ocasionem interrupções no serviço, desde que resultem de casos fortuitos ou de força maior ou de execução de obras previamente programadas, sempre que os utilizadores forem avisados com, pelo menos, dois dias de antecedência”. Isto significa que existindo informação prévia sobre qualquer situação de interrupção dos serviços de água, a entidade gestora estará livre de qualquer responsabilidade pelos danos que eventualmente possam daí decorrer, cfr. n. 1 do artigo 294º do Decreto Regulamentar 23/95, de 23 de agosto.
3. Da suspensão
O contrato de fornecimento de água e de saneamento de águas residuais produz efeitos para ambas as partes envolvidas na relação jurídica; todavia, a produção dos efeitos que dele decorrem pode cessar temporariamente, através da figura jurídica da suspensão.
A entidade gestora pode recorrer a este mecanismo nas situações em que pretenda exigir o pagamento de faturas emitidas, sempre que o utilizador incorra em mora no pagamento dos consumos realizados ou da utilização do serviço de saneamento, cfr. alínea h) do n. 1 e alínea e) do n. 2 do artigo 60º do Decreto- Lei 194/2009, de 20 de agosto, tal como nas situações em que o utilizador impossibilite, após prévia notificação, a leitura do consumo efetuado, cfr. n. 4 do artigo 67º daquele diploma. Ou seja, quando este sujeito da relação jurídica deixa de cumprir a obrigação a que está adstrito, a entidade gestora pode fazer uso da figura jurídica da exceção de não cumprimento do contrato, prevista no
n. 1 do artigo 428º do Código Civil: “1 – Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
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No entanto, uma vez que se trata de uma relação de consumo, o contrato de prestação de serviços de águas não pode ser suspenso sem que se faça uso do mecanismo de proteção previsto no n. 1 do artigo 5º da LSPE, isto é, que o utilizador seja devidamente advertido, mediante pré-aviso escrito, com a antecedência mínima de 20 dias relativamente à data em que venha a ter lugar a suspensão do serviço, cfr. n. 2 do artigo 5º da LSPE.
Para além desta informação, o pré-aviso deve ainda justificar o motivo da suspensão, referente à quantia que esteja em dívida, os meios disponíveis que o utilizador tem ao dispor para proceder ao pagamento do valor em dívida, incluindo o prazo para o fazer, bem como os meios ao dispor para proceder à retoma do serviço em caso de suspensão efetiva. Nestas circunstâncias, nada obsta que o utilizador possa “fazer valer os seus direitos nos termos gerais”, cfr. n. 3 do artigo 5º da LSPE.
Nestes casos, de incumprimento contratual imputável ao utilizador, é lícito à entidade gestora exigir a prestação de caução para proceder ao restabelecimento dos serviços, ao abrigo do n. 1 do artigo 2º do Decreto-Lei 195/99, de 8 de junho, alterado pelo Decreto-Lei 100/2007, de 2 de abril. Esta pode ser prestada por depósito em dinheiro, cheque ou transferência eletrónica ou através de garantia bancária ou seguro-caução, sendo o seu valor calculado nos termos fixados pelo Despacho 4.186/2000, publicado em Diário da República, 2a Série, de 22 de fevereiro, correspondendo ao quádruplo do encargo com o consumo médio mensal dos últimos 12 meses.
Contudo, se logo que “regularizada a dívida objeto do incumprimento, o
consumidor optar pela transferência bancária como forma de pagamento dos serviços”, a entidade gestora não exigirá a prestação de caução, cfr. n. 4 do artigo 2º do diploma citado. E “sempre que o consumidor, que haja prestado caução nos termos do n. 1, opte posteriormente pela transferência bancária como forma de pagamento, a caução prestada será devolvida nos termos do artigo 4º”, cfr. n. 5 do artigo 2º do Decreto-Lei 195/99, de 8 de junho.
Nestas circunstâncias, quando se verifique novo atraso no pagamento das faturas referentes ao serviço prestado, a entidade gestora pode utilizar a caução prestada “para satisfação dos valores em dívida pelo consumidor” (n. 1 do artigo 3º). Quando acionada, a entidade gestora pode exigir a sua reconstituição ou o seu reforço, no prazo nunca inferior a 10 dias úteis, devendo fazê-lo por escrito (n. 2 do artigo 3º). Mas no caso de a caução acionada ser insuficiente para liquidar integralmente a dívida existente, a entidade gestora não pode proceder à suspensão do serviço, senão depois da interpelação efetuada, sem que se tenha verificado a reposição ou o reforço da caução, dentro do prazo estabelecido (n. 3 e 4 do artigo 3º).
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Findo o contrato de prestação de serviços de água, a caução é restituída ao utilizador, deduzidos os montantes que eventualmente existam à data, cfr. artigo 4º e 5º do Decreto-Lei 195/99, de 8 de junho.
CAPÍTULO IV
Das modificações
1. Generalidades
A relação jurídica que se estabelece entre a entidade gestora de abastecimento de água, de recolha de águas residuais e de resíduos urbanos alicerça-se em contratos duradouros, cujo conteúdo, em regra, é composto por condições previamente redigidas, com recurso a cláusulas contratuais gerais, cfr. n. 1 do artigo 1º da Lei das Condições Gerais dos Contratos (LCGC) – Decreto-Lei 446/85, de 25 de outubro, que institui o regime das cláusulas contratuais gerais, às quais o utilizador se limita a aderir, ou não, exercendo, apenas, a faculdade de celebrar, ou não, o contrato, sem qualquer possibilidade de discussão ou de introdução de modificações, ao contrário do que acontece nos contratos entre privados, em que prevalece a autonomia privada.
Nestes termos, o desequilíbrio existente no negócio jurídico, entre as partes contratantes, determina a ativação de mecanismos de proteção eficaz dos interesses económicos do utilizador dos serviços, designadamente a prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, tal como prescreve os n.s 1 e 2 do artigo 9º da LDC e artigo 3º da LSPE.
Deste modo, é essencial a plena consciencialização de tudo o que é contratado: uma informação clara, objetiva e adequada, que deve acontecer não só no momento da subscrição do contrato, mas também no decurso da relação contratual, de molde a permitir uma proteção eficaz dos interesses económicos daquele, cfr. n. 1 do artigo 8º da LDC e do n.s 1 e 2 do artigo 4º da LSPE.
Não se pode esquecer, é claro, que se está perante um contrato de adesão, cujo conteúdo contratual não pode ser ajustado de acordo com a vontade dos contraentes; todas as posteriores alterações que venham a ser concretizadas têm de respeitar, igualmente, o especial dever de comunicação e informação, cfr. artigos 5º e 6º da LCGC, exigindo-se, assim, a comunicação integral das alterações, proporcionando à contraparte a possibilidade de um completo e efetivo conhecimento de todo o novo clausulado.
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2. Das modificações subjetivas
No que concerne às modificações subjetivas, isto é, no que toca à substituição dos sujeitos contratuais, esta pode operar através da transmissão da posição contratual do utilizador titular do respectivo contrato para um terceiro ou através da substituição do contrato de prestação de serviços de fornecimento e de recolha, cfr. n. 6 do artigo 63º do Decreto-Lei 194/2007, de 20 de agosto.
Na transmissão da posição contratual para terceiro, ou seja, mantendo o mesmo contrato, nas condições contratadas, a relação jurídica mantém-se, assumindo o novo titular todos os direitos e obrigações, débitos e créditos, do anterior titular decorrentes da prestação de serviço anteriormente celebrada.
No que concerne à substituição do contrato, neste caso, as eventuais dívidas que possam decorrer do anterior contrato, relativo àquele local de consumo, não podem ser imputadas ao novo utilizador, uma vez que as dívidas que decorrem do contrato de fornecimento e recolha de águas têm eficácia meramente obrigacional e não eficácia real. O mesmo é dizer que as dívidas são de natureza obrigacional e, por isso, da responsabilidade do utilizador, não impendendo sobre o prédio a servir. Daí que “não pode ser recusada a celebração de contratos de fornecimento e de recolha com novo utilizador com base na existência de dívidas emergentes de contrato distinto com outro utilizador que tinha anteriormente ocupado o mesmo imóvel, salvo quando seja manifesto que a alteração do titular do contrato visa o não pagamento do
débito” (n. 7 do artigo 63º do diploma).
E a recusa por parte da entidade gestora em celebrar o contrato de fornecimento e recolha de águas com o utilizador constitui contraordenação, punível com coima, que pode variar entre € 7 500,00 e € 44.890,00, cfr. alínea
m) do n. 1 do artigo 72º e 73º do diploma citado.
As alterações também podem ser relacionadas com a entidade gestora, nomeadamente quando se altere o modelo de gestão, quando se atribua a outra entidade a gestão dos serviços. Nesta situação, devem igualmente ser respeitadas todas as normas protetivas dos utilizadores, designadamente as decorrentes do direito à informação.
3. Das modificações objetivas
No que ao conteúdo do contrato se refere, apesar de alicerçado num contrato de adesão, caracterizado pela unilateralidade na elaboração do conteúdo contratual, o contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais e recolha de resíduos urbanos não pode sofrer alterações senão por mútuo consenso, cfr. n. 1 do artigo 406º do Código Civil.
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Após a formalização do contrato de prestação de serviços, todas as alterações objetivas que possam existir, durante a vigência daquele, estão sujeitas aos requisitos gerais fixados na LCGC para a adoção de cláusulas contratuais gerais, ou seja, as modificações que eventualmente ocorram durante o período em que vigora o contrato têm de estar devidamente asseguradas ao longo da vigência da relação estabelecida entre as partes, ou seja, não podem ser alteradas unilateralmente, têm de ser devidamente comunicadas ao utilizador, sob pena de não poderem ser invocadas perante o utilizador, cfr. alínea a) do artigo 8º da LCGC.
Deste modo, todas as alterações que digam respeito ao tarifário aplicável, às regras pelos quais se regem os contratos de prestação de serviços, bem como o regulamento de serviço têm de ser comunicadas, proporcionando um completo e efetivo conhecimento de todo o conteúdo das alterações.
Aliás, no que respeita ao regulamento de serviço – instrumento jurídico com eficácia externa, que regula em concreto o relacionamento dos sujeitos da relação jurídica, isto é, no qual se encontram regulamentados os direitos e os deveres dos utilizadores e da entidade gestora –, quando os serviços sejam objeto de delegação ou concessão, é promovido um período de consulta pública do projeto de regulamento de serviço, de duração nunca inferior a 30 dias úteis, disponibilizado no sítio da internet da entidade gestora, bem como nos locais e publicações de estilo.
Posteriormente, as alterações, publicadas em Diário da República, são afixadas nos locais de atendimento, tal como no sítio da internet, tendo a entidade gestora o dever de informar, por escrito e individualmente, os utilizadores da data de publicação em Diário da República e da faculdade de consulta, cfr. artigo 62º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.
CAPÍTULO V
Da extinção do contrato
1. Generalidades
A produção de efeitos de um contrato depende da vontade das partes. Nos contratos bilaterais a sua eficácia depende do cumprimento pontual das obrigações a que cada uma das partes está adstrita, não podendo extinguir-se senão por mútuo consenso, ou seja, por acordo das partes intervenientes, conforme o princípio geral enunciado no n. 1 do artigo 406º do Código Civil: “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.”
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2. Revogação
A revogação do contrato, também designada por distrate, é uma forma de livremente extinguir o contrato, implicando a existência de um acordo entre os contraentes do negócio jurídico no sentido de fazer cessar o contrato, podendo ocorrer a todo o tempo.
A revogação ou distrate tem normalmente uma eficácia ex nunc, isto é, para
o futuro; todos os efeitos produzidos pelo contrato se mantêm e ele deixa de produzir efeitos a partir do momento da sua revogação.
3. Denúncia
A denúncia é uma outra forma de extinção de contratos de execução duradoura, sem prazo de duração convencionado ou legalmente fixado, para evitar a prorrogação.
Nos termos do n. 1 do artigo 64º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, o utilizador pode, a todo o tempo, denunciar, por escrito, junto da entidade gestora, o contrato de fornecimento e recolha de águas residuais, quando o motivo da denúncia do contrato seja a desocupação do local de consumo; todavia, este não é um conceito decisivo para que seja integrado na denúncia, dado que o utilizador pode deixar de utilizar o local de consumo, por diversas razões, sem que isso implique a extinção do contrato.
Porém, tal como se encontra prescrito na norma, a denúncia só produz efeitos a partir da data em que o utilizador facultar a leitura do contador, a qual deve ser realizada num prazo de 15 dias a contar da comunicação da denúncia, cfr. n. 2 do artigo 64º do diploma. Não sendo possível a obtenção da leitura por fato imputável ao utilizador, este continua responsável pelo pagamento do valor a liquidar, cfr. n. 3 do artigo 64º.
4. Caducidade
O contrato também se pode extinguir por caducidade. Este é um efeito jurídico decorrente da verificação de um fato jurídico stricto sensu, verificando- se a cessação dos efeitos do contrato ope legis, sem necessidade de qualquer manifestação da vontade das partes tendente a esse resultado. Ou seja, quando o contrato chega ao final do seu período estipulado de vigência, deixando de
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produzir efeitos, exceto se for automaticamente prorrogado, isto é, se o contrato continuar em vigor porque as partes assim o manifestaram.
Esta forma de extinção do contrato de fornecimento de água e de recolha de águas residuais está prevista no Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, para os contratos celebrados com base em títulos sujeitos a termo.
É o caso dos utilizadores especiais (donos de obras ou de promotores de eventos), cujo contrato seja celebrado para fornecimentos temporários ou sazonais de água a estaleiros e obras, ou a zonas de concentração de população ou de atividades com caráter temporário (feiras, festivais e exposições), portadores de títulos de autorização que se extinguem por caducidade no final do prazo para o qual foram contratados, exceto quando seja feita prova da manutenção dos pressupostos que levaram à celebração do contrato de caráter temporário, cfr. n. 3 do artigo 65º do diploma referido.
A caducidade tem, tipicamente, apenas efeitos para o futuro; todos os efeitos já produzidos pelo contrato, até ao momento da verificação do prazo, são preservados.
5. Resolução
Uma última forma de extinção dos contratos é a chamada resolução.
A resolução do contrato encontra-se prevista e regulada nos artigos 432º e seguintes do Código Civil; todavia, vinculado a um fundamento legal ou convencional: “1 – É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção”, sendo o regime geral da resolução equiparado, nos efeitos, ao instituto da invalidade do negócio jurídico, à nulidade ou anulabilidade, cfr. artigo 433º do Código Civil.
A resolução é uma figura jurídica que consiste na extinção do contrato com eficácia retroativa, por declaração unilateral e vinculada de uma das partes, cfr.
n. 1 do artigo 436º do Código Civil, quando se verifique a superveniência de um facto que iluda as expectativas que a parte depositava no contrato subscrito. Tal significa que a resolução do contrato é feita apenas por um dos contraentes, tendo como efeito a extinção de todos os efeitos do contrato na esfera jurídica do outro contraente. Isto quer dizer que todos os efeitos jurídicos que o contrato tinha produzido desaparecem, independentemente da vontade deste, operando retroativamente ab inicio, cfr. n. 1 do artigo 434º e n. 1 do artigo 435º, ambos do Código Civil.
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Por outro lado, nos negócios de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre as prestações e a causa da resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas, cfr. n. 2 do artigo 434º do Código Civil.
Assim, no caso de se verificar incumprimento contratual por parte da entidade gestora, o que implica que ela não cumpra as obrigações contratuais que assumiu, o utilizador poderá resolver o respectivo contrato, nos termos do artigo 798º do Código Civil, o qual predispõe que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Nesta sequência, sempre que os padrões de qualidade inerentes à natureza do serviço sejam preteridos pela entidade gestora, o utilizador do serviço pode deixar de cumprir as suas obrigações, procedendo à apresentação de reclamação em conformidade, nos termos do artigo 68º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, cuja apreciação caberá à entidade reguladora (ERSAR), cfr. n. 4 do artigo 68º, dispondo a entidade gestora, para além da obrigação de enviar a reclamação para a entidade reguladora, o dever de responder, por escrito, no prazo máximo de 22 dias úteis à reclamação apresentada, cfr. n. 3 do artigo 68º.
Ao utilizador é também, em situações de incumprimento, facultado o recurso à arbitragem, que, no âmbito dos serviços públicos essenciais, funciona como necessária, ao abrigo do artigo 15º da LSPE: “1 – Os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados. 2 – Quando as partes, em caso de litígio resultante de um serviço público essencial, optem por recorrer a mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos suspende-se no seu decurso o prazo para a propositura da ação judicial ou da injunção.”