Contratos de Intermediação no Código dos Valores mobiliários
Contratos de Intermediação no Código dos Valores mobiliários
Xxx Xxxxx Xxxxxx *
* Doutor em Direito. Professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
O conteúdo deste texto corresponde, basicamente, à apresentação efectuada no ciclo de conferências efectuadas pela Universidade Nova de Lisboa, em Dezembro de 1999, dedicado ao novo Código do Mercado de Valores Mobiliários. O objectivo da conferência, tal como me foi assinalado pela organização, assenta na enunciação do regime do novo Código e da Legislação Complementar, pondo em destaque as alterações de regime introduzidas pelo novo diploma.
Introdução
O título VI1 do Código dos Valores Mobiliários (CVM) tem o nome de “Intermediação”. O seu capítulo II designa-se “Contratos de Intermediação”. Creio que quando me “ordenaram” que falasse2 e escrevesse3 sobre contratos de intermediação no CVM o que era pretendido era que apresentasse algumas reflexões sobre esse capítulo – e só sobre ele.
Tais reflexões vão naturalmente marcadas pela novidade da matéria normativa em causa. O CVM está na primeira infância, ou mesmo na fase pré-natal, não foi ainda objecto de discussão nem sofreu a prova da sua aplicação. Não tenho, assim, Doutrina com que possa dialogar, Jurisprudência que possa glosar, nem opiniões de práticos para me estimular. A minha ingenuidade será evidente.
Comecemos, pois, a observação do capítulo II do título VI do CVM. Divide-se ele em seis secções assim denominadas: Regras Gerais, Ordens, Gestão de Carteira, Assistência e Colocação, Registo e Depósito, Consultoria para Investimento.
As ordens, embora possam dar lugar a contratos, não são contratos4. Deixá-las-ei, pois, fora do objecto da minha atenção.
As “assistência e colocação” não são apresentadas, nos artigos que o CVM lhes dedica, como um tipo contratual único. Seguindo a sugestão da lei, distinguirei os tipos assistência, colocação e tomada firme (ainda que venha a afirmar que a tomada livre comunga da natureza da colocação). Poderia ainda distinguir o contrato para recolha de intenções de investimento que é objecto do art. 342, mas a falta de autonomia da sua regulação torna tal distinção inútil.
Já em relação ao contrato para registo e depósito, sempre seguindo as sugestões da lei, parece possível considerar a existência de um tipo único. Assim farei.
1
No Diário da República consta “V”, mas trata-se de lapso evidente.
2
O Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx (a quem agradeço também a leitura crítica que fez da primeira versão deste texto), ao desafiar-me para intervir sobre o objecto deste escrito no seminário acerca do novo Código dos Valores Mobiliários promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, com a colaboração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
3
O Dr. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx (a quem agradeço também a leitura crítica que fez da primeira versão deste texto), ao oferecer-me os Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários para divulgar a minha intervenção.
4
V. XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, As Transacções de Xxxxx Xxxxxx no Âmbito da Intermediação no Mercado de Valores Mobiliários in Direito dos Valores Mobiliários (obra colectiva promovida pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), Lisboa, Lex, 1997, pág. 296, e XXXX XX XXXXXXXX XXXXXXXX, A Celebração de Negócios em Bolsa, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. I (obra colectiva promovida pelo Instituto dos Valores Mobiliários), Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 184.
Também a consultoria não é dividida pelo legislador e não parece merecer sê-lo. Abordarei, pois, os seguintes tipos contratuais:
- Contrato de gestão de carteira;
- Contrato de assistência;
- Contrato de colocação (com a submodalidade de colocação com garantia);
- Contrato de tomada firme;
- Contrato para registo ou depósito;
- Contrato de consultoria para investimento.
Antes de abordar cada um destes tipos, porém, dedicarei algum tempo a aspectos gerais. Primeiro ao modo pelo qual o CVM configurou os tipos contratuais em causa, depois às regras comuns aos mesmos.
1. Configuração pela lei dos tipos de contratos sob análise
1.1. Os modos de previsão usados pela lei5
Em relação a alguns tipos, o legislador entendeu dar uma noção por meio da enunciação expressa das obrigações assumidas pela parte que tem a seu cargo a prestação característica6 do contrato. Noutros casos não. Vejamos.
No que respeita à gestão de (uma) carteira (individualizada de valores mobiliários), o art. 332, nº 1, diz que por tal contrato o intermediário financeiro se obriga “a realizar todos os actos tendentes à valorização da carteira” e “a exercer todos os direitos inerentes aos valores mobiliários que integram a carteira”. É de notar o nº 2 do
art. 333, segundo o qual “o disposto no presente título aplica-se à gestão de valores mobiliários, ainda que a carteira integre bens de outra natureza”. Em minha opinião, significa tal preceito que, mesmo que o contrato não seja qualificável como (apenas) contrato de gestão de carteira de valores mobiliários, as regras legais sobre este tipo
5
Sobre o modo de previsão legal dos contratos, v. o meu Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, nº 3.2.
6
Ao usar esta via de diferenciação dos tipos, não estou a reconhecer que ela seja suficiente para o fim em causa ou que possa servir de base única à qualificação dos contratos (problemas estes que abordei em Tipicidade e Aticipicidade dos Contratos). Estou apenas a usar uma expressão consagrada para descrever a técnica que o legislador usou – técnica essa que parece não originar dificuldades, por todos (ou quase todos) os tipos em causa serem reconduzíveis a um mesmo “macrotipo”: a prestação de serviços. A atribuição à prestação característica do contrato de um papel relevante parece ter surgido no Direito Internacional Privado (sobretudo com XXXXX X. XXXXXXXXX) e ser aí que tem um lugar central. Prova disso é o art. 4º, nº 2, da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais – para não citar as legislações nacionais que também a fazem relevar. Entre a inúmera bibliografia sobre o tema, v., por exemplo: na bibliografia estrangeira (sem preocupação de citar últimas edições), XXXXX X. XXXXXXXXX, Handsbuch des Internationalen Privatrechts, 49 ed., Basileia, Verlag für Recht und Gesellschaft, vol. II, 1958, págs. 639 e segs., XXXXX XXXXXXX, Internationales Vertragsrecht, Berna, Stämpfli, 1962, págs. 108 e segs., o relatório que XXXXX XXXXXXXX e XXXX XXXXXXX fizeram em preparação da referida Convenção de Roma (nomeadamente o nº 3 dos comentários ao artigo 4), publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias nº C 282, de 31.10.80, XXXXXXX XXXXX, Internationales Privatrecht, 69 ed., Munique,
C.H. Xxxx, 1987, v.g. pág. 428; na bibliografia portuguesa, A. XXXXXX XXXXXXX, Algumas Considerações acerca da Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122, nºs 3.787, 3.788 e 3.789, maxime nº 3.789, pág. 366, XXXXX XXXXXX XXXXX, O Contrato de Concessão Comercial, Coimbra, Livraria Almedina, 1990, págs. 163 e 164, Os Contratos Bancários e a Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, in Revista da Banca, nº 28, Outubro/Dezembro 1993, págs. 97 e segs., e A Representação nos Contratos Internacionais, Coimbra, Livraria Almedina, 1999, pág. 448, nota (37), XXX XXXXXX XXXXX XXXXX, Da Lei Aplicável ao Contrato de Trabalho Internacional, Livraria Almedina, s/d (mas 1992), págs. 545 e segs., e EUGÉNIA GALVÃO TELES, A Prestação Característica: um Novo Conceito para Determinar a Lei Subsidiariamente Aplicável aos Contratos Internacionais. O Artigo 4º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, in O Direito, ano 127, 1995, I-II (Janeiro- Junho), págs. 71 e segs..
contratual aplicar-se-ão à parte do contrato que mereça tal qualificação.
No que respeita à assistência, o art. 337, nº 1, diz que “os contratos de assistência técnica, económica e financeira em oferta pública abrangem a prestação dos serviços necessários à preparação, ao lançamento e à execução da oferta”.
No que respeita à colocação, o art. 338, nº 1, diz que por esse contrato o intermediário financeiro se obriga a desenvolver os melhores esforços em ordem à distribuição dos valores mobiliários que são objecto de oferta pública, incluindo a recepção das ordens de subscrição ou de aquisição. O art. 340, sob a epígrafe “garantia de colocação”, diz que “no contrato de colocação o intermediário financeiro pode também obrigar-se a adquirir, no todo ou em parte, para si ou para outrem, os valores mobiliários que não tenham sido subscritos ou adquiridos pelos destinatários da oferta” – o que representa a consagração de um subtipo do tipo contratual em causa.
No que respeita ao contrato de tomada firme, o art. 339, nº 1, diz que por ele “o intermediário financeiro adquire os valores mobiliários que são objecto de oferta pública de distribuição e obriga-se a colocá-los por sua conta e risco nos termos e nos prazos acordados com o emitente”.
No que respeita ao contrato para registo ou depósito de valores mobiliários, o legislador, aparentemente, seguiu técnica diferente, não enunciando a obrigação (ou obrigações) característica do intermediário financeiro. Literalmente, o nº 1 do art. 343 nem sequer aborda o tema, já que toma por objecto (pelo menos, por primeiro objecto) o que deve constar do escrito contratual. Mas, parece razoável entender que o legislador também quis significar que as obrigações características deste tipo contratual são as que resultam de outras normas, legais e regulamentares.
Por último, no que respeita ao tipo contratual “consultoria para investimento”, o legislador, no artigo único (o 345) da secção que lhe dedica, omitiu totalmente enunciados sobre a sua prestação característica. Do nome adoptado resulta, porém, que tal prestação tem de ser um serviço consistente em informações, estudos ou conselhos sobre valores mobiliários ou sobre outros aspectos que possam determinar decisões de investimento em valores mobiliários.
As razões que podem ter levado o legislador à adopção dessas diferentes técnicas, no que respeita ao modo de consagração dos tipos contratuais, não são evidentes. Provavelmente essas razões estarão no “diálogo” que o CVM estabeleceu, nesta parte, com o Código de 1991.
Na verdade, o Código do Mercado de Valores Mobiliários não dirigia (dirige, à data em que escrevo, pois ainda vigora) regras a estes tipos contratuais, enquanto tais. Os contratos de intermediação eram regulados apenas na medida em que as actividades de intermediação em valores mobiliários eram reguladas.
As principais regras sobre essas actividades apareciam no capítulo I do título V. A partir
dessas regras era possível identificar vários tipos contratuais. Se quisermos seguir a ordem do CVM, e sem preocupação de ser exaustivo na detecção dos preceitos relevantes, podemos dizer que:
– a actividade de gestão de carteiras (e, consequentemente, o respectivo tipo contratual) aparecia referida no art. 608, alínea h), e no art. 611;
– a actividade de assistência (e, consequentemente, o respectivo tipo contratual), no sentido que o CVM lhe dá, aparecia em múltiplos artigos do Código de 1991, de que será bom exemplo o art. 125, nº 3;
– a actividade de colocação (e, consequentemente, o respectivo tipo contratual) aparecia tratada nos arts. 124 e segs., a propósito da colocação das emissões, e no art. 608, alínea e), sendo de sublinhar que o Código ora substituído dedicava já atenção ao regime deste tipo contratual, enquanto tal, nomeadamente nos arts. 125 e segs.;
– a tomada firme aparecia tratada a propósito dos modos de subscrição, enquanto subscrição indirecta7 (arts. 118 e segs.), e a propósito da colocação (art. 125, nº 1, alínea a));
– a actividade de registo ou depósito de valores mobiliários (e, consequentemente, o respectivo tipo contratual) aparecia tratada no art. 608, alínea g);
– a actividade de consultoria (e, consequentemente, o respectivo tipo contratual) aparecia tratada no art. 608, alínea l), e no art. 612.
Na elaboração doutrinária acerca do Código de 1991 os contratos de colocação mereceram especial atenção. Ao regular agora os tipos assistência, colocação (com o subtipo da colocação com garantia) e tomada firme, o legislador procurou corrigir a tipificação que resultava do Código de 1991, autonomizando os tipos assistência e tomada firme do tipo colocação. Por isso se terá visto na necessidade de identificar claramente a prestação característica de cada um. A mesma necessidade não terá sentido relativamente aos demais tipos incluídos nos contratos de intermediação. Quanto a estes, se dedicou maior atenção à definição do tipo contratual “gestão de carteira”, relativamente à que dedicou aos tipos “contrato para registo ou depósito” e “contrato de consultoria para investimento”, terá sido pelas razões de a gestão de carteiras ser actividade menos estereotipada e potencialmente mais geradora dos litígios.
7
Para a crítica do conceito de “subscrição indirecta”, v. XXXXXX XXXXX, Subscrição Indirecta e Tomada Firme, in Direito e Justiça, vol. VIII, tomo I, 1999, pág. 245, e XXXXX XXXXXX, Emissão e Subscrição de Valores Mobiliários, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, cit., págs. 218 e 219.
1.2. O elemento subjectivo dos tipos
Ainda antes de passarmos ao comentário das regras comuns aos vários tipos contra- tuais e preparando essa passagem, chamamos a atenção para a presença nos tipos em causa de um elemento subjectivo: a qualidade de intermediário financeiro da parte que se obriga à prestação característica8.
Isso resulta, em geral, de o art. 289, nº 2, estabelecer que “só os intermediários financeiros podem exercer, a título profissional, actividades de intermediação financeira”, de o nº 1 do mesmo artigo dizer que são actividades de intermediação financeira os serviços de investimento em valores mobiliários e os serviços auxiliares dos serviços de investimento e dos elencos destes dois tipos de serviço apresentados nos arts. 290 e 291.
Em especial, isso resulta:
– no que respeita ao contrato de gestão de carteira, do art. 332, nº 1; deste preceito retira-se que a generalidade das obrigações emergentes deste contrato têm de ficar a cargo de um intermediário financeiro; do contrato têm de constar os “actos de gestão que podem ser praticados através de terceiro” (art. 332, nº 2, alínea e));
– no que respeita ao contrato de assistência, do art. 337, nº 2; deste preceito retira-se que as principais (mas não todas) obrigações emergentes deste contrato têm de ficar a cargo de um intermediário financeiro;
– no que respeita ao contrato de colocação, dos arts. 338, 340 e 341; destes preceitos retira-se que todas as obrigações emergentes deste contrato têm de ficar a cargo de um intermediário financeiro;
– no que respeita ao contrato de tomada firme, do art. 339, nº 1; deste preceito retira-se que todas as obrigações emergentes deste contrato têm de ficar a cargo de um intermediário financeiro;
– no que respeita ao contrato para registo ou depósito, do art. 343; deste preceito, nomeadamente do seu nº 3, retira-se que, pelo menos, parte das obrigações emergentes deste contrato têm de ficar a cargo de um intermediário financeiro9.
Apenas no que respeita à consultoria para investimento não se verifica a quase total reserva da actividade em favor dos intermediários financeiros. O art. 294 estabelece
que a actividade pode ser exercida quer por intermediários financeiros quer por “consultores autónomos”. O mesmo preceito diz que estes últimos têm de se “dedicar exclusivamente a essa actividade”, resultando do art. 301 que o exercício da actividade depende de autorização da CMVM e está reservado a pessoas singulares que demonstrem aptidão profissional e meios materiais suficientes. O art. 320 prevê a elaboração pela CMVM de regulamentos sobre o acesso à actividade e o respectivo exercício.
A presença em vários dos tipos contratuais em causa do elemento consistente em a parte que tem a seu cargo a prestação característica dever ser um intermediário financeiro levanta o problema da validade dos contratos de conteúdo similar em que a parte que assume tal prestação não é um intermediário financeiro. Abordei, por escrito, duas vezes, problema similar, a propósito da intervenção em contratos de locação financeira, como locador, de quem não esteja legalmente autorizado a exercer a actividade em causa . Na primeira vez sustentei a nulidade de qualquer contrato que atribuísse a um dos sujeitos nele intervenientes os direitos e obrigações próprios do locador na locação financeira, desde que tal sujeito não fosse uma entidade daquelas a que a lei reserva a actividade de locação financeira10. Da segunda vez acentuei que o que deve ser proibido não é o recurso à forma jurídica em causa, mas sim o exercício empresarial não previamente autorizado da actividade11. Continuando a ter esta segunda opinião, acho hoje a primeira errada: a ilegalidade consistente em um sujeito não estar autorizado a exercer uma actividade não determina a invalidade dos contratos celebrados no seu exercício. O art. 294 do Código Civil pode e deve ser interpretado no sentido de que, existindo ilegalidade no campo do Direito Administrativo (ou noutro campo que não o do Direito Privado), daí não resulta necessariamente a invalidade dos negócios jurídicos. Acresce que só o exercício a título profissional das actividades de intermediação financeira está reservado aos intermediários financeiros – não a prática ocasional, isolada, de um acto de intermediação financeira.
Um outro problema (não desligável do anterior, mas enunciável autonomamente) levantado pelas exigência legais de que um dos intervenientes em contratos de certo tipo tenha uma certa qualidade (de transportador, de banco, de seguradora, etc.) é o das consequências da ausência de tal qualidade sobre a recondutibilidade ao tipo12. Creio que a resposta ao problema não pode ser universal, mas julgo que, na maior
8
Quanto ao elenco dos intermediários financeiros, v. o art. 293 do CVM; quando às condições de actividade pelos intermediários financeiros, v. os arts. 295 e segs. do CVM.
9
A propósito destas regras que possibilitam aos intermediários financeiros recorrer a terceiros para a execução das suas obrigações, o Dr. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx chamou a minha atenção para o interesse que teria reflectir globalmente sobre a subcontratação das actividades de intermediação. Não me é, porém, possível fazê-lo neste
texto.
10
V. A Locação Financeira (Estudo Jurídico do Leasing Financeiro), Lisboa, Editora Danúbio, 1983, s/d (mas 1983), pág. 58.
11
V. 15 Anos de Leis sobre “Leasing” – Balanço e Perspectivas, in Fisco nº 63/64, Mar./Abr. 96, pág. 11.
12
V. XXXXX XXXXXX XXXXX, O Contrato de Concessão Comercial, cit,. págs. 163 e segs., e o meu Tipicidade e Atipicidade dos
parte dos casos, a falta de tal elemento subjectivo não impede a recondução ao tipo. A solução estará na própria natureza da qualidade exigida ao sujeito. Se ela é um mero licenciamento administrativo, não me parece que a ausência dele determine a não recondução do contrato ao tipo. Se ela consiste numa característica cuja ausência impeça que o próprio tipo social se verifique (como sucede com as empresas seguradoras, cuja existência enquanto tal é pressuposto do mecanismo económico da generalidade dos seguros), então é a própria substância do requisito que impede que se deva reconduzir ao tipo o contrato em que tal requisito não esteja presente.
2. Regras comuns aos vários tipos contratuais
Para além do pouco que se possa generalizar13 a partir das regras que dita sobre cada tipo, o CVM estabelece regras declaradamente comuns aos vários tipos. São as que constam da Secção I do capítulo objecto destas reflexões. Intitula-se essa Secção, esclarecedoramente, “Regras Gerais”. Vejamos quais são, acompanhando a lei.
2.1. Especialidades dos contratos com investidores não institucionais
No art. 321, o legislador estabelece três regras sobre contratos em que sejam partes investidores não institucionais14, todas elas de protecção a tais investidores, entendidos como parte mais fraca.
A primeira (nº 1) estabelece que a nulidade resultante da inobservância da forma legal só pode ser invocada pelo investidor. Dos contratos de intermediação regulados no CVM os mais frequentemente celebrados por investidores não institucionais serão o de gestão de carteira, o para registo ou depósito e o de consultoria. É de dizer que em relação aos dois primeiros a lei estabelece que têm de ser reduzidos a escrito (arts. 335, nº 1, e 344, nº 1)15, mas que o mesmo já não acontece relativamente ao terceiro.
A segunda regra sobre contratos com investidores não institucionais é a da
Contratos, nº 3.1..
13
E nesse pouco estará a obrigatoriedade tendencial de a prestação característica dos contratos ficar a cargo de um intermediário financeiro, nos termos expostos no número anterior.
14
Sobre os âmbitos das categorias investidores institucionais e investidores não institucionais, v. o art. 30 do CVM.
15
Sendo de lembrar que o art. 4º do CVM estabelece que as exigências de forma escrita do Código se consideram cumpridas “ainda que o suporte em papel ou a assinatura sejam substituídos por outro meio de identificação que assegure níveis equivalentes de inteligibilidade, de durabilidade e de autenticidade.”
16
Aprovado pelo Dec.-Lei 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações resultantes do Dec.-Lei 220/95, de 31
de Agosto, e do Dec.-Lei 249/99, de 7 de Julho .
17
Devendo ainda ser lembrado que, por força das alterações introduzidas pelo Dec.-Lei 249/99, de 7 de Julho, o regime em causa se aplica igualmente “às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar” (art. 1º, nº 2, do Dec.-Lei 446/85, de 25 de Outubro, na redacção do referido Dec.-Lei 249/99).
18
Estou a pensar no art. 257 do Código, no qual são sujeitas a registo na CMVM as cláusulas contratuais gerais usadas nas operações a prazo, ficando as mesmas submetidas a juízo de aprovação “se o activo subjacente tiver natureza nocional ou for constituído por valores mobiliários não admitidos à negociação em mercado regulamentado” (nº 2, alínea b)).
19
Na versão deste texto que foi facultada aos intervenientes no Seminário que o motivou a minha prosa era, neste ponto (e também noutros), algo diversa. Ao alterá-la (neste ponto), tive em conta as observações que o Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx e a Dra. Xxxxxx Xxxxxx fizeram durante o debate.
20
Normas com estrutura similar são, por exemplo, as do nº 2 do art. 5º e do nº 1 do art. 6º da Convenção de
equiparação destes a consumidores, para efeitos da aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais (art. 321, nº 2). Como é sabido, este regime16 contém disposições comuns a todas as cláusulas contratuais gerais, disposições apenas aplicáveis às relações entre empresários ou entidades equiparáveis e disposições apenas aplicáveis às relações entre empresários e consumidores finais e similares, sendo estas as mais restritivas17. Os investidores não institucionais que, obviamente, enquanto investidores, não são consumidores, são, nas suas relações contratuais com os intermediários financeiros, equiparados a consumidores, certamente por o legislador ter entendido que há analogia entre as situações em causa.
É de sublinhar que as cláusulas contratuais gerais que os intermediários financeiros queiram adoptar nos contratos de gestão de carteira e nos contratos para registo ou depósito estão submetidas a registo na CMVM (arts. 335, nº 2, e 344, nº 2). Repare-
-se em que, ao contrário do que acontece noutros casos18, a lei não diz que tais cláusulas estão sujeitas a aprovação da CMVM. À face do art. 365, porém, cabe, em qualquer caso, à CMVM um juízo sobre a conformidade dos textos com o regime das cláusulas contratuais gerais, nomeadamente com as regras próprias das relações entre empresários e consumidores19.
A terceira regra sobre contratos com investidores não institucionais (art. 321, nº 3) respeita a situações internacionais em que o investidor resida em Portugal e as operações relevantes devam ter lugar em Portugal e determina que nessas situações a aplicação de um Direito estrangeiro não pode privar o investidor da protecção que lhe é dada pelas regras do CVM sobre contratos de intermediação e sobre certos deveres dos intermediários financeiros em matéria de informação, de conflito de interesses e de segregação patrimonial. Mais uma vez, agora relativamente a situações plurilocalizadas, o legislador protege a parte que entendeu ser o contraente débil, recorrendo a uma técnica conhecida 20.
No art. 322, o legislador estabelece duas regras.
A primeira consta dos nºs 1 e 4 e abrange um dos tipos dos contratos de intermediação – o contrato de gestão de carteira – e as ordens para a execução de operações. Consiste ela em que, nessas situações, quando a emissão de ordem ou a conclusão do contrato, pelo investidor não institucional, tenha ocorrido fora do estabelecimento do intermediário financeiro, a ordem ou o contrato só produzirem efeitos três dias úteis após a declaração negocial do investidor, gozando este, durante esses dias, do direito de arrependimento, desde que, cumulativamente:
– entre o investidor e o intermediário financeiro não houvesse antes uma relação de clientela;
– o contrato entre o investidor e o intermediário financeiro que culminou na emissão da ordem ou na conclusão do contrato não tenha sido solicitado pelo investidor.
A lei esclarece o que é uma relação de clientela, para este efeito, no nº 3 do artigo em causa.
A segunda das regras acerca dos contratos celebrados fora do estabelecimento visa os contratos de consultoria para investimento entre consultores autónomos e investidores não institucionais, proibindo a esses consultores contactos com tais investidores, salvo solicitação destes (art. 322, nº 5). Manifestamente, o legislador não quer promover a consultoria por entidades que não sejam intermediários financeiros...
O mais interessante a propósito deste tema não é, porém, nenhuma das regras referidas, mas a própria noção de “contratos celebrados fora do estabelecimento”. A noção chama o problema clássico da determinação do lugar (e do momento) da conclusão dos contratos, com as especificidades que decorrem do uso de tecnologias modernas. Não posso entrar nele21.
2.2. Especialidades dos contratos celebrados fora do estabelecimento
Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais.
21
Sobre o momento da formação do contrato, v. XXXXXXXX XXXXX XXXXXXX, Sobre a Formação do Contrato segundo os arts. 217º e 218º, 224º a 226º e 228º a 235º do Código Civil, in Revista de Direito e Economia, ano IX, nºs 1-2, Janeiro/Dezembro 1983, maxime págs. 126 e 127 e 151 e segs., e A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1992, págs. 454 e segs., XXXXX XXXXXX XXXXX XXXXXX e XXX XXXXXX XXXXX XXXXX, Contratos Internacionais, Coimbra, Livraria Almedina, 1986, págs. 47 e segs., e XXXXXXX XXXXXXXX DA XXXXX XX XXXXX, Conflito de Clausulados e Consenso nos Contratos Internacionais, Porto, UCP, 1999, págs. 261 e segs.. Sobre o problema do lugar da celebração, v. XXXXXX XX XXXXXXXXX XXXXXXX, Da Compra e Venda em Direito Internacional Privado, Lisboa, 1954, págs. 225 e segs., e Direito Internacional Privado, vol. II, AAFDL, 1959 (polico-
piado), págs. 33, 34 e 263 e segs., XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXX, Manual dos Contratos em Geral, 39 ed., Lisboa, 1965, págs. 204 e segs.. Sobre os (alguns...) problemas levantados pelas tecnologias modernas quanto à conclusão dos contratos, v. XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Livraria Almedina, 1992, vol. II, págs. 812 e segs. e 823 e segs., XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, Coimbra, Livraria Almedina, 1999, págs. 302 e segs., XXXXX XXXXXX, A Oferta de Valores Mobiliários Realizada através da Internet, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 1, segundo semestre 1997, maxime págs. 42 e 43. O texto Geneva Round Table on Electronic Commerce and Private International Law, publicado na Uniform Law Review, NS vol IV, 1999-3 (págs. 686 e segs.), parece dar um bom panorama do estado das questões relativas ao comércio electrónico e às operações realizadas por meio da Internet.
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2.3. Deveres de informação
O terceiro artigo (o 323) da secção dedicada às regras gerais sobre contratos de intermediação impõe aos intermediários financeiros deveres de informação relativamente ao período posterior à conclusão do contrato. Mas, é a própria letra do preceito que lembra que, noutro local (no art. 312) a lei também impõe aos intermediários financeiros deveres de informação relativamente ao período anterior à conclusão do contrato22.
No que respeita a esses deveres de informação no período pré-contratual, é de sublinhar a regra do nº 2 do art. 312, segundo a qual a extensão e a profundidade da informação deverá ser tanto maior quanto menor for o grau de conhecimentos e de experiência do cliente. É óbvia a ligação desta regra com as que visam proteger os investidores não institucionais.
Por outro lado, é de chamar a atenção para que nos preceitos dedicados a cada tipo contratual surgem também regras sobre deveres de informação. Tal sucede, em primeiro lugar, relativamente ao contrato de gestão de carteira, pois o art. 336 estabelece que “o gestor tem o dever de informar o cliente sobre os riscos a que fica sujeito em consequência da gestão, tendo em conta especialmente os objectivos do investimento e o grau de discricionaridade concedida ao gestor”. Tal sucede também relativamente ao contrato de assistência, pois o art. 337, nº 3, impõe ao intermediário financeiro
a obrigação de aconselhar o oferente sobre os termos da oferta – o que é uma modalidade de informação. Tal sucede, por último, também relativamente ao contrato de consultoria para investimento, pois o art. 345, alíneas a) e c), impõe ao consultor a obrigação de informar o consulente sobre os riscos envolvidos pelo investimento objecto de consulta e sobre a existência de interesses do consultor que se relacionem com a consulta.
Conhecidas as dificuldades das matérias em causa23, melhor é não tentar aqui qualquer esboço de síntese dessa coordenação.
A segunda dessas regras (art. 324, nº 2) estabelece que, salvo nos casos de dolo ou culpa grave, a responsabilidade do intermediário financeiro por negócio em que haja intervindo enquanto tal prescreve no prazo de dois anos a partir da data em que o cliente tenha conhecimento da conclusão do negócio e dos respectivos termos. Conclui-se, pois, que nos casos de dolo ou culpa grave o prazo de prescrição é o do regime comum da responsabilidade contratual, que, como é sabido, é o prazo prescricional geral de vinte anos24. Se é de aplaudir o encurtamento constante da regra do art. 324, nº 2, parece-me que é também de questionar se não se justificaria ter também reduzido o prazo prescricional aplicável aos casos de dolo ou culpa grave.
A estas duas regras há que acrescentar uma outra, que se encontra fora do capítulo dedicado aos contratos de intermediação. Trata-se da presunção de culpa estabelecida no art. 314, nº 2, que se aplica sempre o dano causado pelo intermediário financeiro ocorra no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais ou, ainda que fora de tal âmbito, se for originado pela violação de deveres de informação.
O último dos quatro artigos das regras gerais sobre contratos de intermediação é dedicado à responsabilidade contratual e consagra duas regras.
A primeira dessas regras (art. 324, nº 1) estabelece a nulidade das cláusulas de exclusão da responsabilidade dos intermediários financeiros por actos praticados por seu representante. Obviamente, esta regra tem de ser coordenada com as regras gerais, constantes do Código Civil, sobre cláusulas de limitação de responsabilidade e com as regras especiais sobre a mesma matéria relativas às cláusulas contratuais gerais.
2.4. Responsabilidade: regulação contratual e prazo de prescrição
E do art. 7º, nº 1, do CVM resulta que a informação respeitante a actividades de intermediação deve ser “completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita”.
23
Sobre o primeiro assunto, v., por exemplo, XXX XXXXX, Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, Coimbra, Livraria Almedina, 1985, maxime págs. 453 e segs., e XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento vol. XXVIII, Coimbra, 1985, maxime págs. 142 e segs.. Sobre o segundo assunto, v., por exemplo, XXXXXXX XX XXXXX XXXXXXX, O Problema do Contrato. As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, maxime págs. 275 e segs., e ALMENO DE SÁ, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, maxime págs. 165 e segs..
3. Regras próprias de cada tipo contratual e possibilidade de recondução dos contratos de intermediação aos tipos legais pré-existentes
Vou agora centrar-me nas regras que o CVM contém para cada tipo de contrato de intermediação. Para além disso, discutirei a possibilidade de recondução dos contratos de intermediação aos tipos legais pré-existentes ao CVM, nomeadamente do prisma da aplicação subsidiária dos regimes desses tipos. Desde já, porém, advirto que esse juízo sobre a recondutibilidade a outros tipos pode ser determinado pela conformação que as partes dêem aos contratos. Na verdade, os tipos de contratos de intermediação consagrados no CVM são suficientemente elásticos para permitirem que as partes, sem os extravasarem, estabeleçam cláusulas capazes de influenciar o juízo de recondução aos tipos legais pré-existentes.
3.1. Contrato de gestão de carteira
Para além do que já evoquei (as regras relativas à forma, à sujeição a registo na CMVM das cláusulas contratuais gerais e a deveres de informação específicos, constantes, respectivamente, dos nºs 1 e 2 do art. 335 e do art. 336), a lei estabelece para este tipo contratual o seguinte:
– o conteúdo mínimo do contrato (art. 332, nº 2, e art. 333);
– o direito do cliente de dar ordens vinculativas ao gestor (art. 334, nº 1), salvo o caso dos contratos que garantem uma rendibilidade mínima (art. 334, nº 2).
24
Por força do art. 309 do Código Civil.
25
Estou, pois, a pressupor que o intermediário financeiro actua em nome do cliente, adquirindo em seu nome e, sobretudo, alienando valores registados em seu nome (embora o intermediário financeiro adquira muitas vezes valores em nome próprio destinados às carteiras que gere, transferindo-os de seguida para a titularidade dos clientes).
26
Irrazoável e fonte de dúvidas irresolúveis é o próprio preceito do art. 116, nº 2, do Código do Notariado. De facto, tem de ser considerado que muitíssimas procurações são conferidas “também no interesse do procurador”, pelo menos, desde que se entenda que há interesse do procurador sempre que este receba alguma remuneração pelos actos a cuja prática a procuração se destina.
27
Em relação ao conteúdo mínimo do contrato parece-me de realçar a imposição de definição do grau de discricionariedade concedida ao gestor.
No anteprojecto do novo Código o preceito definidor da obrigação característica do contrato tinha esta formulação: “pelo contrato de gestão individualizada e discricionária de uma carteira de valores mobiliários...”. A adjectivação da gestão como discricionária sublinhava a autonomia do intermediário financeiro no exercício da gestão. Mas tinha o inconveniente de propiciar a acentuação da discricionaridade, com reflexos no grau de protecção do cliente. Por isso, andou bem o legislador ao retirar do texto desse anteprojecto o adjectivo “discricionária”.
Não há, porém, dúvida de que é elemento característico deste tipo contratual a autonomia do intermediário financeiro no exercício da gestão. Isso resulta dos elementos e circunstâncias seguintes:
– o nome dado ao tipo legal (gestão – o que implica autonomia);
– a referência da lei à prática negocial, na qual o tipo contratual existe, sob o mesmo nome, e é caracterizado por tal autonomia do gestor;
– a referida imposição legal de que do contrato conste o grau de discricionariedade concedido ao gestor (art. 332, nº 2, alínea d)).
Um problema que a prática suscita e que o legislador não resolveu é o da forma da procuração pela qual o cliente atribui ao gestor poderes de representação25. Na verdade, é fortemente defensável que as procurações emitidas para efeitos dos contratos de gestão de carteiras devem ser reputadas procurações “também no interesse do procurador” – com a consequência estabelecida no art. 116, nº 2, do Código do Notariado de terem de ser lavradas por instrumento público destinado a arquivo no cartório notarial respectivo. Contra um tal entendimento pouco se poderá mesmo argumentar, à excepção da irrazoabilidade das suas consequências práticas26 – o que obviamente, só por si, não basta para sustentar a sua inaplicabilidade.
Como última nota sobre o regime fixado no CVM para este tipo contratual, chamo a atenção para a relevância que podem ter para a actividade de gestão de carteiras as regras sobre actuação como contraparte do cliente e sobre conflito de interesses constantes dos arts. 346 e 34727.
Quanto à possibilidade de recondução dos contratos de gestão de carteira a tipos contratuais pré-existentes, parece-me inquestionável a sua qualificação como prestação de serviços. Relativamente ao seu enquadramento nos subtipos legais da prestação de serviços, nomeadamente nos referidos no art. 1155 do Código Civil, a única hipótese plausível é a da recondução ao mandato. Parece-me que essa recondução poderá ou não verificar-se consoante a conformação que, em concerto, os contratos apresentem. Creio que, nalguns casos, o gestor assume obrigações que ultrapassam claramente
a prática de actos jurídicos por conta do cliente – o que determinará que, nesses casos, os contratos não sejam qualificáveis como mandatos, pelo menos, como meros
mandatos.
3.2. Contratos de assistência, colocação e tomada firme
Creio que se justifica tratar destes tipos em conjunto, pois eles têm vários aspectos em comum.
Antes de mais, estão, na configuração legal, todos ligados a ofertas públicas de valores mobiliários, abrangendo todos a prestação de serviços relacionados com tais ofertas.
Por outro lado, há, pelo menos, um aspecto do regime dos três tipos que o legislador tratou em comum. Trata-se dos consórcios de intermediários financeiros para a prestação dos serviços em causa (art. 341). Xxxxxxxx que, embora a lei apenas contemple consórcios para assistência ou colocação, nada parece impedir que também para a tomada firme se constituam consórcios. Como adiante salientarei, os tipos contratuais apresentados pela lei, também neste caso, não são fechados. Sobre este ponto, permito-me ainda acrescentar que tenho dúvidas sobre a aplicação a estes consórcios do regime constante do Dec.-Lei 231/81, de 28 de Julho, pois me parece discutível que os objectos prosseguidos pelos intermediários financeiros correspondam a alguma das possibilidades constantes do art. 2º do diploma em causa.
Para além das que já evoquei, notam-se as seguintes regras:
– possibilidade de os contratos de assistência e de colocação para uma mesma oferta pública serem celebrados com intermediários financeiros diversos (art. 338, nº 2)
– clarificação do carácter neutral da tomada firme relativamente aos direitos dos adquirentes, por meio da regra de que a tomada firme não afecta os direitos de preferência na subscrição ou na aquisição (art. 339, nº 3) e por meio da regra de que o tomador deve transferir para os adquirentes finais todos os direitos de conteúdo patrimonial inerentes aos valores mobiliários que se tenham
constituído após a data da tomada firme (art. 339, nº 2);
– obrigatoriedade de o contrato de consórcio para assistência ou colocação ter o acordo do oferente (art. 341, nº 1, primeira parte);
– fixação de um certo conteúdo mínimo ao contrato de consórcio (art. 341, nº 1, segunda parte);
– atribuição de certos poderes, internos e externos, ao chefe do consórcio (art. 341, nº2).
Focarei agora especialmente a tomada firme e a colocação com garantia. O CVM parece ter acolhido o critério de distinção que XXXXXX XXXX XXXXXXXX aponta para as duas figuras na vigência do Código de 1991: na tomada firme o intermediário subscreve necessariamente e imediatamente valores; na colocação com garantia só o faz eventualmente, após o período de subscrição, se os valores não forem integralmente subscritos por terceiros28.
Quanto à natureza da colocação com garantia, mantém-se também verdadeira a nota feita por XXXXXX XXXX XXXXXXXX relativamente ao Código de 1991, de que, apesar da designação, não estamos perante um contrato de garantia, no sentido corrente, mas sim, perante uma obrigação sujeita a condição29. Isso, porém, talvez não seja suficientemente esclarecedor. Já voltarei ao assunto.
Passando à possibilidade de recondução da tomada firme a outros tipos contratuais, direi que parece que, tal como a lei a caracteriza, a figura envolve sempre a (obrigação de) prestação, pelo intermediário financeiro, de serviços de colocação. Nessa medida, apesar de a lei aparentemente a ter erigido em tipo autónomo, a figura comunga30 da natureza da colocação. Por outro lado, a tomada firme envolve uma obrigação de aquisição de valores mobiliários, que se concretizará desde que a oferta não aborte. É essa característica da tomada firme que justifica que a existência de contrato que a ela obrigue sirva de base ao registo provisório de oferta pública, nos termos do art. 157, nº 1.
Assim, a relevância do elemento “obrigação de aquisição” suplanta, ou pode
Sobre a actuação dos intermediários financeiros como contrapartes, à luz do Código de 1991, v. XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Transacções de Xxxxx Xxxxxx, cit., págs. 299 e segs..
28
V. XXXXXX XXXX XXXXXXXX, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, AAFDL, 1997, pág. 327.
29
Ob. cit., loc. cit..
30
Continua a comungar, pois assim já sucedia do Código de 1991 – v. XXXXXX XXXX XXXXXXXX, ob. cit., págs. 328 e 332.
31
Sobre esses critérios, v., por exemplo, XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, Contratos Atípicos, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, págs. 215 e segs., e o meu Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, nº 2.3.
32
Opinião sustentada, entre nós, por XXXXX XX XXXXXXXXXXX, a propósito da chamada subscrição indirecta de aumentos de capital de sociedades anónimas, nos termos do art. 461 do Código das Sociedades Comerciais (no qual a noção de subscrição indirecta equivale à tomada firme) – v. Direito de Preferência dos Sócios em Aumentos de Capital nas Sociedades Anónimas e por Quotas, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, págs. 369 e 370.
33
Contratos Atípicos, cit., pág. 260.
suplantar, o elemento “obrigação de colocação”. Em qualquer dos casos, a importância desse primeiro elemento é inquestionável.
Parece, pois, que o contrato de tomada firme tem uma natureza mista: por um lado, é um contrato de prestação de serviços; por outro lado, é um negócio que se insere num processo de distribuição de valores mobiliários, dele resultando a obrigação de aquisição dos valores por parte do intermediário financeiro e a obrigação de alienação dos mesmos valores por parte do oferente. A convergência da aplicação das regras legais próprias de cada dimensão do negócio far-se-á de acordo com os critérios enunciados pela Doutrina a propósito dos contratos mistos e da união de contratos31.
Em relação à colocação com garantia, na medida em que dela resulta também uma obrigação de aquisição, embora condicionada, creio que as reflexões feitas a propósito da natureza da tomada firme lhe serão extensíveis, mutatis mutandis.
Voltando à natureza da tomada firme, vale a pena fazer referência à opinião que vê nela um negócio fiduciário – opinião essa, lembre-se, nascida a propósito do caso particular da tomada firme de aumentos de capital de sociedades anónimas, nos quais, lembre-se também, os accionistas gozam de direito de preferência32.
Nas palavras de XXXXX XXXX DE VASCONCELOS, “a fidúcia, na concepção tradicional, é geralmente configurada como uma atribuição patrimonial real, que é excessiva, limitada por uma convenção obrigacional oponível apenas entre as próprias partes, quer dizer entre fiduciante e fiduciário”33. Nas palavras de XXXXX XXXX XXX XXXX e XXXXX XXXXX XX XXXXXX, na sua dimensão convencional, a fidúcia é “um contrato pelo qual se confere ao fiduciário a plena titularidade de um direito e este se obriga a exercê-lo, em seu nome, mas no interesse de outrem e a transferi-lo em circunstâncias pré-
-determinadas ao fiduciante ou a terceiro”34. Analiticamente, creio que a noção de titularidade fiduciária implica:
a) que o bem ou direito em causa esteja afectado aos interesses de outrem;
b) que o bem ou direito em causa esteja separado do património geral do fiduciário;
c) que a titularidade tenha carácter temporário;
d) que os poderes do fiduciário, relativamente ao bem ou direito, estejam limitados, pelos menos no âmbito das suas relações com o fiduciante ou com o beneficiário da fidúcia.
Todas estas características se verificam, pelo menos parcialmente, na titularidade de valores mobiliários que para o intermediário financeiro resulta da tomada firme. No entanto, não creio que a situação se deva qualificar como fiduciária.
O oferente, ao recorrer à tomada firme, não pretende apenas a colocação. Pretende a certeza de que a oferta será inteiramente tomada e pretende poder mobilizar, com facilidade, o preço global correspondente aos valores oferecidos. Mais: pretende essas vantagens sem ter de incorrer em quaisquer encargos financeiros ou riscos, ou seja, pretende transmitir os riscos e encargos potenciais que seriam inerentes a um processo de oferta sem tomada firme. Nessa medida, a aquisição pelo intermediário financeiro dos valores objecto da oferta é meio necessário para a consecução do pretendido. A obrigação de retransmissão dos valores tomados é matizada de um modo que não é o característico da titularidade fiduciária. O excesso da atribuição ao fiduciário não se verifica. Quer a afectação do bem aos interesses de outrem quer a limitação dos poderes do titular não assumem a intensidade que é própria da titularidade fiduciária35.
Por último, ainda acerca da natureza da tomada firme, direi que me parecem ainda menos generalizáveis outras construções formuladas pela Doutrina a propósito do caso particular do aumento de capital das sociedades por acções. É o que se passa com a tese que vê na chamada subscrição indirecta de aumentos de capital um contrato a favor de terceiro, tese essa que me parece claramente marcada pela circunstância particular da existência de direito de preferência dos accionistas na subscrição36.
3.3. Conyrayo para regisyo ou depósiyo
– os contratos devem incluir a menção das obrigações que a lei e os regulamentos atribuem ao intermediário financeiro (art. 343, nº 1)
– na ausência de cláusula em contrário, o intermediário financeiro tem de prestar
34
A Propriedade Fiduciária (Trust) Estudo para a sua Consagração no Direito Português, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pág. 220.
35
Igualmente criticando a opinião que sustenta que a tomada firme é um negócio fiduciário, v. XXXXXX XXXXX,
Subscrição Indirecta e Tomada Firme, cit., págs. 263 e segs..
Para além do já evocado (relativo à forma e à sujeição a registo na CMVM das respectivas cláusulas contratuais gerais), a lei estabelece para este tipo contratual o seguinte:
36
Discutindo e defendendo parcialmente essa tese, v. XXXX XXXXXXX, Alterações do Contrato de Sociedade, Coimbra, Livraria Almedina, 1986, págs. 224 e segs..
37
os serviços relativos aos direitos inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados (art. 343, nºs 2 e 4).
Creio que o que sustentei acerca da recondutibilidade do contrato de gestão de carteira ao mandato se aplica também ao contrato para registo ou depósito. Obviamente, aqui, antes e para além das estipulações das partes, terão um papel determinante os regulamentos que fixarem as obrigações dos intermediários financeiros37 e as normas do CVM (sobretudo as constantes do título II) que as vierem a desenvolver.
3.4. Conyrayo de consulyoria para invesyimenyo
Para além do já evocado, a lei estabelece para este tipo contratual o seguinte:
— o consultor deve apresentar ao consulente uma estimativa dos custos das operações a realizar e dos serviços de consultoria (art. 345, alínea b));
– o consultor deve emitir uma nota de honorários escrita por cada consulta, a qual tem de respeitar certos requisitos (art. 345, alínea d)).
Quanto ao enquadramento noutros tipos legais, julgo que, na maior parte dos casos, estaremos perante contratos de prestação de serviços não reconduzíveis a nenhum subtipo legalmente previsto.
4. Dois aspecyos “panorâmicos”
Para terminar, alinharei algumas notas sobre dois aspectos “panorâmicos”.
Em primeiro lugar, quero afirmar que o elenco que o CVM apresenta dos contratos de intermediação não exclui a possibilidade de serem celebrados contratos de intermediação que não se encaixem nos tipos elencados. Por outras palavras: esses tipos legais não são taxativos, não formam um “numerus clausus”.
Os fundamentos desta afirmação são vários. Como pano de fundo está obviamente o princípio da liberdade contratual. Muito mais perto estão outros elementos. Um é a circunstância de a lei regular os contratos de assistência, de colocação e de tomada firme por relação a ofertas públicas e de ser inegável que são admissíveis contratos similares relativamente a ofertas particulares. Outro está na forma pela qual o CVM se refere aos contratos para recolha de investimento, no art. 342. Ao estabelecer que as regras sobre assistência e colocação se aplicam a contratos não enquadráveis nos tipos em causa, o legislador está a admitir a possibilidade de a contratação, na área da intermediação, extravasar os tipos por ele consagrados.
O segundo dos aspectos que, neste número final, quero focar tem a ver com a assinalada recondutibilidade, total ou parcial, dos tipos legais em causa ao “macrotipo” da prestação de serviços. Daí resulta, por força do art. 1156 do Código Civil, a aplicabilidade a todos das normas sobre mandato, “com as necessárias adaptações”. Creio que este comando legal deve ser aplicado com grande cautela. Isso é especialmente verdade relativamente aos tipos que não são apenas reconduzíveis à prestação de serviços (como é o caso, como assinalei, da colocação com garantia e da tomada firme). Os contratos enquadráveis nesses tipos são obviamente típicos, mas são também, num certo sentido, mistos, na medida em que a análise dos tipos legais em causa mostra a sua recondutibilidade a outros tipos legais. Ora, os contratos mistos, julgo, devem ser tratados como atípicos38 – parecendo-me isto verdade não somente em relação aos contratos mistos em sentido próprio (os que não são enquadráveis em nenhum tipo legal, embora apresentem aspectos de vários contratos típicos), como também em relação aos contratos reconduzíveis a tipos legais qualificáveis como mistos (por serem compostos por elementos de outros tipos), na medida em que as regras ditadas pelo legislador para esses tipos se mostrem insuficientes.
Na já referida leitura crítica da primeira versão deste trabalho, o Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, além do mais, sublinhou-me que nesta análise deixo na sombra (as palavras são minhas) a relevância para com