Contract
A alteração superveniente das obrigações contratuais e a excepcional divisão de riscos, no âmbito das relações de consumo, imposta pela pandemia da Covid-19 443
A alteração superveniente das obrigações contratuais e a excepcional divisão de riscos, no âmbito das relações de consumo, imposta pela pandemia da Covid-19
Guilherme Ferreira da Cruz1
Juiz de Direito no Estado de São Paulo
Sumário: 1. Política nacional das relações de consumo; 2. Vulne- rabilidade; 3. Ação governamental; 4. Inviabilidade de abuso no mer- cado; 5. Panorama constitucional do risco da atividade; 6. O direito básico à alteração contratual; 6.1. Modificação de cláusulas despropor- cionais; 6.2. Revisão superveniente × base do negócio; 7. A excepcional divisão de riscos imposta pela pandemia da Covid-19; 8. Conclusão; 9. Referências.
1. Política nacional das relações de consumo
A perspectiva medular, a ser prima facie considerada, é de que a Lei 8.078/90 deixa clara sua intenção (art. 4º, caput) e essa política protecionista, imposta pelo Estado, nasce da constatação da fragilida- de do consumidor, disperso, sem organização em face das empresas e da consequente necessidade da sua intervenção no sentido de proteger o consumidor, por iniciativa direta, mediante o fomento à criação e ao
1 Doutor em Direito Civil pela USP, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES-Santos; Pós-
-graduado em Direito do Consumidor pela EPM. Professor de Direito do Consumidor da Universidade Metropolitana de Santos e do Programa de Pós-graduação da Escola Paulista da Magistratura e da Escola Superior de Advocacia. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON).
desenvolvimento das associações de consumidores ou por sua presença
no mercado.2
Interessa que a defesa do consumidor não pode ser encarada como instrumento de confronto entre produção e consumo, senão como meio de compatibilizar e harmonizar os interesses envolvidos.3
Na busca desse equilíbrio, a Política Nacional das Relações de Consumo funciona como norma-objetivo, ou seja, possibilita a introdu- ção no universo normativo dos fins perseguidos pelo sistema mediante a análise de padrões teleológicos perfeitamente definidos, in casu: o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dig- nidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e a harmonia das relações de consumo.
O professor e ex-Min. do STF Xxxx Xxxxxxx Xxxx recomenda, e com razão, que o intérprete deve repudiar qualquer solução interpretativa que não seja adequada à realização daqueles fins inscritos na norma-
-objetivo do art. 4º.4 Entretanto, isso não significa o comprometimento da liberdade econômica, ao contrário, resta ela estimulada enquan- to atuação socialmente responsável de ambos os polos envolvidos, ou seja, o princípio da intervenção mínima necessária impede que os eco- nomicamente mais fortes reduzam ou anulem a liberdade dos fracos (consumidores).5
2. Vulnerabilidade
A vulnerabilidade é a espinha dorsal da proteção ao consumidor, na qual se assenta toda a linha filosófica do movimento consumeris- ta,6 podendo ser apontada como basilar e consequente de todos os
2 CAVALCANTI, Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx. Comentários ao Código de Proteção e Defesa do Consu- midor. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1991, p. 25.
3 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de. A proteção jurídica do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 15.
4 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: algumas notas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 5, 1993, p. 188-189.
5 XXXXXX, Xxxx. O código, a política e o sistema nacional de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 6, 1993, p. 71.
6 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 16.
outros princípios informadores do sistema protetivo.7 Daí por que a Lei 8.078/90 parte da fraqueza manifesta do consumidor no mercado, con- ferindo-lhe certos instrumentos para melhor defender-se.8
Pode-se dizer que o CDC é todo uma emanação do princípio da vulnerabilidade e, em certo sentido, justifica-se em função dele.9 Afinal, a própria Constituição da República é expressa em reconhe- cer no consumidor um sujeito que precisa de defesa (art. 5º, XXXII), e quando impõe ao Estado o dever de protegê-lo nada mais faz do que concretizar o princípio da isonomia tratando desigualmente os desiguais.
O art. 4º impõe, como elenca o seu primeiro princípio (I), que seja reconhecida a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a justificar e a impor que ele receba um tratamento diferenciado,10 afinal, a vulnerabilidade não é pressuposto da condição de consumidor, nem elemento dos seus conceitos (próprios e equiparados). É, isto sim, direito material outorgado a todos os que a lei considera consumidores, pessoa jurídica inclusive.11
Em outras palavras, não é o vulnerável que será, per se, consumi- dor; mas todo consumidor é materialmente vulnerável, conquanto se trate ou não de pessoa física, jurídica ou profissional. Evidenciado o elemento teleológico (destinatário final) ou a subsunção a alguma das normas de extensão, ressai ex vi legis a vulnerabilidade.
Dinâmica, aliás, que opera iure et de iure; conforme ressalta Ar-
ruda Alvim:
A vulnerabilidade do consumidor é incindível do contexto das relações de consumo e independe de seu grau cultural ou econômico, não admitin- do prova em contrário, por não se tratar de mera
7 XXXXXX, Xxxxx. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no
Código de Proteção e Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 38.
8 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 4. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1996, p. 44.
9 NUSDEO, Xxxxx et al. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 27.
10 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 128.
11 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Pessoa jurídica consumidora. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 152.
presunção legal. É, a vulnerabilidade, qualidade intrínseca, ingênita, peculiar, imanente e indis- sociável de todos que se colocam na posição de consumidor, em face do conceito legal, pouco im- portando sua condição social, cultural ou econômi- ca, quer se trate de consumidor-pessoa jurídica ou consumidor-pessoa física.12
Mas a vulnerabilidade (presente ope legis) não se confunde com a hipossuficiência (critério subjetivo13), característica restrita àqueles que, além de vulneráveis, veem-se numa situação agravada por sua individual condição de carência cultural, material ou, como ocorre com frequência, ambas.14
Assim, é forçoso concluir que a vulnerabilidade é um conceito de ordem material, inerente à figura de qualquer consumidor; enquanto a hipossuficiência é ontologicamente processual e, por isso, sua presença deve ser verificada caso a caso com o escopo de viabilizar seu único efeito: a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII).
3. Ação governamental
Esse princípio, também inserido no art. 4º do CDC, de certa forma, é corolário da vulnerabilidade do consumidor, pois, se há reconheci- mento dessa fragilidade e desigualdade de uma parte em relação à outra, está claro que o Estado deve intervir para proteger a mais fraca, por meios legislativos e administrativos, de modo a garantir o respeito aos seus interesses.15
Trata-se da responsabilidade atribuída ao Estado, enquanto ente máximo organizador da sociedade (via poder de polícia) e do merca- do, de prover o consumidor dos mecanismos que propiciam sua efetiva
12 XXXXX XXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx et al. Código do Consumidor comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 45.
13 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx e et al. Código brasileiro de defesa do consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. 4. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1996, p. 230.
14 XXXXX XXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx et al, op. cit., p. 45.
15 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 16-17.
proteção.16 A intervenção deve ser constante e não se esgota nas for- mas previstas no art. 4º, II, do CDC; um agir de maneira eficiente, a coibir e a reprimir todos os abusos praticados no mercado de consumo (CDC, arts. 4º, VI, c.c. 6º, IV).
Observe-se: no fomento da defesa do consumidor (CF, arts. 5º, XXXII c.c. 170, V) e na realização da dignidade da pessoa hu- mana (CF, art. 1º, III), o Estado, invocando a correta noção de liberda- de, há de concretizar os valores sociais da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV) conforme os ditames da justiça social (CF, art. 170, caput), fazendo-
-se presente no mercado de consumo sempre que necessário (CF, arts. 173, § 4º, c.c. 174).
4. Harmonia e equilíbrio
A relação de consumo deve ser harmônica e justa, a fim de que o vínculo entre o fornecedor e o consumidor seja constituído de maneira tal que se estabeleça o equilíbrio econômico da equação financeira e das obrigações jurídicas pactuadas ou contraídas pelos interessados. Esse equilíbrio econômico e jurídico é princípio informativo da relação de consumo que possui por fundamento a justiça distributiva, harmoni- zando os interesses legítimos das partes.17
O objetivo é a harmonização dos interesses envolvidos e não o confronto ou o acirramento de ânimos. Interessa às partes (consumi- dores e fornecedores) o implemento das relações de consumo como um todo, atendidas as necessidades do destinatário final sem prejuízo de estar o mercado abastecido de bens e de serviços.18 Não se trata, portanto, de uma cruzada antiempresa, mas, ao contrário, de uma
16 Já no primeiro ano de vigência do CDC, com propriedade, afirmava Newton de Lucca (A proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 5, 1993, p. 75): “mais do que um mero ‘dirigismo contratual’, para usar uma expressão da moda, impunha-se uma verdadeira intervenção do Estado no princípio da autonomia da vontade das partes
– basilar da teoria geral dos contratos, em sua concepção clássica – com o propósito de coibir os abusos mais escandalosos de que nossa República foi pródiga em revelar exemplos”.
17 LISBOA, Xxxxxxx Xxxxxx. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 108.
18 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 17.
forma de aperfeiçoamento do sistema empresarial, inclusive com a fi- nalidade de dotá-lo de maior competitividade e eficiência.19
De um lado, situa-se o fornecedor de bens e serviços, geralmente uma empresa, estruturada não apenas para atender a uma finalidade precípua, como também apta a prover o resguardo dos seus interesses comerciais por meio de recursos diversos, desde o poder de barganha até departamentos jurídicos especializados. De outro, tem-se o con- sumidor, em regra uma pessoa física isolada, desconhecedora dos seus próprios direitos ou impossibilitada de acioná-los, impotente diante da lesão aos seus interesses legítimos, confrontada com a necessidade de consumir bens ou serviços imprescindíveis à manutenção da sua própria existência e dignidade.20
No que concerne à harmonia e ao equilíbrio, há de não se per- der de vista os postulados constitucionais da justiça, da solidariedade e da isonomia, pois, na lição de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, o princípio do equilíbrio “encontra sua razão de ser na justiça contratual, e apresen- ta-se antagônico ao princípio clássico da obrigatoriedade dos contra- tos – pacta sunt servanda – que é consequência imediata e lógica da autonomia da vontade. Portanto, limita, na busca do direito justo, os dois últimos”.21
5. Panorama constitucional do risco da atividade
Nos restritos limites da análise proposta, a expressão livre encon- tra base constitucional em três momentos distintos: a) como funda- mento da República (CF, art. 1º, IV); b) como seu objetivo (CF, art. 3º, I); e c) como princípio geral da ordem econômica (CF, art. 170, caput, e IV, c.c. seu par. ún.).
Pois bem. É necessário fixar, e de modo inquebrantável, que o sistema constitucional brasileiro não admite qualquer livre iniciativa,
19 XXXXXX, Xxxxx et al., op. cit., p. 28.
20 XXXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 49.
21 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Princípios contratuais. In: Xxxxxxxxx, Xxxxxxxxx (coord.). Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25. (Série GVlaw).
mas apenas aquela fundada em valores sociais (CF, art. 1º, IV); logo, percebe-se, a olho desarmado e ao contrário do que pensam alguns, que a iniciativa não é tão livre assim.
Conclui-se, portanto, que a ordem econômica nacional há de guardar ressonância com os valores sociais da livre iniciativa, porque somente dessa forma poderá assegurar a todos existência digna (CF, art. 170, caput), nova representação da dignidade da pessoa humana já prevista como fundamento da República (CF, art. 1º, III).
Fixadas tais premissas, indaga-se: o Estado deve garantir a livre iniciativa e a livre concorrência em benefício dos empreendedores (fornecedores concorrentes) ou do mercado, no qual o consumidor é a maioria?
Evidentemente essa noção de liberdade só pode aproveitar ao consumidor, muitas vezes graduado pelo agir por necessidade, pena de se admitir uma exploração irracional, e, até certo ponto, autofágica do mercado, que não pertence exclusivamente aos fornecedores.
Busca-se, na verdade e sem nenhum “conteúdo político-ideoló- gico comunista ou socialista”,22 a realização do social, vale dizer, uma justiça distributiva que permita a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), com prevalência do mandamento jurí- dico nuclear: dignidade da pessoa humana (piso mínimo normativo).23 E isso passa pela implantação de um Estado social, intervencionista, “que procura, a partir da concretização das liberdades reais ou po- sitivas, realizar a justiça social, prestigiando e fortalecendo, desse modo, os direitos econômicos e sociais reconhecidos em favor das pessoas”.24
No atinente ao fornecedor, a liberdade constitucional encontra sua representação concreta no dispositivo que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica (CF, art. 170, par. ún.). A opção é, pois, do fornecedor. Mas saliente-se: a mesma liberdade que
22 XXXX XXXXXX, Xxxxxx. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 3, p. 47.
23 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São
Xxxxx: Saraiva, 2000, p. 14.
24 STF, ADIN 319/DF, voto do Min. Xxxxx xx Xxxxx, em 4 de dezembro de 1992.
assegura ao agente empreendedor a iniciativa de explorar o mercado, inexoravelmente o vincula aos riscos e aos percalços dessa empreitada, e de maneira exclusiva, a inviabilizar qualquer tentativa de transferên- cia desse ônus, inclusive mediante contrato expresso (CDC, art. 51, I, III e XV, c.c. seu § 1º, I, II e III).25
Trata-se da teoria do risco do negócio ou do risco da atividade, que deixa solarmente clara a distinção entre a liberdade do fornece- dor e a necessidade do consumidor, condutas de mercado que não se confundem. Básico o fundamento: sem repartição adequada dos lucros, não é possível divisão dos riscos.
6. O direito básico à alteração contratual
Como instrumento de realização dos postulados constitucionais da justiça, da solidariedade e da isonomia, a se sustentar na pretendida justiça distributiva (CF, art. 170, caput), o equilíbrio ou equivalência contratual – tanto econômico da equação financeira quanto jurídico das obrigações pactuadas – alça contornos de princípio informativo de toda a relação de consumo.
Por isso, a identificar a Lei 8.078/90 um direito subjetivo ao equi- líbrio contratual,26 como numa renegociação imposta,27 é que um dos direitos básicos do consumidor permite a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revi- são em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (CDC, art. 6º, V).
Nada obstante a nulidade de pleno direito que contamina as cláu- sulas abusivas,28 sobretudo aquelas que consagram vantagem exagera- da para o fornecedor (CDC, art. 51, § 1º), à semelhança da disciplina
25 TJSP, AC 7.292.899-3, rel. Rizzatto Xxxxx, j. 05.08.2009. Em igual sentido e da mesma Corte: AI 7.125.798-0, j. 28.02.2007 e AC 199.115-4/8-00, j. 21.09.2005.
26 XXXXXXX, Xxxxx. Direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 125.
27 Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx. A intervenção judicial no contrato em face do princípio da integridade da prestação e da cláusula geral da boa-fé: uma nova visão do adimplemento contratual. São Paulo: EPM, 2014.
28 Cf. as previstas no art. 51, I, IV, VII, VIII, X, XI, XII, XIII, XV e XVI, do CDC.
dos contratos de adesão (CDC, art. 54, § 2º), o sistema jurídico autoriza o consumidor, no seu exclusivo interesse,29 ao invés de desconstituí-lo total ou parcialmente (CC, arts. 393, p. ún., c.c. 478), a adequar o vín- culo obrigacional a parâmetros equilibrados que permitam a satisfação econômica dos sujeitos envolvidos,30 mas sem a ruína financeira de um deles, por certo a sua própria.
Ou seja, pretende-se resgatar ou impor o sinalagma genético31 economicamente justo, visto que nem sempre o originário é equilibra- do, pois
a estipulação de cláusulas abusivas é concomitante com a celebração dos contratos, mas a descoberta de sua abusividade é geralmente posterior, é ati- vidade do intérprete do contrato, do aplicador da lei, face aos reclamos daquele que, ao executar o contrato, verificou o abuso cometido.32
Tem-se, com isso, uma especial faceta do clássico princípio da conservação dos negócios jurídicos (CC, arts. 157, § 2º, c.c. 184 c.c. 479
c.c. 480), sempre buscando “assegurar a manutenção do contrato en- quanto houver interesse útil a ser satisfeito mediante sua execução”,33 o que também atrai um exame das teorias do adimplemento substancial e do inadimplemento eficiente,34 esta a recomendar – como regra jurí- dica padrão contra o inadimplemento – a performance específica; daí por que reconheceu expressamente o Código que “a nulidade de uma
29 Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx et al. anotam que, “a onerosidade excessiva e superveniente que permite o recurso a esta revisão judicial é unilateral, pois o art. 6º do CDC instituiu direitos básicos apenas para o consumidor” (MARQUES, Cláudia Lima et al. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 58).
30 Lembre-se, aqui, que Xxxx Xxxxx qualifica o contrato como “a veste jurídica de uma operação econômica” (XXXXX, Xxxx. O contrato. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, p. 11).
31 XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., p. 126.
32 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx et al. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 256.
33 MIRAGEM, Xxxxx, op. cit., p. 130.
34 XXXXX XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. A teoria do inadimplemento eficiente (Efficient Breach Theory) e os custos de transação. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, n. 151-152, p. 240-255, 2009.
cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua existência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus exces- sivo a qualquer das partes” (CDC, art. 51, § 2º).
o que se pretende destacar é a dupla possibilidade conferida ao juiz: declarar a nulidade (afastando a cláusula) ou promover a revisão. Não há absoluta incompatibilidade entre os dois regimes. Ao con- trário, o princípio da conservação do contrato exi- ge esforço judicial de permanência do vínculo. É possível declarar a nulidade de determinada cláu- sula – afastando completamente seus efeitos – e, em seguida, integrar o contrato com base em usos e costumes, com exigências da boa-fé ou expressa disposição normativa sobre o assunto.35
Esse equilíbrio reconduzido ou obtido pode advir de duas situa- ções distintas, a depender do tipo de alteração da origem do abuso:
a) da modificação das cláusulas desproporcionais, se presente desde o nascedouro do contrato e b) da revisão, se originado de fatos superve- nientes que tornem excessivamente onerosas as prestações assumidas.
6.1. Modificação de cláusulas desproporcionais
Ressalta Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx que, “o inciso V garante a modificação, pelo princípio da conservação do contrato, o magistrado que reconhecer a nulidade deve fazer a integração das demais cláusu- las e do sentido estabelecido no contrato, em função de seu objeto, no esforço de mantê-lo em vigor”.36
Importante, aqui, nessa espécie de lesão consumerista,37 é per- ceber que a modificação das cláusulas depende exclusivamente da
35 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx et al. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 295.
36 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 569.
37 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 31.
desproporcionalidade das prestações estabelecidas, fator permeado de tônus objetivo, ao contrário do que acontece no direito privado dos iguais.38
ao consagrar como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas que estabeleçam pres- tações desproporcionais, independentemente da demonstração de qualquer requisito de natureza subjetiva, o legislador teve por objetivo assegurar o equilíbrio econômico do contrato desde sua cele- bração, sem a necessidade de sua desconstituição ou invalidação, mas apenas pela correção das mes- mas, destacando a finalidade de manutenção do contrato de consumo.39
Essa possibilidade de modificação, de modo direto e no exercício regular da jurisdição, num verdadeiro ato de intervenção estatal,40 autoriza o juiz – na verdade um poder dever41 – a alterar a econo- mia do contrato antes de desconstituí-lo, “integrando o pacto, de tal modo que este venha a ser implementado, em novas bases, após o reequilíbrio das prestações e o expurgo das cláusulas abusivas”,42 no entanto, sempre à luz do resultado mais interessante para o consumi- dor, sujeito que quase sempre não participa da elaboração dos seus termos.
Ressalte-se que não há direito adquirido ao abuso e a supos- ta autonomia da vontade cede à justiça distributiva imposta pelo sistema constitucional, também e principalmente na defesa do consumidor.
38 Cf., v.g., o estado de perigo (CC, art. 156) e a lesão (CC, art. 157).
39 MIRAGEM, Xxxxx, op. cit., p. 126.
40 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de. A revisão dos contratos no Código do Consumidor. In: MARQUES, Xxxxxxx Xxxx; XXXXXXX, Xxxxx (org.). Doutrinas essenciais: direito do consumidor: contratos de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 4, p. 340.
41 STJ, AgRg. no REsp. 763.245/RS, rel. Min. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, x. 15.09.2005.
42 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 341.
6.2. Revisão superveniente × base do negócio
De fato, a ressaltar mais uma vez a importância da principiologia consumerista, xxxxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx que a garantia de revisão das cláusulas contratuais encontra fundamento nos princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio e da vulnerabilidade do consumidor (CDC, art. 4º, I e III), que decorrem do princípio constitucional maior da isonomia (CF, art. 5º, caput).43
A Lei 8.078/90, da mesma forma, manteve a filosofia objetivada do seu sistema, apartando-se da tradicional teoria da imprevisão,44 que ainda disciplina o trato dos negócios comuns (CC, art. 317). Preferiu, com isso, uma revisão pura45 e unilateral46 em prol do consumidor. Isto é: “mesmo sendo previsível o fato, a sua superveniência aliada à quase impraticabilidade da prestação, permite a revisão do contrato, para adequá-lo ao que foi avençado pelas partes”.47
Comparando os dois regimes, anota Xxxxx Xxxxxxx que,
a regra do artigo 6º, V, do CDC, em sua segunda parte, o direito subjetivo do consumidor à revi- são do contrato decorre da circunstância de que fato superveniente tenha tornado excessivamente onerosas as prestações. Não faz referência, assim, ao requisito sobre a imprevisibilidade ou não do fato superveniente que tenha dado causa à des- proporção. Nesse sentido, o CDC, coerente com a diretriz de impedir a transferência de riscos do ne- gócio ao consumidor, assim como de promover uma maior objetivação do exame e avaliação do com- portamento das partes do contrato de consumo, afasta a exigência (e com isso a necessidade de
43 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 569.
44 Lembra Xxxxx Xxxxxxx: “Imprevisível é qualidade do que não é possível, segundo regras ordinárias e de comportamento diligente e probo das partes, antecipar o conhecimento sobre sua ocorrência. Em matéria contratual, distingue-se do que seja previsível, porquanto este se caracteriza como inerente ao risco normal do adimplemento ou não do contrato” (MIRAGEM, op. cit., p. 127-128).
45 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, op. cit., p. 569. 46 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx et al., op. cit., p. 58. 47 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 344.
comprovação) de que o fato que tenha dado causa à desproporção fosse imprevisível. O objetivo des- ta disposição é a proteção do consumidor não ape- nas com relação a fatos supervenientes que deses- truturem o plano do contrato e a possibilidade de adimplemento, mas também uma vedação a que riscos inerentes ao negócio do fornecedor sejam repassados ao consumidor, quando a responsabili- dade pelos mesmos seja daquele que desenvolve a atividade negocial.48
A revisão contratual, portanto, está intimamente ligada à mudan- ça das circunstâncias primárias do ajuste e à impossibilidade de divisão de riscos no mercado, o que o Código não tolera sequer mediante cláu- sula expressa (CDC, art. 51, I, III e XV).
A norma do art. 6º do CDC avança, em relação ao Código Civil (arts. 478-480 – Da resolução por onerosidade excessiva), ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresis- tível – apenas exige a quebra da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínse- co, a destruição da relação de equivalência entre prestações, o desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento au- torizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de sim- ples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi. O CDC, também, não exige, para promover a revisão, que haja “extrema van- tagem para a outra” parte contratual, como faz o Código Civil (art. 478).49
48 MIRAGEM, Xxxxx, op. cit., p. 128). Na mesma linha Rizzatto Nunes: “para que se faça a revisão do contrato, basta que após ter sido firmado surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se na data de seu fechamento as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor” (NUNES, op. cit., p. 569).
49 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx et al., op. cit., p. 58.
Tem-se, nesta quadra, pelo sistema jurídico protetivo do con- sumidor, a adoção da teoria objetiva da base do negócio50 com suas nuances, dirigida a manter o contrato válido e economicamente útil às partes,51 pouco ou nada importando a subjetiva imprevisibilidade fática,52 a depender apenas da verificação: a) se ocorreu supervenien- te situação anormal (não corriqueira); b) se a economia contratual foi afetada (tornando insuportável ou extremamente difícil/custoso o cumprimento); c) se a situação adversa não é imputável ao consumi- dor; d) se ocorreu a onerosidade excessiva,53 quantitativa (valores) ou qualitativa (forma de adimplemento da prestação).
Isto significa que a comutatividade originária do ajuste não tolera a desconfiguração abrupta dos sacrifícios obrigacionais previstos e as- sumidos pelo sujeito vulnerável, independentemente de o preço con- vencionado manter-se no patamar da suportabilidade e da adimplência (subjetivo). Aqui o foco é o tipo da prestação (objetivo); logo, se em razão do ocorrido o consumidor assumir parcial ou totalmente a pres- tação do fornecedor,54 o reequilíbrio pecuniário avulta incontornável, sem tônus de desconto facultativo, tornando-se irrelevante perquirir se houve ou não perda de capacidade financeira do aderente.
Xxxx Xxxxxx retomou a teoria da base do negócio, atribuindo à mesma um sentido objetivo, assim entendido como o conjunto de circunstâncias e estado geral das coisas, cuja existência ou sub- sistência é objetivamente necessária para que o contrato, segundo o significado das intenções de
50 Com origem nos coronation cases do direito inglês, mas desenvolvida e aprimorada pela doutrina alemã (XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx da. Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código do Consumi- dor. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 127).
51 Xxxx Xxxxxx. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Tradução: Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, p. 41.
52 STJ, REsp. 376.877/RS, rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 06.05.2002.
53 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx de, op. cit., p. 344.
54 Como um pai, surpreendido pela pandemia, a se ver obrigado a cuidar pessoalmente da alfabe- tização do seu filho criança, como se professor xxxxx, a partir do ensino fundamental à distância disponibilizado por escola particular, não utilizada em toda a sua estrutura humana e física (compo- nentes legítimos do preço inicial), por isso titular do dever ético e jurídico de readequar o valor das mensalidades durante o período de exceção.
ambos os contratantes, possa subsistir como regu- lamentação dotada de sentido. Segundo esta xxx- xxx, haverá a quebra da base objetiva do negócio, possibilitando-se o pedido de revisão ou resolução judicial, quando, em razão de fato superveniente à sua celebração, ocorrer a frustração da finalidade essencial do contrato ou a destruição da sua rela- ção de equivalência econômica.55
A base objetiva se liga ao desaparecimento do fim essencial do contrato ou à destruição da relação de equivalência,56 desprendidos da álea normal do ajuste,57 elementos cuja análise dependerá, quase sem- pre, da boa-fé objetiva, que gradua o vínculo obrigacional em todos os seus tempos,58 em especial quando da concreta avaliação do nível de desequilíbrio gerado pelo fato superveniente sobre as prestações e da suportabilidade desse dano pelas partes.59
O grande mérito da teoria objetiva da base do negócio está, como destaca Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, na identificação de
que mesmo fatos previsíveis podem vir a provo- car uma “tensão” entre o querer subjetivo e as circunstâncias concretas. Ignorar que tais fatos merecem um enfoque legal por tudo o que po- dem provocar no pacto é ignorar o fato de que os contratos desempenham uma função tanto entre as partes (a de manter a justiça comutativa que inspira qualquer contratação) como no meio ju- rídico (como fator de utilidade nas relações eco- nômicas).60
55 DIAS, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito pri- vado brasileiro. In: Xxxxxxxxx, Xxxxxxxxx (coord.). Fundamentos e princípios dos contratos empre- sariais. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 332. Série GVlaw.
56 TJSP, AC 0012518-25.2006.8.26.0224, rel. Xxxx Xxxxxxxxxx Zuliani, j. 09.06.2011.
57 Para Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx Xxxx: “esta condição negativa vem prevista de forma indireta no art. 51, § 1°, III, do CDC” (DIAS, op. cit., p. 366).
58 XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx da. Teoria geral das relações de consumo. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 157.
59 XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx da, op. cit., p. 136, 144.
60 Idem, p. 143.
7. A excepcional divisão de riscos imposta pela pandemia da Covid-19
Embora imprevisível, até para os mais pessimistas e apocalípticos, desprendida de qualquer álea esperada, numa pandemia da magnitude como essa que arrebatou o mundo, a tomar de inopino incontáveis vín- culos obrigacionais no âmbito das relações consumeristas brasileiras, esse elemento subjetivo – como visto – exsurge irrelevante.
Importa que esse fenômeno natural, até onde se sabe, projetou consequências objetivas sensíveis sobre o nosso mercado de consumo, a interferir diretamente não só nos contratos de execução continu- ada ou diferida, mas também na própria equação entre a oferta e a procura, de certos produtos e serviços, desestabilizando as tratativas tendentes à formação de novos pactos durante essa fase que ainda se desenvolve.
Fica claro, portanto, que as circunstâncias específicas de cada enfrentamento conduzirão o intérprete pelos caminhos tanto da modi- ficação quanto da revisão, aqui em número proporcionalmente maior por conta dos contratos surpreendidos, de uma forma ou de outra, pelas regras impositivas de combate à doença, lídimo factum principis autorizado pela Carta da República (art. 173, § 4º).
A premissa fundamental nesse processo deve ser, mais uma vez, o equilíbrio.
Isto porque o equilíbrio é a pedra angular das relações de con- sumo, a harmonizar os interesses envolvidos no intuito de impedir o confronto ou o acirramento de ânimos. Esse princípio, na busca do di- reito justo, limita os da obrigatoriedade e da autonomia da vontade.
Eis a gênese para se compreender o motivo que permite, em si- tuações excepcionais, a divisão daquele risco antes intransferível ao consumidor; afinal, até para a responsabilidade civil objetiva se reputa imprescindível que o risco seja calculado, o que incorre em situações extremas como a da pandemia da Covid-19, imunes até mesmo à pre- caução61 do mais diligente fornecedor.
61 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, p. 90-170.
Flexibiliza-se, neste passo, a ideia de que “a alocação dos riscos ao superior risk bearer é mais eficiente do ponto de vista econômico, pois se trata da parte que consegue evitar e mitigar o risco com o me- nor custo ou despesa”,62 mas sem olvidar-se por completo da impositiva lógica que formata a doutrina dos danos evitáveis (duty to mitigate the loss), a exigir um esforço intenso e efetivo do fornecedor, porém razoável, para abrandar os prejuízos do consumidor.
O superior risk bearer é o sujeito que está em melhor posição para realizar as seguintes medi- das: minimizar a probabilidade de contingência adversa, minimizar a extensão do prejuízo para a contraparte resultante da inexecução, tanto antes da sua ocorrência (precaução) quanto após (mi- tigação), ou assegurar-se (por si ou por meio de terceiros) contra o risco residual de prejuízo, que não pode ser evitado de maneira viável (Posner e Xxxxxxxxxx, 1977). A capacidade relativa de cada parte de suportar ou de assegurar-se contra o risco residual é significativamente mais difícil de deter- minar do que a vantagem comparativa de tomar precauções contra o risco.63
Medida ponderada e de proteção do mercado, no qual os consu- midores são a esmagadora maioria (lembre-se), não sendo correto, do ponto de vista do sistema de admissão de risco, em face da impossibili- dade da sua previsão e natural internalização como custo da atividade negocial, repassada ao mercado por intermédio da fixação dos preços, impor somente aos fornecedores os danos imponderáveis quanto à sua ocorrência e extensão.64
Cumpre que se anote que o aparato de distribuição de justiça brasileiro já se debruçou, no passado, sobre hipótese análoga, ainda que de menor extensão. A despeito da lucidez do raciocínio cartesiano,
62 TJSP, AC 0202965-46.2009.8.26.0100, rel. Xxxxxxx Xxxxxxx, x. 31.01.2013.
63 XXXXXXXX, Xxxxxx X. Unforeseen contingencies: risk allocation in contracts. Cheltenham: Xxxxxx Xx- gar, 2020, p. 108. Disponível em: xxxxx://xxx.xx/00xXXXx. Acesso em: 7 jun. 2020 (tradução livre).
64 MIRAGEM, Xxxxx, op. cit., p. 290.
embora de início tenha se decidido ser ilegal a transferência do risco da atividade financeira no mercado de capitais, próprio às instituições de crédito, ao consumidor violado no seu direito de informação,65 em conhecida hipótese fática que assolou nosso País no início do ano de 1999, o STJ firmou-se no sentido da repartição dos riscos:
CIVIL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. CONTRATO COM CLÁUSULA DE REAJUSTE PELA VARIAÇÃO CAM- BIAL. VALIDADE. ELEVAÇÃO ACENTUADA DA COTA- ÇÃO DA MOEDA NORTE-AMERICANA. FATO NOVO. ONEROSIDADE EXCESSIVA AO CONSUMIDOR. REPAR- TIÇÃO DOS ÔNUS. LEI N. 8.880/94, ART. 6º. CDC, ART. 6º, V.
I. Não é nula cláusula de contrato de arrendamento mercantil que prevê reajuste das prestações com base na variação da cotação de moeda estrangeira, eis que expressamente autorizada em norma legal específica (art. 6º da Lei n. 8.880/94).
II. Admissível, contudo, a incidência da Lei
n. 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pac- to celebrado, consubstanciado, no caso, por au- mento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento.
III. Índice de reajuste repartido, a partir de
19.01.99 inclusive, eqüitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez le- gal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimple- mento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e tam- bém alheio à sua vontade.
IV. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.66
65 STJ, REsp. 370.598/RS, rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 26.02.2002.
66 (STJ, REsp. 472.594/SP, rel. p/Xxxxxxx Xxx. Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx, x. 12.02.2003).
Cristalizou-se, a partir daí, a baliza de que “o art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor incide, apenas, para retirar a one- rosidade decorrente de fato superveniente que afeta a capacidade do consumidor adimplir o contrato”,67 o que permitiu que fossem as prestações do contrato de leasing reajustadas pela metade da variação cambial à época verificada.
Tudo leva a crer que, também na excepcionalidade de hoje, venha o fornecedor a ser considerado igualmente vítima dessa drástica ruptu- ra da congruência primária de vontades, a impor a repartição dos riscos no intuito, inclusive, de evitar e/ou diminuir o efeito multiplicador da exceção de ruína, que a nenhum consumidor interessa.
Filosofia, ademais, a modular a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, voltada a estabelecer e a disciplinar o Regime Jurídico Emergen- cial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19), que retroage sua inci- dência a eventos ocorridos desde 20 de março de 2020 (art. 1º, par. ún.).
Os vetos aos arts. 6º e 7º, únicos que compunham o seu Capítulo IV (Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos), se mantidos, não mudam nada no arquétipo até aqui desenhado, sendo elogiável o que incidiu sobre o § 2º do art. 7º, pois, no sistema brasileiro, a empresa e o empresário individual podem ser consumidores, próprio ou equiparado (CDC, arts. 2º, caput, c.c. 29).
8. Conclusão
A inesperada e avassaladora pandemia mundial erigiu a Covid-19 a excepcional causa autorizante da repartição dos riscos que graduam as relações de consumo, originalmente intransferíveis ao sujeito vulne- rável, o que decorre da impossibilidade de se ter incluído esse evento extremo no cálculo da equação econômica natural do contrato, mesmo diante da mais diligente precaução exercida; logo, exagerado se mostra impor apenas aos fornecedores as suas consequências imponderáveis.
67 STJ, AgRg no REsp. 453.662/SP, rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito, j. 13.05.2003.
Exige-se do provedor do mercado, todavia e de modo razoável, a obstar a multiplicação de indesejadas exceções de ruína, a efetiva observância da doutrina dos danos evitáveis (duty to mitigate the loss) no intuito de abrandar a onerosidade excessiva que tenha se projeta- do sobre o consumidor, quantitativa (valores) ou qualitativa (forma de adimplemento da prestação). E o vetor desse impositivo reequilíbrio é o art. 6º, V, do CDC, seja afastando o abuso que impregnou o contrato nascido nesse período (modificação), seja a propiciar o retorno do ajus- te à sua base objetiva originária (revisão).
Trata-se de autorizada intervenção estatal na economia da equi- valência primária, dirigida a bem concretizar o princípio da justa con- servação dos negócios jurídicos, o que a todos se aproveita, no exclu- sivo interesse do consumidor de ver recomposta a sua capacidade de adimplir e/ou resgatada a comutatividade dos sacrifícios obrigacionais previstos e por ele assumidos.
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