O CONTRATO DE TIME SHARING
Insper Instituto De Ensino E Pesquisa
LLM - Direito dos Contratos
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx
O CONTRATO DE TIME SHARING
São Paulo 2013
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx
O Contrato de Time Sharing
Monografia apresentada ao Programa de LLM em 30 de junho de 2013 do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Pós-Graduação Lato Sensu.
Orientador: Prof. Dr. Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx – Insper
Xxxxx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxx
Contrato de time sharing / Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx; orientador: Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx; – São Paulo: Insper, 2012.
107 f.
Monografia (LLM – Legal Law Master) Programa de Pós- graduação em Direito. Área de concentração: Direito dos Contratos. Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.
1. Direito Real. 2. Contrato de Time Sharing. 3. Multipropriedade. 4. Princípio da tipicidade e numerus clausus dos direitos reais.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Junior O contrato de time sharing.
Monografia apresentada ao Programa de LLM em 29 de junho de 2013 do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, como requisito parcial para obtenção do título de pós graduação em Direito.
Área de concentração: Direito dos Contratos
Aprovado em: julho/2013
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Orientador
Instituição: Insper Assinatura:
Prof. Dr.
Instituição: Insper Assinatura:
Prof. Dr.
Instituição: Insper Assinatura:
RESUMO
XXXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O Contrato de Time Sharing. São Paulo, 2013. (107f.). LLM - Master of Laws - Direito dos Contratos – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.
Foi estudado o contrato de time sharing, também chamado de multipropriedade, ou propriedade por tempo repartido. Verifica-se que este contrato surgiu para atingir o público ávido por uma oportunidade de celebrar contratos turísticos, mas com um custo-benefício mais atraente, permitindo a sua hospedagem em locais de reconhecido potencial turístico, como praias e regiões de serra. A problemática é a falta de disciplina legislativa específica, o que traz grandes dificuldades e incertezas que em nosso país e são razão de desconfiança do consumidor. Verificou-se que os negócios feitos por esse tipo de contrato, apesar de ter grande potencial para se popularizar, isso não ocorreu. Foram analisadas as várias formas de construção da multipropriedade e chega-se à conclusão que em razão desse negócio já ser reconhecido e respeitado pelo Judiciário, apesar da falta de legislação a respeito, passou a gozar de certa estabilidade, garantindo ao consumidor aquilo que está adquirindo. Recomenda-se mudança na legislação para reconhecer a multipropriedade no rol dos direitos reais e permitir a sua entrada no Registro de Imóveis, também devem ser criadas proteções dirigidas ao consumidor desses contratos, leis específicas para que se torne um contrato típico. Com isso, certamente a multipropriedade poderá fazer o seu papel e ajudar no crescimento de nossa economia.
Palavras-chave: 1. Direito Real. 2. Time Sharing. 3. Multipropriedade. 4. Tipicidade .5. Numerus Clausus.
ABSTRACT
XXXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. The time-sharing contract. São Paulo, 2013. (107 p.). Dissertation - Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo. 2013.
We studied the time-sharing contract, also called multi property or split-time property. It appears that this contract appeared to reach the public eager for an opportunity to enter into tourist contracts, but with a more attractive cost-effective, allowing your hosting in sites of recognized tourism potential, such as beaches and mountain regions. The problem is the lack of specific legislative discipline, which brings great difficulties and uncertainties in our country and is due to consumer mistrust. It was found that business done by such contract, despite having great potential to become popular, it did not. We have analyzed the various forms of construction of timeshares and came to the conclusion that because this business has been recognized and respected by the Judiciary, despite the lack of such legislation, it began to enjoy some stability, assuring consumers of what they are purchasing. It is recommended to change the law to recognize the timeshares in the role of property rights and allow it to enter Property Registry, should also be created protections for the consumer of these agreements, specific laws allowing it to become a typical contract. With this, certainly timeshares can do their part and help grow our economy.
Keywords : 1. Real Right. 2. Time Sharing. 3. Multi property. 4. Typicality.5. Numerus Clausus.
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO, 1
II. ORIGENS DO CONTRATO DE TIME SHARING, 2
II.I. A multipropriedade na Itália., 3
II.I.II Multipropriedade imobiliária., 5
II.I.II. Multipropriedade acionária., 3
II.I.III. Multipropriedade hoteleira., 8
II.II. A multipropriedade na França., 9
II.II.I. O modelo societário., 10
II.II.II. O fracasso da fórmula imobiliária na França., 12
II.III. A multipropriedade na Espanha., 13
II.IV A multipropriedade em Portugal., 14
II.V. A multipropriedade nos Estados Unidos., 16
III. A MULTIPROPRIEDADE NO BRASIL., 18
IV. TENTATIVAS FRACASSADAS DE ENQUADRAMENTO DA MULTIPROPRIEDADE., 25
IV.I. A construção da multipropriedade como condomínio ordinário com pacto de indivisão., 27
IV.I. Funcionamento do contrato., 43
IV.II. A análise da jurisprudência brasileira da tentativa de construção condominial., 29
V. OS MODELOS CONSOLIDADOS DE MULTIPROPRIEDADE., 39
V.I. A do direito real de habitação periódica., 39
V.II. A acionária ou societária., 40
V.III. A imobiliária ou de complexo de lazer., 40
V.IV. A hoteleira., 41
VI. SISTEMA DE TEMPO COMPARTILHADO., 43
VI.II. Contratos de tempo compartilhado., 45
VI.III. Obrigações do empreendedor e dos cessionários., 47
VI.IV. Regras gerais aplicadas ao contrato., 48
VII. REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL E DEFESA AO CONSUMIDOR., 51
VII.I. Contratos nacionais e internacionais de time-‐sharing., 53
VII.II. As Diretivas Européias., 53
VII.III. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor., 55
VII.IV. A proteção à vontade refletida e racional do consumidor., 57
VII.V. O diálogo das fontes., 60
XXX.XX. Os poderes e deveres na ótica consumerista., 63
VII.VII. O princípio da Boa-‐fé nas relações de consumo., 64
VII.VII.I. Execução contratual conforme a confiança despertada e expectativas legítimas., 65
VII.VII.II. A interpretação pró-‐consumidor das cláusulas contratuais e o controle do conteúdo do contrato., 67
VII.VIII. Problemas mais comuns encontrados na jurisprudência brasileira., 69
VIII. ANÁLISE DA MULTIPROPRIEDADE COM BASE NOS PODERES CONFERIDOS PELO DIREITO REAL, 82
VIII.I. Os limites do poder de usar, fruir e dispor do titular., 82
IX. NATUREZA JURÍDICA DA MULTIPROPRIEDADE., 87
IX.I. Relação jurídica de direito real ou pessoal?, 87
IX.II. Conteúdo e Características da Propriedade., 91
X. OS PRINCÍPIOS DO NUMERUS CLAUSUS E TIPICIDADE DO DIREITO REAL., 93
X.I. A necessidade de superação do princípio da tipicidade., 93
XI. ANÁLISE À CAUSALIDADE DO NEGÓCIO, 102
XII. CONCLUSÃO, 104
I. INTRODUÇÃO
A multipropriedade, propriedade periódica ou de tempo repartido, continua a ser uma fórmula mágica, pronta a ser decodificada, é um novo meio de racionalização do aproveitamento econômico do imóvel. Atualmente este negócio jurídico movimenta US$ 9,4 bilhões ao ano, estimando-se a existência de 6,7 milhões de multiproprietários no mundo, sendo 1,5 milhão na Europa e 5,2 milhões nos Estados Unidos.
A multipropriedade, fruto da capacidade criativa humana para inovar buscando adversidades no mercado, não se enquadra em nenhum modelo dos institutos jurídicos disponíveis, é um negócio ainda atípico em nossa legislação, o que traz grande insegurança ao investidor. O objetivo deste trabalho é verificar as bases em que esse negócio jurídico pode se apoiar em nossa legislação bem como sugerir alterações ao legislador no sentido de tornar mais atrativo esse negócio jurídico em nosso país, abrindo um novo mercado e consequentemente fortalecendo a economia brasileira.
II. ORIGENS DO CONTRATO DE TIME SHARING
Tão controvertido quanto a sua natureza jurídica da multipropriedade é o seu local de surgimento. Porém, é admitido que tenha surgido simultaneamente na França e nos Estados Unidos:
A grande maioria dos autores admite que a multipropriedade ou propriedade espaço-temporal surgiu na década de 60, nos Estados Unidos, como forma societária e, paralelamente, na França sob forma de condomínio. Atualmente, o fenômeno ocorre de maneira inversa. Nos Estados Unidos evoluiu-se para a caracterização da multipropriedade sob a forma condominial e na França, a partir de 1971, a forma é a societária. Um dado, entretanto, é conhecido. Em 1967, a palavra MULTIPROPRIETÉ foi registrada na França pela Societé des Grands Travaux de Marselha como forma de designar um condomínio em propriedade espaço-temporal nos Alpes. por outro lado, algum autor admite que a multipropriedade tem origens antigas, mais precisamente em Roma quando, segundo Xxxxxxxx, “O turno é um dos sistemas com que no direito romano se fazia não poucas vezes regulamentar o gozo entre os condôminos”. Também o mesmo autor invoca uma sentença de apelação em Gênova, de 9 de janeiro de 1914, quando diz que “Um condomínio de águas com desfrute por turnos Não pode impedir o acesso e o aproveitamento dos outros condôminos”. Admitimos que, de forma moderna e com suas características atuais, a multipropriedade apareceu simultaneamente nos Estados Unidos e na França.1
O contrato de time-sharing é fruto da nova tendência da sociedade, que busca a satisfação de outros interesses, os contratos de serviços e não os contratos de bens:
Fruto de uma visão pós-moderna da sociedade, a satisfação de outros interesses ou desejos indiretos passa a ter relevância, em certos casos decisiva, para a celebração de contratos. A satisfação não se dá mais meramente com o exclusivo cumprimento das obrigações contratuais. Surge um elemento de satisfação subjetiva que passa a ter demasiada relevância. Uma das consequências desta nova realidade é que o mercado está se desenvolvendo ou se dirigindo mais para os contratos de serviços do que para contratos de bens. O relevante, neste mundo pós-moderno, é ter sensações únicas, mesmo que efêmeras, em vez de investir em bens que tragam uma segurança econômico-jurídica. Contratos de execução e conclusão quase instantânea ou contratos que assegurem propriedades perdem espaço nestes tempos pós-modernos.
1 VIEGAS DE XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. A multipropriedade imobiliária. In: Revista trimestral de direito civil.
- v.32 (outubro/dezembro 2007). - Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 76.
Ocupam este novo contexto contratos com longo decurso de tempo, efetivando um vínculo muito maior dos contratantes, os chamados na doutrina de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx contratos cativos de longa duração, além de haver um viés de sentimentalidade nestes contratos. A motivação por várias e variadas experiências faz com que o contratante, ou o consumidor nas relações de consumo, sinta um desejo mais elevado por esta ou aquela experiência, tornando aquele momento único e especial no decorrer de sua realização e objeto de aguçada ansiedade no período antecedente.2
O contrato de time-sharing foi feito para atingir o público ávido por uma oportunidade de celebrar contratos turísticos, mas com um custo-benefício mais atraente, permitindo a sua hospedagem em locais de reconhecido potencial turístico, como praias e regiões de serra.
Por meio deste contrato, o adquirente busca a disponibilidade de um imóvel e de serviços anexos para o período de lazer ou de férias. Esta aquisição normalmente é vista como vantajosa por ter o consumidor à sua disponibilidade um imóvel com atrativo turístico, sem a necessidade de assumir os ônus de manutenção típicos de casas de serra ou de praia. A administração desses imóveis normalmente é feita por ou repassada a empresas de gestão em hotelaria, com expertise no ramo, fato que traz muitos benefícios para a relação jurídica. Como consequência, os serviços ofertados pelo imóvel passam a ser de melhor qualidade, tornando mais fácil a sua manutenção pelos padrões de hotelaria, dificilmente obtidos se esta mesma administração fosse realizada, por exemplo, pelo condômino, sem maiores preocupações para os consumidores, que não terão os aborrecimentos comuns deste modo de administração coletiva.3
A falta de uma legislação própria trouxe grandes incertezas para os adquirentes, público mais vulnerável nesta relação. Cada país evoluiu o conceito de multipropriedade e sua forma de aplicação de forma diferente, como será visto adiante.
II.I. A multipropriedade na Itália.
II.I.I. Multipropriedade acionária.
2 XXXXXX, XXXXXXXX XXXXX. O Contrato de time-sharing e o direito do consumidor. IN: Revista de Direito do Consumidor. v. 77. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 154.
3 Ibidem., p. 157.
Na Itália, existem três modalidades de multipropriedade, a acionária, imobiliária e hoteleira.
A acionária, primeira fórmula pela qual se concebeu a multipropriedade na Itália, no âmbito do direito societário, funcionava da seguinte forma: constitui-se uma sociedade anônima, proprietária dos bens objeto do aproveitamento pretendido, essa sociedade emite ações ordinárias e preferenciais, as primeiras permitem aos sócios participar da gestão social, enquanto as segundas conferem aos seus adquirentes o direito à utilização em turnos de um certo bem social.4
Com a compra das ações, o multiproprietário adquire a propriedade mobiliária, não se revestindo da qualidade de comproprietário. É um acionista, detentor do direito obrigacional em face da sociedade, visando ao aproveitamento cíclico do bem, por período fixo ao ano.
Por não constituir o adquirente um verdadeiro comproprietário, mas um acionista, titular de um direito obrigacional e não real, argumentou-se a inadequação do termo multipropriedade, que deve ser sempre correspondente à situação jurídica de eficácia real, senão, o comprador está sendo induzido ao erro, atraído pela sugestiva designação do contrato. A doutrina francesa é implacável neste particular.5
No ato de aquisição, especifica-se: “o número de ações preferenciais correspondente ao investimento efetuado, determinando-se, então, o bem a ser destinado ao adquirente, a localidade pretendida - em se tratando de imóveis - , o período do ano desejado e inclusive a previsão, não infrequente, de alternativas quanto aos bens a serem anualmente utilizados e à época da temporada.”6
O maior inconveniente desse sistema é a valorização e liquidez do investimento, que são condicionadas pela gestão social. O operador desse modelo, para assegurar a destinação do bem social a determinado sócio, vale-se de um contrato de comodato, inserido em dois possíveis esquemas negociais:
4 Sobre o modelo italiano de proprietà azionaria, v., dentre outros, Calò e Corda, La multiproprietà, cit., p. 135 e s.; Xxxxxxxxxx, La multiproprietá, Padova, CEDAM, 1983, v. 1, p. 73 e s.; Xxxxxxxx, Le considette vendite in multiproprietà (analisi di una prassi commercial), Rivista di diritto civile, 2:694 e s., 1979; Tassoni, Multiproprietà e autonomia privada, cit., p. 138 e s.; Xxxxxxx, Riflessioni in tema di multiproprietà azionaria, in Banca borsa e titoli di credito, 1988, p. 173 e s. apud TEPEDINO, Xxxxxxx. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 09.
5 Benne, La propriété spacio temporelle. apud TEPEDINO, Xxxxxxx. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 10.
6 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. op. cit., p. 10.
No primeiro deles, a sociedade, por deliberação da assembleia, enquanto a totalidade das ações ordinárias ainda se encontra em poder do sócio promotor, empresta os bens sociais, em turnos pré-definidos, diretamente aos multiproprietário. Pelo segundo mecanismo, a sociedade entrega em comodato o inteiro patrimônio imobiliário, assim como a gestão dos serviços comuns, a uma associação, especialmente criada para este fim, considerando-se automaticamente associados todos os adquirentes de ação preferencial da sociedade proprietária do bem em questão. Tal associação, por sua vez, firma subcontratos de comodato, devidamente autorizados pela sociedade comodante, com os usuários, fixando, então, para cada um, as respectivas unidades de tempo. Com esse último mecanismo contratual procura-se dar maior estabilidade à utilização pretendida, já que o contrato de comodato é celebrado por prazo determinado, em geral de noventa e nove anos, ou pelo tempo de vida da associação, objetivando-se dificultar uma eventual deliberação social que, por maioria, viesse a denunciá-lo, como poderia ocorrer na hipótese em que fosse celebrado por prazo indeterminado, ou, se celebrado diretamente com os sócios, ao final da temporada anual7
Inúmeros são os inconvenientes apontados pela doutrina da fórmula acionária. Os multiproprietários ficam sujeitos aos destinos da sociedade, sofrendo com alterações da destinação dos imóveis por força de decisão administrativa ou ainda da dissolução da sociedade, a qualquer momento. A ausência de publicidade nas vendas das ações torna possível a venda de ações idênticas a mais de um adquirente, resultando em um número de sócios superior às unidades de tempo disponíveis.8 Esses inconvenientes podem levar à falência da sociedade pelo colapso do investimento efetuado.
Além dos empecilhos de ordem econômica, em razão da legislação italiana, se questionou a validade de uma sociedade sem intuito lucrativo, a figura jurídica que mais se assemelhava era o condomínio ordinário.9
Em razão desses problemas e outros de menor importância o modelo societário foi condenado ao fracasso na maior parte dos países, tendo sido preferida a multipropriedade imobiliária, com exceção da França onde a multipropriedade no modelo societário teve regulamentação legislativa.10
II.I.II. Multipropriedade imobiliária.
7 Ibidem., p. 11.
8 Ibidem., p. 12.
9 Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxxx, Multiproprietà, p. 578. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 13.
10 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 14.
Na Itália, a multipropriedade imobiliária, com destinação de um imóvel pelos seus proprietários à utilização exclusiva de cada um deles, em turnos prefixados e recorrentes de maneira perpétua, foi estabelecida por meio de dois mecanismos:
A operação é levada a efeito, em regra, através da aquisição em compropriedade ordinária de todo o complexo imobiliário, delimitando-se, através de um pacto de utilização da coisa comum, as regras condominiais e, sobretudo, os turnos atinentes a cada multiproprietário. Como uma variante desse esquema, apresenta-se a constituição de um condomínio especial, no qual os condôminos dividem em compropriedade ordinária cada unidade habitacional, delimitando as frações de tempo destinadas a cada um. Conjugam-se, dessa forma, os sistemas de condomínio especial e ordinário. Todos os multiproprietários são co-proprietários das partes comuns, restringindo a divisão por turnos ao âmbito de cada unidade considerada individualmente, fracionada em tantos ciclos anuais quanto forem os seus titulares - ou seja, os multiproprietários vinculados especificamente à mesma unidade.11
Apesar da designação imobiliária, terminologia cunhada na prática comercial, normalmente associada aos imóveis, não se excluem os móveis, incidindo, por exemplo, sobre embarcações e aeronaves, desde que se adapte a disciplina jurídica à natureza mobiliária de bem jurídico.
Na prática, juntamente com a escritura pública de aquisição do imóvel, firma o adquirente dois regulamentos. O primeiro é a própria convenção do condomínio, que diz respeito sobre as partes comuns a todo o complexo imobiliário, como as estruturas de lazer e esportivas. O segundo destina-se a disciplinar a utilização interna dos apartamentos, identificando a unidade adquirida, o período do ano pertinente a cada adquirente e a relação entre os multiproprietários.12
A principal vantagem deste modelo é a segurança que oferece ao adquirente, pois ele adquire a fração ideal do bem, ou seja, todos os direitos reais decorrentes.
11 Modelo de constituição, referido por Xxxxxxxx ( Le cosiddette vendite in multiproprietà, cit., p. 686 e s.), é menos frequente que o primeiro, sendo ambos praticados no Brasil. Também são utilizados pelo autor os estudos da fórmula imobiliária apresentados por: Xxxxxxx, La multiproprietà - problemi giuridici, cit., p. 1 e s.; Xxxxxxx, Multiproprietà, cit., p. 41 e s.; Xxxxxxxxx, Multiproprietà immobiliare, cit., p. 1 e s.; Calliano, La multiproprietà, cit., p. 234 e s., e Multiproprietà, in Novissimo digesto italiano, appendice, Xxxxxx, XXXX, 0000, p. 155 e s.; Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxxx, Multiproprietà, cit., p. 573 e s.; Xxxxxxx, Multiproprietà, cit., p. 490. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx, op. cit. p. 15.
12 Ibidem., p. 16.
Porém, o maior problema se encontra na indivisibilidade, pois a maioria dos países disciplinam o condomínio como uma relação jurídica transitória, sujeita à extinção, hipótese que desatente aos interesses da estabilidade multiproprietária.
Na Itália, particularmente, o debate é mais acirrado:
É que, não obstante seja indiscutível o desfavor do legislador pela indivisão perpétua, nos termos do art. 1.111 do Código Civil, pelo qual a todo momento qualquer consorte pode pedir a dissolução do condomínio (ressalvado o pacto de indivisão, não superior a dez anos), o art. 1.112 estabelece uma única exceção àquela regra. Dispõe que a dissolução do condomínio não pode ser pedida quando se tratarem de “coisas que, se devidas, cessariam de servir ao uso ao qual são destinadas”. Com base neste dispositivo, parte da doutrina italiana considerou possível interpretar extensivamente a hipótese de indivisão perpétua, aceitando-a no caso da multipropriedade, já que a dissolução comprometeria a destinação econômica atribuída pelos condôminos à coisa, com o único motivo de constituição do condomínio13. Dessa forma se teria assegurado o estado de indivisão, pactuado pelos multiproprietários e indispensável ao regulamento de interesses por ele estabelecido. Entretanto a jurisprudência italiana consagrou, ao longo dos tempos, interpretação restritiva do art. 1.112, reduzindo-o a duas hipóteses. Abrangeria os bens cujo valor econômico é associado ao estado de comunhão, de tal sorte que, divididos, não teriam qualquer valor (como seria o caso, por exemplo, de um livro contábil); ou, em uma segunda configuração, diria respeito aos bens que, integrantes do condomínio são contemporaneamente acessórios de outros bens, de propriedade particular dos consortes, de modo que a divisão destruiria a sua potencialidade econômica, vinculada ao estado de comunhão (seria o exemplo de uma escada ou átrio comum que servisse a dois imóveis particulares).14
Os artigos mencionados acima do Código Civil italiano tem a seguinte redação:
Art. 1111 Scioglimento della comunione. Ciascuno dei partecipanti può sempre domandare lo scioglimento della comunione (1506); l'autorità giudiziaria può stabilire una congrua dilazione, in ogni caso non superiore a cinque anni, se l'immediato scioglimento può pregiudicare gli interessi degli altri (717). Il patto di rimanere in comunione per un tempo non maggiore di dieci anni è valido e ha effetto anche per gli aventi causa dai partecipanti. Se e stato stipulato per un termine maggiore di questo si riduce a dieci anni. Se gravi
13 Opinião de De Cupis, Miltiproprietà e comproprietà, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1984, p. 1024 e s. Adde, Danusso, Comunione e multiproprietà immobiliare, Giurisprudenza italiana, 1982, I, 2, c. 514. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 17
14 Calliano, multiproprietà, p. 162-3. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., x. 00.
xxxxxxxxxxx xx xxxxxxxxxx, x'xxxxxxxx xxxxxxxxxxx può ordinare lo scioglimento della comunione prima del tempo convenuto.
Art. 1112 Xxxx non soggette a divisione Lo scioglimento della comunione non può essere chiesto quando si tratta di cose che, se divise, cesserebbero di servire all'uso a cui sono destinate.”15
Xxxxxxx Xxxxxxxx, conclui sobre o modelo imobiliário na Itália afirmando o
seguinte:
Justifica-se, facilmente, o entendimento restritivo: fosse possível interpretar o art. 1.112 como abrangente das hipóteses em que a imutabilidade da destinação econômica houvesse sido atribuída pelas próprias partes, contratualmente, revestindo-se tal vínculo, portanto, de conotação subjetiva e convencional, resultaria dispositiva a regra da divisibilidade. Para tornar indivisível certo condomínio, bastaria que os consortes, reunidos para a sua constituição, declarassem seu intento, motivando a compropriedade pela destinação da coisa, cuja integralidade fosse a razão de ser da relação consorcial16. O argumento parece suficiente para excluir a expansão das hipóteses de incidência do art. 1.112, preservando-se, na espécie, o inconveniente da configuração da multipropriedade através da compropriedade. O modelo italiano, apresentado em síntese estreita, reproduz-se fundamentalmente nas experiências espanhola e brasileira, servindo de útil paradigma, seja pelo êxito da operação, amplamente difundida na península, seja por suas vicissitudes, que servem de alerta ao operador brasileiro.17
II.I.III. Multipropriedade hoteleira.
Esta não constitui nova espécie de multipropriedade além das examinadas
acima.
A rigor, trata-se da conjugação do sistema multiproprietário, concebido ora mediante a modalidade imobiliária, ora através da fórmula societária, com os serviços de hotelaria desenvolvidos por empresa do ramo hoteleiro. O imóvel é destinado a servir os
15 Art. 1.111 Dissolução da comunhão. Cada participante pode sempre pedir a dissolução da comunhão (1506), o tribunal pode estabelecer uma extensão razoável de tempo, em qualquer caso não superior a cinco anos, se a dissolução imediata possa afetar os interesses dos outros (717). O pacto para permanecer em comunhão para não mais de dez anos é válido e tem efeito para os cessionários pelos participantes. Se e celebrado por um prazo maior que este é reduzido a dez anos. Se as circunstâncias assim o exigirem graves, o tribunal pode ordenar a dissolução da comunhão antes do tempo estipulado.
Art 1112 Xxxxxx não sujeitas à divisão. A dissolução da comunhão não pode ser feita quando se trata de coisas que, se dividida, deixaria de servir ao uso a que se destinam. (Tradução livre)
16 Sangiorgi, Multiproprietà immobiliare, p. 28. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 17.
17 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 17.
multiproprietários, titulares diretos de uma quota-ideal do bem ou da ação, à qual corresponda o direito de utilizá-lo por certo período do ano, agregando-se a tal aproveitamento econômico a gestão hoteleira, posta à disposição dos multiproprietários e subsidiariamente, de terceiros.18
O judiciário italiano e parte da doutrina, consideraram que a transformação do hotel tradicional em multipropriedade hoteleira significava mudança da destinação, violando a finalidade a que estava adstrito o imóvel, o que, de acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxx, terminou com a seguinte conclusão:
Assim sendo, e não obstante a forte oposição de autores que entendiam compatível a implementação do sistema de multipropriedade com as atividades permitidas pelo vínculo hoteleiro, a operação passou a depender da prévia transformação do uso, com desoneração do respectivo vínculo. Entretanto, a desoneração do vínculo (lo svincolo), concedido por prazo determinado mas sujeito a sucessivas prorrogações automáticas ex lege, era vedada pelo Poder Público nos casos de hotéis que haviam estabelecido até o final da Segunda Guerra, o que impediu, notavelmente, o desenvolvimento da operação. O impasse perdurou até a Corte Constitucional italiana, através da sentença n. 4, de 28 de janeiro de 1981, decretou a inconstitucionalidade da disciplina do vínculo hoteleiro, não pelo gravame imposto à iniciativa econômica privada, considerado adequado ao texto constitucional intervencionista, mas pela contrariedade da norma ao princípio da isonomia, que favorecia injustamente os hotéis estabelecidos após a guerra, estes desobrigados da prorrogação da destinação hoteleira. Com a declaração de inconstitucionalidade da referida norma, liberalizaram-se s transformações de uso no setor hoteleiro, permitindo-se o incremento dessa modalidade de multipropriedade no temporário vazio normativo, que perdurou até 17 de maio de 1983, quando a Lei n. 217/83, em seu art. 8º, atribuiu à competência das regiões italianas a regulamentação do vínculo de hotelaria. Estabeleceu-se, ao contrário da legislação pregressa, a possibilidade de desoneração do vínculo, desde que justificada a não-conveniência econômica da manutenção da unidade hoteleira e mediante a restituição dos cofres públicos dos subsídios concedidos para a respectiva implementação.19
II.II. A multipropriedade na França.
18 Ibidem., p.18. Xxxxxxxx explica que também se aplica a outros países como a França e Espanha. Sobre o tema cita as obras de Calliano, La multiproprietà, p. 232; Xxxxxxxxxx e Xxxxxxxxx, Multipropretà, p. 577; Inserra, Multiproprietà e vincolo alberghiero, in Autorino e outros, La multiproprietà. Contributi allo studi delle prassi, Napoli, Esi, 1988, p. 37-56; Xxxxxxx, Multiproprietà, p. 497; Xxxx e Corda, La multiproprietà, p. 146 e s.; Xxxx, Aspetti e problem attuali della multiproprietà, p. 98 e s.; Virga, Natura giuridica della casa-albergo e conseguenze del mutamento della sua destinazione, Rivista giuridica dell’edilizia, 1080, p. 258 e s.
19 Ibidem., p. 20.
A multipropriedade foi introduzida na França através do seguinte slogan: “não alugue mais o quarto, compre o hotel. É menos oneroso”. Esta mesma forma de publicidade foi usada para apresentar a multipropriedade nos Estados Unidos, porém inicialmente com bens móveis e posteriormente com os imóveis.20
II.II.I. O modelo societário.
Na França a noção de multipropriedade que teve êxito é diferente daquela estudada na Itália, inserindo-se em esquema societário e obrigacional e não no âmbito dos direitos reais. As primeiras grandes operações ocorreram na constituição de condomínios de edifícios, pois não havia legislação específica para o setor:
As primeiras operações imobiliárias de grande porte surgiram, a rigor, nos anos vinte, na esteira da constituição dos condomínios de edifícios, sem que houvesse qualquer legislação específica no setor. Os empreendimentos imobiliários eram levados a efeito com base na legislação comum, sob cujas regras vicejaram dois sistemas de construção: o método de Grénoble e o método de Paris. O método de Grénoble, procedia-se a uma espécie de construção coletiva, mediante a compra do terreno, repartição dos respectivos quinhões entre os condôminos, seguindo-se a edificação propriamente dita, que aderia, por acessão, às situações de propriedade reunidas sob condomínio ordinário - indivision - regulado indiretamente pelo Código Civil francês. Já o método de Paris se desenvolvia a partir da construção de uma sociedade destinada à edificação e, uma vez ultimada a construção, à transferência do imóvel do patrimônio social para a co- titularidade dos condôminos.21
Ambos os sistemas descritos eram defeituosos na falta de legislação específica:
O método de Grénoble satisfazia exclusivamente a empreendimentos de pequeno porte, entre poucos condôminos, sendo incapaz de atender às necessidades comerciais da construção em larga escala. Isto porque, estabelecido o condomínio ordinário para a obra, as deliberações para a administração se sujeitavam à vontade unânime dos consortes, como era próprio da disciplina condominial consagrada jurisprudência francesa. Além disso, os agentes de financiamento não aceitavam como garantia hipotecária as quotas indivisas de cada condômino, o
20 XXXXXX, XXXXXXXX XXXXX. O Contrato de time-sharing e o direito do consumidor. IN: Revista de Direito do Consumidor. v. 77. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 155 p.
21 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 23.
que bloqueava a obtenção de crédito para o empreendimento. O dito méthode de Paris permitia a obtenção de crédito, através da respectiva sociedade, tendo no entanto, entrado em crise por graves inconvenientes. Em primeiro lugar, duvidou-se da validade das sociedades então criadas, já que, constituídas pelos co-titulares, eram desprovidas de qualquer intuito lucrativo, não visavam a repartição de resultados sociais tendo como finalidade, em última análise, o mero aproveitamento do patrimônio social - os imóveis - pelos próprios sócios, na medida em que as edificações fossem sendo construídas. O risco de eventual declaração de nulidade dos contratos sociais de tais empresas provocou a relutância das financeiras na concessão de empréstimos22. Por outro lado, embora o método de Paris prescindisse, em princípio, da unanimidade para as deliberações sociais - e precisamente esta circunstância o tornava atraente -, incorria-se, com frequência, na necessidade de consenso unânime para a obtenção de aportes suplementares dos sócios no curso da construção, sem o qual a obrigação não poderia ser imposta, uma vez integralizado o capital social. Como invariavelmente o custo das construções superava a estimativa inicial, a necessidade de aporte suplementar tornava-se inevitável, resultando imprescindível a manifestação voluntária de cada um dos sócios, o que, na prática, inviabilizava o empreendimento, recaindo-se no mesmo inconveniente do método da construção em condomínio, calcado na divisão direta e paulatina das despesas pelos consortes.23
Essas dificuldades, resultantes da falta de legislação aplicável, em grande parte foram superadas pela Lei francesa de 28 de junho de 1938: “loi tendant à régler le statut de la copropriété des immeubles divises par appartaments”24. Essa lei, visando regulamentar a edificação de condomínios de apartamentos, ofereceu suporte jurídico para que se desenvolvesse o regime da multipropriedade posteriormente (a partir de 1967), servindo de referencia até a Lei n. 86-18, de 16 de janeiro de 1986, que disciplina especificamente os contratos de multipropriedade até hoje. Nesta, o direito do sócio multiproprietário vem incorporado a uma ação ou título representativo da condição de sócio. Sendo modo coletivo de utilização sucessiva. E, no sentir de Xxxxxxxxxx, é uma verdadeira co-propriedade por alternância.25
O legislador viabilizou por meio dessas leis a correção dos problemas apontados anteriormente, permitindo no regime societário a constituição de sociedades para o
22 Malinvaud e Jestaz, Droit de la promotion immobilière, 2. ed., Paris, Dalloz, 1980, p. 20 e s. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 23.
23 Malinvaud e Jestaz, Droit de la promotion immobilière, op. cit., p. 20 e s. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 23-4.
24 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 24.
25 VIEGAS DE XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. A multipropriedade imobiliária. In: Revista trimestral de direito civil. - v.32 (outubro/dezembro 2007). - Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 81.
objetivo exclusivo de construção e utilização de bens sociais, ainda que sem repartição de lucros. Também foi estabelecida a compulsoriedade da cobrança dos aportes suplementares, de forma que os inadimplentes eram excluídos da sociedade.
Essa relação societária tinha uma vida curta, de modo que deveria dar lugar ao estatuto condominial26. Com o intuito de se estabelecer um liame estável e duradouro entre o multiproprietário e o imóvel, constituía-se uma sociedade de atribuição, com duração de noventa e nove anos, assegurando-se o aproveitamento econômico das unidades imobiliárias em favor dos sócios, por certo turno anualmente recorrente e previamente estipulado.27
O multiproprietário que adquire participação nas sociedades de atribuição tem então um direito de natureza pessoal, e não real.
Dentre os inconvenientes causados por esse modelo, o principal se localiza na falta de previsão, na Lei de 1938, dos deveres dos sócios perante a sociedade e os bens sociais, que ficavam completamente a cargo da administração do empreendimento, e deixando o sócio sujeito à má gestão. Essa lacuna foi suprida em 1971:
As lacunas da legislação de 1938 foram supridas pela Lei n. 71-579, de 16 de julho de 1971, que passou a exigir, já na constituição da sociedade de atribuição, uma disciplina das partes comuns e do uso exclusivo, a fração correspondente a cada participação social, bem como a prévia fixação da destinação do imóvel (partes comuns e uso exclusivo).28
Com isso, se consolidou no direito francês o modelo societário de multipropriedade. Em 1986 uma nova lei alterou o texto da legislação para adequá-la melhor ao direito pessoal, sanando algumas obscuridades.
II.II.II. O fracasso da fórmula imobiliária na França.
A rigidez da dogmática em direitos reais na França não permitiu o êxito da fórmula imobiliária da multipropriedade. Em particular em razão da tipicidade das situações reais e inadequação da disciplina do condomínio.
Observe-se, ainda, a principal dificuldade da estipulação da multipropriedade como um condomínio ordinário - l’indivision -,
26 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 26.
27 Idem., p. 26.
28 Ibidem., p. 27.
sentida em todos os países de tradição romano-germânica: a hostilidade do legislador civil para com as relações condominiais, do que resulta a permanente divisibilidade dos condomínios ordinários, conforme estatui o art. 815 do Code, seguido, de resto, pelos já referidos arts. 629 do Código Civil brasileiro e 1.111 do Código Civil italiano, no mesmo diapasão dos arts. 400 do Código Civil espanhol e 1.412, n. 2, do Código Civil português.29
Todos estes aspectos legais contribuíram para afastar o operador francês das soluções de direito real para a multipropriedade, consolidando-se o modelo societário.
II.III. A multipropriedade na Espanha.
De acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxx, a Espanha não dispõe de disciplina legislativa específica ou de solução doutrinaria pacificada para a multipropriedade.30
Na Espanha a multipropriedade se apresenta, principalmente, na modalidade imobiliária, estabelecida pela co-titularidade do domínio, assim como na Itália:
Cria-se no âmbito de um complexo imobiliário um condomínio horizontal, formado por unidades individuais, cada qual atribuída a um grupo de multiproprietários em condomínio ordinário, sob pacto de divisão por turnos da utilização da respectiva unidade, em frações periódicas recorrentes a cada ano. [...] A sociedade promotora da multipropriedade determina as regras da convenção condominial e o regulamento do condomínio ordinário formado em cada unidade, disciplina essencial para a sobrevivência do empreendimento, exigindo a anuência do adquirente às cláusulas preestabelecidas, levadas a registro imobiliário para a obtenção da eficácia perante terceiros.31
Por este modelo assegura-se o registro do título aquisitivo e, consequentemente a transmissão entre vivos ou causa mortis. Porém, inicialmente não havia resposta definitiva quanto ao problema da indivisibilidade imobiliária na jurisprudência espanhola. Em defesa à multipropriedade foi usado o artigo 4º da lei espanhola relativo à propriedade horizontal32, que, acerca da ação de divisão, dispõe: “Solo podrá ejercitarse por cada proprietário proindiviso sobre un piso o local determinado, circunscrita al mismo, y siempre que la
29 Ibidem., p. 28.
30 Ibidem., p. 32.
31 Idem., p. 32-3.
32 Ibidem., p. 34.
proindivisón no haya sido estabelecida de intento para el servicio o utilidade común de todos los proprietários.”33
Esta defesa não foi suficiente frente aos seguintes argumentos:
Argumentou-se, entretanto, que, além da solução se circunscrever às hipóteses de condomínio edilício, sendo inaplicáveis às multipropriedades constituídas sobre bens móveis, o citado art. 4º não se diferencia do art. 400 do Código Civil espanhol, quanto à plena divisibilidade das unidades autônomas em condomínio pro indiviso, salso se se considerasse a intangibilidade dos apartamentos como imprescritível (não somente para os respectivos donos) mas para todos os condôminos do complexo imobiliário, hipótese de difícil configuração, segundo a mesma doutrina, “pues en nada afecta a su derecho el que el otro piso pertenezca a uno o a vários propietarios”34. O grave inconveniente não foi ultrapassado, a rigor, sendo problema solução depende, também no caso espanhol, da natureza jurídica a ser emprestada pela doutrina e pela Jurisprudência à situação jurídica do multiproprietário. Caso se entenda tratar-se de condomínio pro indiviso a relação formada pelos multiproprietários no âmbito de cada unidade, como se vem estabelecendo na prática espanhola, difícil será não admitir a aplicação das normas inderrogáveis pertinentes à espécie. No âmbito do mesmo debate reclamam definição o direito de preferência dos demais multiproprietários no caso de transferência onerosa do direito do direito de um deles a terceiros, a disciplina da repartição de despesas relativas à conservação de cada unidade habitacional, e o eventual direito de acrescimento a que fariam jus os multiproprietários na hipótese da renúncia de um deles ao respectivo direito.35
A doutrina espanhola mais moderna chegou a resolver o problema da indivisibilidade, como será estudado em tópico específico a esta modalidade de construção da multipropriedade, solução que perdurou por anos até que esse sistema foi abolido em razão de problemas ligados aos direitos dos adquirentes das frações de tempo36, principalmente no tocante às regras de consumo.
II.IV A multipropriedade em Portugal.
33 Só pode ser exercido por cada titular pro indiviso em um piso ou instalações, limitada a ele, e sempre que a estabelecida pro indivisão não tenha sido estabelecida com a intenção para o serviço ou utilidade comum a todos os proprietários. (tradução livre)
34 Roca Guillamon, Consideraciones sobre la llamada “multipropiedad”, p. 305. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 34.
35 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 34.
36 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. Multipropriedade Imobiliária. IN: Registro Imobiliário: aquisição de propriedade / Xxxxxxx Xxx, Xxxxxx Xxxxxxxx, organizadores. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. - (Coleção doutrinas essenciais: direito registral; v. 3). p. 447.
Em Portugal, a principal motivação econômica que gerou a necessidade da multipropriedade foi a casa de férias:
As primeiras experiências portuguesas, na segunda metade dos anos setenta, em termos de multipropriedade, foram formuladas através da colocação no mercado dos chamados “títulos de férias”, direito de crédito estabelecido entre o adquirente e uma empresa vendedora, pelo qual à entrega de uma determinada prestação pecuniária (a título de mútuo ou a título de participação no capital social) correspondia o direito de utilização de determinada unidade habitacional, em zona turística, para uma temporada anual pré-definida, equivalente, em regra, ao período de um mês. Títulos análogos conferiam ao investidor um rendimento prefixado, equivalente ao valor locatício da respectiva unidade imobiliária.37
Porém, o consumidor português não confiou nesse tipo de operação, pois a eficácia meramente contratual não representava uma boa garantia quanto à durabilidade e liquidez do investimento.38
Já no âmbito dos direitos reais, descartou-se rapidamente a hipótese de formação da multipropriedade pelo sistema da compropriedade por entenderem insuperáveis os inconvenientes técnicos, como por exemplo a impossibilidade de se impedir a divisibilidade do condomínio e a taxatividade dos direitos reais previstos em Lei.39
Porém, diante “Da conjugação de um difuso interesse pela aplicação de poupanças em imóveis urbanos, fenômeno que, conforme se observou, se nota até nas construções clandestinas, com a concepção de um título imobiliário ao alcance de pequenas economias, capaz de atrair investidores que não disporiam de numerário suficiente para a aquisição de imóveis, surgiu o direito real de habitação periódica, disciplinado pelo Decreto- Lei n. 355/81, de 31 de dezembro de 1981. Trata-se de direito real sobre coisa alheia, em que a pessoa física ou jurídica que promove o negócio é o proprietário do “conjunto imobiliário” sobre o qual incidem os direitos limitados que asseguram aos respectivos titulares a utilização de uma fração de tempo correspondente a uma semana por ano, reiteradamente, em caráter limitado ou perpétuo.”40
37 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud V. Xxxxx, O direito real de habitação periódica, cit., passim; Xxxxxxxx, Uma nova figura real, cit., p. 39 e s. Ibidem., p. 35.
38 Idem., p. 35.
39 Idem., p. 35.
40 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud Canotilho e Xxxxxxx, Constituição da República Portuguesa anotada, p. 387. Ibidem., p. 36.
Esse direito, que atende às exigências do mercado, não se assemelha ao tradicional direito real de habitação, situando-se, pela amplitude dos poderes conferidos ao seu titular, entre o usufruto e a propriedade horizontal.41
Para proteger o consumidor o Decreto-Lei 355/81 dispõe que somente uma pessoa pode ser a proprietária do imóvel, cabendo a somente ele administrar o empreendimento, evitando-se conflitos de gestão bem como aliviando os investidores do ônus pessoal de gestão. Também é garantido por este decreto a imutabilidade dos fins do empreendimento.
Esse decreto foi aprimorado por três vezes, estando atualmente em vigor o Decreto-Lei nº 275, de 5 de agosto de 1993.42
II.V. A multipropriedade nos Estados Unidos.
É nos Estados Unidos que a multipropriedade mais se disseminou, sendo responsável por uma grande movimentação na economia americana. Porém, o estudo daquele sistema deve ser precedido, necessariamente, das categorias jurídicas da Common Law, desviando muito o foco deste trabalho.
Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx comentam, de forma muito resumida que “a experiência norte-americana não conhece uma fórmula única de multipropriedade, contemplando diversas elaborações doutrinárias, como p. ex.: Time-Span estate, modelo fundado na figura da tenancy in common, assentando-se a fórmula, portanto, em um imóvel em comunhão pro indiviso: Interval ownership, modelo fundado em relação obrigacional, tratando-se de verdadeiro lease, Fee simple, modelo consolidado em forma condominial, através do qual se atribui, ao multiproprietário, a propriedade plena de uma fração espaço-temporal. Esta última fórmula, ainda pouco difundida revoluciona o conceito tradicional de propriedade, criando a perspectiva temporal à situação jurídica - property’s fourth dimension, ou seja, a quarta dimensão da propriedade, além da altura comprimento e largura.”43
Pelo modelo americano se torna comum o contrato de time share para móveis, embarcações e aeronaves.
41 Ibidem., p. 37.
42 VIEGAS DE XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. A multipropriedade imobiliária. In: Revista trimestral de direito civil. - v.32 (outubro/dezembro 2007). - Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 78.
43 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx x XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx. A multipropriedade. IN: Revista de Direito Civil - imobiliário, agrário e empresarial. v. 40. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987. p. 110.
III. A MULTIPROPRIEDADE NO BRASIL.
No Brasil, a multipropriedade surgiu nos anos oitenta, mas não teve grande repercussão, apesar da campanha publicitária na época. Assim, ficou restrita a poucos empreendimentos e não teve grande análise pela doutrina.
A modalidade societária foi descartada de plano pela sociedade brasileira, que aceitou a multipropriedade, basicamente, por meio de duas fórmulas: “como multipropriedade imobiliária, veiculada através da ideia do chamado apart-hotel, e como multipropriedade hoteleira, organizada também sob a forma imobiliária, levada a efeito pelo menos um lançamento de grande proporção na cidade do Rio de Janeiro.”44
A prática comercial brasileira, em tema de multipropriedade, reproduziu em grande parte as experiências espanhola e italiana. Xxxxxxx Xxxxxxxx analisa uma construção real de multipropriedade e comenta os dispositivos contratuais:
promove-se a venda em frações ideais do imóvel onde funciona um hotel, constituindo uma compropriedade em relação ao todo do imóvel, dividido “em frações ideais, associados indissoluvelmente ao uso exclusivo dos apartamentos do hotel durante determinados períodos de 7 (sete) dias em cada ano, para o que atribui a cada apartamento 52 (cinquenta e dois) daqueles períodos, a que denominou ‘semanas’”, tudo conforme pacto adjeto denominado escritura de convenção e regulamento, devidamente lavrada em instrumento público. Os multiproprietários tornam-se condôminos do prédio e acessórios, cabendo a cada um deles uma fração ideal do todo, não se dividindo o imóvel em unidades autônomas, nem formando condomínio especial.45
Nos termos do contrato descrito acima, o multiproprietário é titular de uma fração ideal de 1/3.120 do prédio e respectivo terreno e tem direito real sobre o todo, embora se submeta regulamento de eficácia real, cuja validade está condicionada à existência da comunhão indivisa46. É um condomínio ordinário com pacto de divisão do uso por turnos intercorrentes, firmado pelos condôminos.
44 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 43.
45 Idem., p. 43.
46 Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, 4. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, v. 12, p. 31-2): “O pacto de divisão do uso não é contra a estrutura do direito real e pode ter eficácia real, tanto mais quando cessa com a divisão da coisa em sua partes dominicae” V., infra, p. 101, nota 50. apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 44.
A chamada convenção e regulamento, que é registrada, deve conter: “um calendário em que estão fixados, até o ano 2052, os períodos compreendidos pelas aludidas semanas, e, bem assim, as plantas esquemáticas (croquis)” dos pavimentos, preceituando a cláusula 1.6 da convenção que o calendário é válido até o ano 2052, devendo ser renovado a cada trinta anos, dentro do mesmo critério de classificação dos períodos. Manifesto, assim, o caráter contratual deste regulamento, a que todos aderem, de maneira irretratável, de forma que a fração adquirida está “indissoluvelmente associada ao direito de utilização exclusiva” de certo apartamento em semana determinada, ainda que, curiosamente, tenha a repartição por turnos fixada, como se viu, pelo prazo determinado de sessenta e nove anos (ou seja, até o ano 2052)”47.
Xxxxxxx Xxxxxxxx, sobre a convenção descrita acima, comenta que do ponto de vista jurídico, não obstante a aparência de condomínio especial, não há a constituição de unidades autônomas, invocando o contrato normas típicas do condomínio ordinário, como a renúncia aos artigos 1.139, 629 e 632 do Código Civil de 1916, concernente ao direito de preferência e divisão da compropriedade.48
Assim, trata-se de condomínio ordinário, regido pelo Código Civil, de propriedade exclusiva do administrador do hotel. A administração do condomínio é feita pela empresa vendedora, que reserva para sí 120 frações ideais, correspondentes a duas semanas do ano de todos os apartamentos. Esse período reservado assegura legitimidade para administrar o complexo imobiliário na qualidade de condômino e uma fração de tempo para a manutenção dos apartamentos.
Todos os adquirentes, ao celebrar o contrato aquisitivo, constituem a empresa sua procuradora, com amplos poderes para a nomeação de síndico, contratação de firma especializada na administração do empreendimento, fiscalização de contas e, inclusive, para a representação judicial, com poderes os mais especiais possíveis, conferidos de forma irrevogável, o que, apesar das óbvias irregularidades, garantiam pleno poder de comando.49
As despesas com a conservação do condomínio são rateadas, proporcionalmente, ao valor das frações. As despesas relacionadas exclusivamente com a unidade habitacional, como luz, telefone, bar e lavanderia, tem cobrança diferenciada, que
47 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 44.
48 Idem., p. 44.
49 Independentemente da ineficácia da irrevogabilidade do mandato e da previsão de alteração da própria convenção, por assembleia convocada por condôminos que reúnam 20% das frações ideais, deliberando-se pela maioria dos presentes, conforme dispõe a cláusula 9 da convenção, certo é que a pulverização da participação dos condôminos e o provável desinteresse de grande parte deles pela administração garantem ao gestor do hotel plenos poderes de comando. Ibidem. p. 45.
deve ser paga pelo multiproprietário ao final de sua temporada juntamente com um fundo de reserva e fundo de manutenção e reposição.50
Os poderes dos multiproprietários são disciplinados pela convenção, com o intuito de assegurar o aproveitamento dos apartamentos por todos os titulares, sem invasão da esfera alheia ou deterioração da estrutura física do imóvel.51
Para o multiproprietário é bastante atraente o negócio pois ele “adquire o direito ao aproveitamento econômico, durante uma semana por ano, de um apartamento em plena orla marítima carioca, a baixo custo, dispondo de toda a estrutura de um hotel de alta categoria, para sua “utilização plena e exclusiva”, mediante título livremente transferível por ato inter vivos ou mortis causa, registrado no Registro de Imóvel e correspondente à fração sobre um dos mais valorizados terrenos do Brasil.”52
A campanha publicitária ainda incluía o oferecimento de um sistema de intercâmbio, coordenado pela empresa vendedora, pelo meio do qual os multiproprietários poderiam trocar suas frações espaço-temporal com outros multiproprietários de outras localidades em outros países. Para o empresário, a vantagem é manter o hotel movimentado, e, portanto, rentável por todo o ano e imune às crises do setor turístico.
Ademais, as semanas não utilizadas ou cedidas diretamente pelo titular, podem ser colocadas à disposição do público externo, através da administração e a pedido do interessado, a preços compatíveis com o padrão do hotel, garantindo renda ao multiproprietário.
Os problemas que esse sistema poderia gerar são diluídos por uma série de
fatores:
Os problemas jurídicos que poderiam advir da inadequação da estrutura condominial, neste caso, são minimizados por expedientes comerciais assaz pragmáticos. Com efeito, a participação diluída dos multiproprietários os faz influentes na administração do condomínio. A eventual venda judicial do apartamento, na hipótese de nulidade da cláusula que assegura a indivisibilidade, seria descartada pela efetiva aquisição que o empresário poderia fazer das frações pertencentes aos consortes dissidentes; sem falar no tempo que a demanda judicial tomaria, permitindo um planejamento financeiro visando à compra da respectiva fração ou até mesmo à sua transferência para terceiros adquirentes. Tais providências, contudo, não oferecem uma solução
50 Idem., p. 45.
51 Idem., p. 45.
52 Ibidem., p. 46.
jurídica definitiva para as imperfeições da fórmula, incapaz, até o momento, de granjear a confiança do público brasileiro.53
Em seguida, Xxxxxxx Xxxxxxxx analisa outra construção de multiproprietária brasileira pelo modelo do apart-hotel, este é o que reproduz os sistemas português e espanhol:
Os apartamentos integram um condomínio especial. São vendidos em compropriedades, formadas por cinquenta e dois multiproprietários, correspondentes às cinquenta e duas semanas do ano, cada um deles titular de uma fração ideal de 1/52 do respectivo apartamento, e signatário de um pacto de utilização da coisa comum, integrante do contrato de compra e venda, atribuindo a cada consorte o uso da unidade adquirida por apenas uma determinada semana do ano. Há, portanto, o regulamento interno, de cada apartamento, e a convenção de condomínio, a que todos aderem. A totalidade dos apartamentos forma, assim, um condomínio especial, inserido em um complexo turístico-imobiliário com serviços de apart-hotel, administrados pela própria empresa vendedora, que se faz condômina, como titular de fração ideal correspondente a pelo menos uma semana, a chamada “semana de administração”. Consta da convenção o deferimento da administração à empresa proprietária da semana de administração, bem como uma procuração, como no modelo anteriormente analisado, pela qual todos os adquirentes fazem a empresa administradora mandatária para a eleição do síndico, a respectiva fiscalização das contas e a prática de todos os atos da administração ordinária ou extraordinária, podendo representar os condôminos, inclusive judicialmente. O administrador, segundo os termos da convenção, tem o poder de decidir qual apartamento entregar ao multiproprietário, de tal sorte que, como já se disse, o titular tem o direito ao uso de um apartamento, não do apartamento que supõe adquirir. Determina ainda, a convenção, o horário de entrada e saída dos titulares e uma limitação do número de moradores por unidade habitacional, além de prever um sistema de sanções extremamente rígido, incluindo a vedação ao uso do apartamento pelo proprietário inadimplente.54
Cumpre ressaltar que o apart hotel, segundo a Union internacional de Organismos Oficiales de Turismo, seria “this abreviation clearly describes this type of accommodation namely apartments hotel; these buildings are hotel because hotel services are provided and yet they are not hotel because the accommodation consists of an apartment which may be sold if desired”.55
53 Ibidem., p. 47.
54 Idem., p. 47.
55 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. op. cit., p. 6: “essa abreviação claramente descreve esse tipo de acomodação nomeada de hotel de apartamentos; esses prédios são hotéis porque serviços de hotels são fornecidos e ainda não é hotel porque a acomodação consiste em um apartamento que pode ou não ser vendido se desejado” (tradução livre).
Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, ao analisar tais ideias, afirma a multipropriedade não se poderá enquadrar sob a forma de apart-hotel, não só tendo em vista a moradia de seus coproprietários, como para cessão de uso a terceiros, que poderão até mesmo adquirí-las, por exemplo, por meio de compra e venda. Poderia se afirmar que a cessão de uso feito pelo multiproprietário a terceiro de unidade habitacional do apart-hotel, seria um contrato inominado misto, por abranger a locação de imóvel, móvel e de serviços. Nesta prestação de serviço o agente será a administração condominial do apart hotel. Como não haverá nenhuma atividade mercantil de empresa hoteleira, o coproprietário que locar a unidade habitacional não terá o privilégio de penhor legal, previsto no Código Civil, art. 1.467, I, que beneficia o hospedeiro.56
Esse sistema também foi inserido em um sistema internacional de intercâmbio, semelhante ao contrato analisado anteriormente.
Outro modelo é o hotel-residência. Por meio deste há o exercício da atividade empresarial de hotelaria (fornecimento de bebidas, alimentação, serviço de limpeza, arrumação; instalação de TV, telefone, etc.), mediante ao pagamento de semana, visando morada habitual. Embora o apart-hotel se diferencie do hotel-residência, casos haverá, na lição de Xxxx Xxxx, em que ele poderá ser utilizado para hospedagem, se se celebrar com os usuários de suas unidades verdadeiros contratos de hospedagem, tais como:
a) todas as unidades do “apart-hotel” permanecem a um só proprietário; b) tais unidades permanecem a vários proprietários, sendo exploradas como meio de hospedagem pela empresa administradora do condomínio; c) tais unidades pertencem a vários proprietários, sendo a sua administração, como meio de hospedagem, contratada a uma empresa de hotelaria; d) tais unidades pertencem a vários proprietários, sendo que uma parte deles é explorada, em conjunto, como meio de hospedagem, mediante administração por uma empresa de hotelaria.57
Nessas hipóteses haverá, portanto, exploração conjunta e parcial das unidades habitacionais do apart-hotel, para fins de hospedagem. Assim sendo o contrato celebrado pelo usuário da unidade - com o proprietário único das unidades, com a empresa administradora do condomínio ou com a empresa de hotelaria que administra, total ou parcialmente, tais
56 Ibidem., p. 7.
57 Ibidem., p. 8.
unidades - era, então, um contrato de hotel, consubstancialmente de um negócio singular de fornecimento de alojamento, de depósito de bagagens e de coisas de uso e de serviços.58
O condomínio ad tempus não pode ser tido como idêntico ao hotel-residência, embora seja meio de hospedagem (Lei nº 6.505/1977, art. 2º) a ele similar, submetido à Embratur, que sobre ele terá poder de polícia, por ser reconhecido como serviço turístico.59
A multipropriedade no Brasil encontra muitos obstáculos pois é um direito real atípico, de acordo com o apontado por Xxxxxxx Xxxxxxxx:
As diferenças entre o centro do interesse jurídico trazido pela multipropriedade, dirigido à aquisição de uma unidade espaço- temporal exclusiva, em caráter perpétuo, transmissível por atos inter vivos e causa mortis, em relação ao condomínio ordinário, levado a cabo, de uma forma ou de outra, pelas operações brasileiras, são gritantes, afirmando-se, talvez por esta razão, que “a natureza jurídica da multipropriedade continua obscura”, verdadeiro “direito real atípico e, portanto, uma espécie que não pode existir em face do princípio do numerus clausus dos direitos reais”.60
Em razão dessas opiniões sobre a estrutura da multipropriedade, não é de se estranhar que os primeiros negócios do gênero foram feitos com apreensão. Certo é que a multipropriedade carece de uma reconstrução, que torne claro o direito do adquirente, evitando desconfianças e permitindo que esse negócio dê frutos e contribua tanto com a economia do país bem como para o bem estar da população.
Foi em vista de melhorar a atratividade deste empreendimento que algumas vantagens passaram a ser oferecidas aos consumidores:
Em um primeiro instante, foi flexibilizada a escolha das datas para a hospedagem dos consumidores, passando a dispor de uma diversidade destas, tornando-se, assim, um atrativo a mais para os potenciais consumidores. Um segundo passo, este de suma importância, foi a inserção da multipropriedade nas grandes cadeias de hotéis. Essas cadeias possuem uma pluralidade de imóveis turísticos distribuídos em desejados locais ao redor do mundo, exatamente o que os multiproprietários almejam. Foi um avanço natural vincular a pluralidade de hotéis destas cadeias às estruturas de multipropriedade. Em seguida surge a permuta de frações temporais entre os consumidores desta relação jurídica entre os hotéis vinculados a estas cadeias. Se em um primeiro momento o consumidor adquiria a fração
58 Idem.
59 Idem.
60 XXXXXXXX, Xxxxxxx. op. cit., p. 49.
temporal de um imóvel, agora ele compra a mesma fração temporal, mas com a possibilidade de permuta por uma pluralidade de hotéis em locais próximos ou de diversas regiões do globo, dependendo do conteúdo do contrato, potencializando ainda mais um mercado de já grande demanda. E um avanço ainda mais recente nessa evolução da oferta da multipropriedade hoteleira é a relativização das frações temporais. Esta relativização se dá em virtude da qualidade do hotel desejado e/ou da época do ano almejada para a hospedagem e da referência hoteleira de seu contrato. Dependendo do hotel e da época almejados, a fração pode variar o lapso temporal, podendo aumentar ou diminuir.61
Apesar dos esforços a multipropriedade ainda é fonte de muita desconfiança do povo brasileiro, e com razão, pois a falta de regras claras causa discrepância entre as decisões judiciais sobre o tema. O consumidor fica desprotegido pois acredita em uma promessa que não pode ser cumprida em vista dos limites impostos pela lei, a mesma lei que deveria proteger e dar equilíbrio ao contrato nulifica cláusulas chave para que o negócio funcione.
61 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. O Contrato de time-sharing e o direito do consumidor. IN: Revista de Direito do Consumidor. v. 77. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 157.
IV. TENTATIVAS FRACASSADAS DE ENQUADRAMENTO DA MULTIPROPRIEDADE.
Diversas foram as tentativas de enquadramento da multipropriedade em uma das figuras típicas existentes de direito real, usando para isso os limites do conteúdo do direito. Mas nenhuma delas é livre de graves críticas.
A primeira tese foi a da propriedade temporária, elaborada na Itália:
Na esteira desta construção, e sem projetar uma figura atípica de direito real, que contraria o princípio do numeus clausus, entendeu-se que assim como o termo funciona como elemento capaz de limitar o domínio em sua duração, mantendo-se seus caracteres especiais, ter- se-ia, na multipropriedade, um direito de propriedade limitado no tempo, não como causa extintiva de direito - termo final -, mas no sentido de limitar as faculdades dominicais ao módulo temporal recorrente. Da análise do conteúdo dos poderes do multiproprietário decorre, para esta doutrina, a classificação do respectivo direito subjetivo como um direito de propriedade pleno, absoluto e perpétuo, cujo exercício se expressa em períodos anuais, limitados e recorrentes.62
No direito brasileiro esta tese não pode prevalecer, pois, “de maneira geral, a civilística dá cunho à previsão de propriedade resolúvel, disciplinada pelo art. 647 do Código Civil, atribuindo à perpetuidade caráter essencial à propriedade.63
A tese da propriedade cíclica, também italiana, procurou enquadrar a multipropriedade a partir dos princípios basilares da temporariedade do domínio, distinguindo a multipropriedade da propriedade temporária. Argumenta que uma vez admitida a limitação temporal do domínio, a perpetuidade deixa de ser um de seus elementos caracterizadores, autorizando a iniciativa privada a estabelecer termo inicial e final, como se dá na hipótese de venda com reserva de domínio. Assim, o direito de propriedade continuaria a ser pleno, exclusivo, mas limitado temporalmente.64
Entende Tepedino que essa teoria somente seria aplicável no brasil se autorizada na legislação ou superado o princípio do numerus clausus.65
62 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud Lezza e Xxxxxxxxx, un modelo di proprietà: la multiproprietà. Ibidem. p. 69.
63 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud V., dentre outros, Xxxxx Xxxxx, Curso de Direito Civil, cit., p. 254; O. Xxxxx, Direitos Reais, cit. p. 103; Wald, Curso de Direito Civil Brasileiro; Direito das Coisas, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, v. 3. Ibidem. p. 71.
64 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud Calò e Xxxxx, La multiproprietà. Ibidem. p. 72 .
65 Ibidem. p. 73.
A terceira teoria, levantada também pela doutrina italiana, foi descrita como: A multipropriedade como propriedade típica, com conteúdo limitado por certa utilizada temporal da “re”.66
Por meio desta teoria, uma vez afirmada a “possibilidade jurídica de que uma coisa - entidade material - possa ser objeto de diversas situações jurídicas autônomas, desde que subsistam autônomos interesses juridicamente tutelados, justificar-se-ia, no caso da multipropriedade, a coexistência de múltiplas situações de propriedade individual incidindo sobre o mesmo bem jurídico, cada qual delimitada, em seu conteúdo, à utilidade fornecida por certa fração de espaço e de tempo, embora nem por isso ilegítimas, já que tais situações proprietárias, traduzindo interesse a aproveitamento econômico individual e exclusivo, se justificam constitucionalmente pela função social que desempenham.”67
Como crítica a essa teoria, tanto no direito brasileiro como no italiano, a possibilidade de incidência de situações subjetivas reais sobre um mesmo bem se revela possível somente em duas hipóteses: através da constituição de direitos reais limitados, sobre uma coisa alheia, ou de compropriedade, o que, como já analisado anteriormente, não é suficiente para atingir o mesmo objetivo buscados na multipropriedade.68
Por fim, a tese da propriedade dividida e do condomínio “pro diviso” propõe que a multipropriedade traduziria uma espécie de propriedad dividida de acordo com a repartição temporal, entre os multiproprietários, da utilidade da coisa que serve de objeto comum a seus direitos subjetivos:
A tese parte da premissa, palmilhada por respeitada doutrina espanhola, de que a autonomia privada tem ampla liberdade negocial no que tange à “disponibilidade del contenido normal de cada tipo”. A multipropriedade constituiria uma nova situação jurídica real, não chegando, porém, a criar um novo tipo de direito, contendo-se no âmbito do direito de propriedade e, portanto, sem violação do princípio do numerus clausus e da tipicidade dos direitos reais. Considerada possível a caracterização do esquema real n âmbito do tipo proprietário, sustenta-se a possibilidade teórica da propriedade dividida, situação que não equivaleria a um direito real sobre coisa alheia, já que neste se identificariam direitos diversos sobre a mesma coisa, enquanto naquela se caracterizariam múltiplos direitos de propriedade, diferenciados apenas, no caso da multipropriedade, pelo fator temporal que definiria o aproveitamento econômico de cada situação subjetiva. Resultaria daí, por exemplo, que ao contrário do
66 Ibidem. p. 74.
67 Ibidem. p. 75.
68 Ibidem. p. 76.
que ocorre no ius in re alínea, a extinção de um direito não acarretaria a expansão dos demais, inexistindo acrescimento em razão da autonomia de cada posição subjetiva. Cada multiproprietário seria titular de um direito de propriedade exclusivo, simultaneamente aos direitos dos demais multiproprietários, incidentes sobre o mesmo objeto material.69
A comunhão de interesses, estabelecida a partir da justaposição de propriedades distintas em estado de conexão física, todas incidentes sobre o mesmo objeto material, criaria o que se denominou condomínio pro diviso: comunhão formada por propriedades individuais incidentes sobre o mesmo objeto.70
A principal crítica feita a essa teoria foi a seguinte:
Embora bem articulada, sobretudo pela inclusão da fração temporal como elemento constitutivo do objeto do direito do multiproprietário, a tese sujeita-se a não poucas críticas, seja pela própria dificuldade teórica da configuração da chamada propriedade dividida e do condomínio pro diviso, seja pela perplexidade que suscita a constituição de figura condominial tendo como ponto de referência múltiplos objetos não superpostos, mas, simplesmente, justapostos. Situações jurídicas assim constituídas inexistem na dogmática romano-germânica da propriedade, marcada pela unidade global da senhoria dominical, incidente sobre certa coisa (res), de maneira exclusiva e elástica.71
Porém, como será visto a seguir, existem teses que foram sustentadas na Espanha que poderiam nos ajudar a superar as barreiras da nossa legislação.
IV.I. A construção da multipropriedade como condomínio ordinário com pacto de indivisão.
A construção da multipropriedade pelo modelo de condomínio ordinário no Brasil, assim como nos modelos da Espanha e Portugal já aqui estudados, encontrou certo êxito, porém dar o nome de multipropriedade a este modelo não significa, por si só, uma solução à qualificação da figura negocial de forma correta.
Por meio deste modelo, forma-se a multipropriedade, em cada apartamento, pelo conjunto de titulares dos cinquenta e dois turnos, um para cada semana do ano, e regido
69 Ibidem. p. 77.
70 Ibidem. p. 79.
71 Idem. p. 79.
por um regulamento interno que atribui aos multiproprietários a utilização individual e exclusiva das unidades habitacionais, cada qual a seu tempo, com pacto de indivisão.
Para que este modelo seja compatível com a multipropriedade deve-se verificar a compatibilidade do centro de interesse que visa à produção de certos efeitos necessários à atuação da multipropriedade, com a natureza jurídica do condomínio, aferindo-se, a partir daí, e consequentemente, se a adoção pela práxis do sistema de compropriedade apresenta-se adequada ao interesse que se pretende tutelar com a multipropriedade.72 Xxxxxxx Xxxxxxxx aponta uma série de diferenças entre as situações jurídicas tuteladas entre o condomínio e a multipropriedade:
Entretanto, no condomínio, a divisão temporal ou espacial, embora frequente, é eventual, um posterius em relação à comunhão, ao passo que na multipropriedade a divisão temporal é pressuposto de sua existência, contemporânea à sua própria configuração, assumindo, segundo certa doutrina, “rilevanza essenziale rispetto ala quale l’interesse del soggeto appare exclusivo”. Por outro lado, mesmo quando regulamentado através da divisão temporal do uso, caracteriza-se o condomínio pelo interesse necessariamente transitório de seus titulares, a justificar a hostilidade do legislador para com a sua indivisibilidade, podendo-se restaurar, a qualquer momento, o domínio exclusivo (CC, art. 629). Tratando-se de coisa indivisível, como seria um apartamento, determina o legislador que se proceda à venda judicial, extinguindo-se assim, de uma forma ou de outra, a comunhão, nos termos do art. 632 do Código Civil: “Quando a coisa for indivisível, ou se tornar, pela divisão imprópria ao seu destino, e os consortes não quiserem adjudicá-la a um só, indenizando os outros, será vendida e repartido o preço, preferindo-se, na venda, em condições iguais de oferta, o condômino ao estranho, entre os condôminos o que tiver na coisa benfeitorias mais valiosas, e, não as havendo, o de quinhão maior”.73
Em conclusão à comparação dos institutos, verifica-se que nas relações entre condôminos são vigentes os princípios que fixam a unanimidade quanto à destinação do bem, da administração por maioria, direito de preferência na aquisição da quota dos demais e possibilidade de rejeição à introdução de estranhos no bem comum.74 Já na multipropriedade, ao revés, “pretende oferecer a cada titular um direito de natureza real, perpétuo e exclusivo,
72 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 62.
73 Ibidem. p. 63.
74 Idem. p. 63.
que incide sobre o bem jurídico de maneira plena, no âmbito da fração temporal que lhe é deferida (aspecto funcional).75
Como se verifica, a semelhança é apenas aparente, na multipropriedade não há a comunhão de interesses caracterizadora do condomínio, já que o interesse de cada multiproprietário volta-se exclusivamente para a coisa no seu devido turno recorrente. Verifica-se apenas um interesse comum na conservação do imóvel, o que não se confunde com a comunhão de interesses, conceito que designa identidade de pretensões a uma mesma unidade jurídica.76
Digno de nota são as regras quanto à indivisibilidade do condomínio, que são cogentes, indisponíveis às partes, se mostrando um obstáculo aparentemente intransponível aos interesses da multipropriedade.
Assim, ao se tentar estabelecer a multipropriedade adaptando as regras do condomínio, procura-se revogar regras à esta essenciais. Este mecanismo não parece capaz de criar a estabilidade e segurança jurídica necessárias para conquistar a confiança dos investidores.77
IV.II. A análise da jurisprudência brasileira da tentativa de construção condominial.
O primeiro julgado sobre a matéria no Tribunal de Justiça de São Paulo ocorreu em 25.08.99, pela 5ª Câmara do extinto 2º Tribunal de Alçada, na apelação sem revisão n. 513.448-00/7, de relatoria do Dr. Desembargador Laerte Sampaio. Não obstante o fundamento do acórdão para a extinção sem resolução do mérito de ação de cobrança de taxas condominiais ter sido a falta de pressuposto para a instalação e o desenvolvimento válido do processo (ausência de documento essencial), o mérito quanto à natureza jurídica da multipropriedade foi enfrentado, evidenciando a adoção do posicionamento doutrinário vigente à época para afastar a aplicação da Lei n. 4.591/64 à multipropriedade:
o que se percebe é que a chamada multipropriedade ou time-sharing é um negócio jurídico mais amplo e mais complexo do que a simples justaposição de condomínios especial e comum, envolvendo o gerenciamento único que extravasa as atribuições de um simples síndico. Há, em verdade, uma entidade que promove o
75 Ibidem. p. 64.
76 Idem. p. 64.
77 Ibidem. p. 65.
empreendimento e o explora, ganhando, às vezes, a figura de uma sociedade multiproprietária de natureza exclusivamente obrigacional, centralizando as atividade de hotelaria e manutenção das partes comuns e unidades exclusivas se promovida a instituição de condomínio especial. O adquirente de um período de desfrute de tais bens em determinada época do ano não é titular de um direito real típico por ser este previsto em numerus claususi porque ‘a forma condominial proposta por algumas doutrinas estrangeiras não pode ser aplicada no Brasil porque a indivisão forçada também depende de criação legal e não é aplicável para uma comunidade de unidades autônomas que possuem configuração semelhante à propriedade horizontal’ (Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx de Lima, Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro, RT 658/40). (...) Como ficou exposto, inviável a aplicação da Lei n. 4.591/64 à cobrança das despesas dos multiproprietários pela inviabilidade de seu fracionamento jurídico pelo condomínio estabelecido na propriedade autônoma. Diante desse quadro, o relacionamento entre o apelante e o apelado é exclusivamente obrigacional, eis que não pode ser comprovada, diante da situação do ordenamento jurídico atual, a situação do condômino, nos termos da Lei nº 4.591/64.
O segundo julgamento ocorreu em 04.09.03, pela 12ª Câmara do Extinto 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, na apelação sem revisão n. 738.683-0/0, de relatoria do Senhor Desembargador Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. A decisão confirmou sentença de extinção sem resolução do mérito da ação de cobrança de taxas condominiais por inadequação da via eleita, com base, exclusivamente, no primeiro precedente de 1990 e na doutrina de Xxxx Xxxxx Xxxxxxx.
Vários Foram os equívocos cometidos nesses dois primeiros precedentes sobre a matéria. Não há na multipropriedade nenhuma entidade ou sociedade multiproprietária que promove o empreendimento, tampouco prestação de serviços de hotelaria, o que ocorre no timeshare hoteleiro apenas. Na multipropriedade, não há criação de um novo direito real, pois o direito em questão continua sendo o de propriedade, em nada interferindo a maneira como os proprietários se utilizam da coisa comum ou se a posse direita do imóvel se dá por rodízio entre eles. Também não há pacto de indivisão, tal como permite certas legislações estrangeiras: o condomínio ordinário existente em cada um dos imóveis pode ser desfeito a qualquer tempo, amigável ou judicialmente, na prática, a extinção do condomínio seja ocorrência rara por força da fácil disposição da cota-ideal por quem nela não tem mais interesse.
Alguns acórdãos começaram a reconhecer a tese da construção pelo modelo condominial, duas em particular, ambas de 2003, a primeira da 11ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de relatoria do Desembargador Egídio Giacoia, proferida em 29.09.03, e a segunda da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de Relatoria do Desembargador Xxxxxxxx Xxxxxx, proferida em 20.10.03, que foram contrárias aos precedentes já examinados, agora reconheciam a tese:
DESPESAS DO CONDOMÍNIO - Cobrança - Multipopriedade imobiliária (“tempo compartilhado”ou “timesharing”) - Convenção de Condomínio Registrada - Incodência das Normas do Condomínio Edilício - Competência do 2º TAC - Extinção do Processo - Recurso Parcialmente Provido. 1. O exercício do direito de propriedade aferido em função do tempo não desnatura as regras do condomínio, em especial quando existe Convenção de Condomínio inscrita no Registro de Imóveis nos termos da Lei n. 4.591/64 desde 1985. A questão da competência para julgamento de casos envolvendo a multipropriedade imobiliária restou afirmada como sendo desde E. Segundo Tribunal de Alçada Civil (Dúvida de Competência n. 059.003-0/0 do C. Grupo Especial das Seções Civis do E. TJSP) 2. “In casu”, a multipropriedade envolve co-proprietários de fração ideal, om limitações temporais e condominiais. Foi submetida ao regime especial da Lei n.º 4.591/64 consoante Convenção Condominial levada ao registro imobiliário. Cuida-se da modalidade especial de condomínio prevista pelo artigo 6º da Lei 4.591/64, guardando estreita semelhança com a propriedade edilícia, na qual prevalece o rateio das despesas com equipamentos e serviços postos à disposição de todos os participantes da comunidade. 3. Omissis.(TJ/SP - 11ª Câmara de Direito Privado; Apelação nº 760.022-00/8; Relator Desembargador Egídio Giacoia; julgado em 29.09.2003).
CONDOMÍNIO. MULTIPTOPRIEDADE OU TIME SHARING. INSTITUTO QUE NÃO AFASTA A POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DAS DESPESAS DE MANUTENÇÃO. RECURSO PROVIDO PARA AFASTAR A EXTINÇÃO DO PROCESSO E
JULGAR A AÇÃO PROCEDENTE. A multipropriedade, ou condomínio de tempo, ou ainda, time-sharing, nada mais é do que uma variação do condomínio tradicional, caracterizada pela divisão do uso do imóvel em períodos que, normalmente, correspondem a frações do ano, como meses, quinzenas ou semanas. Não existe, assim, em princípio, incompatibilidade entre as disposições da Lei n.º 4.591/64 e a multipropriedade de unidades condominiais, visto que, regular-se-á pelas disposições do direito comum o condômino por quota ideal de mais de uma pessoa sobre a mesma unidade autônoma.
(TJSP - 2ª Câmara de Direito Privado; Apelação nº 753.574-00/7; Relator Desembargador Xxxxxxxx xxx Xxxxxx, julgado em 20.10.2003).
Muitos autores defendem a multipropriedade utilizando a fórmula do condomínio pro indiviso, como por exemplo Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, que entendem que o caminho correto a ser trilhado é “por meio do cultivo do direito real e respectivo registro no Ofício Imobiliário que é proporcionada ao brasileiro a paz necessária para mover a economia.”78 oferecendo um sistema mais seguro para os investidores.
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx afirma que a liberdade contratual está esbarrando nos princípios da tipicidade e/ou numerus clausus dos direitos reais.
Os defensores dessa tese estão tomando como base as decisões mais recentes na jurisprudência, como por exemplo o acórdão de relatoria do Des. Xxxxxx Xxxx, citado por Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, para quem: “(...) merece prevalecer a tese de que a limitação temporal no exercício do direito de uso da unidade pelos seus proprietários não chega a desnaturar as regras do condomínio, em especial no caso dos autos. Com efeito, cumpre reconhecer que a multipropriedade imobiliária nada mais é do que uma variação do condomínio tradicional, caracterizada, contudo, pela divisão do uso do imóvel em períodos. Na realidade, nada mais é do que um novo tipo de condomínio especial, que surgiu em locais de lazer. Por conseguinte, em princípio, não existe incompatibilidade entre as disposições da Lei nº 4.591/64 e a multipropriedade das unidades condominiais.”79
Ressalta Xxxxxxx Xxxxxxx Sacramone que a disciplina do condomínio edilício parece não se adequar à hipótese. Não há a característica do condomínio horizontal, da propriedade exclusiva e propriedade comum dos condôminos, ou seja, unidades autônomas entre si, com partes individuais e comuns. Na hipótese da multipropriedade incidente sobre todo um complexo imobiliário ou uma residência, não há propriedade exclusiva de cada unidade, o que descaracteriza o condomínio edilício. Por seu turno na hipótese da multipropriedade incidir sobre uma unidade autônoma dentro de um edifício, por exemplo, há um condomínio edilício sobre o todo, a ensejar a aplicação de suas regras específicas entre as unidades e cotitularidade da determinada unidade autônoma, o que exige uma regulação
78 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. Multipropriedade Imobiliária. IN: Registro Imobiliário: aquisição de propriedade / Xxxxxxx Xxx, Xxxxxx Xxxxxxxx, organizadores. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. - (Coleção doutrinas essenciais: direito registral; v. 3). p. 431.
79 SACRAMONE, Xxxxxxx Xxxxxxx. Multipropriedade no brasil. IN: Direito imobiliário Brasileiro, Xxxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxx coordenadores. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 605.
diversa, não mais entre as unidades, mas sim entre os proprietários da mesma unidade e, portanto, a aplicação da disciplina do condomínio tradicional.80
Segundo Xxxxxxx Xxxxxxx Sacramone81:
O uso periódico não obsta a caracterização da multipropriedade como condomínio. O uso do bem é disponível aos titulares, os quais podem regular seus interesses por convenção, a ponto de otimizá-los. A obrigação resultante do regulamento não possui somente eficácia perante as partes contratantes, mas pode gerar vinculação erga omnes por meio do registro. Na lição de Pontes de Miranda, o regulamento do uso por turnos não é contrário à estrutura do direito real e, inclusive, pode ter eficácia real. A renúncia dos adquirentes ao direito de preferência para a aquisição do bem comum em condições iguais de oferta, tal como preconizado para o condomínio no art. 1.322, do Código Civil, bem como a renúncia ao direito de exigir que o condômino dê posse e uso ao estranho somente com o consenso dos demais, como preconizado no art. 1.314, parágrafo único, do Código Civil, também não alteram o direito de propriedade a ponto de descaracterizá-lo, mas se compreendem dentro da elasticidade do princípio da tipicidade do direito real, pois não violam normas de ordem pública e respeitam a função social da propriedade adequando o interesse de cada titular. As normas que estabelecem o direito de preferencia na aquisição, bem como de exigência de consenso dos demais para a posse de terceiro são dispositivas, e não cogentes, “pois que o seu fundamento é o interesse dos condôminos em que não entre na comunhão quem não lhes agrade, ou o de unidade e consolidação da propriedade. Quanto às despesas condominiais, pertinente o ensinamento de Nascimento Franco: No caso de unidade autônoma possuída por duas ou mais pessoas, há solidariedade no cumprimento das obrigações condominiais. Configura-se, no caso, uma obrigação conjunta, mas indivisível, donde poder o síndico, a seu exclusivo critério, cobrar a quota integral nas despesas a qualquer um dos co- proprietários e não necessariamente a todos eles, em litisconsórcio passivo. Assim, mesmo quando se trata de co-proprietários casados sob regime de separação de bens, ambos ou qualquer um isoladamente responde pela totalidade e não por uma parte proporcional à sua participação no imóvel. Em suma, a solidariedade entre os condôminos e, consequentemente, a possibilidade de a quota total nas despesas ser cobrada a qualquer um deles ocorre, seja qual for a modalidade do condomínio inclusive na modalidade conhecida como ‘time sharing’ ou multipropriedade em que cada co-participante utiliza o imóvel comum apenas em um determinado período.
Os defensores desse modelo esbarram na indivisibilidade e indissolubilidade da comunhão. Quanto à indivisibilidade, o art. 1.320 do Código Civil estabelece que a todo
80 Idem., p. 605.
81 Ibidem., p. 606.
tempo é lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum. Neste ponto defende Xxxxxxx Xxxxxxx Sacramone que “a função do bem como segunda residência, ou residência para o período de férias, o que torna o bem perfeitamente divisível, notadamente se configurado por diversas unidades autônomas à semelhança da propriedade horizontal.”82
Quanto à vontade dos adquirentes, o parágrafo primeiro do art. 1.320, do Código Civil, estabelece que os condôminos podem acordar que a coisa comum fique indivisa por prazo não maior de cinco anos, suscetível de prorrogação ulterior.
Não se pode impor a ninguém permanecer em condomínio, razão pela qual exige-se a unanimidade para a convenção de indivisibilidade do bem e a limitação do prazo de indivisibilidade a cinco anos, ainda que prorrogável por indefinidas vezes por novo consenso unânime.
A perpetuidade da multipropriedade, por meio de limitação da autonomia privada, é afastada pela legislação, que considera o fracionamento do imóvel como situação transitória, preferindo sempre a eventual concentração dos poderes em um só proprietário.
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, assim como outros autores, considera os obstáculos da indivisibilidade e indissolubilidade como intransponíveis: “As referidas normas, assim, impedem a segurança e a certeza jurídica imprescindíveis à propagação da multipropriedade no Brasil.”83
Viegas de Lima é citado por Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx para construir entendimento no sentido contrário:
a forma condominial proposta por algumas doutrinas estrangeiras não pode ser aplicada no Brasil porque a indivisão forçada também depende de criação legal e não é aplicável para uma comunidade de unidades autônomas que possuem configuração semelhante à propriedade horizontal. De fato, para a adoção da multipropriedade imobiliária é necessária a criação de um ambiente jurídico seguro a fim de que seja possível atrair investidores e interessados, e a possibilidade de extinção condominial pelos condôminos de fração de tempo é um fato que pode fragilizar a aplicação do instituto, mesmo que seja possível a estipulação de pacto de indivisão pelo período de cinco anos, prorrogáveis por igual período (parágrafo único do art.
1.320 do CC/2002). No entanto, ousamos discordar: reconhecemos que o estado de comunhão é reconhecidamente fonte de discussões, constituindo “sementeira de discórdias”, conforme bem definia Xxxxxx Xxxxxxxx (1995), o que propiciou o desenvolvimento de mecanismos para sua extinção. Porém não podemos olvidar que a utilização do
82 Ibidem., p. 607.
83 Ibidem., p. 608.
sistema de multipropriedade imobiliário no Brasil decorre da “adaptação” do instituto do condomínio civil, que possui natureza transitória. O caráter transitório do condomínio comum, assim, não configura óbice à adoção da multipropriedade porque esta não pode ser interpretada à luz das regras ordinárias do condomínio civil, como veremos.
Argumenta o autor que o fato da interpretação do pacto de indivisão ser aplicada de maneira restritiva se deu em razão do regime jurídico aplicado à propriedade outrora, do regime jurídico aplicável à propriedade ser o do Código Civil de 1916, de inspiração liberal. O Código Civil de 2002, no §1º do art. 1.228, prevê expressamente que a propriedade deve desempenhar suas funções social e econômica, que malgrado não possam ser aplicadas diretamente sobre a incidência normativa expressa, podem e devem ser utilizadas pelo intérprete para extrair a essência de um sistema normativo. Nesse aspecto, é ressaltada a possibilidade do conteúdo da função social da propriedade urbana ser definida pelo plano diretor municipal (art. 182, CD/1988)84. Assim, a incompatibilidade alegada por Xxxxxxxx, Xxxxxxxxx e outros não seria vislumbrada.
O principal fundamento para não se permitir a perpetuidade do estado de condomínio é o fato de nenhum comproprietário poder ser constrangido a permanecer em comunhão, em estado de indivisão, devendo ser respeitada a liberdade individual, como já apontado. Porém, referida condição quase sempre se dá independentemente da vontade do condômino. Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de Xxxx aponta que “O que ocorre na multipropriedade imobiliária é exatamente o contrário: é justamente o compartilhamento que atrai as pessoas, visando a um aproveitamento social e econômico da propriedade imobiliária.”85 Nesse sentido foi a discussão da multipropriedade na Espanha:
A possibilidade de estabelecimento de pacto de indivisão de condomínio pro indiviso em casos de multipropriedade foi fruto de intensa discussão na doutrina civil espanhola, tendo prevalecido a possibilidade do estabelecimento de diferenciação entre condomínios voluntários ou involuntários. A principal razão da possibilidade de divisão ocorre tão somente em condomínios involuntários porque referida situação não foi predeterminada ou desejada pelo condômino. Xxxxxx Xxxxxxxx analisa esse ponto de vista com precisão: “Si el pacto de indivisión se limita en su duración por razón de que la comunidade es una situación que el ornamiento valora como indeseable, no hay niguna posibilidad de suprimir la limitación en el caso de la multipropriedad. Pero si así fuera, se daria certamente una
84 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. op. cit. p. 444.
85 Ibidem., p. 445.
contradicción entre la valoración legal de la comunidade como situación social indeseable y la realidade social, en la que la comunidad sirve para satisfacer necesidades de los particulares. No tiene ningún sentido que la Ley imponha una limitación a la vinculación a la comunidade por razón de ser indeseable, cuando en la realidad social se experimenta como algo deseado.”86
Continua Santana de Xxxx afirmando que:
É preciso considerar, também - e nesse sentido nos socorre ainda a doutrina do país de Cervantes -, que a limitação do pacto de indivisão não tem sua origem na ideia de que a manutenção do condomínio seja prejudicial em si mesma, mas no sentido que limita a livre circulação dos bens, resultando problemas patrimoniais particulares e inclusive de ordem econômica geral, ou seja, em um condomínio cuja situação não foi desejada ou involuntária, a manutenção do referido estado é transitória e é natural que o Direito crie mecanismos para extinguir o estado condominial. Por isso, a ação de divisão é absolutamente necessária nos casos em que o condomínio seja involuntário, mesmo porque a negociação das partes ou quotas indivisas é complexa e dificultosa e, por tal fato, eventual pacto de indivisão não pode ser fixado por tempo indeterminado. No caso da multipropriedade condominial, a situação é inversa. Já existiu o ato volitivo para a criação de quotas condominiais divididas em frações de tempo, sendo que referido estado, além de não restringir a livre circulação de bens, potencializa as negociações das referidas quotas: não há embaraço algum ao condômino, que pode livremente transmitir referido direito de como desejar. Xxxxxx Xxxxxxxx leciona que “xxxxxx xx xxxxxxxxxx xx xxxxxx xx xxxxxxxxxxx xx xxx xxxxxx, xxxx, xx contrario, la potencia, no tiene sentido impedir la indivisión permanente, porque lo que es contrario al orden econômico no es la indivisión, sino las demoras que a la libre circulación de los bienes supone la indivisión. Tales trabas están en función de la conciencia social, que esta dispuesta a adquirir determinadas participaciones y no otras. Xxxx lleva consigo que el objeto del tráfico se configure de un modo u otro. En el caso de la multipropriedad, el hecho de que sólo se disponga de unos dias o de unas semanas al ãno como vacaciones, determina que exista una demanda de uso limitada en el tempo: si la oferta se limita también a un tempo, se podrá obtener la mayor adecuación de ambas con benefícios para las dos. De tal modo, que quien pretenda passar solamente un mes en un apartamento no tenga que invertir lo necesario para adquirir la propriedade exclusiva, y, por otra parte, el que disponga de un apartamento pueda obtener un precio más elevado ventiéndolo a doce personas que a una sola.”87
86 Idem. p. 445.
87 Idem., p. 445.
Para corroborar com sua tese, Xxxxxxx xx Xxxx cita também outros autores
espanhóis:
“no hay, pues, obstáculos para considerar que la multipropriedad es una comunidade ordinária - pro indiviso -, de carácter estable; es decir, una comunidade funcional. Las diferencias findamentales entre comunidade indicental y funcional residen en su origen, que es normalmente involuntário en la primera y siempre voluntario en la segunda; en su duración, que es transitória y circunstancial en lacomunidad incidental, mientras que es permanente y estable en la funcional; en sus fines, poues si la primera no se orienta a un fin o destino común de los partícipes la segunda persigue un destino común; en la organización ausente en la incidental y ordinariamente estructurada en la funcional”88. Xxxxxxx xx Xxxxxx, por sua vez, valoriza o aspecto econômico para justificar o pacto de invidivsão. Segundo o catedrático espanhol, “desde un punto de vista económico, no cabe duda la realidade social nos presenta comunidades económicas y otras que, por el contrario, son antieconómicas. En éstas tiene sentido el ejercicio de la acción de divison. No así en aquéllas, a pesar que el Código Civil considere que todas las comunidades son antieconómicas”89
Explica Santana de Xxxx que, na verdade, a doutrina espanhola por ele citada, funda o entendimento se inspirando no condomínio germânico em mão comum, o conteúdo do art. 1.320 do Código Civil de 2002 somente pode atingir os condomínios civil involuntários em que não exista uma finalidade comum desejada pelos comproprietários. Neste último aspecto, a regra da possibilidade de divisão pode ser afastada em razão da autonomia da vontade dos adquirentes. A experiência do Direito espanhol pode - e deve - ser utilizada na interpretação do art. 1.320 do CC/2002 brasileiro, primeiramente porque a redação da norma contida nos mesmos é idêntica e induz as normas a serem discutidas no mesmo terreno jurídico; segundo porque a multipropriedade imobiliária condomínio foi utilizada com relativo sucesso naquele país por anos, somente tendo sido abolida em razão de problemas ligados aos direitos dos adquirentes das frações de tempo, principalmente no tocante às regras de consumo.90
Neste ponto, importante destacar que o sistema de frações de tempo será estudado com mais detalhe a seguir, que é o atual sistema mais viável e interessante ao
88 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. op. cit. apud Xxx Xxxxxx, Xxxxxxx. Configuración juridical de la multipropriedade en España. Revista Crítica de Derecho Inmobiliario, año LXIV, n. 584, p. 9-30. p. 446.
89 XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx de. op. cit. apud Xxxxxxx xx Xxxxxx, xxxx Xxxxxxxxx. La multipropriedade y
;a acción de divisón. Revista de Derecho Registral 11-12/72. p. 446.
90 Ibidem., p. 447.
consumidor, pois apesar dos fundamentos de peso esposados em favo do condomínio especial pro indiviso, a orientação das corregedorias e cartórios de registro de imóveis em geral ainda são contra o registro desse sistema de multipropriedade, enquanto o entendimento não for mudado permanece a impossibilidade de sua utilização.
V. OS MODELOS CONSOLIDADOS DE MULTIPROPRIEDADE.
Os contratos de time-sharing são feitos de forma a fracionar “um período de tempo que poderá ser fixo, flutuante, misto ( uma parte fixa outra, flutuante) ou rotativo. Pode ser por meio de locação de temporada, arrendamento de apartamento em hotel, apart-hotel ou euro-hotel (se o imóvel adquirido fizer que o proprietário passe a integrar uma comunidade de titulares de imóveis dos outros, por certo tempo no ano).”91Segundo Xxxxx Xxxxxx Diniz92:
O contrato de time sharing ou de multipropriedade tem como escopo o uso ou aproveitamento compartilhado de um bem imóvel e serviços em área turística, assegurado a cada cotitular sua utilização exclusiva durante um certo período do ano. É uma multipropriedade temporária muito útil para o desenvolvimento do turismo em hotéis, clubes, navios, etc. Mas não visa somente o uso do imóvel em certa área turística, pois pode envolver: troca de uso de direitos habitacionais ao local de férias, inclusive no exterior; direitos condominiais; participação em sociedade, direito a ações assumindo a veste de um investimento; direitos pessoais quanto a serviços pessoais a serviços ligados ao uso do imóvel, com o os de hotelaria.
Assim, superado o processo evolutivo já estudado nos vários países europeus, verifica-se na atualidade a existência de quatro modelos de multipropriedade que se consolidaram.
V.I. A do direito real de habitação periódica.
Usual em Portugal, na qual o multiproprietário pode usar um imóvel situado em zona turística por prazo determinado correspondente a uma semana por ano. O direito se transfere pela emissão de um certificado predial (título imobiliário), devidamente assentado no registro público. Os portugueses nela vislumbram um direito real de habitação periódica, que democratiza o imóvel de férias, cujo administrador (trustee) o mantém em nome de um clube, por exemplo concedendo e organizando o seu uso periódico. Todos os adquirentes são coproprietários de fração ideal, sofrendo limitações temporais e condominiais, sendo que a relação de tempo repartido fica estabelecida em regulamento. Neste caso, o direito real de habitação periódica estabelece um direito creditório entre adquirente e empresário (individual
91 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Direito imobiliário atual: Multipropriedade imobiliária: uma figura condominial ad tempus / Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx (coord.). - Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 2.
92 Idem.
ou coletivo) “vendedor” de certificado predial, pelo qual o pagamento de uma prestação pecuniária cria o direito de usar certa unidade habitacional para uma temporada anual. Ao investidor não se confere o domínio, mas tão somente o direito de usar da res em certo lapso temporal, logo este poderá, se quiser, ceder o respectivo uso em comodato ou locação por ser titular do direito real de habitação periódica. O empresário continua sendo proprietário e como tal tem o controle e a gestão do negócio e arca, ainda, com os encargos decorrentes da administração. Por tal razão registra-se o empreendimento em nome do trustee, que organiza o uso periódico do imóvel, fazendo com que haja uma relação obrigacional entre proprietário do bem de raiz e os multiusuários. Há controle de arrendamento múltiplo como direito real, que, na lição de Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, é um direito real menor similar ao da propriedade horizontal.93
V.II. A acionária ou societária.
Pela qual uma sociedade, proprietária de imóvel de lazer, emite ações ordinárias que, por representarem a propriedade daquele imóvel, ficaram em poder dos seus efetivos proprietários, garantindo-lhes gestão social e ações privilegiadas ou preferenciais, que serão vendidas a sócios-usuários para que tenham direito ao uso em turnos preferidos daquele bem social por um prazo. Com isso, a multipropriedade pode ser considerada mais um investimento, ficando em segundo plano o caráter de uso habitacional direcionado ao lazer, transforando o multiproprietário em mero acionista com participação social dos investidores.94
V.III. A imobiliária ou de complexo de lazer.
Por meio da qual cada multiproprietário obtém uma quota ideal referente ao solo, edificação, complexo de lazer comum, serviços de apoio (lavanderia, lanchonete, restaurante, etc.) e aos móveis existentes, mas só tem o direito de uso por um período devendo, ainda, submenter-se às normas do condomínio. A fração ideal é transmissível a herdeiros, que passam a ter o direito de utilizar da unidade adquirida, com exclusividade, durante certo lapso temporal prefixado a cada ano. Portanto, por meio dessa modalidade há a
93 Ibidem., p. 3.
94 Ibidem., p. 2.
concessão de direito de fruição de imóvel alheio limitado no tempo, embora o direito cedido possa ser perpétuo.95
V.IV. A hoteleira.
Visa expandir o setor relativo a hotéis e a centros turísticos, vendendo direito ao uso habitacional temporário da unidade ou apartamento de um hotel, que pode estar incluído ou não em uma rede hoteleira que pertença a um proprietário ou uma sociedade administradora proprietária da qual participam os multiproprietários, o incorporador, o organizador ou hoteleiros, caso em que o imóvel, de propriedade dos multiproprietários ou de sociedade em que fazem parte, é dado arrendamento a uma empresa hoteleira, que garantirá, por meio de contrato, àqueles multiproprietários, do direito de usar, por turnos, um apartamento em certo período do ano mediante concessão de um desconto no valor da diária reduzida a uma taxa de administração. Mas os multiproprietários deverão notificar a sociedade gestora sobre a sua intenção de usar daquela unidade imobiliária no período que lhe for concedido, ou em outro, desde que haja disponibilidade. Se o prazo que lhe foi dado para efetuar tal aviso expirar ou se o multiproprietário mostrar desinteresse pelo uso do apartamento, a empresa gestora o colocará a disposição de terceiro, mas descontará dos recursos que auferir os custos de administração do multiproprietário, que assim poderá fruir do bem. O hotel então hospedará clientes e também multiproprietários, que poderão inclusive desenvolver um sistema de intercâmbio, para permutar entre si as suas frações, em países ou locais diversos, formando um banco de trocas. 96
Existe ainda outra forma de multipropriedade hoteleira, a imobiliária, mediante venda de frações ideais do imóvel (hotel) e respectivo terreno, concedendo-se o uso exclusivo da unidade durante períodos de sete dias ( semana), em cada ano, conforme escritura pública e regulamento. Neste caso, trata-se de um condomínio, em que os condôminos firmam pacto de divisão da utilização exclusiva do apartamento por turnos semanais intercorrentes dispondo de serviços de hotelaria. Deve inventariar os imóveis da unidade, ressarcir à vista os danos que causar e, ainda, entregar o apartamento até 12 horas no último dia de uso. Na semana em que o apartamento não for utilizado pelo multiproprietário, ou for por ele cedido, pode ser colocado à disposição de terceiro pela administração a seu pedido, a preços conforme categoria do hotel, garantindo renda para o multiproprietário e uma taxa correspondente a
95 Ibidem., p. 4.
96 Idem.
20% do valor arrecadado em favor da administradora. Os dispêndios relacionados com a unidade habitacional, como os de bar, lavanderia, luz e telefone, devem ser arcados pelo multiproprietário ao final de cada temporada.97
A multipropriedade hoteleira, como visto, estimula a expansão do investimento, trazendo maior rentabilidade, por permitir que os apartamentos do hotel sejam utilizados o ano todo, evitando assim demissões de empregados por temporada. Favorece também o sistema de intercâmbio entre multiproprietários, que poderão permutar unidades em hotéis em diversos países.
97 Idem., p. 5.
VI. SISTEMA DE TEMPO COMPARTILHADO.
O sistema de multipropriedade mais interessante atualmente, e também segundo a opinião de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, é o Sistema de Tempo Compartilhado em Meios de Hospedagem de Turismo. Este se faz por meio de cessão, pelo prazo mínimo de cinco anos e a qualquer título, do direito de ocupação de suas unidades habitacionais, por períodos determinados do ano. Fazem parte integrante desse sistema: a) o empreendedor, entendido como titular do domínio e posse do Meio de Hospedagem de Turismo implantado ou em implantação, no qual, integral ou parcialmente, o sistema funcione; b) o comercializador, que é contratado pelo empreendedor para promover e comercializar o direito de ocupação em unidades habitacionais do Meio de Hospedagem de Turismo que tenha aderido ao sistema e nele funcione regularmente; c) operador, aquele que é responsável pela prestação dos serviços ajustados entre o empreendedor e o cessionário, na forma e qualidade por ele contratada, atendendo os pedidos de reservas efetuadas e zelando pela manutenção de regime de utilização dos espaços, bens e serviços, em conformidade com sua destinação; d) o administrador de intercâmbio, que é o encarregado da promoção e organização de permuta de períodos de ocupação entre cessionários de unidades habitacionais de distintos meios de hospedagem de turismo, que funcionem, no País ou no exterior, no Sistema de Tempo Compartilhado; e) o cessionário do direito de ocupação, que é detentor do uso e ocupação por determinado período de tempo, de unidade habitacional de determinado meio de hospedagem de turismo participante do sistema.98
VI.I. Funcionamento do contrato.
Competirá ao empreendedor do sistema: a) ceder o direito de ocupação, por um ou mais períodos e prazos determinados do ano, de uma ou mais unidades habitacionais do meio de hospedagem de turismo, devidamente mobilizada e equipada; b) permitir ao cessionário do direito de ocupação o uso dos espaços, coisas e serviços comuns do meio de hospedagem de turismo; c) operar, por si ou por terceiros, as unidades habitacionais, espaços coisas e serviços cuja utilização estiver compreendida na cessão, incluindo o regulamento correspondente, d) manter a unidade habitacional hoteleira, cuja ocupação for cedida e as demais instalações e serviços do empreendimento, em estado adequado para utilização; e)
98 Ibidem., p. 9.
cobrir as despesas operacionais das unidades habitacionais cujo direito de ocupação não tenha sido cedido ou das unidades temporais não cedidas; f) receber dos cessionários do direito de ocupação, diretamente ou por terceiros, correspondentes aos períodos de utilização por eles contratados.99
O comercializador do sistema deverá: a) oferecer e contratar em nome do empreendedor a cessão do direito de ocupação de unidades habitacionais em meio de hospedagem de turismo; b) divulgar de forma adequada os atributos do empreendimento e os serviços nele existentes ou a serem implantados; c) esclarecer os consumidores sobre as reais características da cessão do direito de ocupação e o conteúdo do respectivo contrato.100
Caberá ao operador do sistema; a) manter o regime de utilização dos espaços, bens e serviços conforme os seu destino; b) prestar os serviços ajustados entre o empreendedor e o cessionário na forma e qualidade por eles contratada; c) atender os pedidos de reservas dos períodos de ocupação das unidades habitacionais, observando os direitos dos cessionários e a prioridade das solicitações; d) verificar o cumprimento das obrigações dos cessionários, adotando as providências contratuais caso não ocorra; e) manter controle do registro dos cessionários, com a qualificação completa de seu contrato e lançamento de ocorrências; f) manter controle e documentação hábil de registros financeiros e contábeis; g) aplicar corretamente a taxa de manutenção paga pelos cessionários.101
Ao administrador de intercâmbio do sistema competirá: a) afiliar os meios de hospedagem de turismo segundo padrões por ele estabelecidos; b) aceitar os pedidos de associação dos cessionários do direito de ocupação de unidades em meios de hospedagem de turismo filiados que desejem utilizar a possibilidade de permuta: e) efetivar a permuta solicitada pelos associados segundo as regras constantes do contrato de associação: d) manter seus associados informados sobre os meios de hospedagem que integram a rede de intercâmbio e respectivas normas de permuta.102
O cessionário do direito de ocupação deverá: a) pagar o preço ajustado no respectivo contrato de cessão para exercer o direito de ocupação: b) pagar na forma, proporção e prazo ajustados, os valores correspondentes à taxa de manutenção estabelecida no contrato, ao empreendedor ou à sua conta; c) ocupar a unidade habitacional cedida ou permutada e os espaços, bens e serviços de uso de comum acordo com os regulamentos correspondentes. Os períodos de ocupação, por ano, nos quais o cessionário, por força do
99 Ibidem., p. 9.
100 Idem., p. 9.
101 Ibidem., p. 10.
102 Idem., p. 10.
respectivo contrato, poderá utilizar a unidade habitacional e os serviços comuns do meio de hospedagem de turismo poderão ser: fixos ou flutuantes; determinados em dias, semanas ou meses; específicos ou não, a determinado tipo e categoria de hospedagem e/ou unidade habitacional.103
VI.II. Contratos de tempo compartilhado.
Os contratos são instrumentos, públicos ou privados, pelos quais o empreendedor, cede por períodos o direito de ocupação de unidades habitacionais equipadas e mobiliadas em meios e hospedagem de turismo de seu domínio ou posse, permitindo o uso de seus espaços, bens e serviços comuns e assumindo a sua operação.104
Os empreendedores, operadores, comercializadores e administradores de intercâmbio de sistemas de tempo compartilhado só poderão funcionar no País após cadastramento na Embratur, mediante comprovação de capacidade jurídica, técnica e econômico-financeira compatível com as respectivas responsabilidades., na forma por ela estabelecida e verificada. O cadastramento é igualmente obrigatório para comercializadores de empreendimentos localizados no exterior. O cadastramento de empreendedores estará sujeito, ainda, a comprovação de: a) titularidade de domínio ou posse das unidades habitacionais destinadas ao sistema, por força de instrumento próprio devidamente registrado, e, no caso de meio de hospedagem, ter ônus real, averbação da anuência do credor à cessão do direito de ocupação das unidades habitacionais do sistema de tempo compartilhado: b) registro do sistema na matrícula do imóvel, com as características de funcionamento e o prazo para a implantação e duração, durante o qual a alteração de destinação implicará anuência de todos os cessionários de direito de ocupação. Esse cadastro poderá, a critério da Embratur, ser renovado, periodicamente, mediante a exigência das atualizações comprobatórias previstas.105 Os contratos de tempo compartilhado deverão conter, entre outras, cláusulas
referentes aos seguintes aspectos relativos aos bens e serviços:
a) descrição e identificação cadastral do meio de hospedagem; b) especificação dos bens e instalações previstos no projeto aprovado da obra; c) indicação da proporção de unidades habitacionais destinadas ao sistema; d) determinação dos espaços bens e serviços de ocupação e utilização privativa e comum; e) número máximo de pessoas que
103 Ibidem., p. 10.
104 Idem., p. 10.
105 idem., p. 10.
poderão ocupar as unidades habitacionais durante cada período de utilização; f) normas de utilização das unidades habitacionais, bens espaços e serviços de uso comum e respectivas sansões pelo seu não cumprimento; g) procedimento para implantação adicional de unidade habitacional, espaços, coisas ou serviços de uso comum; h) regras sobre casos de destruição parcial ou total dos imóveis e móveis relacionados; i) comprovação de seguro de cobertura contra risco de incêndio.106
Os contratos deverão regular de forma clara os seguintes direitos dos
cessionários:
a) continuidade do direito de ocupação no caso de transferência do imóvel, a qualquer título, ou de alteração total ou parcial de sua destinação; b) natureza e espécie do direito cedido e correspondente prazo de duração; c) procedimento para a transmissão dos direitos pelos cessionários; d) determinação, duração e categoria dos períodos de tempo cedidos e procedimentos para sua modificação e solicitação de disponibilidade pelos cessionários; e) regimes de deliberação e decisão sobre as questões relativas à gestão e utilização dos bens e serviços contidos na cessão; f) hipóteses de rescisão do contrato e seus efeitos para as partes. Os contratos deverão prever de forma expressa a possibilidade de os cessionários exercerem o direito de arrependimento previsto no art. 49 da Lei. 8.078/90, com devolução integral dos valores pagos ou entregues. Deverão prever, também, de forma expressa, a cláusula penal aplicável às rescisões por qualquer das partes, sem prejuízo da composição de perdas e danos.107
Os contratos de tempo compartilhado deverão, ainda, regular os seguintes aspectos relativos à operação dos bens e serviços cuja ocupação e utilização forem cedidas:
a) a forma de designação e alteração do operador, com respectivos direitos e obrigações, inclusive remuneração; b) determinação dos valores necessários para as despesas operacionais a serem pagos pelos cessionários e forma de pagamento correspondente; c) indicação de responsabilidade de pagamento das despesas operacionais no caso de períodos de ocupação não cedidos; d) previsão de fundo de reserva na taxa de manutenção estabelecida no contrato para manter o empreendimento no padrão ajustado; e) indicação das hipóteses em que poderá ser instruída taxa de manutenção extraordinária; f) indicação do valor dos serviços não incluídos no direito de ocupação e das despesas operacionais ou fundo de reserva; g) procedimentos para aprovação de eventual alteração da taxa de manutenção, h) normas
106 Ibidem., p. 11.
107 Idem,. p. 11.
relativas a encargos moratórios e penalidades; i) cobertura contra incêndio.108
Xxxxx Xxxxxx Xxxxx alerta que serão consideradas nulas, sujeitando seus responsáveis às penalidades previstas em lei, as cláusulas abusivas, as propagandas enganosas, a estratégia de venda que venha a iludir o consumidor e a cobrança de serviços cujas condições não estejam convenientemente e suficientemente explicadas para os consumidores e cessionários, o que será analisado em maior profundidade em capítulo próprio sobre a aplicação do direito do consumidor nesta relação.109
A vedação de mudança da destinação, prevista no instrumento registrado que instituir o sistema, não impede que o empreendedor comercialize, de outro modo, os períodos de tempo que não forem cedidos sob o regime de tempo compartilhado. Tal alteração do instrumento, observando o procedimento aplicável, deverá ser igualmente registrado junto à matrícula do imóvel.110
O sistema será extinto “caso seja implantado no prazo previsto no respectivo instrumento registrado de instituição, cabendo, neste caso, a restituição integral dos valores pagos pelos cessionários até então constituídos, com atualização e juros legais. A extinção também ocorrerá se rescindidos todos os contratos, ou por vencimento do prazo de duração previsto no instrumento registrado da instituição.”111
VI.III. Obrigações do empreendedor e dos cessionários.
São obrigações do empreendedor:
a) manter os serviços e a afiliação a administrador e intercâmbio previstos no instrumento registrado de instituição; b) observar as características técnicas e os prazos contratuais, em caso de meios de hospedagem em construção, oferecendo garantia de sua implantação;
c) defender os cessionários contra eventuais esbulhos ou turbações de posse; d) cumprir ou fazer cumprir as obrigações impostas ao operador do sistema; e) informar ao administrador do intercâmbio as cessões havidas, até trinta dias após sua formalização; f) colocar à disposição dos cessionários unidade habitacional alternativa no empreendimento ou outro no mesmo destino, com características e categoria semelhantes caso a cedida não esteja disponível; g) exigir do
108 Ibidem., p. 12.
109 Idem., p. 12.
110 Idem., p. 12.
111 Idem., p. 12.
comercializador o cadastramento, o treinamento de seu pessoal de vendas, bem como a elaboração e cumprimento de um Manual Ético de Venda ao Consumidor; h) comunicar aos cessionários a constituição de ônus real ou a instituição de penhora sobre o imóvel de situação do meio de hospedagem ou sobre os direitos de ocupação e utilização, e o ajuizamento de ações judiciais que possam, direta ou indiretamente, afetar o instrumento registrado de instituição do sistema ou os contratos de cessão. O pessoal de vendas é considerado, para todos os efeitos legais, preposto do comercializador, respondendo este e, subsidiariamente, a empresa responsável pela sua contratação por todos os atos de oferta e comercialização que praticarem em desacordo com o Código de Defesa do Consumidor e com a legislação de turismo em vigor.112
Os cessionários deverão:
s) declarar expressamente o conhecimento e aceitação das condições de cessão; b) ocupar e utilizar os bens e serviços conforme o seu destino; c) não exceder o número de ocupantes previstos no contrato;
d) permitir o acesso do pessoal de limpeza, manutenção e administração do meio de hospedagem; e) comunicar qualquer dano dos bens e por ele responder quando o causar por si, seus acompanhantes ou pessoas que hajam autorizado; f) desocupar na data e horário previstos a unidade habitacional; g) comunicar toda cessão temporal ou definitiva de seus direitos, observando o procedimento contratual previsto; h) pagar pontualmente a taxa de manutenção estabelecida no contrato; i) manter ficha cadastral atualizada. Eventual falha no serviço não poderá ser causa para o descumprimento da obrigação, o qual impedirá os cessionários de exercerem o direito adquirido. O empreendedor e, subsidiariamente, o comercializador são responsáveis perante o cessionário pela legitimidade para ceder os direitos previstos no sistema pela entrega dos bens e serviços contratados e pela restituição de valores recebidos que devam ser devolvidos. A responsabilidade subsidiária ocorrerá ao tempo de celebração do contrato.113
VI.IV. Regras gerais aplicadas ao contrato.
O contrato de time-sharing apresenta, de modo geral, algumas características:
a) imposição ao multiproprietário do uso do bem, dentro dos limites temporais concedidos para fim turístico-habitacional; b) obrigação do titular de conservar e zelar pelo imóvel, respondendo por perda e deterioração; c) a impossibilidade de alteração da unidade imobiliária; d) restituição do bem ao término de sua utilização, no dia e na hora avençados; e)
112 Idem., p. 12.
113 Ibidem., p. 13.
divisão temporal do uso do imóvel: f) regência pelo princípio da boa-fé objetiva; g) possibilidade de direito de arrependimento imotivado em certo lapso temporal aos multiproprietários; h) proibição do uso do método de marketing agressivo pelo fornecedor do time-sharing; i) prestação por parte do fornecedor de informações claras sobre: as modalidades de multipropriedade; os serviços conexos; as unidades habitacionais; os custos do sistema de permuta; as taxas a serem pagas; as sanções por inadimplemento contratual; j) redação precisa do contrato de adesão, destacando-se as cláusulas restritivas dos direitos dos multiproprietários; k) cooperação dos contratantes para o cumprimento do contrato, por exemplo, pagando o valor das taxas de administração e as mensalidades, estabelecendo horários e locais compatíveis para o pagamento, permitindo o uso do time-sharing; abstendo- se de exigir novos pagamentos ou de praticar atos que possam impedir a prestação contratada;
l) interpretação das cláusulas contratuais duvidosas em favor do multiproprietário (CDC, art. 47); m) preservação da equivalência contratual, podendo-se para tanto socorrer-se do controle judicial (CDC, art. 51); n) vedação, sob pena de nulidade absoluta, de cláusulas abusivas, como a que restringir uso de serviços ligados ao complexo de lazer, a que estipular perda do quantum pago; a que permitir rescisão unilateral pelo fornecedor do time sharing etc.114
A multipropriedade não se rege pelas normas condominiais, embora a ela se possa aplicar, por analogia, os princípios norteadores da Lei nº 4.591/1964 e do Código Civil de 2002, como o dever: a) de concorrer na proporção da fração ideal no rateio das despesas;
b) de respeitar não só os direitos decorrentes do regulamento do empreendimento sobre as partes comuns a todo completo imobiliário, e a unidade exclusiva durante aquele período do ano, como também as relações pessoais entre administrador e multiproprietário e as relações entre os multiusuários; c) de observar os direitos de vizinhança.115
A multipropriedade imobiliária rege-se pelo princípio Nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, ou seja, o gozo e a disposição da res estão limitados pela extensão espaço temporal e se reduzem à unidade habitacional do turno determinado em pacto expresso no calendário. Há uma cooperação recíproca entre os multiproprietários para que o imóvel tenha aproveitamento econômico e exerça sua função social e entre o proprietário e os multiusuários por se tratar de uma obrigação propter rem. Não pode haver, portanto, relação jurídica da multipropriedade sem que se tenha vários titulares e um imóvel sobre o qual tenham, ad tempus, uma fração ideal. Há propriedade exclusiva e copropriedade.116
114 Idem., p. 13.
115 Ibidem., p. 14.
116 Ibidem., p. 15.
Observa Xxxxxx de Salvo Venosa que:
A multipropriedade cria um direito sui generis de usar, gozar e dispor da propriedade, cuja limitação não é apenas condominial, mas também temporal. Como a vínculo jurídico de natureza real, a lei deve regular a possibilidade de registro dessa nova modalidade de propriedade em nome de cada condômino fracionário. Enquanto isso não ocorrer, procurar-se-á contornar dificuldades, estabelecendo um multicondomínio, com relações pessoais entre condôminos e o administrador. Para fins de registro estabelece-se a propriedade tão só do administrador ou propriedade em condomínio pro indiviso entre vários multiproprietários (...) Não se pode tratar juridicamente o fenômeno como um singelo condomínio pro indiviso, pois sob este regime o condômino poderia a qualquer momento pedir a extinção do estado de indivisão, faculdade imprescritível e potestativa. Entendendo-se que se aplica subsidiariamente a lei condominial, afasta de plano essa situação teratológica.117
117 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. São Paulo: Atlas, v. 5. 2003, p. 326.
VII. REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL E DEFESA AO CONSUMIDOR.
Na Europa, em razão da multipropriedade ser um comércio voltado às massas, principalmente no ramo do turismo internacional, a proteção a esses consumidores é causa de preocupação. Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx comenta esta afirmativa:
O consumo internacional é hoje um fenômeno de massas, basta pensar no turismo sazonal, no time sharing, com seus círculos de trocas internacionais, nos pacotes turísticos para grandes festas, nos transportes aéreos, nos cruzeiros marítimos, etc. [...] A doutrina européia alerta desde a década de 80 e, especialmente na década de 90, que o turismo de massa é um dos setores econômicos que mais cresce na União Européia e que a defesa do consumidor se faz necessária até mesmo como instrumento harmonizador da concorrência.118
Ainda, de acordo com Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx: “A constatação que nos leva querer estudar os contratos de time-sharing sob a ótica da proteção dos consumidores é que vivemos um momento de mudanças, não só legislativa, mas política e social. Os europeus estão a denominar este momento de rompimento (Umbrunch), de fim de uma era e início de algo novo, ainda não identificado. É a crise da era moderna e seus ideais concretizados na revolução francesa, de liberdade, de igualdade e de fraternidade, que não se realizam para todos, nem são hoje considerados realmente realizáveis, onde desconfia-se de sua força e suficiência para servir de paradigma à organização das sociedades democráticas atualmente em um capitalismo neo-liberal bastante agressivo, com fortes efeitos perversos.119 Vivemos um momento de mudança também no estilo de vida, da acumulação de bens materiais, passamos a acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar, para os contratos de fazer, do modelo imediatista da compra e venda para um modelo duradouro da relação contratual, da
118 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. A insuficiente proteção do consumidor. IN: Direito do consumidor: vulnerabilidade do consumidor e modelos de proteção / Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxx organizadores. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. - (Coleção doutrinas essenciais; v. 2). p. 1106.
119 Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, “Uma Visão Crítica da Modernidade”, IN: Cadernos de Sociologia, v. 5, p. 36-37. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 66.
substituição, da terceirização e das privatizações, de relações meramente privadas para as relações particulares de iminente interesse social ou público.120
O contrato de time-sharing é considerado por Xxxx Xxxxx como:
o paradigma de contrato da época pós-moderna, uma vez que o contrato de multipropriedade possui uma série de características que podem ser classificadas como pós-modernas, a começar por seu objeto que é o lazer temporário, o uso de um imóvel em área turística e serviços conexos, por uma semana ou duas no ano. Também há que se destacar a natureza dos direitos assegurados aos consumidores, direitos múltiplos, mas nem todos de natureza real, já que a multipropriedade no mais das vezes não transfere e nem envolve direitos de propriedade, só direitos reais de uso. Estes direitos limitados de uso aliados à grande quantidade de serviços anexos prestados podem mesmo permitir tipificar este contrato como preponderantemente um contrato de fornecimento de serviços.121 Outra característica importante é a multiplicidade de agentes que envolvem este fornecimento de serviços e a fruição dos direitos de uso assegurados pelo contrato de time-sharing, desde o organizador (o incorporador ou verdadeiro proprietário do imóvel e do complexo turístico), simples vendedor, o verdadeiro proprietário, o administrador do imóvel e do complexo de turismo, os fornecedores diretos da alimentação, de passeios, etc. É muitas vezes um contrato “sem fronteiras” ou internacional, pois as áreas e complexos turísticos muitas vezes localizam-se em outro país que o de domicílio ou nacionalidade do consumidor e a participação de “Círculos de Trocas Internacionais” torna possível que a fruição do direito de uso temporário dê-se em qualquer parte do planeta.122
O que caracteriza ainda mais o contrato de time-sharing como paradigmático da era pós moderna, são as próprias expectativas múltiplas dos consumidores-clientes ao concluírem estes contratos. Não se pode afirmar que o time-sharing vise apenas alcançar e usufruir diretamente um tempo de férias e um imóvel próprio localizado em área turística. Os contratos de time-sharing são usados pelos consumidores visando usufruir férias em determinado local, assegurando que poderão trocar de local de férias quando desejarem, tornando-o um contrato nacional com características internacionais e, por fim, podem ser
120 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 67.
121 XXXXX, Xxxx. “Europäisches Schuldvertragsübereinkommen, vergleichendes Übersetzen, Time-Sharing - Verträge”, in IPRAX 1995, p. 135 apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 69.
122 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 69.
usados como simples contrato de investimento, sem que o consumidor tencione jamais usufruir pessoalmente dos direitos assegurados pelo contrato.123
VII.I. Contratos nacionais e internacionais de time-sharing.
Muitas vezes o contrato de time-sharing pode ser considerado internacional, pois oferecem ao consumidor a possibilidade de utilização de imóveis turísticos fora do território nacional:
Os contratos de time-sharing apresentam vários elementos de estraneidade ou estrangeiros e muitas vezes podem ser considerados contratos internacionais, o que dificulta ainda mais uma efetiva proteção dos consumidores neste tipo contratual. Muitas vezes os imóveis, os complexos hoteleiros ou de lazer, cuja fruição é oferecida através de contratos de multipropriedade localizam-se em áreas de turismo fora do território de domicílio ou de nacionalidade do consumidor. Assim, no território brasileiro, oferece-se através de campanhas agressivas de marketing e vendas contratos de time- sharing que asseguram o uso de imóveis localizados em Punta del Este, Uruguai, ou na Argentina, enquanto oferece-se para consumidores argentinos, contratos de multipropriedade envolvendo o uso de imóveis localizados nas praias brasileiras. Os sujeitos envolvidos também podem ser estrangeiros, como no caso de um time-sharing vendido em Porto Alegre, Brasil, por um incorporador, em nome de uma sociedade proprietária e administradora argentina, de um complexo de lazer localizado no Uruguai. Os próprios contratos encontram-se em espanhol e com tradução em português.”124
O time-sharing foi definido por Xxxx Xxxxx como um contrato “sem fronteiras”, o que bem denomina sua tendência internacional.125
VII.II. As Diretivas Européias.
A comunidade européia, visando melhor regulamentar a multipropriedade, editou a Diretiva Européia 94/97/CE, regulando alguns aspectos de proteção ao consumidor:
123 XXXXX, Xxxx. Recueil des Cours, p. 247. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 69.
124 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 74.
125 Idem. p. 74.
a comunidade Européia, preocupada com a intensa expansão das multipropriedades na Europa e, principalmente, por serem os proprietários provenientes de vários países, em 24 de fevereiro de 1993, editou a Diretiva Européia DE 94/97/CE. Esta, embora reconhecendo a forte lacuna do setor multiproprietário, tem como principal objetivo regulamentar e tutelar os contratos multiproprietários, que possuem características de contrato de consumo126. Deixando de regular os demais aspectos da multipropriedade.127
Dentre as disposições desta Diretiva Européia, os pontos mais importantes, de acordo com Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, são:
O primeiro ponto que gostaríamos de ressaltar é a presença de um extenso rol de elementos mínimos a ser inserido nas cláusulas do contrato, especialmente a alínea l, que trata da informação sobre os direitos de resolução e de rescisão dos contratos, a indicação de uma pessoa que deverá ser notificada em caso de uma eventual resolução ou rescisão, a indicação da ou das modalidades nas quais a notificação deverá ser feita, a indicação da natureza e do montante das despesas que o adquirente deverá reembolsar em conformidade com o terceiro travessão do artigo 5 da referida normativa, além de informações sobre as formas de como resolver o contrato de crédito ligado ao contrato nos casos de resolução ou de rescisão do contrato principal. Outro ponto relevante são os prazos de reflexão, mesmo em que a assinatura do contrato foi realizada do estabelecimento comercial do fornecedor.128
Como este mercado continuou a se desenvolver e a se diversificar, essa diretiva não mais se demonstrava em sintonia com o mercado. Em decorrência disso, foi sancionada uma nova diretiva, em substituição à supramencionada, de número 2008/122/CE.129 “O que há de se destacar nesta nova diretiva é a necessidade de apresentação de uma maior gama de informações pré-contratuais tendo algumas delas efeitos vinculativos futuros se não forem expostas por escrito ao consumidor.130
A necessidade do contrato ser em idioma de acesso mais fácil ao consumidor foi mantida, já os prazos de reflexão, resolução imotivada e por déficit de informação foram
126 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 70 e s.
127 Xxxxx Xxxxxxxxx. la proprietà. IN: Il diritto private dell’unione Europea, a cura di Xxxxxxx Xxxxxxxx. Tratatto de Diritto Privato, a cura de Xxxxx Xxxxxxx, vol. XXVI, Torino: GIappicheli Editore, 1998, p. 245. apud VIEGAS DE LIMA, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. opc. cit., p. 79.
128 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. O Contrato de time-sharing e o direito do consumidor. IN: Revista de Direito do Consumidor. v. 77. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 166.
129 Ibidem., p. 167.
130 Ibidem., p. 168.
elevados. Foi introduzido um novo prazo para a hipótese do formulário normatizado prevendo as hipóteses de resolução não ser ofertado, por escrito, ao consumidor. A nova diretiva veda a retenção de valores decorrentes em decorrência do termo do contrato e também a cobrança de sinal até findado prazo de resolução contratual.131
Um ponto de grande relevância, trazido por esta diretiva, é a possibilidade de sua utilização em contratos que sejam celebrados em país terceiro, que tenham como objeto imóveis em algum Estado-Membro ou no caso de um contrato não diretamente relacionado a bens imóveis e o profissional exercer a atividade comercial ou profissional em um Estado- Membro, ou por qualquer meio dirigir esta atividade para um Estado-Membro, e o contrato estiver abrangido por esta atividade.132
VII.III. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
A defesa ao consumidor, conforme o lecionado por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, é muito relevante à multipropriedade, pois, como já visto, este contrato carece de legislação específica, gerando graves distorções em sua execução.
Em tempos pós-modernos é necessário uma visão crítica do direito civil tradicional, é necessária uma reação da ciência do direito, impondo uma nova valorização da boa-fé objetiva, como paradigma limitador da autonomia da vontade, e dos instrumentos tradicionais do direito civil, os quais podem levar à opressão dos mais fracos na sociedade. Tempos de pensar na proteção da vontade do consumidor, como ideal utópico remanescente da metanarrativa da modernidade. Tempos de alterar o ponto de concentração do direito civil e pensar no grupo que recebe as declarações, na confiança despertada pela atuação profissional dos fornecedores e não só em estabelecer normas que privilegiam aquele que declara, aquele que redige os contratos massificados, aquele que impõe seus métodos de marketing agressivos ou emotivos de venda. A liberdade contratual do profissional não é a única a merecer proteção jurídica, pois sua posição de poder (Machtposition) nas tratativas contratuais é clara e intrínseca aos métodos contratuais atuais, mas, sim, concentra-se o direito na liberdade do outro, nesta liberdade que tende a ser reduzida, quase aniquilada e que deve, portanto, merecer igual proteção. A liberdade do consumidor é que deve ser protegida, sua autonomia de vontade, racional e efetiva. São tempos de relações contratuais múltiplas, despersonalizadas e a durar no tempo e estender-se a toda uma cadeia de fornecedores de serviços e produtos. Tempos que impõem uma
131 Idem., p. 168.
132 Idem., p. 168.
visão de obrigação como processo muito mais complexo e duradouro do que uma simples prestação contratual, um dar e um fazer momentâneo entre parceiros contratuais teoricamente iguais, conhecidos e escolhidos livremente.133
No Brasil ainda não há a mesma preocupação demonstrada pelos europeus em regular o contrato de time-sharing. Só o que temos são a Deliberação Normativa Embratur 398/1992 e o Código de Defesa do Consumidor.
Essa deliberação da Embratur buscou deixar claro o enquadramento de todas as relações turísticas fornecidas a destinatário final como uma relação de consumo, ficando estas relações jurídicas, inclusive o time-sharing, subordinadas ao Código de Defesa do Consumidor.134
A Organização Mundial das Nações Unidas - ONU também preocupada em regulamentar essa nova relação jurídica, elaborou a Resolução de número 39/248, de 10.04.1985 com o objetivo de dar mais proteção aos consumidores em geral, porém, quatro de seus pontos se dirigem diretamente ao contrato de time sharing:
No ponto 1, alínea c, assevera que um dos objetivos da tutela do consumidor é incentivar altos níveis de conduta ética, para aqueles envolvidos na produção e distribuição de bens e serviços para os consumidores. A conduta altamente apelativa e emocional deve ser reprimida, sendo substituída por informações e prazo de reflexão adequados, almejando uma tomada de decisão pensada e refletida. Já o ponto 3, alínea b relata tutela e fomento dos interesses econômicos do consumidor. O terceiro ponto é o número 19, versa sobre a proteção do consumidor contra abusos contratuais tais como contratos-padrão unilaterais, exclusão de direitos essenciais em contratos e condições inescrupulosas de créditos pelos consumidores. Os três pontos tocam diretamente o contrato de time sharing, reforçando o quanto lesiva pode ser celebrar uma relação contratual sem a devida reflexão do consumidor. O quarto e último ponto da resolução, de número 20, é o que se relaciona com o ponto de maior conflito desta relação, que é a técnica de venda do time-sharing. O ponto informa que “promoções de venda e técnicas de venda devem ser guiadas pelo princípio do tratamento aceitável para o consumidor e devem preencher os requisitos legais. Com esta finalidade, a divulgação de informações é necessária a fim de permitir que os consumidores tomem decisões esclarecidas e independentes, assim como também são necessárias as medidas que assegurem a precisão das informações fornecidas”.135
133 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores: crítica ao direito civil em tempos pós-modernos. IN: Revista de Direito do Consumidor. vol. 22, São Paulo: 1997. p. 64.
134 Ibidem., p. 169.
135 Ibidem. 171 p.
No âmbito do turismo, é encorajado pela Organização Mundial do Turismo, vinculada à ONU, a utilização do Código Mundial de Ética para o Turismo.136
Esta norma menciona ideias gerais sobre o adequado tratamento do turismo nas diferentes vertentes e possuindo, em seu art. 6.º, como obrigação dos agentes de desenvolvimento turístico, dentre outras, “manter com absoluta transparência as cláusulas dos contratos que proponham a seus clientes, tanto quanto a natureza, ao preço e a qualidade dos serviços, estipulando compensações financeiras no caso da ruptura unilateral dos contratos pela não prestação de serviços contratados”, além de “se ater com segurança, prevenção de acidentes, e as condições sanitárias e da higiene dos alimentos daqueles que buscam seus serviços” sendo, portanto, mais uma norma passível de diálogo na análise de casos versando sobre time-sharing.137
Graças a definição ampla de seu campo de atuação, a doutrina majoritária atual é a favor da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de time-sharing ou multipropriedade.138
Aplicar o Código de Defesa do consumidor significa garantir um patamar mínimo de boa-fé objetiva (art. 4º, III do CDC).139
VII.IV. A proteção à vontade refletida e racional do consumidor.
Observa-se, de acordo com Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, que as técnicas legislativas usadas para proteger o consumidor em matéria de contrato de time-sharing visam inicialmente a garantir uma nova proteção da vontade dos consumidores, isto é, “garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco. Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de venda, como os convites para festas e reuniões onde distribuem-se bebidas alcóolicas, visitas
136 Disponível em: [xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/xxxx_xxxx/xx/xxx/Xxxxxxxx.xxx]. Acesso em 21 de março de 2012
137 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., 172 p.
138 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 76.
139 XXXXXX XX, Ruy Rosado de., A boa-fé na relação de consume. IN: Direito do Consumidor, p. 14-20. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 76.
organizadas e gratuitas aos locais de lazer, oferecimento de prêmios e jogos, visitas dos vendedores, telefonemas e contatos reiterados para fazer pressão.140
A decisão irrefletida, não preparada, emocional do consumidor está ligada faticamente a uma série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais de superindividamento, insolvência, abusos contratuais, frustação das expectativas legítimas etc. As vendas de time-sharing geralmente ocorrem através de métodos agressivos de marketing e contam com a decisão irrefletida e emocional do consumidor.141
Xxxxxx Xxxxxxx, em sua Tese de doutorado de 1988, chamou essa “nova autonomia” refletida e qualificada de vontade racional (vontade rationnelle).142
O Código de Defesa do Consumidor, em defesa a essa autonomia, para assegurar uma decisão fundada no conhecimento de todos os elementos dos contratos, em particular do preço, das taxas extras, das condições e garantias exigidas, das cláusulas limitativas e penais inseridas, dos verdadeiros direitos assegurados pelo contrato. É nesta ótica que o art. 46 do CDC prevê a possibilidade de requerer ao juiz, em detrimento do fornecedor, a liberação do consumidor do vínculo contratual, isto é, a não oponibilidade do contrato ao consumidor, se ao consumidor não foi dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo contratual antes da assinatura deste. O conhecimento prévio do texto do contrato e das obrigações nele contidas, em português, é considerado condição essencial para a formação de uma vontade realmente livre, consciente, “racional”.143
A lei brasileira prevê um direito de reflexão e arrependimento somente em caso de contratos concluídos fora do estabelecimento comercial (art. 49 do CDC), por exemplo, como no caso de venda a domicílio ou por telefone etc. No Brasil, se podemos de um lado concluir pela intenção do legislador do Código de Defesa do Consumidor de proteger a “vontade racional” nos contratos fora do estabelecimento comercial, é necessário interpretar esta norma do art. 49 do CDC de forma aberta, para poder incluir os mais variados métodos de contratação emocional em matéria de time-sharing e o marketing direto. Muitos desses métodos agressivos de convencimento e
140 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 77.
141 Idem., p. 77.
142 XXXXXXX, Xxxxxx, “Le contrat de consummation de credit et l’autonomie de la volonté”, IN: Bibliothèque de Direito Privé. Paris: LGDJ, 1988, t. CXCIX, p. 216. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 77.
143 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 78.
estratégias de venda são executados dentro do “pretenso” ou aparente estabelecimento comercial do organizador de vendas ou projeto de lazer, em festas, em reuniões e com distribuições de pretensos prêmios gratuitos.144
Assim tem decidido a jurisprudência brasileira sobre o tema:
Contrato particular de promessa de compra e venda de Fração ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utilização por períodos anuais. Tempo compartilhado. Cláusulas abusivas. Decretação de nulidade de ofício. Direito de arrependimento. CDC. art. 49. Desconhecimento das cláusulas relativas ao uso do imóvel.
1. O juiz pode decretar de ofício a nulidade de cláusulas abusivas estipuladas em contratos abrangidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Hipótese em que houve pedido expresso dos autores.
2. Para o efetivo exercício do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC, equipara-se a contratação realizada fora do estabelecimento comercial, aquela em que o consumidor, comparecendo em local indicado pelo fornecedor, em razão da estratégia adotada, e submetido a forte pressão psicológica que o coloca em situação desvantajosa, que o impede de refletir e manifestar livremente sua vontade. Hipótese em que o consumidor, atendendo convite por telefone, assiste a apresentação do empreendimento mediante explanações e exibição de vídeo durante aproximadamente três horas, sendo obsequiado com coquetel, assina contrato que somente lá pode ser examinado.
3. Não obriga o consumidor o contrato celebrado, em que as cláusulas relativas ao uso do imóvel adquirido pelo sistema de tempo compartilhado constam do Regulamento que somente lhe foi entregue depois da assinatura do contrato. Recurso desprovido.145
Como visto, uma boa forma de combater os métodos agressivos de marketing é assegurar algum lapso de tempo para o direito de arrependimento. Só assim estará protegido o direito do consumidor a uma decisão racional e bem informada.
Para que exista boa-fé, pressupõe-se uma relação de transparência entre as partes. Assim compreendeu a jurisprudência brasileira:
Contrato de multipropriedade. Promessa de compra e venda de fração ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utilização por períodos anuais. Direito de arrependimento. CDC. Art. 49. Prática comercial agressiva.
144 Ibidem., p. 78.
145 Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Recurso n. 196115299. Desembargadora Relatora Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx. Publicado em 10.09.1996.
1. O direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC tem por escopo proteger o consumidor da prática comercial agressiva que impede de refletir e manifestar livremente a vontade.
2. Conquanto celebrado na sede do fornecedor, e de assegurar ao consumidor o direito de arrependimento também aos contratos cuja formulação foi antecedida de prática comercial agressiva que o coloca em situação de desequilíbrio que não lhe permite refletir. Hipótese em que a oferta é feita em ambiente que mais aparenta uma reunião social durante a qual o consumidor é submetido a forte pressão psicológica que enfraquece seu poder de avaliação das condições e conveniência do negócio. Recurso improvido.146
Como já comentado sobre as diretivas européias, este direito de arrependimento é de 10 dias e pode alcançar três meses em caso de falha na informação ao consumidor ou na redação dos contratos de adesão.
VII.V. O diálogo das fontes.
A ideia de uma busca de dialogo de normas e não de um conflito entre destas foi criada por Xxxx Xxxxx, que a chamou de diálogo das fontes.147
Dada a pluralidade de normas que tratam o time sharing no Brasil, indo desde o Código Civil, com suas regras gerais de contratos, inclusive atípicos, como é o caso, perpassando pelas normatizações setoriais, chegando ao Código de Defesa do Consumidor, que é o microssistema das relações de consumo148, todos iluminados pelo texto constitucional149, podemos entender que estas normas devem ser utilizadas para possibilitar o uso harmônico, equânime e ponderado das normas envolvidas, e não simplesmente escolher uma delas e utilizá-la como padrão para a solução do conflito.150
Argumenta Ardyllis que a “incidência direta da diretiva européia em contratos celebrados aqui no Brasil, desde que tenha elementos de interconexão europeia deixa claro a necessidade e a utilização desta forma harmonizada de análise legislativa, pois, neste caso, de
146 Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Desembargadora Relatora Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx. Recurso n. 196233506. Publicado em 17.12.1996.
147 XXXXX, Xxxx. Identité culturelle et integration: le droit internacionale privé postmoderne: cours general de droit internacional privé. Recueil des cours: collected courses of the Hague Academy of International Law. Kluwer Law International: Hague, 1995. vol. 251, p. 259 apud XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 173.
148 Sobre a migração do monossistema do Código Civil aos microssistemas: XXXXXXXX, Xxxxxxx. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 277-279. apud XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 173.
149 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx X.; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. Manual de direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Ed. XX, 0000. p. 112.
150 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 173.
forma alguma poderá ser afastada a incidência do CDC, nem tampouco a teoria geral dos contratos encontrada no Código Civil, por se tratar de um contrato atípico.”151
A autora comenta que são vários os dispositivos do Código de Defesa do consumidor onde existe um efetivo diálogo entre com o contrato de time sharing, como a vulnerabilidade presumida do consumidor (art. 4º) e o direito à informação clara (art. 6º, III). O art. 7º é de vital importância para o contexto de diálogo das fontes. No caso do consumidor ser vítima de um dano físico em uma das instalações objeto do contrato, está configurada afronta ao art. 14, que trata de fatos do serviço, já se a ofensa for em virtude da qualidade ou quantidade do serviço, pode ensejar abatimento do preço pago de acordo com o art. 20.152
É possível, inclusive a desconsideração da personalidade jurídica por abuso, excesso de poder, afronta à lei, dentre outros, como ocorreu em um caso153 em que o empresário era proprietário de alguns entes da cadeia de consumo, existindo, na realidade, uma quase fictícia cadeia de consumo.154
A oferta do time sharing tem especial atenção em três artigos. O primeiro é o artigo 30 do CDC, que trata da vinculação de publicidade, escritos, declarações ou semelhantes ao contrato. Esta vinculação está ligada à boa-fé do fornecedor, a qual deve se pautar tuda a sua atuação.155
O segundo é o artigo 31 do CDC, sobre oferta. Este artigo demonstra sintonia com a diretiva européia, pois, a língua é um fator importante e, como sabemos, o português é uma das línguas oficiais da União Européia.156
Por último, a questão da solidariedade na responsabilidade dos fornecedores por atos de seus prepostos e seus representantes autônomos, localizada no artigo 34 do CDC.157 Xxxxxxx Xxxx Marques acrescenta que esta solidariedade presumida pode ser usada para suspender o pagamento de boletos de cartões de crédito usados para garantir o pagamento futuro do time-sharing, caso o consumidor queira rescindir ou o inadimplemento por parte dos fornecedores esteja sendo discutido judicialmente.158
151 Idem., p. 173.
152 Ibidem., p. 174.
153 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação n. 70030122691. Desembargador Relator Xxxxxx Xxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxx, DJ 04.08.2009.
154 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 175.
155 Idem., p. 175.
156 Idem., p. 175.
157 Idem., p. 175.
158 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 83.
A ponta da cadeia, aquele que tem o primeiro contato com o consumidor, cuja função muitas vezes é somente seduzi-lo para a celebração do contrato, e certamente a sua lucratividade está baseada na captação, não medirá esforços neste sentido, não importando os artifícios. Por este tipo de comportamento é que o contrato principal responderá solidariamente pela conduta de seus representantes.159
O Código de Defesa do Consumidor ainda prevê defesa contra publicidade enganosa e práticas abusivas, previsto no art. 39, destacando-se o inc. IV que é prevalecer-se da fraqueza do consumidor, um dos casos mais recorrentes é o seguinte:
Podemos mencionar o caso de consumidores que contratam o serviço e, em razão da celebração deste, ganharam um pacote extra para usufruir das instalações contratadas, devendo a reserva ser efetuada em um lapso temporal pré-determinado. Entretanto, todas as vezes que desejavam fazer sua reserva era dito a eles que seria impossível no momento, em virtude da ocupação completa do imóvel hoteleiro e assim, havendo a mesma informação por meses, inviabilizando a utilização do objeto do pacote do contrato.160 Outra prática reiterada é a não oferta do contrato por parte do fornecedor para uma leitura prévia, detalhada, responsável do consumidor. Esta conduta não vincula o consumidor a este contrato por não ter tido o efetivo acesso às suas cláusulas. E mesmo nos casos em que esta disponibilização for realizada e o contrato celebrado, a interpretação de sua cláusulas será sempre mais favorável ao consumidor, conforme estabelecem os arts. 46 e 47 do CDC.161
Também se aplica o tratamento contra cláusulas abusivas prevista nos artigos 51 e 52 do CDC: “o primeiro em geral e o segundo quando houver outorga de crédito ou concessão de financiamento para a celebração do contrato, haja vista que todo o conteúdo dos incisos considerados abusivos podem plenamente ser inseridos em um contrato de time- sharing.”162
O art. 54 do CDC trata dos contratos de adesão, de forma massificada e padronizada, que também se aplica ao time-sharing. Também é relevante lembrar que a aplicação do CDC permite a defesa coletiva do consumidor em juízo, uma forma eficiente de proteção.
159 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 175-6.
160 MAMEDE, Gladston. Direito do consumidor no turismo. São Paulo: Atlas, 2004. p. 111-113 apud XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 176.
161 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. op. cit., p. 176
162 Idem., p. 176.
XXX.XX. Os poderes e deveres na ótica consumerista.
De acordo com Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, “os poderes conferidos aos consumidores nos vários tipos de contratos de time-sharing ou multipropriedade podem ser assim identificados: a) direitos de mero uso compartilhado do imóvel e serviços diversos; b) raramente direitos de co-propriedade ou propriedade ou propriedade parcial ou compartilhada em bem indivisível; c) direitos de participação em associação ou condomínio conexos a direitos de uso de propriedade imobiliária da associação; d) direitos de troca dos direitos de uso e aluguem do imóvel que seria usado; e) direitos pessoais quanto aos serviços conexos à fruição do espaço de lazer ou de hotelaria que é objeto de alguns tipos de time-sharing.163
Assim, o contrato de time-sharing é, em sua essência, uma relação contratual visando a aquisição de um direito de habitação temporária ou compartido, que pode envolver direitos de uso, mas nem sempre envolve a propriedade ou a multipropriedade, como parece querer afirmar seu próprio nome.164
Para atingir uma patamar mínimo de boa-fé em todas as relações contratuais, frisa do Código de Defesa do Consumidor brasileiro a existência não somente do dever de prestação adequada e com qualidade dos fornecedores, mas também a existência de uma série de deveres básicos de conduta positiva. “O Código de Defesa do Consumidor regula, assim, a relação contratual em sua totalidade, mesmo o seu momento preparatório, onde desde já exige deveres de conduta leal, e no seu momento de execução. No momento preparatório impõem deveres de informação clara e correta (art. 30 e 31 do CDC), e sob pena das informações mal prestadas poderem ser exigidas (art. 20 e 35 do CDC), isto é, do fornecedor ter de realizar as expectativas legítimas criadas nos consumidores por sua atuação, realizar a confiança despertada.”165
Outros direitos e deveres envolvidos nessa relação são os seguintes:
O Código de Defesa do Consumidor impõe o dever genérico de cuidado nas tratativas contratuais, como forma de evitar danos extrapatrimoniais ao consumidor (art. 42 a 44 do CDC), por exemplo não divulgando dados errôneos ou confidencias sobre o consumidor. No momento preparatório impõe o Código de Defesa do Consumidor deveres de cooperação ao impor uma redação contratual precisa e
163 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 70.
164 Idem., p. 70
165 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 80.
compreensível (art. 54, §3º do CDC) e permitir a liberação dos consumidores, caso o seu direito de escolha do fornecedor, do serviço ou do produto, ou do direito de compreensão do texto do contrato seja obstado pelo fornecedor (art. 46 do CDC).
O dever de informar é imputado pelo Código de Defesa do Consumidor ao fornecedor (caveat vendidor) e não ao consumidor (caveat emptor). A informação deve ser adequada e clara, por exemplo, sobre diferentes tipos de multipropriedade, de contratos, de serviços, de imóveis e apartamentos, sobre as taxas, os custos do sistema de trocas, as verdadeiras possibilidades de alugar o imóvel ou de trocar os períodos e sobre as sanções possíveis face ao descumprimento contratual do consumidor, cláusulas penais e perda das quantias pagas. A informação é obrigação do fornecedor de serviços e produtos (art. 30, 31, 18 e 20 do CDC), que, repito, responde legalmente também pela atuação e promessas de seus vendedores e representantes (art. 34 do CDC). Informar correta e previamente o consumidor é um dever de conduta segundo a boa-fé imposto ao fornecedor de serviços pelo CDC (art. 6º, III, c/c arts. 30 e 31 do CDC). É dever de conduta cuja violação representa vício do serviço (art. 20 do CDC). ensejando reexecução do serviço, redibição ou diminuição do preço pago, a depender a sanção da escolha, logo, do interesse do consumidor (art. 20 caput e incisos I, II e III do CDC). Se fornecedor descumprir seu dever de informar estará em verdade inadimplindo sua obrigação contratual.166
[...]
O Código de Defesa do Consumidor introduz, por norma de ordem pública, uma garantia legal de prestação serviços adequados e da qualidade necessária a realização das expectativas do consumidor (art. 24 e 25 do CDC). O Código do consumidor impões igualmente um amplo dever de redação contratual precisa e compreensível (art. 54, § 3º do CDC) e de destaque especial para as cláusulas limitativas dos direitos dos consumidores (art. 54, § 4º do CDC), sob pena dessas cláusulas não obrigarem os consumidores. A fase de formação do contrato de time-sharing torna-se a fase que assegura o equilíbrio do contrato futuro e onde a proteção do direito é mais necessária.167
VII.VII. O princípio da Boa-fé nas relações de consumo.
O Princípio da Boa-fé nas relações de consumo atua limitando o princípio da autonomia da vontade (art. 170, caput e V, da CF de 1988) e combatendo abusos praticados no mercado.168
166 Idem., p. 80-1.
167 Ibidem., p. 81.
168 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 76.
A imposição do princípio da boa-fé e da confiança como como Leitlinie das relações de consumo no mercado brasileiro traz em si uma visão mais ampla da relação contratual, que valoriza a fase pré- contratual, a fase de aproximação negocial entre o fornecedor com métodos de venda e de marketing e o grupo ainda incerto de consumidores em potencial e expostos aos métodos genéricos de marketing dos fornecedores. A relação contratual de consumo passa a ser vista como processo dinâmico, a unir durante certo tempo em contatos reiterados um fornecedor e um consumidor.169 Esta visão modifica a noção de abusividade das cláusulas contratuais. Igualmente, esclarece que o desequilíbrio de direitos e deveres do contrato refletirse-se-á em práticas contrárias aos deveres de conduta segundo a boa-fé, violando assim de forma oblíqua, indireta, as expectativas (agora) legítimas do consumidor.170
VII.VII.I. Execução contratual conforme a confiança despertada e expectativas legítimas.
O Código de Defesa do Consumidor impõe, portanto, a defesa da confiança despertada no grupo de consumidores pela atuação dos fornecedores e força dos fornecedores envolvidos, direta ou indiretamente, com contratos de time-sharing a que cumpram com as informações prestadas e as promessas feitas por seus vendedores, mesmo que autônomos, e representantes (art. 34 do CDC). Já o art. 48 valoriza os escritos, pré-contratos e recibos, possibilitando mesmo a execução específica dos pré-contratos e das informações, a pedido do consumidor.171
O importante é que as promessas e informações ofertadas sejam cumpridas, caso contrário estará caracterizado inadimplemento do contrato. De acordo com a afirmação de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, “A nova relevância da proteção da confiança depositada pelo consumidor no tráfico jurídico no mercado brasileiro modifica de forma drástica a noção de vício do serviço ou de inadimplemento contratual parcial. Se há uma falha ou má prestação, isto é, a execução está incompleta ou imprópria, há inadimplemento parcial, há vício na prestação”172. A mesma autora comenta em detalhes a sua afirmação:
As informações prestadas pelos funcionários e vendedores, pela publicidade, pelos prospectos e manuais entregues e pelo próprio
169 XXXXXX, Xxxx. Schuldrecht I. Munique: Beck, 1987, p. 26. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 76.
170 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 76.
171 Ibidem., p. 81.
172 Ibidem., p. 82.
nome do contrato criam expectativas (agora) consideradas legítimas, que uma vez descumpridas caracterizam um inadimplemento contratual. Por exemplo, se qualidade apregoada ou serviço de lazer prometido, a cobertura de determinado gasto, o atendimento de determinada necessidade extra especificada não foi cumprida há falha de serviço. A execução é falha, pois é aquém do informado, do prometido ou veiculado. Também o conteúdo do contrato passa a ser informação juridicamente relevante, em que o consumidor tem de ter oportunidade de conhecer previamente e compreender (art. 46 do CDC). O mesmo cuidado deve ser estabelecido para as cláusulas limitativas dos direitos dos consumidor. Assim, por exemplo, a cláusula fixando carências para a utilização do time-sharing, cláusulas que limitam a eficácia do contrato, subordinando a esta eficácia a determinado período de tempo, deve ser destacada no corpo do contrato, como prevê o art. 54, § 3º do CDC, pois é cláusula limitadora do direito de uso imediato (limitação quanto à eficácia do contrato) e deve, principalmente, ser informada de forma prévia para o consumidor. Só com estes cuidados especiais terá o fornecedor cumprido com seu novo dever de informar clara e adequadamente o consumidor antes da conclusão do contrato, assegurando ao consumidor a possibilidade de escolher e comprar os planos e serviços de saúde oferecidos no mercado brasileiro.
[...]
O Código de Defesa do Consumidor inova dispondo em seu art. 20 que há vício do serviço quando o serviço não é adequado aos fins que “razoavelmente deles se esperam”, quando há disparidade entre as informações prestadas, que despertaram a confiança do consumidor, que o levaram a contratar, quando há diminuição na qualidade e prestabilidade do serviço tornando-os impróprios ou lhes diminuindo o valor. Trata-se de uma novidade em ralação ao Código Civil brasileiro que só conhece o vício da coisa e o vício oculto. A nova noção de vício do serviço no Código de Defesa do Consumidor foi criada para facilitar a execução de obrigação de fazer (veja art. 84 do CDC), tentando materializar, coisificar uma falha do fazer contratual, da prestação principal ou dos deveres anexos, que acabe por frustrar as expectativas legítimas dos consumidores. Em caso de vício do serviço, o consumidor poderá exigir ou a reexecução do serviço, ou a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço (art. 20 do CDC). 173
O dever de cuidado refere-se aos cuidados redobrados que os parceiros contratuais devem ter durante a execução ou os atos preparatórios à execução contratual para não causar dano ao parceiro contratual, por exemplo, divulgando informações sobre a
173 Ibidem., p. 82.
condição financeira de seu parceiro, seja verdadeira ou falsa.174 A violação desse dever faz nascer o dever de indenizar (art. 6º, VI, do CDC).
O dever de cooperação é um importante dever anexo, uma vez que o contrato de time-sharing tende a se protrair no tempo, sendo a execução contratual não contínua, renovada, a depender da disponibilidade do consumidor.175
VII.VII.II. A interpretação pró-consumidor das cláusulas contratuais e o controle do conteúdo do contrato.
O art. 47 do Código de Defesa do Consumidor permite que a interpretação das cláusulas sempre sejam a favor do consumidor. Esta afirmação tem uma consequência importante para o contrato de time-sharing. Segundo Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, o “contrato de time-sharing oferecido no mercado deve especificar qual a natureza dos direitos (reais ou obrigacionais) assegurados ao consumidor.”176
Os contratos de time-sharing comumente têm despertado um maior número de reclamações e disputas em razão de certas cláusulas contratuais, que em vista da massificação e proliferação desse contrato, somado ao esporádico controle jurisdicional de suas cláusulas, incentivam a sua inclusão, por exemplo: a cláusula penal, a cláusula de perda das garantias pagas, a cláusula mandato, a cláusula de eleição de foro, a cláusula de vencimento antecipado dos débitos, a cláusula que permite a rescisão unilateral pelo fornecedor do contrato, as cláusulas de carência ou de limitação dos direitos de uso, as cláusulas que permitem que permitem a variação do preço e as cláusulas que limitam a utilização dos serviços conexos ao complexo de lazer.177
Como visto, com razão o legislador quando reconheceu a vulnerabilidade, fática, técnica e econômica do consumidor (art. 4º, I do CDC), levando-o a estabelecer um controle do conteúdo do contrato, de forma a garantira justiça contratual e a realização das legítimas expectativas do consumidor no mercado brasileiro.
As cláusulas colocadas como exemplo acima, desequilibram o contrato, violam a confiança despertada no consumidor, impedem a relação de suas expectativas legítimas de
174 Os autores portugueses denominam este dever de dever de proteção, veja Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, Xx Xxx-Xx xx Xxxxxxx Xxxxx. Xxxxxxx: Almedina, 1984, p. 610 apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós- modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 82.
175 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 83.
176 Ibidem., p. 84.
177 Idem., p. 84.
um cumprimento adequado e previsível por parte do organizador do time-sharing. O Código de Defesa do consumidor não contém definição legal do que considera abusivo, preferindo ora indicar a abusividade em casos expressos (art. 53 do CDC); ora deixar sia determinação no caso concreto à jurisprudência, fixando apenas uma cláusula geral ( art. 51, IV, do CDC sobre a cláusula geral de boa-fé), ora listando exemplos de cláusulas abusivas e condutas comerciais abusivas (art. 51 e 39 do CDC). O sistema do Código de Defesa do Consumidor traz, portanto, uma proibição genérica da inclusão de cláusulas abusivas nos contratos de time-sharing.178
Segundo destaca Xxxxxx Xxxxxx, 179 as cláusulas abusivas apresentam justamente como características comuns, o seu fim e o seu efeito. O fim comum das cláusulas abusivas seria a melhoria da situação contratual daquele que redige o contrato ou detém posição contratual preponderante, o fornecedor, transferindo assim ao consumidor riscos que normalmente deveria suportar, segundo o direito supletivo. O efeito comum das cláusulas abusivas é o desequilíbrio do contrato em razão de sua inclusão e da falta de reciprocidade e unilateralidade dos direitos assegurados através da cláusula ao fornecedor.
Segundo Xxxxxxx Xxxxx Xxxx’Xxxxxx Xx. a nulidade das cláusulas abusivas prevista no sistema do CDC (art. 51 caput) é uma nulidade absoluta. O magistrado gaúcho apóia-se no sistema tradicional brasileiro de nulidades, onde as nulidades cominadas, previstas expressamente em lei ou através de proibições legais diretas, se nada em contrário especificam, nulidades absolutas são.180Efetivamente, o caput do art. 51 do CDC dispõe que são “nulas de pleno direito” as cláusulas abusivas previstas em contratos envolvendo o fornecimento de produtos e serviços no mercado para consumidores, sejam contratos de adesão ou contratos discutidos individualmente.181
Concluindo, destaca Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx sobre as nulidades que:
De outro lado, a nulidade absoluta absoluta do art. 51 a 53 do CDC tem permitido aos julgadores, na prática, declarar a nulidade das cláusulas ex officio, mas manter a relação contratual. Este é o espírito
178 Idem., p. 84.
179 XXXXXX, Xxxxxx. Les clauses abusives. Paris: LGDJ, 1982, p. 8. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 84.
180 DALL’XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xx, “Cláusulas abusivas: a opção brasileira” in Estudos sobre a protectão do consumidor no Brasil e no Mercosul, Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx (Coord.), Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1994, p. 38 apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 85.
181 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 85.
do art. 51 §2º do CDC que, impondo o conceito de continuidade da relação, estabelece a obrigatoriedade da tentativa de integração do texto do contrato e sua manutenção pelo magistrado, caso após a declaração de nulidade da cláusula não impor o contrato onerosidade excessiva para nenhum dos dois contratantes. A jurisprudência tem visto nesta norma uma autorização que reduziria a eficácia da cláusula nula, teoria, porém, bastante discutível.182
VII.VIII. Problemas mais comuns encontrados na jurisprudência brasileira.
Os problemas mais comuns encontrados no contrato de time-sharing são: “o conhecimento por parte do consumidor dos direitos que está realmente adquirindo e das regras de uso do imóvel; a situação do consumidor caso o fornecedor/incorporador não conclua a obra, não entregue os imóveis para uso dos consumidores ou entre em falência ou insolvência; a transmissibilidade do time-sharing e sua inclusão entre os direitos hereditários; os vícios, falhas e problemas nos serviços prestados pelos complexos turísticos, pelos complexos de férias e viagens, a variabilidade e abuso das taxas de administração e as cláusulas de perda das quantias pagas e carência das mais diversas.”183
Um perigo comum a todos os contratos é a possibilidade do fornecedor ou incorporador não poder construir o empreendimento hoteleiro pretendido, apesar de ter arrecadado a poupança dos consumidores. Neste caso, o Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul permitiu a resolução do contrato e decretou a devolução das quantias pagas, devido a insolvência do hoteleiro-empreendedor e do perigo iminente de não concluir o prometido imóvel de lazer184. À mora do fornecedor foi contraposto o direito formativo extintivo do consumidor e o fator tempo foi destacado como característico do time-sharing, declarando o Tribunal: “Nesses empreendimentos, seja porque visassem o lazer pessoal do interessado, seja
182 Idem., p. 85.
183 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 70.
184 Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Recurso n. 194225485. Relatado pelo Desembargador Xxxxxxx Xxxxx Xxxx’Xxxxxx Xxxxxx. Publicado em 15.03.1995: “Promessa de compra e venda. Resolução. Mora na conclusão de obra. Perdas e danos. […] Procede a resolução de promessa de compra e venda, proposta pelo promitente comprador quando a mora na conclusão da obra alcança extensão que vem inutilizando a finalidade ordinária para a qual previsto o empreendimento. Assim, a indefinição quanto a conclusão de prédio hoteleiro em sistema de tempo partido (time-sharing), pelo promitente vendedor, em detriment manisfesto do promitente comprador, que cumpre atualizadamente, com parcelas de sua prestação. Perdas e danos que se afastam, respeitante ao interesse positive, por não satisfatoriamente demonstradas e insuficientemente registradas na inicial. Apelo parcialmente provido.”
porque objetivassem investimento, o tempo é fator considerável, sendo demasiado o já ocorrido entre a data da conclusão prometida (1990) e o de hoje (1994-1997).”185
Outro grande perigo, é a característica internacional que muitas vezes esse contrato assume:
A jurisprudência brasileira tem considerado a internacionalidade do contrato como um perigo extra para o consumidor e assegurado a reabertura do prazo de reflexão de 7 dias do art. 49 do CDC, quando o consumidor brasileiro é informado em português do teor do negócio, em especial das cláusulas limitadoras de seus direitos e das que afastam direitos reais de propriedade, apesar do contrato e proposta insinuar a aquisição destes direitos. Neste caso, destaca a jurisprudência a importância do princípio da boa-fé e da proteção da confiança do consumidor, uma vez que a publicidade e a venda acontece em território brasileiro e, seu reflexo, a teoria da aparência para estabelecer a responsabilidade solidária e a legitimação passiva de todos fornecedores (diretos e representantes) envolvidos na negociação.186
Segue abaixo julgado que o consumidor, na primeira tentativa de intercâmbio da sua unidade de time-share teve suas férias frustradas por não conseguir a reserva, mesmo com seis meses de antecedência187:
No mérito, tem-se que o requerente e a apelante firmaram o pacto principal, denominado “Contrato de Cessão de Direito de Uso de Unidade Hoteleira, por Sistema de Tempo Compartilhado, mediante Utilização de Tabela de Pontuação” (fls. 12/19) e o pacto acessório, denominado “Contrato de Associação à RCI” (fls. 21), entabulado entre o autor e a corré RCI do Brasil. Na primeira tentativa de utilização do uso de hospedagem pelo sistema de “time-sharing”, o apelado teve suas férias frustradas, não obstante a programação com seis meses de antecedência, sendo-lhe informado que “em virtude de haver poucos associados em Maceió́, e entre os mesmos, muitos inadimplentes a reserva não poderia ser efetuada, podendo apenas ficar na 'fila de espera' e, quando surgisse uma vaga, o cessionário seria avisado, e teria que ir na data que fosse estipulada pelo cedente” (fls. 03). [...]O contrato firmado para venda de direito de uso de unidade hoteleira e o de associação a um banco de férias com
185 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso n. 194255485. Desembargador Relator Xxxxxxx Xxxxx Xxxx’Xxxxxx Xxxxxx. Publicado em 15.03.1995, x. 0.
000 Xxxxxxxx xx Xxxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx. Recurso n. 196182760. Desembargadora Relatora Xxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx, Publicado em 19.12.1996. p. 6 a 8, citado os ensinamentos de Xxxx Xxxx-Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx. apud MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos de time-sharing e a proteção dos consumidores (crítica ao direito civil em tempos pós-modernos). IN: Revista de Direito do Consumidor, vol. 22, 1997, p. 74.
187 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 9141101-62.2006.8.26.0000. Relatada pelo Desembargador Xxxxxxxxx Xxxxxx. Publicado em 31.05.2012.
possibilidade de intercâmbio são conexos e fazem parte de uma única relação. Tais negócios são complexos e normalmente envolvem o empreendedor, proprietário do imóvel que tem interesse em revender o uso aos consumidores, o administrador do “time-sharing” e o usuário. Por certo, a motivação para a contratação com a requerida THERMAS está intimamente ligada com a possibilidade de intercâmbio para destinos diversos. [...] Quando contratado, evidente a expectativa do autor em poder viajar nas suas férias para algum dos hotéis credenciados na rede conveniada, especialmente porque atendeu aos prazos estipulados para a reserva.
No caso houve clara quebra contratual pois a data do uso da hospedagem tem de ser escolhida pelo consumidor e não pelo hotel, a reserva também foi feita dentro dos prazos contratuais estipulados. Também ficou claro neste julgado que não existe mera relação de acessoriedade entre o contrato de time-share e a sua inserção em rede de intercâmbio, o que pode em muitos casos motivar a aquisição.
O caso seguinte trata de cobrança de taxas condominiais em multipropriedade condominial, onde o Excelentíssimo Desembargador Xxxxxxxxx Xxxxxx se aprofunda na matéria, utilizando, inclusive, os ensinamentos de Xxxxxxx Xxxxxxxx, cuja obra é utilizada como base nesta estudo188:
A discussão trazida no bojo destes autos diz respeito à relação celebrada entre as partes, defendendo o autor tratar-se de condomínio, na modalidade de multipropriedade ou time sharing, o que não desnatura a relação condominial, ainda que cada condômino tenha limitado, por critério temporal, a utilização da unidade. Assim, pleiteia a cobrança das cotas condominiais, derivadas do rateios das despesas entre os co-proprietários. [...] a questão temporal do uso, bem como as demais regras de convivência entre os multiproprietários, são estabelecidos por convenção, livremente celebrada, em nada discrepando do condomínio tradicional. Não existe, em princípio, incompatibilidade entre as disposições da Lei n.º 4.591/64 e a multipropriedade de unidades condominiais, visto que, conforme estabelece o art. 6º desse diploma, "Sem prejuízo do disposto nesta Lei, regular-se-á pelas disposições de direito comum o condomínio por quota ideal de mais de uma pessoa sobre a mesma unidade autônoma "Ou como explica XXXX XXXXX DA XXXXX XXXXXXX: "Este condomínio por quota ideal, tendo por objeto um apartamento em edifício dividido em andares, regula- se, diz a lei, pelo disposto no Código Civil, no que lhe for aplicável. As relações entre os condôminos passam-se disciplinadas pelo que a lei comum estatui como regime da co-propriedade, pois que, abstração feita da existência
188 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0054474-06.2008.8.26.0000. Relatada pelo Desembargador FranciscoThomaz. Publicado em 30.11.2011.
do edifício, os co-titulares de direitos sobre um apartamento assemelham-se aos co-proprietários de uma casa. Quando ressalva a lei a extensão do direito comum, naquilo apenas em que for aplicável, prudentemente significa que em algo haverá́ diversidade, por subsistir este condomínio por quotas ideais encravado dentro do outro condomínio especial e sofrer as injunções deste. O condomínio por quota ideal (meação, terça etc.) tem no Código Civil as regras de sua disciplina, mas deve evitar que esbarrem com a regulamentação do condomínio cm propriedade horizontal, caso cm que a superposição das áreas de influência atrai a predominância da lei especial." (Condomínio e Incorporações. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 166-167) No presente caso, a própria Convenção (fls. 25/32), traduzindo a autonomia privada dos condôminos, tratou de conciliar o regime da Lei do Condomínio com o sistema de multipropriedade.[...] A luz da concepção tradicional do direito de propriedade como aquele que recai sobre um espaço físico (ou o que quer que nele se contenha), essa Convenção pode ser vista como acordo de vontades dispondo sobre o uso desse espaço. Perfeitamente possível, dai, encarar o direito real sobre as unidades autônomas como propriedade singular que, no entanto, pode ter vários sujeitos ativos, apenas subordinados ao uso regulamentado no tempo. Para efeito de incidência da Lei n.º 4.591/64, portanto, continuam sendo unidades autônomas aquelas cuja propriedade é exclusiva (art. 2º) no sentido de não constituírem áreas comuns do edifício, não importando se tal propriedade é de uma ou de várias pessoas e muito menos, neste último caso, se esses titulares dividem o uso da coisa de uma ou de outra forma. Esse, por ora, parece ser o melhor enfoque da questão à luz do ordenamento jurídico vigente, que não admite uma propriedade "em três dimensões", limitada tanto no espaço como no tempo. Aliás, por causa dessa ineficiência do direito de propriedade tradicional em abrigar o time sharing, o instituto tem de procurar respaldo tanto no Direito das Coisas como no Direito das Obrigações, e é exatamente isso o que conclui XXXXXXX XXXXXXXX: ''Trata-se de uma nova situação jurídica subjetiva, com características de direito real e de direito obrigacional." (A multipropriedade: aspectos jurídicos, in Revista Forense n.º 294, p.97). E o mesmo jurista, reportando-se ao direito italiano, considera possível "a aplicação analógica da disciplina do condomínio à multipropriedade, enquanto houver identidade de ratio" (idem). A propósito, seria fascinante - e essencialmente pós-moderno - poder entender que cada titular no time sharing tem a propriedade, sozinho, de uma unidade designada por duas referências, uma espacial (a situação da unidade num determinado edifício) e outra temporal (a situação da unidade num determinado período do ano). Um edifício como o Condomínio ora autor não teria, então, tantas unidades quanto fossem os seus compartimentos físicos privativos, e sim 52 vezes esse número, considerada a dimensão do tempo. Mais nenhuma dúvida surgiria sobre a possibilidade de o Condomínio cobrar dos proprietários dessas unidades "tridimensionais" as despesas de manutenção... Atente-se que o caso acima igualmente se refere ao Condomínio Paúba Canto Sul, ora apelante. Dessa forma, ainda que
com algumas particularidades, não vislumbro qualquer óbice legal em enquadrar a relação havida entre as partes como uma modalidade de propriedade em condomínio, autorizando o autor a cobrar dos co- proprietários o rateio das despesas inerentes à propriedade comum, contudo, com a ressalva a seguir. Na esteira do posicionamento adotado pelo Col. Superior Tribunal de Justiça, no Agravo de Instrumento 1.273.234-SP, em acórdão relatado pelo ilustre Ministro XXXXXXX XXXXX, datado de 08.03.2010, entendendo que em determinadas hipóteses a disponibilidade da posse, seu uso e gozo, transfere a legitimidade passiva, de rigor o exame da matéria controvertida à luz da situação fática então apresentada. Referido entendimento não retira a legitimidade dos apelados em suportarem as despesas da unidade da qual são condôminos. Entretanto, não podem responder integralmente pelas despesas daquela unidade, mas sim somente pela proporção em que usufruem do imóvel, ou seja, 1/52. Não há como desconsiderar o fator temporal de uso da unidade, sob pena de impor a um dos condôminos o dever de suportar por todos os demais, anotando que como não se trata de condomínio instituído por pessoas próximas, quase impossível, senão insano e dispendioso será́ um deles arcar com o total das despesas de referida unidade, interpelando os demais para que cada um quite sua cota parte. Esse esforço deverá ser imputado à massa condominial, titular do direito. Assim, descabe a cobrança dos apelados do valor total constante na memória discriminada às fls. 24/26, mas somente 1/52 daquele montante, em virtude dos fundamentos acima explicitados.
Como visto, apesar da cobrança das taxas condominiais ser legítima, ela não pode exceder os limites das quotas adquiras pelos multiproprietários.
O próximo caso trata da não existência de direito de preferência quando um dos multiproprietários pretende vender a sua quota parte189:
Anulação de ato jurídico - Direito de preferência - Imóvel composto por três edificações distintas, cuja posse é exercida de maneira exclusiva e independente por seu detentor - Alienação de dois dos imóveis - Falta de notificação ao condômino quanto ao direito de preferência - Desnecessidade no caso concreto - Inaplicabilidade do artigo 504 do Código Civil - Sentença de procedência reformada - Recurso provido. Na solução da controvérsia deve ser levado em conta a situação fática do bem. Os bens são divisíveis e as partes exercem a posse de forma exclusiva. “Tratando-se de coisa divisível, qualquer condômino pode alienar a sua parte sem necessidade de notificar o outro.”
189 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0008674.08.2009.8.26.0048. Relatado pelo Desembargador Xxxxx Xxxxxxx. Publicado em 14.06.2011
O próximo julgado trata da possibilidade de penhora em imóvel onde estiver instituída a multipropriedade190:
COBRANÇA. DESPESAS DE CONDOMÍNIO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TEMPO COMPARTILHADO OU TIME SHARING). EMBARGOS À EXECUÇÃO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PENHORA DOS IMÓVEIS SOBRE OS QUAIS INCIDE A MULTIPROPRIEDADE. POSSIBILIDADE. 1. Cabe o julgamento
antecipado da lide quando as questões suscitadas são resolúveis por meio de provas documentais já́ exibidas pelas partes. Preliminar rejeitada. 2. Ainda que instituído o condomínio na modalidade time sharing (multipropriedade imobiliária ou tempo compartilhado), cabe a penhora dos imóveis para satisfação das despesas condominiais. Recurso desprovido.
Também existem julgados reconhecendo a coligação de contratos entre o empreendimento hoteleiro que vendo o contrato de time-share e a empresa responsável por fazer o intercâmbio das unidades191:
resta incontroverso que, pelo contrato denominado de “cessão de direitos de uso e ocupação de unidade habitacional de hospedagem de turismo em tempo compartilhado” firmado pelos Apelantes junto à Apelada Arraial Cana Brava Hotel Ltda., foi-lhes conferido o direito de hospedagem no próprio resort da Apelada e também em outros hotéis da rede RCI Brasil., configurando tal tipo de contrato o sistema de time-share (tempo compartilhado), pelo qual o cliente tem à disposição uma semana anual de hospedagem garantida e a afiliação da rede ao sistema RCI. Basta compulsarmos o denominado “Plano de Proteção ao Adquirente” a fls. 39/40: “Programa de Intercâmbio significa o programa pelo qual são efetuados intercâmbios de períodos de férias entre associados da RCI. Este programa permite ao associado pleitear um intercâmbio por um período de férias semelhante ao de que for titular. Sempre sujeito à disponibilidade.” (fl. 40) Incontroverso, também, que a administração dos intercâmbios compete à própria rede RCI Brasil, na qualidade de credenciadora, sendo o único requisito a realização de reserva com antecedência. Neste aspecto, nota-se que o Contrato de Cessão de Direitos de Uso e Ocupação de Unidade Habitacional de Hospedagem de Turismo em Tempo Compartilhado colacionado a fls. 33/38, menciona a Apelada RCI - Resort Condominiums International, como a empresa responsável pelo sistema de intercâmbios, indicando, inclusive, a
190 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0207831-68.2007.8.26.0100. Relatada pelo Desembargador Xxxxxxxx Xxxx. Publicado em 28.09.2012.
191 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 0051280-95.2008.8.26.0562. Relatado pela Desembargadora Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Publicada em 16.05.2013.
necessidade de filiação junto àquela empresa, a saber: “Fica claro que a Cana Brava Resort não é a empresa responsável pelo sistema de intercâmbios, neste caso a RCI, cuja afiliação ou não, deverá ser preenchida por contrato direto entre o(s) adquirente(s) e a empresa RCI (Resort Condominiums International), portanto o(s) adquirente(s) estará(ão) sujeito(s) às regras e normas estabelecidas pela mesma.” (fl. 39) No mesmo sentido a Cláusula 8ª e Parágrafo. Nota-se que, neste sistema, o consumidor necessariamente deve celebrar contrato com um dos hotéis associados para se beneficiar do sistema de intercâmbio e da rede credenciada mantida pela RCI, rede esta que acaba por se caracterizar como sendo a principal vantagem do serviço apresentado aos Apelantes para os convencerem a adquirirem o pacote oferecido. E, como se nota a fls. 46/verso, o administrador de intercâmbio é a Apelada RCI Brasil. Aliás, a RCI é a única empresa indicada pela corré Arraial Cana Brava para ser a administradora de intercâmbio... Cuida-se, na verdade, de contratos coligados, o primeiro, de cessão de direito à ocupação de unidade hoteleira, e o segundo, de associação e, independentemente de qual das apeladas efetivamente se beneficiou dos pagamentos realizados, é notório que são parceiras comerciais e integram a cadeia de fornecedores do serviço de hospedagem pelo sistema time-share contratado pelos Apelantes, devendo, pois, responderem solidariamente pelo ressarcimento dos prejuízos suportados pelos consumidores, no caso, os decorrentes dos defeitos relativos à prestação dos serviços (art. 3º, § 2º c.c. art. 14, ambos do Código de Defesa do Consumidor). E o Coapelante assinou contrato com a RCI como associado, em cumprimento ao contrato celebrado com a Arraial, cujo objeto é, justamente, regular o programa de intercâmbio...(fls. 46). Inegável, pois, a contratação com ambas as empresas rés. Xxxxx Xxxxxxxx: A propósito, cita-se a lição de Xxxx Xxxxxxx “Como a responsabilidade é objetiva, decorrente da simples colocação no mercado de determinado produto ou prestação de dado serviço, ao consumidor é conferido o direito de intentar as medidas contra todos os que estiverem na cadeia de responsabilidade que propiciou a colocação do mesmo produto no mercado, ou então a prestação do serviço” (“in” Código Brasileiro de Defesa do Consumidor”, 8 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 161). Aliás, a solidariedade da Apelada RCI - Resort Condominiuns International e de hotéis credenciados à rede de intercâmbios já́ foi reconhecida por este E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme acórdãos abaixo transcritos: “PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS (HOTELARIA) - AÇÃO DE RESOLUÇÃO
CONTRATUA.L Contratos coligados de associação à rede internacional de hotéis e de aquisição de direitos de hospedagem, pelo sistema de 'time sharing', com prazo determinado de 30 anos. Rescisão abrupta e antecipada por parte da associação. Homologação de acordo judicial para extinguir o contrato entre as partes e determinar a restituição da taxa de associação. Prosseguimento do feito em relação ao corréu, hotel que disponibilizaria a hospedagem contratada. Relação de consumo caracterizada - Responsabilidade pelo vício do serviço Art. 20, II, CDC. Restituição do preço pago. Solidariedade
entre os fornecedores participantes dos contratos coligados. Devolução do preço como consequência lógica da resolução contratual já́ operada. Dever do corréu de restituir a integralidade do preço pago pela consumidora lesada pela rescisão antecipada. - Recurso provido. (Apelação no 9110607-54.2005.8.26.0000, 25ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Xxxxxx Xxxx, x. 24.10.12) “CONSUMIDOR. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. CONTRATO. INEXECUÇÃO PELAS DIFICULDADES CRIADAS PELAS PRESTADORAS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ADVINDA DO CONTRATO. BOA- FÉ CONTRATUAL VIOLADA. OCORRÊNCIA. RESCISÃO CABÍVEL. DEVOLUÇÃO DO PREÇO PAGO. COMPENSAÇÃO COM A COTA USUFRUÍDA PELO CONSUMIDOR EM PROL DO PRINCÍPIO QUE VEDA ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. 1 - Prometidos serviços por duas empresas no contrato, os embaraços, dificuldades e negligências impeditivas de fruição dos serviços antecipadamente pagos geram responsabilidade solidária e objetiva das empresas que prometeram os serviços pela quebra do equilíbrio do contrato, com sua consequente rescisão, acrescida pela quebra da boa-fé inerente às relações consumeristas. As cláusulas contratuais devem ser interpretadas em favor do consumidor em tais circunstâncias. (...)” (Apelação nº 992.08.048197-2, 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Xxxxxxx xx Xxxxxx, x. 27.10.09). Restando, pois, configurada a má prestação de serviços e o descumprimento do contrato, de modo que, como os autores não conseguiram usufruir a rede hoteleira que contrataram, evidente a legitimidade da requerida RCI para figurar no polo passivo e a responsabilidade solidária quanto à condenação nos termos da r. sentença recorrida.
Interessante o julgado abaixo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre a possibilidade de resolução contratual quando o consumidor já utilizou o imóvel por 18 anos:192
Eminentes colegas, no mérito melhor sorte assiste à recorrente, pois o presente recurso de apelação merece prosperar. A pretensão da autora teve como lastro o alegado descumprimento da Clausula Quinta do Compromisso de Compra e Venda (juntado nas folhas 16 a 23), que reza: “QUINTA: A escritura pública de compra e venda da fração compromissada, será outorgada em favor do OUTORGADO, quando do pagamento da última prestação do preço ajustado e desde que o prédio esteja devidamente concluído”. Entendendo que houve o descumprimento da regra contratual, o Juízo de Primeiro Grau resolveu o contrato e condenou a ré a devolver a integralidade dos valores pagos pela autora. Em que pese a convicção do ilustre MM. Juiz de Primeiro Grau, entendo que o caso concreto dos autos merece
192 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação n. 70033473638. Relatado pelo Desembargador Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxx. Publicado em 04.01.2010.
outra interpretação. Primeiramente, importante que se diga que o contrato que ora se divisa, a despeito de ter sido nominado como “compromisso de compra e venda”, trata-se, na sua essência, de negócio jurídico de natureza diversa. Com efeito, analisando o instrumento contratual das folhas 16 a 23 pode-se extrair o verdadeiro intuito e natureza jurídica do negócio jurídico, notadamente da Cláusula Primeira e da Cláusula Segunda, assim redigidas: “PRIMEIRA: A OUTORGANTE é proprietária da fração 1/527 (hum inteiro , quinhentos e vinte e seis avos) do imóvel sito nesta cidade de Gramado (RS), constituindo de um terreno devidamente descrito e caracterizado no quadro resumo (item III), estando indissoluvelmente ligado á propriedade da referida fração, o direito de uso do apartamento do HOTEL CASA DA MONTANHA – EXECUTIVE TIME SHARING durante um período de 21 (vinte e um) dias em cada ano, consoante definido adiante e nas CONDIÇÕES GERAIS DO NEGÓCIO que é parte integrante deste instrumento”. “SEGUNDA: a fração de 1/527, adquirida, assegurará ao OUTORGADO o direito de utilizar, anualmente, durante vinte e um dias, o apartamento do item IV do HOTEL CASA DA MONTANHA – TIME SHARING do
prédio que está sendo construído no aludido terreno, dos quais sete dias consecutivos durante a temporada alta e 14 dias durante a temporada baixa , consecutivos, ou alternados, desde que, com um mínimo de dois dias de ocupação, se alternados, obedecendo sempre a ocupação, os dispositivos desde CONTRATO e CONDIÇÕES GERAIS DO NEGÓCIO”. Cuida-se, em verdade, de contrato que visa estabelecer comunhão de direitos e obrigações entre associados, pelo sistema conhecido como “Time Sharing”. Outrossim, sobre o Time Sharing, Xxxxxxx Xxxxxxxx leciona que, basicamente, “com o termo multipropriedade designa-se, genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua” (Multipropriedade imobiliária, Editora Saraiva, São Paulo: 1993, p. 1). Logo, como se pode ver, ainda que nominado como “compromisso de compra e venda”, as partes estabeleceram, em verdade, negócio jurídico de compartilhamento da propriedade, não podendo, assim, ser tratado como se mera compra e venda de bem imóvel fosse. Neste compasso, analisando os elementos de prova existentes nos autos, não vejo como se possa não reconhecer ter havido inadimplemento substancial por parte da ré, notadamente se considerado o fato que o registro do “compromisso de compra e venda” se constitui mero capítulo acessório, dentro do universo que compõe a relação contratual estabelecida entre as partes, que, como visto acima, confere ao aderente, dentre outros, o direito de utilizar, anualmente, durante vinte e um dias, um apartamento do complexo Hotel Casa da Montanha – Time Sharing, usufruindo de todos os serviços hoteleiros disponibilizados pela Outorgante/proprietária, tais como hospedagem, estacionamento, telecomunicações, telefonistas, serviços de despertar, serviços de governanta e faxina, limpeza diária dos apartamentos e
áreas de uso comum, de rouparia, lavanderia, de bar, lancheria nas áreas de lazer, piscinas, de serviço de café da manhã e outros mais expressamente consignados na Cláusula Nona, itens “a” a “h” (fl. 18). Serviços estes que foram integralmente prestados e usufruídos pela autora durante os 18 (dezoito) anos de vigência do contrato. Ao menos, nada em contrário foi alegado ou demonstrado nos autos. Diferente, aliás, das inúmeras ações que aportam neste Tribunal, onde o pedido de resolução dos contratos de time sharing tem como causa de pedir, basicamente, o encerramento das atividades (interrompendo o exercício dos direitos de hospedagem) ou, ainda, a própria ausência de implementação do empreendimento. Não é, pois, como visto, o caso dos autos. Demais disso, durante o período de vigência do contrato, a autora locou seu espaço para terceiros, porque assim o permitia o próprio contrato (Cláusula Décima Quarta), auferindo frutos com a coisa. Não vejo, assim, como reconhecer o direito de buscar a resolução do contrato, passados mais de 18 anos de pleno uso e fruição dos direitos sobre a coisa, premida apenas pelo pormenor de não ter sido levado a registro o compromisso de compra e venda. Cláusula acessória esta, aliás, que apenas tem relevância no plano da eficácia do negócio jurídico, não tendo qualquer influência na sua validade. (grifos nossos)
O julgado acima estabeleceu que o dever contratual de registro da compra e venda do time-share é um direito acessório frente ao complexo obrigacional principal. Foi também mencionado no julgado que a maior quantidade dos casos trata de encerramento de atividades do hotel ou a não implementação do serviço: “Diferente, aliás, das inúmeras ações que aportam neste Tribunal, onde o pedido de resolução dos contratos de time sharing tem como causa de pedir, basicamente, o encerramento das atividades (interrompendo o exercício dos direitos de hospedagem) ou, ainda, a própria ausência de implementação do empreendimento”.
Verifica-se que no Rio Grande do Sul existe grande quantidade de empreendimentos onde o contrato de time-share é usado para fraudar os consumidores, recebem o pagamento e não cumprem o serviço porque venderam o negócio e o novo proprietário não é obrigado a respeitar o negócio, ou simplesmente não completaram a construção. Frisa-se mais uma vez a necessidade de se permitir a entrada desse contrato no Registro de Imóveis, com isso os eventuais adquirentes do hotel serão obrigados a respeitar os multiproprietários. Apenas a aquisição durante a construção do empreendimento emite um alto grau de risco, essa prática deveria ser coibida.
Sul:193
Segue abaixo um exemplo do que normalmente ocorre no Rio Grande do
AÇÃO ORDINÁRIA. CONTRATO DE TIME SHARING. LEGITIMIDADE PASSIVA. INADIMPLEMENTO
CONTRATUAL. Legitimidade da empreendedora para a causa, à luz da teoria da aparência. Demonstrado que os autores não usufruíram das diárias a que tinham direito em face do fechamento e venda do hotel objeto do contrato, configurado o inadimplemento contratual por parte das demandadas. Rescisão do contrato e restituição das quantias pagas. (grifos nossos)
No próximo acórdão se exprime o entendimento sobre o prazo de prescrição para o pedido de rescisão contratual com base em vício de consentimento:194
AGRAVO EM APELAÇÃO JULGADA MONOCRATICAMENTE. CONTRATO DE TIME SHARING OU MULTIPROPRIEDADE.
RESOLUÇÃO. PRESCRIÇÃO. Concretizado o negócio jurídico e pago o preço, a ação pretendendo a anulação ou rescisão contratual, motivada em vício do consentimento, por erro, prescreve em 4 anos, conforme o artigo 178, § 9º, inciso V, alínea b, do Código Civil de 1916. Não retratação do Relator e não provimento do recurso pela Câmara. (grifos nossos)
Em Brasília existe um julgado a respeito de time-share de imóvel adquirido no Brasil, mas o imóvel está nos Estados Unidos da América. O contrato foi redigido na nossa língua e foi requerida a rescisão por onerosidade excessiva superveniente:195
Direito do Consumidor. Rescisão do contrato por onerosidade excessiva. Contrato de time sharing assinado no Brasil. Imóvel situado nos EUA. Competência internacional concorrente. Código de Defesa do Consumidor. Aplicação. É válida a contratação das prestações em
193 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação n. 70012528519. Relatada pelo Desembargador Xxxxxx Xxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxx. Publicado em 07.04.2006.
194 Tribunal de Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo n. 70012921862. Relatado pelo
Desembargador Xxxxxx Xxxx Marchionatti. Publicado em 15.06.2005.
195 Tribunal de Justiça de Brasília. Apelação n. 0034016-45.1999.8.07.0001. Relatado pelo Desembargador Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Publicado em 10.03.2005.
moeda estrangeira cujos pagamentos são feitos mediante a conversão para a moeda nacional. Contrato redigido no vernáculo. Validade integral da avença, cuja rescisão, no entanto, se opera em razão da superveniente onerosidade excessiva admitida (agora) expressamente (CC/02: art. 478).
Em Santa Catarina, o caso mostra que muitos empreendimentos, apesar de as vezes haverem percalços, são sérios e podem ser confiados. Aqui houve atraso nas obras de conclusão do empreendimento, foi facultado ao multiproprietário usar outros hotéis da rede. O empreendimento foi terminado pouco depois:196
O sistema time sharing ou multipropriedade imobiliária é uma espécie condominial relativa aos locais de prazer, pela qual há um aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento), repartido, como ensina Xxxxxxx Xxxxxxxx, em unidades fixas de tempo, assegurando a cada co-titular o seu uso exclusivo e perpétuo durante certo período anual (DINIZ, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º volume. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 212) 2. Atrasada a conclusão do empreendimento múltiplo, com violação de cláusula específica, assistia aos autores o direito à resolução, ou então, perseguir o cumprimento do enleio, nos termos do art. 1.092 do Código Civil de 1916 (art. 475 do CC/2002). Exercida a fruição de férias em outros imóveis da rede, equivalente à segunda opção, sem indicativo de prejuízo até que o resort ficou pronto, e sem demonstração de impossibilidade do uso ulterior, observa-se proveito econômico bastante à rejeição do pedido de ruptura negocial lançado de forma tardia.
Em outro caso julgado em Santa Catarina se reconheceu direito de propriedade aos multiproprietários para defender o imóvel turístico contra penhora:197
EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME SHARING). PENHORA DE ÁREAS COMUNS DE COMPLEXO TURÍSTICO (GARAGENS E QUADRAS ESPORTIVAS) POR DÍVIDA DA EMPRESA INCORPORADORA. CONSTRIÇÃO INSUBSISTENTE EM FACE DOS CONDÔMINOS. NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO. CASO PARTICULAR. APELAÇÃO PROVIDA.
196 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação n. 2010.063830-5. Relatado pela Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta. Julgado em 01/02/2011.
197 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação n. 2008.019293-6. Relatado pela Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta. Julgado em 16.12.2008.
1. Penhoradas, em execução proposta em face de construtora/incorporadora por promitente comprador com contrato rescindido, áreas comuns de complexo turístico (vagas de garagem e quadras esportivas) a serem desmembradas do todo, procedem os embargos de terceiro propostos pelos condôminos em defesa da posse e da multipropriedade imobiliária (art. 1.046, caput, e §1°, CPC).
2. Conclusão baseada, sobretudo, no caso particular.
Como visto, são inúmeros os problemas que um contrato tão complexo quanto o time-share pode gerar. As principais reclamações em São Paulo estão relacionadas ao pagamento das taxas condominiais. Os empreendimentos insistentemente tentam receber as taxas de quem deve cobrando dos demais multiproprietários, alegando que a responsabilidade pelo pagamento da unidade é solidária, situação já pacificada no sentido contrário.
Também é muito comum o descumprimento do contrato, quando se trata das reservas, tanto no próprio empreendimento adquirido, quanto nas reservas de intercâmbio.
O problema é muito mais grave no Rio Grande Sul onde muitos consumidores são fraudados, pagam para receber um serviço e o empreendimento é vendido ou não é concluído e implementado.
Muito poderia ser feito com algumas alterações na legislação para sanar esses problemas como já apontado, mas o principal seria permitir o ingresso desses contratos no registro de imóveis, tornando obrigatório o cumprimento, mesmo quando o hotel for vendido.
VIII. ANÁLISE DA MULTIPROPRIEDADE COM BASE NOS PODERES CONFERIDOS PELO DIREITO REAL
VIII.I. Os limites do poder de usar, fruir e dispor do titular.
O elemento dispensável ao negócio da multipropriedade é o vínculo de destinação198, ao qual o bem objeto deve se sujeitar, que deve ser o fim turístico-residencial. Deve constar nos títulos aquisitivos, expressamente a imutabilidade da destinação impressa ao negócio, de modo que fica livre a todos os demais adquirentes o direito de usar e fruir todo o complexo imobiliário. Não há para o titular, portanto, liberdade quanto à escolha de um modo de uso ou fruição que desvincule o bem de seu destino originário.
Também falta ao multiproprietário, em decorrência da incidência de múltiplos direitos subjetivos o ius destruendi199, sendo-lhe vedado deteriorar o imóvel. Qualquer atividade que possa alterá-los é proibida, inclusive benfeitorias. Quaisquer reparos, mesmo os mais corriqueiros como por exemplo a falta de utensílios domésticos, devem ser informados à administração. Alguns contratos limitam a quantidade máxima de ocupantes permitidos para melhor preservar o imóvel.
Em razão de todas essas regras que visam a preservação do bem, surge outro
dever:
Os contratos, em regra, preveem a verificação dos equipamentos, mediante um inventário a ser preenchido, no início da estada, no qual serão relacionados os móveis e utensílios ali encontrados. A danificação de objetos sujeita o multiproprietário, segundo o convencionado nas operações brasileiras, ao imediato ressarcimento, sob pena de retenção de sua bagagem pela empresa gestora.200
A obrigação de restituir o apartamento no dia e hora aprazados, ao final da temporada, caso desrespeitado, implica em perdas e danos, cumulado com pesada pena cominatória por hora de atraso na restituição. Também caracteriza esbulho possessório expressamente indicado na convenção condominial.
198 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 51.
199 Ibidem., p. 52.
200 Ibidem., p. 52.
Quanto ao poder de disposição “salienta-se em doutrina a ampla liberdade conferida ao multiproprietário para alienar seu direito, a título oneroso ou gratuito, bem como para ceder o exercício do direito de uso e fruição, por via contratual.”201
O direito de preferência é renunciado expressamente na escritura de compra e venda de aquisição originária do bem, assegurando aos condôminos facilidade nas transferências.
Quanto à constituição de direitos reais, pelos multiproprietários, a terceiros, a discussão se resolveu da seguinte forma:
Discute-se a possibilidade de constituição de direitos reais limitados, pelo multiproprietário. Apresenta-se predominante o entendimento de que, respeitada a regra nemo plus iuris in alium transferre potest quan ipse habet, não há óbice legal à constituição de tais gravames. Direitos reais de fruição, como a enfiteuse e o direito de superfície, que implicam atividade permanente e ininterrupta, além de benfeitorias úteis, devem ser naturalmente descartados. Apresenta-se teoricamente viável, no entanto, a constituição de usufruto, restrito evidentemente ao período do ano deferido ao multiproprietário; e de servidão predial, desde que descontínua e igualmente circunscrita à utilidade que possa ser extraída no respectivo período do ano. No que tange aos direitos reais de garantia, a doutrina estrangeira não exclui possam ser constituídos pelo multiproprietário. Alguns contratos, todavia, enunciam uma renúncia expressa ao oferecimento do bem em garantia; outros exigem o consenso unânime dos condôminos, o que, pela manifesta dificuldade prática, equivale à vedação. A prescindir do exame de validade da cláusula renunciativa, a compatibilidade teórica de tais garantias dependeria da natureza jurídica a ser emprestada à multipropriedade.202
O multiproprietário está também limitado, logicamente, às disposições contratuais atinentes à administração do complexo imobiliário, o que é fundamental para o êxito das operações examinadas. Essas disposições contratuais identificam o administrador como preposto da empresa promotora do empreendimento, dotado de poderes para gestão, no que tange à administração ordinária e extraordinária, podendo praticar qualquer ato e exigir quotas extras ou fundos de reserva, sem a participação dos multiproprietários, exceto a delegação de poderes conferida no ato aquisitivo.203 Para isso, a empresa se vale do seguinte mecanismo:
201 Ibidem. p. 53.
202 Ibidem. p. 54.
203 Ibidem. p. 56.
No Brasil, como se examinou, os operadores valem-se da inserção de uma procuração na escritura de convenção, outorgando à empresa vendedora, também condômina, amplos poderes de representação dos demais consortes, incluindo-se o poder de voz e voto nas assembleias ordinárias e extraordinárias, e, como “procuradora nata”, para a representação judicial e extrajudicial do condomínio, “automaticamente e irrevogavelmente investida de todos os poderes para tanto necessários (...)”. Decorre daí a inexistência de verdadeira assembleia deliberativa entre os multiproprietários, solução que não se altera substancialmente quando se adota expediente, concebido alhures, pelo qual se elege o administrador por correspondência, como forma de adequar o imperativo legal à inviabilidade de reunião de centenas de participantes.204
No âmbito da gestão condominial, em alguns casos, exige-se do comproprietário que conforma antecipadamente a utilização do imóvel no período anual correspondente, sob pena de ser oferecido a terceiros. Esse dispositivo “não representa limitação aos poderes do titular, inserindo-se em auto-regulamentação que visa ampliar o aproveitamento do imóvel, juntamente com o já mencionado sistema de intercâmbio pelo qual, como foi examinado, o administrador, mediante prévia solicitação dos interessados, ajusta a possibilidade de recíproca utilização, pelos multiproprietários, de apartamentos situados em localidades diversas.”205
Xxxxxxx Xxxxxxxx conclui que:
a necessidade de uma perfeita gestão administrativa para coordenar a utilização por parte dos numerosos titulares, aliada à necessidade de imposição de rigorosas penas contratuais, apara o bom desempenho da alternância prevista, enseja, de um lado, a delegação de desmesurado poder ao administrador e, de outro, submissão do multiproprietário a uma disciplina condominial rígida, impensável nos moldes tradicionais de aproveitamento do domínio por seu titular.206
Essa conclusão evidencia uma necessidade, para que a multipropriedade tenha melhor aceitação do brasileiro: em contrapartida ao grande poder de gestão conferido ao administrador desses empreendimentos, que também seja conferido ao multiproprietário direitos muito bem definidos e com grande grau de efetividade, ou seja, os meios para se defender e obrigar o administrador a uma boa administração.
204 Idem. p. 56.
205 Ibidem. p. 57.
206 Idem. p. 57.
A necessidade de mudança na legislação sobre a matéria é esclarecida por Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx:
No direito moderno, diversas são as hipóteses e fatispecie de propriedade. Basta lembrar as distinções entre a propriedade de bens de produção, de empresa de interesse nacional, de propriedade pessoal, de propriedade comunitária, de propriedade cooperativa. Os direitos de gozar e dispor do bem já não são suficientes para dar homogeneidade ao instituto. Não se pode esquecer a vedação de dispor imposta a determinadas categorias, como, por exemplo, o beneficiário da gleba de reforma agrária. Ou a limitação ao gozo da coisa, como a imposta ao proprietário de imóvel em área de severa proteção ambiental. Nem por isso se questiona se ambos são proprietários. O que hoje se sublinha não são as coincidências, mas sim as diferenças entre as diversas categorias proprietárias207. Como bem coloca Xxxxxxx Xxxxx, a noção clássica de propriedade não mais dá conta de disciplinar todos os modos que se permite a satisfação do interesse individual de apropriação e utilização dos bens de todas as espécies. Por isso, de duas uma: “ou a propriedade tem novas dimensões; ou existem novas situações jurídicas irredutíveis ao seu conceito208.” Mesmo o tradicional poder de reivindicar a coisa (sequela) não serve de traço homogêneo à propriedade, porque a unidade de defesa processual não significa unidade de situação de direito material. Não custa lembrar, ademais, que situações tipicamente obrigacionais são hoje dotadas da prerrogativa de perseguir a coisa, como, por exemplo, o direito de preferencia conferido ao locatário, as limitações convencionais impostas em loteamentos, ou mesmo as cláusulas restritivas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Basta sejam dotadas de publicidade. Além disso, a tendência do direito processual moderno é aplainar a tradicional cisão entre as defesas processuais das situações obrigacionais e reais. O princípio da efetividade do processo, mediante concessão de tutela específica permite guarnecer situações singelas de crédito com medidas como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividades nocivas. Hoje o cumprimento in natura da obrigação, ou obtenção de resultado prático equivalente, é a regra. A conversão em perdas e danos, a exceção. O artigo 461 do Código de Processo Civil, com a redação que lhe deu a Lei nº 8.952/94, e o artigo 84 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) bem atestam essa mudança de enfoque, reduzindo a antiga e clássica distinção entre as tutelas relativas a direitos de crédito e reais.209
207 Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, Introduzione alla problematica della proprietà, p. 59 apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 59.
208 Xxxxxxx Xxxxx, “Novas dimensões da propriedade”, p. 14, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 60
209 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 59.
A propriedade, segundo Xxxxxxxx, é resultante de um complexo de normas jurídicas: “Na medida em que as diversas categorias de propriedade (bens de consumo, de produção, imóveis rústicos, urbanos, coletivos etc.) são regidas por normas próprias, unidas apenas por traços gerais comuns, somente se concebe o conceito unitário de uma propriedade genérica que, em vista da vagueza, perde valor científico. Não há como ignorar que há hoje não um, mas vários institutos da propriedade, cada um deles regido por um complexo de normas singulares210. Pode-se falar, assim, apenas em um conteúdo essencial ou mínimo da propriedade, identificado como a aptidão natural ou histórica de cada bem para ser objeto de desfrute econômico211. No mais, existem conteúdos de cada modelo proprietário, levando em conta cada categoria de bem, individualmente considerada. A análise concreta da experiência leva o jurista a dissolver o conceito unitário de propriedade, eliminando sua noção abstrata. Na precisa lição de Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, o que existe é uma pluralidade de institutos em torno de um interesse. esse interesse comum pode levar à pluralidade a ser considerada, quando muito, como uma unidade complexa212.”
210 Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, Intriduzione alla problematica della proprietà, p. 137, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 61.
211 Xxxxxxx Xxxxxx, El terrible derecho (…), p. 64, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 61.
212 Savatore Pugliatti, La proprietà del nuovo diritto, p. 148, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 61.
IX. NATUREZA JURÍDICA DA MULTIPROPRIEDADE.
IX.I. Relação jurídica de direito real ou pessoal?
Existe uma grande dificuldade para se definir se a multipropriedade gera obrigações de natureza real ou pessoal.
De acordo com Xxxxxxx Xxxxxxxx, os direitos reais e pessoais tem as seguintes características:
Sabe-se que os direitos reais se diferenciam dos direitos pessoais por dois aspectos essenciais. Os direitos reais têm por objeto imediato uma coisa, com a qual estabelece seu titular um liame estreito, direito, sem intermédio. A situação jurídica assim constituída tem caráter absoluto, criando um dever jurídico negativo, prevalecente contra todos - erga omnes -, que deverão respeitar o exercício do direito, abstendo-se de qualquer ingerência. O vínculo jurídico, portanto, adere à coisa sobre a qual incide e tem eficácia generalizada, já que todas as pessoas devem respeito às situações jurídicas de direito real ( por isso mesmo chamadas de direitos absolutos). As reverso, os direitos pessoais vinculam duas partes determinadas - devedora e credora. Entre o objeto do direito, que é a prestação, e o credor encontra-se o devedor, do qual aquele depende para a satisfação de seu direito (crédito, etimologicamente, indica a confiança do credor, que acredita, crê - do latim credere - na conduta do devedor, através do qual obterá a res, que se encontra fora de seu poder de ação). Afirma-se, pois, que, ao contrário dos direitos reais, a satisfação do direito do credor se dá de forma mediata - intermediada pela atividade do devedor - e que o vínculo formado une especificamente o credor do pólo ativo, e o devedor, no pólo passivo, em relação aos quais se circunscrevem os efeitos da relação jurídica instaurada - tendo portanto eficácia relativa.213
Após essas considerações sobre direito real e pessoal, Xxxxxxx Xxxxxxxx conclui afirmando que a multipropriedade é direito real, sendo esta a posição aqui adotada:
De tais considerações decorre o caráter real da multipropriedade imobiliária. O vínculo jurídico que se instaura adere imediatamente ao imóvel sobre o qual incide, servindo o contrato, embora imprescindível, unicamente para definir o objeto do direito e disciplinar a relação entre os multiproprietários, e entre estes e a empresa promotora, a qual é delegada a função de gerir o imóvel. Entretanto, a recíproca limitação (espaço-temporal) de poderes não é
213 Ibidem. p. 58.
fator de intermediação, senão de mera coordenação e demarcação de esferas jurídicas, não retirando, pois, a natureza real do direito do multiproprietário, com prevalência erga omnes.214
Ainda, sobre a clássica divisão entre os direitos patrimoniais:
Há clássica divisão entre os direitos patrimoniais, colocando, de um lado, os direitos pessoais, ou de crédito, e, de outro, os direitos reais. Na lição de Xxxxxxx Xxxxx, os direitos reais, vistos de seu aspecto externo, têm como objeto conduta a ser observada pelo sujeito passivo, ou seja, a abstenção dos integrantes da comunidade; já o direito creditório, pelo mesmo prisma, terá por objeto a conduta, positiva ou negativa, da pessoa determinada que se obrigou. Considerandos, porém, de seu aspecto interno, ou seja, do ponto de vista de seu conteúdo econômico, o objeto do direito de crédito continua a ser a prestação, enquanto o objeto do direito real passará a ser a própria coisa, da qual o titular haverá de obter, de forma direta e sem mediação de pessoa alguma, a utilidade maior ou menor prevista pelo direito objetivo.215
Porém, verifica-se uma tendência na doutrina em eliminas essas distinções: “O modo tradicional de categorizar os direitos patrimoniais tem sido questionado, ou ao menos há uma tendência no sentido de atenuar e até de eliminar essa distinção clássica entre situações reais e pessoais. Como bem coloca Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, as principais características dos direitos reais hoje podem ser encontradas em determinados direitos de créditos, ou situações mistas.216Trata-se como exemplo a relação de pertinência entre sujeito e coisa, que é encontrada tanto em situações jurídicas reais como em não-reais. O melhor modo de encarar a propriedade, como relação jurídica, implica, necessariamente, vê-la frente a outras relações jurídicas. Assim, no direito real de usufruto, há obrigações positivas e específicas do usufrutuário, frente ao nu-proprietário. Há, mais expectativa (não-pertinência), em vista de terceiros, que somente virão a se concretizar se e quando tais terceiros tiverem relações relevantes que envolvam a coisa.217 A própria e tradicional visão da relatividade dos contratos, que não beneficiaria e nem prejudicaria terceiros - inter alios acta tertio neque
214 Ibidem. 59 p.
215 Xxxxxxx Xxxxx, Teoria geral de los derechos reales, 2ª ed., Buenos Aires: Xxxxxx-Xxxxxx, p. 190, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 64.
216 Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, pp. 202-206, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 64.
217 Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, Introduzione alla problematica della proprietà, p. 105, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 65.
nocet neque prodest -, é hoje objeto de sério questionamento. O princípio da função social do contrato conduz ao dever de terceiros respeitar situações jurídicas alheias - obrigacionais ou reais, sob pena de responderem por perdas e danos218. Não há, portanto, no mundo da realidade jurídica, uma indiferença para terceiros que, caso criem situações incompatíveis ou impossibilitem o cumprimento da avença incorrerão em responsabilidade aquiliana219. De outro lado há relações jurídicas obrigacionais que podem trazer prejuízos a terceiros, ao serem cumpridas as obrigações pactuadas220. Em termos diversos, tem o contrato eficácia reflexa, ou relevância, em relação a terceiros, e cria repercussões sobre a trama das relações externas221. Evidente que a ausência de publicidade que, via de regra, envolve as relações obrigacionais, reduz a sua oponibilidade a terceiros que tenham posições jurídicas de interesse ou em conflito com as partes contratantes.222
É possível perceber que o direito caminha rumo à uma profunda mudança na regulamentação nos direitos reais de hoje, o que interessa a este estudo porque se abre uma brecha à multipropriedade, que tanto necessita de uma melhor regulamentação, as tendências acima descritas, se aplicadas, certamente trariam maior estabilidade a esta modalidade contratual.
Continua Loureiro: “Não teria sentido regular de modo distinto situações economicamente similares, por amor à divisão entre direitos de crédito e direitos reais.”223
O mesmo fenômeno pode ser visto, ainda, por outro prisma. A propriedade clássica do século XIX, que tinha coisas por objeto, converteu-se em capital, em razão da necessidade da inversão de
218 Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx, “Princípios do novo direito contractual e desregulamentação do mercado - Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento - Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual”, Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 750, pp. 113-120, abr. 1998, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 65.
219 Xxxxxxxx Xxxxxxx, O direito contractual e seus princípios fundamentais, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 199, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 65.
220 Xxxxxxx Xxxxxx Lisboa, Contratos difusos e coletivos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 64, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 66.
221 A. Xxxxxxx Xxxxxx, Diritto civile, v. 3, Il Contrato, Milão, Xxxxxx, 1987, p. 538, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 66.
222 A. Xxxxxxx Xxxxxx cita três hipóteses de conflitos com posições jurídicas de terceiros: o conflito com terceiros titulares anteriores do direito sob a mesma causa, como no caso de alienação sucessiva do mesmo direito a mais de uma pessoa; o conflito com terceiros credores, como no caso de fraude contra credores ou de execução. (Ob. cit., supra, p. 543) apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 66.
223 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Rexxxxx, 0000. p. 66.
grandes somas para viabilizar empreendimentos, em um regime de produção industrial em escala. Voltou-se a atividade econômica para captação de recursos e pulverizou-se a propriedade da empresa, em massa anônima de acionistas, que têm títulos facilmente transferíveis, em razão da crescente necessidade de liquidez. A propriedade incide agora sobre uma fração de capital e deixou o proprietário de ter posse sobre os bens que integram o ativo da empresa, passa sobre os bens que integram o ativo da empresa, passando apenas a deliberar indiretamente sobre o seu destino, em assembleias. Houve, assim, um seccionamento dos poderes proprietários, restando aos acionistas o proveito econômico, mediante percepção de dividendos, e aos gestores os efetivos poderes de controle e decisão224. É por isso que, na aguda síntese de Xxxxxx Xxxxxx, “o direito passa da posse ao crédito e muda, sem dizê-lo, o sentido da palavra propriedade”.225Daí a afirmação de que as novas figuras proprietárias - as ações de sociedades, as quotas de fundos de investimento, a securitização dos créditos, os trusts -, cada vez mais relevantes na economia mundial, mesclam e confundem a propriedade e o direito obrigacional. Esmaece, de algum modo, a tradicional separação entre propriedade e crédito, sendo mais adequado falar em direito patrimonial abrangendo ambas as categorias.226
É importante notar que a Constituição dá sustentação a essa construção doutrinaria: “Parece claro, assim, que os artigos 5º e 170 da Constituição Federal, ao tratarem da propriedade, não se limitam às coisas materiais tangíveis. Pode-se dizer que a situação proprietária - ao menos na esfera constitucional - não se identifica mais (ou ao menos não somente) com a coisa, em sentido material. Há uma relação complexa de situações, que envolvem bens materiais e imateriais, ou seja, bens em sentido amplo227. Na expressão sintética de Pontes de Miranda, para a Constituição, “propriedade é toda a patrimonialidade”228”.229
A Constituição Federal, e, por tabela, toda a influência que exerce sobre a legislação inferior, retomou, curiosamente, o objeto da propriedade preconizado, no século
224 Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, Propriedade imobiliária: função social e outros aspectos, Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 23, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 67.
225 Xxxxxx Xxxxxx, Aspectos jurídicos do capitalism modern, Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1947, p. 141, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 68.
226 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. x. 00.
000 Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, Xx xxxxxxxxx xxx xxxxx diritto, pp. 247-250, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 69.
228 Pontes de Xxxxxxx, Comentários à Constituição de 1967, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, v. 5, p. 368, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 70.
229 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. x. 00
xxxxxxx, xxxx xxxxxxxx xx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx: “a idéia geral de propriedade é ampla: ela compreende a universalidade dos objetos exteriores, corpóreos e incorpóreos, que constituem a fortuna ou o patrimônio de cada um. Tanto fazem parte da propriedade as cousas corpóreas que nos pertencem de um modo mais ou menos completo, como os fatos ou as prestações que se nos devem e que, à semelhança das coisas materiais, têm valor apreciável promiscuamente representado pela moeda”.230”.231
IX.II. Conteúdo e Características da Propriedade.
Segundo Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, a propriedade “é um poder geral, do qual todos os poderes imagináveis fazem parte, não sendo senão exteriorizações da sua plenitude”232. Chega-se a afirmar a impossibilidade de enumerá-los, porque não é possível dizer o que o proprietário pode fazer, mas apenas o que ele não pode.233
O art. 524 do Código Civil “contém descrição analítica dos poderes dos proprietários, contentando-se apenas com a sua estrutura, mas desprezando o seu aspecto funcional. Fixa os chamados poderes internos e econômicos de usar, fruir e dispor (jus utendi, fruendi et abutendi) e o poder jurídico de excluir o bem das ingerências alheias.234
Esses poderem podem ser assim definidos:
O chamado ius utendi nada mais é do que colocar a coisa a serviço do proprietário, desde que sem modificação de sua substância235. A utilização pode ser tanto em proveito próprio como de terceiro. O Chamado ius fruendi envolve a percepção dos frutos, tanto naturais quanto civils. Parte da doutrina, porém, entende que a faculdade de gozo compreende as possíveis formas de utilização das coisas, tanto em sentido jurídico - gravando-a com servidão usufruto, ou dando-a
230 Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, Consolidação das leis civils: introdução, noções fundamentais, Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx, 0000,x. XX, apud XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 70.
231 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 70.
232 Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, Instituições de direito civil, tradução da 6ª ed. italiana por Xxxxx Xxxxxxxx, Campinas: Bookseller, 1999, v. 2, p. 456, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 73.
233 XXXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 73.
234 Gustavo Tepedino, “A nova propriedade: o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição”, Revista Forense, Rio de Janeiro,v. 306, abr./jun. 1989, pp. 73-78, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 73.
235 Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, Instituições de direito civil, v. 4, p. 73, apud LOUREIRO, XXXXXXXXX XXXXXXX. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 74.