Contratações diretas em tempos de pandemia: uma análise dos riscos e fraudes na Administração Pública
Contratações diretas em tempos de pandemia: uma análise dos riscos e fraudes na Administração Pública
Carolline Ribas1 Vanessa Emília da Silveira2
Resumo
O presente trabalho tem como intuito analisar a possibilidade de contratações diretas na Administração Pública e a necessidade de tais atos se darem em conformidade com os princípios da transparência, moralidade e eficiência, sob pena de responsabilização dos gestores por fraudes e até corrupção. No contexto atual no cenário da Pandemia instaurado da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) - Sars-CoV-2, causador da COVID-19, restou-se caracterizado estado de situação emergencial, o que autoriza o procedimento de dispensa de licitação, nos termos da Lei nº 13.979/2020, no intuito de reduzir prazos longos e excesso de burocracia nas contratações públicas destinadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública. Acontece que não há como negar que essa abertura para contratações diretas pode dar margem para prática de atos de improbidade administrativa, já que sob o argumento da discricionariedade pode ocorrer de o gestor firmar contratos onerosos, superfaturados, pessoais ou até mesmo desvinculados de uma situação emergencial. Para que esta pesquisa se desenvolva, recorreu-se a uma metodologia de revisão bibliográfica e documental, tendo como parâmetro doutrinas, reportagens retiradas de sítios eletrônicos e pareceres jurídicos que demonstram preocupação com o aumento de desvios de finalidade da verba pública a partir do momento que se legitima novas hipóteses de dispensa de licitação para compra de bens e serviços na gestão administrativa. Este trabalho, longe de esgotar a temática, apresenta-se como uma contribuição acadêmica e social, no sentido de reforçar que as contratações diretas, não obstante o cenário da pandemia, implicam dever de a Administração observar a motivação dos atos, os princípios da moralidade e publicidade, a busca pela isonomia e efetividade da prestação da coisa pública.
Palavras-chave: Pandemia; contratações públicas; fraude; responsabilização.
1 Doutora em Humanidades, Culturas e Artes (Unigranrio) – E-mail: xxxxxxxxxxx@xxxxxxx.xxx
2 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Belo Horizonte/MG.
Abstract
This paper aims to analyze the possibility of hiring directors in the Public Administration and the need for such acts, if it looks like compliance with the principles of transparency, morality and economy, under penalty of managers being held responsible for fraud and even incorrect application. . In the current context in the scenario of the pandemic instituted by the Acute Respiratory Breathing Syndrome (SARS) - Sars-CoV-2, which causes COVID-19, restore the status of an emergency situation, or authorize the bidding waiver procedure, under the terms of the Law nº 13,979 / 2020, without reducing long terms and excessive bureaucracy in prohibited public contracts when facing the public health emergency. Accepting that there is no denying that this openness to direct hiring can give rise to practices of administrative improbity, since under the argument of discrepancy the manager may enter into expensive, overpriced, personal or even disassociated contracts from an emergency situation. For this research to develop, try a methodology of bibliographic and documentary review, having as doctrine parameters, reports taken from filters and legal opinions that demonstrate concerns about the increase in public budget deviations from the moment that new hypotheses of legitimacy are legitimized. exemption from bidding for the purchase of goods and services in administrative management. This work, far from exhausting the theme, presents itself as an academic and social contribution, with no sense of reinforcement that as direct hires, despite the pandemic scenario, the implicit task of auditing administration and motivation of acts, the standards of morality and advertising, a search for equality and effectiveness in the provision of public goods.
Keywords: Pandemic; public procurement; fraud; accountability.
Introdução
Desde o final de 2019 o Coronavírus (Sars-Cov-2) vem mudando a rotina de todos ao redor do mundo. Com a rápida disseminação da doença, infectando milhares de pessoas por vários continentes do mundo, A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, Emergência de Saúde Pública de interesse internacional (ESPII) sobre o surto global do novo Coronavírus. Entre as indicações da OMS as principais delas eram ficar em casa e evitar aglomerações ou ambientes fechados.
O Ministério da Saúde e o governo brasileiro, seguindo as orientações da OMS adotaram medidas de enfrentamento à pandemia nos estados, municípios e no Distrito Federal, como isolamento social, quarentena, fechamento do
comércio e o uso de máscaras, dispostos na Lei n° 13.979/20. Na tentativa, ainda, de se agilizar o processo de contratação de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, a legislação federal trouxe a possibilidade de dispensa de licitação, a fim de otimizar o planejamento, desburocratizar e agilizar os processos de contratações emergenciais.
Sabe-se que as contratações da administração pública pressupõem processo de licitação, visando economia, isonomia e transparência dos gastos públicos. Em casos excepcionais e previstos expressamente na lei federal de licitações, admite-se dispensa do processo licitatório formal em razão de demandas peculiares como situações de emergência ou urgência. Ora, a propagação da doença infecciosa viral respiratória causada pelo agente Coronavírus – COVID-19 é uma situação sem precedentes na história. Justamente por isso, não se mostra razoável basear-se em um procedimento extremamente burocrático e moroso, sob pena de a contratação almeja perder seu efeito ao longo do tempo. O que se busca nas contratações emergenciais é justamente garantir a celeridade e eficiência do serviço ou das aquisições pretendidas.
Acontece que não se desconhece que essa prerrogativa dada à Administração Pública pode dar ensejo a eventuais fraudes ou desvios de finalidade nas contratações. Muitas vezes o gestor público sob o prisma da discricionariedade pleiteia a aquisição de bens ou serviços sem o devido processo licitatório, seja por motivos pessoais seja por falta de planejamento organizacional, o que pode onerar os cofres públicos além de gerar contratações superfaturadas.
Nesse contexto, o presente trabalho tem como intuito propor uma análise crítica acerca da possibilidade de contratações diretas no contexto da pandemia, conforme autorização legislativa. Para tanto, em primeiro momento, será feita uma breve apresentação do contexto atual do estado de calamidade pública decretado no Brasil por meio da Lei n° 13.979/20 e seus decretos regulamentadores. Tal exposição mostra-se imprescindível para compreensão das medidas instituídas pelo governo federal como alternativa para
enfrentamento da situação de emergência no país. Em seguida, abordar-se-á o instituto da licitação trazida pelo ordenamento jurídico no inciso XXI do art. 37 da Constituição de 1988 e na lei n. 8.666, de 1993 como forma de se conhecer os parâmetros basilares que regem às contratações bem como as hipóteses legais de dispensa e inexigibilidade de licitação. Por fim, adentrar-se-á no escopo do presente artigo que diz respeito aos possíveis riscos ocasionados pelas contratações diretas quando elas se afastam dos níveis de eficiência e moralidade exigidos pelo legislador. Ao se verificar fraudes, atos ímprobos ou corrupção nos atos administrativos o gestor público pode ser responsabilizado civil, administrativamente e até penalmente.
O Estado de calamidade pública e medidas de enfrentamento à emergência
No final do ano de 2019 em Wuhan, na província de Hubei na China, surgiu uma nova doença denominada Síndrome Respiratória Aguda Grave. Com as pesquisas descobriu-se que se tratava de um vírus SARS - COV - 2, Covid- 19, um novo Coronavírus transmitido por gotículas, por contato e pelo ar, o qual é capaz de infectar humanos e animais. O primeiro caso detectado está ligado a uma pessoa frequentadora de um mercado onde eram vendidos animais vivos em péssimas condições de armazenamento e higiene. A suspeita era que o vírus tenha vindo pela ingestão de morcego contaminado. (SANARMED. 2020).
Altamente contagiosa, a COVID - 19 se espalhou rapidamente por cinco continentes do mundo, contaminando milhões de pessoas e causando milhares de mortes. Seus principais sintomas são tosse, febre, perda de olfato, paladar e dificuldade para respirar. Acomete sintomas graves principalmente a pessoas que apresentam comorbidades, como diabetes, hipertensão e tuberculose. (VEJA. 2020-b).
Estima-se que o número de contaminados é de quase quatorze milhões de pessoas e quase 600 mil mortes. Os países com mais mortes, aproximadamente, são: Estados Unidos 159.000, Brasil 96.00, Índia 39.000, Rússia 14.000 e África do Sul com mais de 8.000 mortes. (GOOGLE. COVID_19, Estatísticas)
No Brasil fora confirmado o primeiro caso de Corona Vírus em 26 de fevereiro de 2020. Um homem de 61 anos com histórico de viagem pela Itália. Em 08 de março de 2020 já havia 25 casos de COVID-19 confirmados no Brasil e 930 casos suspeitos. Na primeira quinzena de julho de 2020 o número de casos confirmados já era quase de 2 milhões e mais de 75 mil óbitos no Brasil. A dificuldade em manter o distanciamento social e as medidas básicas de limpeza e higiene agravam os números de contágio da doença. (SANARMED. 2020).
Devido à urgência e a gravidade da situação foi preciso a tomada de algumas medidas para conter o avanço do contágio do Coronavírus. A organização mundial de saúde (OMS) é a autoridade mundial em questão de saúde. Em 11 de março de 2020 a OMS declara pandemia de coronavírus, devido à rápida propagação do vírus por 5 continentes do mundo. (SANARMED. 2020). A declaração obriga os países a tomarem medidas preventivas para conter o avanço da propagação da doença, observando não só as questões de saúde, mas também as econômicas e sociais, respeitando os direitos humanos e dando atenção especial aos mais vulneráveis e carentes.
O diretor-geral da OMS, TedrosAdhanomGhebreyesus, disse que os países devem “detectar, proteger, tratar e reduzir a Transmissão” da COVID-19 e os números de pessoas contaminadas e mortes pelo mundo que se multiplicam. (SANARMED. 2020). Em alguns locais foram impostas as medidas indicadas pela OMS, como quarentena por quatorze dias podendo ser prorrogada, isolamento social, fechamento do comércio não essencial, entre eles, instituições de ensino, bares, restaurantes, academias, espaço de entretenimento ou qualquer atividade com aglomeração. As orientações para tentar conter o avanço da propagação do vírus são principalmente medidas básicas de saúde como lavar as mãos frequentemente com água e sabão (preferencialmente), mas se não for possível lavar as mãos, é indicado higienizá- las com álcool em gel 70%, cobrir a boca com o antebraço quando tossir ou espirrar, utilizar lenços de papel descartáveis. Se notar sintomas leves permanecer em casa com isolamento dos demais, e procurar atendimento médico se os sintomas se agravarem, como por exemplo, ter falta de ar. Também
foi indicado o uso de máscaras, evitar tocar os olhos, nariz e boca, não compartilhar objetos de uso pessoal, manter os ambientes limpos e arejados, seguir os critérios de isolamento e quarentena, ficar em casa e evitar aglomerações ou lugares fechados, Home Office, dentre outros. A orientação é que as medidas sejam proporcionais às situações, devem ser observados todos os aspectos e agir de acordo com as indicações dos órgãos de saúde pública. (VEJA. 2020).
Seguindo as orientações da OMS, o Ministério da Saúde e o governo brasileiro adotaram medidas para o enfrentamento da pandemia, como reforços na atenção primária para priorizar os pacientes mais graves; programa Saúde na hora, ampliando o funcionamento dos postos de saúde até às 22 horas; ampliação do programa Mais Médicos; telemedicina; adiantamento da campanha de vacinação contra a gripe, o que pode facilitar o diagnóstico de COVID-19; medidas de isolamento social e quarentena; restrição da entrada de estrangeiros; repasses financeiros à estados e municípios; aquisição de medicamentos, testes, insumos e equipamentos de proteção individual (EPIS); implantação de hospitais de campanha; auxílio emergencial no valor de 600 reais; doações de cestas básicas e kits de higiene; saque emergencial do FGTS; programa de redução de jornada de trabalho e salários, para preservar empregos; dentre outras medidas que requerem um grande recurso financeiro e urgência na aquisição e implantação. (BRASIL. Ministério da saúde. 2020; BRASIL. Lei nº 14.020, 2020).
Pela situação grave e urgente da rápida propagação do coronavírus, em 06 de fevereiro de 2020 fora publicada a Lei n° 13.979 a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública. Mencionada lei prevê o isolamento social, quarentena, procedimentos médicos, restrição no deslocamento de pessoas, uso de máscaras, realização compulsória de testes, exames médicos, amostragem, vacinação e investigação epidemiológica. Garante, ainda, o uso de leitos particulares com indenização posterior, bem como a gratuidade do tratamento e a defesa dos direitos fundamentais e o respeito dos direitos humanos.
Dentre uma das principais medidas arroladas pela norma federal tem-se a dispensa de licitação para contratar licitações diretas previstas no artigo 4° da lei. O escopo foi de modernizar e dar maior agilidade e menos burocratização nas contratações destinadas ao atendimento da situação de emergência em saúde. No contexto social, político e econômico instaurado no Brasil nota-se que a situação de emergência instituída possui uma natureza distinta das situações de urgência já previstas na lei 8.666/93. Ora, verifica-se que muito mais que urgência, trata-se de um colapso do sistema, de modo que não se mostra razoável supor que a melhor opção seria a contratação direta provisória condicionada a um processo de licitação futura.
Para que haja devido controle, a lei prevê a fiscalização das contratações, bem como divulgação das informações em um portal de transparência (um site com todas as informações das empresas e contratos), para que haja um controle social sobre essas contas ações.
A possibilidade de contratações diretas para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde
Sabe que licitação é um procedimento administrativo para contratação de serviços ou aquisição de produtos pela administração pública direta ou indireta, devidamente previsto pelo ordenamento jurídico no inciso XXI do art. 37 da Constituição de 19883 e na lei n. 8.666, de 1993.
Pode-se conceituar licitação como um procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras ou serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, por meio da convocação de interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de
3 Art. 37. [...] XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (BRASIL. Constituição Federal. 1988)
parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. (MELLO, 2010, p. 526).
O objetivo da licitação é selecionar a proposta mais vantajosa, garantir a isonomia na escolha e desenvolvimento nacional sustentável. Como todo procedimento administrativo, a Administração é norteada por alguns princípios sejam expressos no ordenamento jurídico, sejam frutos da construção doutrinária e jurisprudencial. Consideram-se princípios básicos aqueles elencados no art. 3° da Lei n° 8.666/93, quais sejam “da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo”.(BRASIL, Lei n° 8.666. 1993).
Como o próprio nome sustenta, o princípio da legalidade fundamenta-se no fato de que o administrador somente pode agir nos limites da lei. Essa limitação decorre do fato de não ser possível prevalecer qualquer vontade pessoal do administrador público (ao contrário do que ocorre na esfera privada), a fim de se garantir aos indivíduos eventuais atos de abuso de conduta e desvios de finalidade (XXXXXXXX XXXXX, 2003, p. 200).
O princípio da impessoalidade encontra-se atrelado à moralidade. Isso significa que a Administração deve dispensar o mesmo tratamento a todos os administrados que se encontrem na mesma situação jurídica (XXXXXXXX XXXXX, 2003, p. 200). Ou seja, há uma correlação direta com os valores da ética e da moral, de modo que se um ato for ao contrário desses parâmetros pode ser considerado inválido e nulo perante o ordenamento jurídico. A moralidade administrativa, segundo Xxxxxxxx Xxxxx (2003, p. 198) relaciona-se ao dever de o os atos de gestão serem amparados pela lealdade e boa-fé no trato com os particulares, de modo que se descarte qualquer conduta astuciosa ou eivada de malícia.
Já a isonomia deriva da noção de igualdade de oportunidades a todos que tiverem interesse em contratar com a Administração. Tal fato permite haver competitividade e, como consequência, apresentação das melhores propostas à autoridade licitante. Xxxxxxx Xxxxxxxx xxxxx (2003, p. 201), a igualdade na licitação decorre da ideia de que todos os interessados devem competir em
igualdade de condições, sem que a nenhum se ofereça vantagem não extensiva a outro.
Por sua vez, o princípio da publicidade impõe que os atos administrativos sejam amplamente divulgados, de modo que se possibilite transparência e controle social da Administração. O fundamento é que “quanto maior for a quantidade de pessoas que tiverem conhecimento da licitação, mais eficiente poderá ser a forma de seleção, e, por conseguinte, mais vantajosa poderá ser a proposta vencedora” (XXXXXXXX XXXXX, 2003, p. 201).
O princípio da probidade administrativa encontra-se correlacionado com os ideais de honestidade, boa-fé e moralidade da Administração. Desse modo, exige-se que “o administrador atue com honestidade para com os licitantes, e, sobretudo para com a própria Administração e, evidentemente, concorra para que sua atividade esteja de fato voltada para o interesse administrativo (XXXXXXXX XXXXX, 2003, p. 202). Em decorrência dessa imposição, caso seja praticado um ato de improbidade, o responsável poderá sofrer sanções de natureza civil, penal e administrativa.
O princípio da vinculação ao instrumento convocatório permite que sejam traçadas regras que norteiem as condutas do administrador e dos administrados. Tal fato faz-se importante para se garantir certeza dos critérios de contratação e evitar a prática de qualquer ato fora dos limites do edital (ou da carta convite).
Por fim, o princípio do julgamento objetivo impõe que os critérios e fatores seletivos previstos no edital sejam adotados de forma obrigatória para o julgamento da proposta vencedora, de forma a se evitar qualquer surpresa para os licitantes. (XXXXXXXX XXXXX, 2003, p. 202). A finalidade desse parâmetro é evitar qualquer ato de subjetivismo ou personalíssimo, não sendo possível alteração dos critérios previamente delimitados no edital.
Além desses princípios expressamente previstos na lei infraconstitucional, há vários princípios correlatos instituídos no intuito de se garantir que, de fato, a melhor proposta seja contratada pela Administração. Dentre eles, pode-se mencionar, pela doutrina de Xxxxxxxx Xxxxx (2003, p. 203-204) o princípio da competitividade, da indistinção, da inalterabilidade do edital; do formalismo procedimental; da vedação à oferta de vantagens; da obrigatoriedade. O ponto
em comum é que todos eles definem lineamentos que devem situar o procedimento licitatório para que ocorra com a maior lisura e responsividade possível.
A obrigatoriedade da realização do procedimento licitatório é um corolário do princípio constitucional da isonomia, previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, I), pelo qual, todos devem receber tratamento igual pelo Estado. A finalidade é tentar impedir que sejam escolhidos interessados com base em critérios de amizade pessoal e outros interesses alheios à finalidade pública. Justamente por isso, entende-se que o objeto imediato da licitação é evitar selecionar proposta que melhor atenda aos interesses da Administração, desvinculada de qualquer ato de favorecimento pessoal. Segundo Xxxxxx, "a licitação representa, portanto, a oportunidade de atendimento ao interesse público, pelos particulares, numa situação de igualdade". (2005, p. 325). Ou seja, se há possibilidade de concorrência, sem prejuízo ao interesse público, deve haver licitação.
Em situações excepcionais, no entanto, o próprio legislador infraconstitucional admitiu a contratação direta (sem licitação) com base nos critérios de dispensa e inexigibilidade. Ou seja, não obstante haja obrigatoriedade de realização de licitação, a Lei 8.666/93 permite haver exceções à regra de modo que a Administração poderá, sob o crivo da discricionariedade, efetuar contratações diretas. Nos casos de dispensa o procedimento de licitação deixa de ser obrigatório. Ou seja, em tese, tal procedimento poderia ser realizado, mas pela particularidade do caso o próprio legislador decidiu não o tornar obrigatório. Já na inexigibilidade, o certame não se faz viável uma vez que não há possibilidade de competição (XXXXXXXX XXXXX 2003, p. 205).
Tendo em vista o objeto de análise deste artigo, passa-se a enfatizar a possibilidade de dispensa de licitação pois é justamente ela que permitirá a aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus.
A dispensa de licitação é uma dessas modalidades de contratação direta elencada no artigo 24, da Lei 8.666/93. Dentre as hipóteses, o legislador
estabeleceu de forma expressa a situação de flagrante excepcionalidade decorrente de calamidade pública e emergência. Veja-se:
Art. 24. É dispensável a licitação: [...]
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos (BRASIL. Lei n° 8.666.1993)
Nesses casos, nota-se que a lei é expressa quanto a possibilidade de contratação direta, limitando, no entanto, a aquisição à quantidade de bens suficientes para superação da situação emergencial. Xxxxxxxx Xxxxx (2003, p. 206) exemplifica situações de calamidade pública como aquelas que derivam de fatos naturais, como chuvas torrenciais, alagamentos, transbordamentos de rios, dentre outros.
Sobre esses parâmetros, explica Xxxxxxxxx (2007, p. 414 e 415):
Emergência - atraso por recursos administrativosNota: o TCU considerou regular a contratação por emergência deempresa para fornecer passagem aérea, até conclusão do procedimentolicitatório, retardado por inúmeros recursos administrativos.Fonte: TCU, Processo n° 007.852/96-7. Decisão n° 137/1997 - Plenário.
Emergência - comprometimento da segurançaTJDF decidiu: "É dispensável a licitação, nos casos de emergência,quando caracterizada a urgência de atendimento de situação que possaocasionar prejuízo ou comprometer a segurança"Fone: TJDF 18 Turma Civil. APC n° 1937988/DE. DJ 30 mar. 1994. P.3.264."
Nesse mesmo sentido, aduz o magistério de Xxxxxx Xxxxx (2005, p. 239):
A contratação imediata apenas será admissível se evidenciado que será instrumento adequado e eficiente de eliminar o risco. Se o risco de dano não for suprimido através da contratação, inexiste cabimento da dispensa de licitação. Trata-se, portanto, de expor a relação de causalidade entre a ausência de contratação e a ocorrência de dano - ou, mais precisamente, a relação de causalidade entre a contratação e a supressão do risco de dano. Em última análise, aplica-se o princípio da proporcionalidade. A contratação deverá ser o instrumento satisfatório de eliminação do risco de sacrifício dos interesses envolvidos.
Com a pandemia pelo novo coronavírus foi preciso adotar medidas para o enfrentamento da doença. A Lei n° 13.979/20 prevê a possibilidade de contratação direta sem licitação, previsto no art. 4°. Para tanto, é preciso comprovar urgência concreta e efetiva no atendimento da necessidade pública para dispensa de licitação.
Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. (BRASIL. Lei n° 13.979. 2020).
Sob esse ponto, a Exposição de Motivos constantes da MPV 926/20, que alterou a lei federal 13.979/20, foi clara ao querer desburocratizar e agilizar os processos de contratação ao prever a necessidade de se manter serviços essenciais à população, bem como se garantir a atuação do Poder Público durante a crise, evolvendo contratações relacionadas à logística para o abastecimento de alimentos das cidades (BRASIL. Medida Provisória 926.2020). Outrossim, a Exposição de Motivos também enfatizou que pelo fato de a situação de emergência ser temporária não há necessidade de se alterar a lei de licitações, Lei 8.666 de 1993, mas sim por fazer modificações pontuais na lei 13.979, deixando claro que os casos de dispensa de licitação incluem, inclusive, contratação de serviços de engenharia, uma vez que pode ser demandado ao SUS a construção ou modificação de estruturas físicas para atendimento da
situação emergencial. (BRASIL. Medida Provisória 926.2020).
Não obstante, ainda se reconheceu a necessidade de se atender a quatro pressupostos essenciais para que haja a dispensa nos limites razoáveis da discricionariedade administrativa, quais sejam:
(a) ocorrência de situação de emergência; (b) necessidade de urgência no atendimento da situação; (c) existência de risco a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e (d) limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação emergencial. (BRASIL. Medida Provisória 926.2020).
Segundo Parecer da Advocacia Geral da União n° 002/2020, proferido pela Câmara Nacional de Modelos de Licitações e Contratos Administrativos, tal possibilidade tem como intuito minimizar a ocorrência de potenciais prejuízos, exigindo-se, para tanto, uma ponderação necessária entre, o direito à vida e à saúde individual e coletiva e o princípio da economicidade administrativa. Isso porque “a dispensa tratada pela novel legislação, além de possuir destinação específica, é do tipo temporária, ou seja, somente pode ser invocada enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” (BRASIL. Advocacia Geral da União. 2020).
O problema que se faz é que, muitas vezes, com base nesse permissivo normativo, a Administração pública almeja contratações diretas sem que o gestor se debruce para comprovar que se enquadra nas situações excepcionais. Como consequência, pode-se encontrar processos administrativos sem a devida motivação da dispensa que podem se fundamentar em critérios desproporcionais, pessoais e imorais.
Dos riscos das contratações diretas e responsabilidade dos gestores: necessidade de observância dos princípios que regem as contratações públicas
Sabe-se que as contratações diretas possibilitadas pela lei federal n° 13.979/2020 não podem se desvincular os princípios que regem os processos administrativos de modo geral. O princípio da motivação integra o regime jurídico administrativo, impondo a necessidade de se explicitar o motivo (situação fática) e o fundamento jurídico dos atos administrativos. Sua obrigatoriedade decorre de princípios expressos e implícitos da Constituição: devido processo legal, contraditório e a ampla defesa, eficiência, moralidade, impessoalidade, transparência administrativa.
A motivação do ato administrativo deve sempre observar os requisitos da congruência, exatidão, coerência, suficiência e clareza. Não deve apenas indicar a situação fática genérica, que o viabiliza e que se prestariam a justificar qualquer outra decisão. Deve explicitar os requisitos específicos motivadores, não bastando uma motivação com uso de conceitos jurídicos indeterminados, vagos,
abstratos, lacônicos, principalmente, que se limitem à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo ou expressão fática genérica, sem explicar sua relação com o caso concreto.
A responsabilidade pela motivação dos atos recai exclusivamente sobre a figura do gestor público que deve trazer aspectos técnicos que circunscrevem o objeto ventilado na solicitação, assegurando a regularidade técnica dos atos de gestão praticados no âmbito da Política em questão. Dessa forma, os fundamentos que recaem na contratação são baseados na presunção de veracidade e idoneidade das informações técnicas subscritas pelas autoridades competentes.
Tal fato é decorrente da própria autonomia da Administração Pública, uma premissa constitucional que já pode ser notada logo no artigo 2º da Constituição Federal de 1988, que aloca o Poder Executivo em uma posição de separação e independência perante os outros poderes, a partir do famigerado Princípio da Separação dos Poderes, postulado essencial ao Estado de Direito. Ele, para ser concretizado, impõe o consenso e a colaboração de diversas autoridades estatais para a tomada de decisões e, também, estabelece mecanismos de fiscalização e responsabilidade recíproca dos poderes estatais, os famosos “freios e contrapesos”. (LENZA, 2014, p. 544-545). Com esse princípio, a Constituição Federal deu independência e harmonia a todos os poderes, inclusive ao Poder Executivo, que, no exercício de sua autonomia, exerce (ou deveria exercer) a chamada discricionariedade administrativa.
De acordo com Xx Xxxxxx (2019, p. 482), “a atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito”. Todavia, não se pode considerar que a discricionariedade resulta da ausência de lei, dado que ela é resultado da própria norma. Assim, fala-se em discricionariedade quando a norma traz uma certa esfera de liberdade, em proveito e a cargo do gestor público, que deverá ser preenchida por ele, a partir de seu juízo subjetivo e pessoal, com vistas a satisfazer a finalidade da lei no caso concreto. (MELLO, 2010, p. 962) Fica claro,
então, que é variável a intensidade do grau de liberdade de atuação dos agentes públicos, a depender da opção adotada pelo legislador.
No âmbito das dispensas de licitação a situação não é diferente: embora o administrador seja dotado de discricionariedade, seus atos devem ser motivados e guardar estrita correlação com os princípios que regem as contratações públicas. A Lei nº 13.979/2020 exige a estrita correlação da hipótese de aquisição direta de bens e serviços com “enfrentamento da emergência de saúde pública” decorrente do surto viral. Assim, deve restar plenamente demonstrado o nexo causal entre a contratação direta e o enfretamento do risco de dano (ou de seu amortecimento) decorrente da pandemia.
A Lei nº 13.979/2020, em seu art. 4º ao 4º-I, trata especificamente acerca de procedimentos de compras governamentais. A norma permite sua a utilização tanto nas dispensas de licitação (art. 4º) como nos pregões eletrônicos ou presenciais simplificados (art. 4º-G). A escolha entre uma ou outra forma de contratar (se precedida ou não de licitação) cabe exclusivamente à área técnica, a partir da análise de conveniência, oportunidade e vantajosidade para o enfretamento da pandemia; vale dizer, a decisão deverá ser sempre calcada pela necessidade, adequação e proporcionalidade.
Conforme preleciona Xxxxxx Xxxxx, em e-book COVID-19 E O DIREITO BRASILEIRO, (2020) há competência discricionária da Administração para escolher entre as duas alternativas:
Existe competência discricionária da Administração para escolher entre as duas alternavas, tomando em vista as circunstâncias do caso concreto. É inquestionável que a contratação direta envolve um procedimento mais rápido do que o pregão simplificado. Portanto, a Administração tem o poder- dever de avaliar a premência da contratação. Ser-lhe-á facultado valer-se do pregão quando o tempo para a conclusão do procedimento licitatório não colocar em risco o atendimento da finalidade pretendida.
De todo modo, uma ou outra solução para as aquisições governamentais deve, sempre na medida do possível, privilegiar um ambiente em que haja competição e consensualidade.
Acontece que no contexto da pandemia muitos gestores vêm utilizando a dispensa de licitação com preços superfaturados e retornos financeiros ilegais, incorrendo diretamente em hipótese de improbidade administrativa, nos termos do art. 90, da Lei nº 8.666/1993 e da Lei n° 8.429 de 1992.
Segundo Xxxxx e Leme (2020), em artigo publicado em 12 de junho de 2020, até essa data foram realizadas quase mil dispensas de licitação para aquisição de insumos ligados ao enfrentamento da pandemia. E nesse contexto várias irregularidades já foram constatadas e encontram-se sob investigação por parte da Polícia Federal e do Ministério Público. Segundo a notícia, os desvios de recursos envolvem superfaturamento na aquisição de equipamentos, propostas com sobrepreço e contratação de empresas sem capacidade técnica e operacional para o fornecimento dos produtos.
A título de exemplo, pode-se mencionara Operação VirusInfectio, da Polícia Federal. Segundo a corporação, fora apurado superfaturamento de R$ 600 mil em equipamentos e materiais de proteção para enfrentamento da covid- 19, decorrentes indícios de pagamento de propina, por parte de um empresário, a uma servidora da Secretaria de Saúde do Estado do Amapá (EXAME, 2020).
Em outra reportagem retirada do sítio eletrônico da UOL, foram arrolados dois casos de investigação. O primeiro deles é na Prefeitura de Guarulhos, SP, em que o Ministério Público de Contas constatou uma compra de 300 mil máscaras cirúrgicas descartáveis num preço de R$ 6,20 cada. A suspeita de superfaturamento decorre do fato de esse valor estar superfaturado em mais de 100%. O segundo caso decorre de uma investigação feita pelo Ministério Público de Contas do Amazonas. O Governo do Estado adquiriu 28 respiradores pulmonares ao preço de R$ 106 mil por unidade, valor este o dobro do que o governo federal paga pelo mesmo tipo de respirador, sendo, ainda, suspeito o fato de os equipamentos terem sido comprados em uma loja de vinhos. (UOL. 2020).
Recentemente, muito se tem divulgado na mídia acerca da Operação Para Bellum decorrente de fraudes nas contratações no Estado do Pará. Tal investigação decorreu da compra de respiradores no valor de R$ 50.4 milhões. Segundo informado pela Polícia Federal, desse total, metade do pagamento foi
feito à empresa de forma antecipada, sendo que os respiradores, além de sofrerem atraso na entrega, eram de modelo diferente ao contratado e inservíveis para o tratamento da Covid-1 (BRASIL. Ministério da Justiça. 2020). Ora, verifica-se que essa difusão de casos envolvendo licitações fraudulentas decorre da próxima brecha legislativa imposta pela norma Federal. Não obstante, nota-se que o fato de haver uma autorização para dispensa de licitação não exige à Administração Pública de cumprir com os princípios da isonomia, probidade, publicidade, eficiência e impessoalidade. Seja por falta de fiscalização do Poder Público ou por falta de interesse da própria população em controlar os atos administrativos, as frequentes fraudes oneram os cofres públicos e causam prejuízos diretos à sociedade que se vê desamparada em uma situação tão gravosa quanto à atual: falta de leitos nos hospitais, falta de respiradores, ausência de médicos e profissionais da saúde, falta de
medicamentos, dentre outros.
Os agentes públicos envolvidos em tais atos devem se responsabilizar nas esferas civil, administrativa e criminal. A possibilidade de responsabilização nesses casos foi prevista na Medida Provisória n° 966 de 13 de maio de 2020, que dispõe em seu artigo 1° que os agentes públicos poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, ao enfrentamento da emergência de saúde e ao combate de efeitos econômicos e sociais decorrentes da covid-19 (BRASIL. Medida Provisória n° 966. 2020).
Entretanto, por se tratar de fraude nas contratações, entende-se, ainda, que, apesar das divergências doutrinárias, poderá haver responsabilização cumulada nas três esferas: administrativa, civil e penal. A primeira delas fundamenta-se na Lei Federal nº 8.429/1992, a qual regula a improbidade administrativa. Segundo o inciso VIII do artigo 10 da Lei estabelece-se como ato de improbidade administrativa “frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente”. A finalidade é justamente combater à corrupção e aos atos de enriquecimento ilícito evitando prejuízo às contas públicas ou violação aos princípios que regem à Administração.
Já a responsabilidade civil fundamenta-se no dever de reparação ou ressarcimento a prejuízos causados a uma vítima, com fundamento no art. 186 do Código Civil de 2002 que diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL. Lei 10.406. 2002).
Por fim, a responsabilidade criminal decorre do próprio art. 90 da Lei de licitações que estabelece pena de detenção de 2 a 4 anos e multa para quem “frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”. (BRASIL. Lei 8.666. 1993). Ainda no campo criminal, é possível que a conduta se encaixe nos casos de falsidade documental e ideológica; corrupção ativa e passiva; prevaricação (Decreto-Lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940 - Código Penal); ou, ainda, no crime de lavagem de dinheiro, da Lei nº 9.613/98.
Por fim, cabe ainda mencionar o papel do Judiciário no controle dos atos da Administração Pública. Teoricamente, o controle jurisdicional sobre atos administrativos exarados pelo Poder Executivo deve se restringir aos aspectos de legalidade, não sendo permitido ao Judiciário o controle do mérito administrativo, substituindo a decisão do administrador por sua própria conveniência e oportunidade, sob pena de ferir a Separação de Poderes. (XXXXXXXX, 2017, 423). Ocorre que, na prática, o funcionamento não acontece dessa maneira. Com a Constitucionalização do Direito, dos princípios da Administração Pública e a consequente ampliação da legalidade, conferiu-se aos órgãos de controle, especialmente ao Poder Judiciário, a possibilidade de se examinar aspectos, antes vedados, dos atos administrativos (DI PIETRO, 2019, p. 111).
Princípios como os da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, dentre outros previstos no ordenamento jurídico, são utilizados no controle de atos administrativos, dentro da ideia, já referida, de que a Administração Pública deve obediência não só à lei, mas ao Direito. (DI PIETRO, 2019, p. 111)
Em decorrência disso, não há dúvidas que compete ao Poder Judiciário anular atos praticados sem a devida lisura no devido processo legal, mesmo que,
para isso, tenha que intervir na discricionariedade outrora outorgada ao gestor público, que, justamente por este fundamento, acaba praticando atos sob desvio de finalidade.
Desse modo, verifica-se que apesar de não se negar a necessidade de haver responsabilização por parte dos gestores públicos, ainda muito falta à população o dever de acompanhamento dos gastos públicos decorrentes de dispensa de licitação. Não obstante à atuação eficiente dos órgãos fiscalizadores, como Polícia Federal, Controladoria, Ministério Público, ainda há muito o que se questionar com relação ao processo de compras da Administração em caráter emergencial, uma vez que, sob o prisma da legalidade, dá-se margem para atuações fraudulentas e desproporcionais.
Considerações finais
Nesse momento de crise econômica, devido principalmente ao fechamento do comércio, altos índices de desemprego e a crise da saúde pela rápida propagação do Coronavírus, a própria legislação passou a permitir de forma expressa a possibilidade da contratação direta para aquisição de bens, insumos e contratações de serviços pela Administração Pública. Embora já previsto no nosso ordenamento jurídico na lei 8.666/93, artigo 24, IV, a contratação sem licitação em caso de emergência ou calamidade pública, a lei 13979/2020 trouxe outros pressupostos além dos previamente existentes na lei de licitações, a fim de relativizar as etapas procedimentais para trazer mais agilidade ao processo.
Todavia, tal prerrogativa dada à Administração Pública pode dar motivo a fraudes, atos de corrupção ou desvios de finalidade nas contratações. Tal fato decorre de o gestor público, com fundamento na discricionariedade, realizar aquisição de bens ou serviços sem o devido processo licitatório motivado, no entanto, por fatores pessoais. Esse comportamento interfere diretamente nos cofres públicos, uma vez que muitas contratações são superfaturadas, não ocorre entrega em tempos razoáveis e os bens adquiridos não possuem a
qualidade desejada ou estipulada no Termo de Referência do processo licitatório.
Diante da gravidade dessa situação deve-se ter mais atenção e a melhor fiscalização possível na instrução dos processos licitatórios, visando garantir neles os princípios da legalidade, eficiência, transparência, moralidade e motivação, a fim de se combater qualquer tipo de ato corrupto ou ímprobo.
Espera-se que a Administração Pública realize bons contratos, lícitos e principalmente pautados nos princípios que devem reger todas as contratações públicas, observando os direitos básicos inerentes ao ser humano, não esquecendo da responsabilidade objetiva do Estado, buscando minimizar os impactos causados pelo momento emergencial ao qual estamos vivenciado. Se verificado qualquer tipo de irregularidade, deve-se, ainda, buscar a responsabilização civil administrativa e penal cabível.
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