TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO | CÍVEL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO | CÍVEL
Acórdão
Processo
5911/21.7T8PRT.P1
Data do documento
4 de maio de 2022
Relator
Xxxxxx Xxxxxx
DESCRITORES
Citação em outro estado-membro > Falta de contestação > Sobrestamento da decisão > Nulidade da citação > Invocação em via de
recurso > Tempestividade > Competência internacional > Execução > Contrato de seguro > Apólice > Formalidades ad probationem > Nulidade por falta de fundamentação e
omissão de pronúncia > Junção de documentos na fase de recurso > Direito aplicável convencionado pelas partes
SUMÁRIO
I - Nos termos do art.º 19º, nº 1, al. b), do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, se o demandado não contestar a ação nem praticar qualquer ato no processo, tendo sido utilizada carta registada com A/R enviada para a sua sede ou residência para citação noutro Estado-Membro, o tribunal deve sobrestar na decisão enquanto não se apurar que o ato foi efetivamente entregue ao demandado ou na sua sede ou residência, sob pena de nulidade processual.
II - Não invocando a R. a falta de citação, mas apenas a nulidade da citação por preterição daquela formalidade, tal arguição, realizada apenas nas alegações de recurso, é intempestiva.
III - O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, estabelece como regra geral de determinação da competência internacional do tribunal o domicílio do demandado. Mas o Regulamento contém normas especiais e também excecionais, designadamente me matéria de seguros, permitindo designadamente ao demandante beneficiário do seguro que demande o segurador no tribunal do lugar em que aquele requerente tem o seu domicílio.
IV - Apesar da apólice de seguro, enquanto instrumento escrito do contrato de seguro, ser necessária enquanto documento ad probationem, a sua falta no processo não impede a prova do contrato de seguro e do seu conteúdo através de qualquer outro meio em Direito permitido, nem os efeitos da revelia pela confissão ficta emergente da falta de contestação (art.ºs 567º, nº 1 e 568º, al. d), do Código de Processo Civil).
V - O erro de julgamento em matéria de facto e na aplicação do Direito não se confunde com a nulidade da decisão por falta de fundamentação.
VI - Não ocorre nulidade da sentença por omissão e pronúncia se o tribunal não se pronuncia sobre a aplicação de uma norma que, no caso, não tem efetiva aplicação.
VII - A apresentação de documentos com as alegações justifica-se (e admite-se), quando se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo, não podendo justificar-se a junção de documentos para prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
VIII - Se as partes contratantes, de Direito espanhol e de Direito maltês, têm vista a aplicação de Direito espanhol, com base no qual foi celebrado o contrato de seguro, será esse o Direito aplicável (art.º 41º, nº 1, in fine, do Código Civil).
IX - Ainda que sem junção de apólice de seguro, se os factos provados traduzem o essencial e indispensável do contrato de seguro, designadamente, o risco coberto, a legitimidade substantiva da seguradora, da segurada e da beneficiária, assim como os indispensáveis pressupostos de responsabilidade contratual, sem que se tivesse demonstrado qualquer matéria de exceção, deve a R. seguradora ser condenada a indemnizar a beneficiária, nos termos do contrato e da lei de seguro obrigatório de Direito espanhol à luz do qual foi celebrado.
TEXTO INTEGRAL
Proc. nº 5911/21.7T8PRT.P1 – 3ª Secção (apelação) Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – J 6
Relator: Xxxxxx Xxxxxx Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
V..., S.A., NIPC ..., com sede na Praça ..., ..., ... Porto, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A... LTD., com sede em ..., Malta, alegando essencialmente que, no exercício da sua atividade de prestação de serviços e turismo, foi contratada pelo Grupo R ... para organizar uma viagem de cruzeiro, tendo, por sua vez, contratado o fretamento do navio com a sociedade maltesa P... Ltd, conforme documento que junta, prevendo-se a realização da viagem do cruzeiro para uma determinada data, com partida de Lisboa no dia 15.3.2020 e regresso três dias depois.
A A. efetuou o pagamento do custo do fretamento do navio, no valor de €1.200.000,00, por transferência para a conta da P... Ltd, no dia 2.7.2019, tendo pagado ainda, pela mesma forma, outros serviços, nos
valores de €76.692,00 e €2.368,00.
Em consequência da declaração de pandemia da Covid-19 por parte da OMS o navio fretado não chegou sequer a atracar no porto de Lisboa, tendo sido cancelada a viagem por parte da R ..., pelo que a P ... Espanha suspendeu a realização do cruzeiro.
Por força daquela situação, nos termos do contrato, foi o mesmo resolvido com fundamento em força maior, pelo que o projetado cruzeiro foi cancelado, ficando a P... Ltd, que faz parte do Grupo P ..., obrigada a devolver à A. a quantia global de €1.276.692,00, que já tinha sido paga; devolução que não aconteceu, apesar de solicitada.
Entretanto, verificou-se que todas as empresas do referido Grupo se encontram numa situação de insolvência, tendo sido instaurado processo de insolvência no Juzgado Mercantil de Madrid, onde a A. reclamou o seu crédito.
Mais alega que a R. seguradora é responsável pelo pagamento do valor alegado, por o Grupo P ... ter celebrado com ela um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ao abrigo da lei espanhola de defesa dos consumidores e clientes que determina a constituição de uma garantia de reembolso de todos os pagamentos que recebam sempre que os serviços contratados não sejam realizados em consequência da sua insolvência, podendo tal garantia ser constituída por contrato de seguro.
Tanto quanto julga saber, o contrato de seguro celebrado cobre o risco da situação em apreço, pelo que terminou o seu articulado com a dedução do seguinte pedido:
«Nestes termos e nos mais de direito, deve a acção ser julgada totalmente procedente, com a consequente condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de €1.279.060,00 bem como juros, calculados à taxa legal, desde a data da entrada da presente acção em Tribunal até integral pagamento.»
Realizadas as diligências de citação da R., em Malta, a mesma não deduziu contestação, pelo que, em 15.10.2021, o tribunal proferiu despacho como seguinte teor:
«Consideram-se confessados os factos nos termos do artº 567º, nº 1, do CPC. Notifique para os termos do artº 567º, nº 2, do CPC.»
As partes nada disseram.
O tribunal ordenou à X. que juntasse aos autos o contrato de seguro que referiu na petição inicial, ao que a mesma respondeu que tentou, por várias vezes, através dos seus advogados em Malta, obter uma cópia da apólice de seguro contratada pelo Grupo P ..., mas não teve sucesso, reafirmando o seu interesse, já expresso anteriormente, em sede de requerimento probatório, em que a R. fosse notificada para juntar aos autos cópia integral daquela apólice, não podendo ser prejudicada pelo desinteresse da mesma que, por falta de contestação, confessou os factos alegados na petição inicial, designadamente o contrato de seguro (existência e âmbito de cobertura).
Então, o tribunal proferiu sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«D / DECISÃO.
a) Condena-se a R. A... LTD a pagar à A. a quantia de €1.279.060,00 (um milhão duzentos e setenta e nove mil e sessenta euros), acrescida de juros de mora comerciais, calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Custas pela R. (…)»
*
Inconformada, a R. apelou da sentença, apresentando alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«A. Vem o presente recurso interposto da circunstância de a Apelante não se conformar com a Sentença proferida pelo digníssimo Tribunal a quo, em que julgou como procedente o pedido formulado pela Apelada, condenando a Apelante ao pagamento da quantia de 1.279.060,00€, uma vez que, no modesto entendimento da ora Recorrente foram violadas várias normas jurídicas, bem assim, existiu uma interpretação normativa desadequada com o nosso sistema legal, bem ainda foram considerados como provados factos que jamais e em momento algum o poderiam ter sido, porque inexistiu prova documental que assim a suportasse (tendo sido dado como provados factos alegados pela Autora e que não apresentam qualquer correspondência com a realidade).
I - DA NULIDADE DA CITAÇÃO POR VIOLAÇÃO DO REGULAMENTO (CE) N.º 1393/2007 DO PARLAMENTO EUROPEU
B. Antes de tudo o mais, importa referir que a (suposta) citação da Apelante é nula, nos termos do artigo 191.º, n.º 1, do CPC, por violação do disposto no artigo 19.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007, e acresce que, ao não ter o digníssimo Tribunal a quo procedido à confirmação da citação da Apelante, a base decisória constante na Sentença proferida encontra-se viciada decorrente da violação do disposto no referido artigo 19.º do Regulamento, bem como, dos princípios do contraditório, da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, fundamentais para se obter uma decisão justa e que corresponda à verdade material, o que deverá ser reconhecido por este Insigne Tribunal da Relação, para todos os devidos e legais efeitos.
II - SEM PRESCINDIR – DA INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL “A QUO”
C. Caso não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, mas por mero dever lega de patrocínio se acautela, será de referir que o digníssimo Tribunal a quo não era competente para julgar a presente causa, por se considerarem como violadas as regras referentes da incompetência internacional, uma vez que nos termos do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, o segurador domiciliado no território de um Estado-Membro, como é o caso da Apelante, deverá ser demandado nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio.
D. Destacando que a Apelada não é segurada nem beneficiária à luz do Regulamento, nem do contrato de seguro que a Ré celebrou com a sociedade “P... SL” – e não a “P... Ltd” como considerou a sentença recorrida -, nem logrou a mesma alegar e prova tal qualidade de beneficiária.
E. A Apelante não alcança como o Tribunal a quo nem ponderou analisar a sua competência para julgar a causa, quando aos autos foi junto um “Contrato de Fretamento” de onde deriva o direito que a Apelada alegou ser titular, contrato onde convencionaram as partes contratantes que seriam exclusivamente competentes os Tribunais espanhóis.
F. Acresce ainda que, das Condições Gerais e Especiais da Apólice de Seguro celebrado entre a Ré e a empresa “P... SL”, tal como acontece com todos os contratos celebrados pela Apelante em território espanhol e com contratantes aí domiciliados, resulta a convenção de uma cláusula de competência jurisdicional, tendo as partes submetido o contrato à jurisdição espanhola, sendo os Tribunais espanhóis exclusivamente competentes para decidir a causa, devendo os beneficiários que não possuem um domicilio espanhol, escolher qualquer tribunal espanhol para o efeito e que melhor lhes sirva. Tal cláusula de competência jurisdicional era possível à luz dos artigos 15.º, n.º 5, por referência ao disposto no artigo 16.º, n.º 5, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
G. Posto isto, por força da regra supletiva prevista no Regulamento, o digníssimo Tribunal a quo é internacionalmente incompetente, configurando tal falta de pressuposto processual uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que deveria o Tribunal conhecer a qualquer altura do processo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, do CPC, devendo, por tal facto, ter absolvido a Ré da instância.
III – OUTROSSIM, SEM PRESCINDIR – DA INADMISSIBILIDADE DA PRODUÇÃO DOS EFEITOS DA REVELIA POR
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 568.º, ALÍNEA D), DO CPC (e da junção de documento nos termos do disposto nos artigos 651.º, n.º 1, e 425.º do CPC)
H. Caso uma vez mais não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, mas por mero dever legal de patrocínio se acautela, será de referir que o digníssimo Tribunal a quo na sentença proferida, violou várias normas jurídicas que levaram à formação (não verdadeira e sem correspondência com a realidade) da decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente, os artigos 567.º e 568.º do CPC, violação que influiu no exame e na decisão da causa, e por outro lado, carece a Sentença proferida da indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes aos factos e que justificam a decisão proferida, violando o disposto no artigo 607.º, n.º 3, do CPC, bem como não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar, pelo que a Sentença proferida é nula, à luz do disposto nas alíneas b) e d) do artigo 615.º do CPC.
I. Pelo que, e desde já, nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, a Apelante impugna os pontos 42, 44, 48 e 51 da matéria de facto dada como provada, bem assim os pontos 8, 9, 34, 36, 37, 42 e 52 de tal matéria, sendo que os mesmos encontram-se incorretamente julgados, a ausência/inexistência de prova documental nos termos supra vertidos, impõe decisão diversa da recorrida, devendo tal matéria ser considerada como não provada e consequentemente deverá a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que absolva a Ré do pedido formulado.
J. Não obstante a revelia da ora Apelante (sem descurar a nulidade de citação invocada), não poderia a Sentença aqui recorrida ter-se limitado a dar como provados todos os factos articulados pela Autora por mero efeito da revelia absoluta da Ré, aceitando, inclusive, as conclusões que a Autora verteu na petição inicial e a matéria de Direito indicada pela mesma, contrariando, deste modo, o disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, sem desencadear a necessária análise substantiva da realidade vertida nos autos através da indagação do regime aplicável e da solução que a lei prevê para o efeito (a consequência da falta de apresentação em juízo da Ré e da sua contestação é, por efeito da lei, a confissão dos factos, mas não a automática e total precedência da ação, nos exatos termos apresentados e peticionados pela Autora).
K. Importando desde já destacar que é falso que a Ré tenha celebrado qualquer contrato de seguro com a sociedade “P... Ltd”, pelo que a sentença proferida e aqui recorrida nunca poderia condenar a Apelante numa qualquer responsabilidade perante a Autora, porque é inexistente, longo nunca poderia dar como provado os pontos 42, 44, 48 e 51 da matéria de facto, tão pouco poderia ser considerado que várias e distintas empresas integram o mesmo grupo económico porque não existe qualquer prova documental que suporte tal alegação, tratando-se de empresas diferentes e com identificações fiscais diversas (conforme resultou dos pontos 8, 9, 34, 36, 37, 42 e 52 da matéria de facto dada como provada), impugnando-se tais pontos da matéria de facto, enaltecendo que a consideração de tal matéria como não provada resultará em decisão diversa da recorrida, nomeadamente pela absolvição da Ré/Apelante.
L. Contudo, embora não seja o entendimento da Xxxxxxxx, mas por mero exercício de raciocínio se refere, ainda que fosse de se considerar como provado a existência de um contrato de seguro celebrado entre a Ré e a referida sociedade “P... Ltd”, e que tal contrato cobria o cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços contratados e uma proteção em caso de insolvência, não poderá o Tribunal deixar de indagar sobre o conteúdo do contrato, a extensão da cobertura assegurada pela Ré, os termos em que o seguro poderia ser acionado, a legitimidade da Autora para requerer a devolução do preço pago ao abrigo desse contrato, bem como a duração do contrato de seguro e se este ainda se encontrava validamente em vigor entre as Partes no contexto temporal dos autos.
M. A resposta a tais elementos essenciais da relação jurídica, que não foram sequer alegados pela Autora, só poderia ser fornecida pelo contrato e pelo regime legal aplicável ao mesmo, aspetos que a Sentença recorrida não refere nem analisou, pelo que, entende a Apelante que a Sentença proferida carece totalmente de fundamentação e de uma decisão sobre a matéria de Facto e de Direito, uma vez que o digníssimo Tribunal a quo não faz referência alguma ao regime e às normas aplicáveis ao caso vertido nos presentes autos, pelo que a mesma é nula, por força do disposto no artigo 615.º, alíneas b) e d), do CPC
N. Assim, alegando a Autora possuir um direito que deriva de um contrato escrito, tal documento é essencial e imprescindível para provar tal direito, sendo que a Autora nunca procedeu à junção de qualquer contrato (precisamente porque não existe), pelo que, reitere-se, não é possível considerar-se como provado os pontos 42, 44, 48 e 51 da matéria de facto dada como provada, e o Dign.º Tribunal “a quo” não o poderia ter feito (neste sentido, veja-se, a título meramente, exemplificativo Acórdão proferido por este Insigne Tribunal da Relação do Porto, em 22-10-2018, no âmbito do processo n.º 528/11.7TVPRT.P1; Acórdão proferido pelo Insigne Tribunal da Relação de Xxxxxxxxx, em 14-03-2019, no âmbito do processo n.º 2212/16.6T8BCL.G1, ambos disponíveis em xxx.xxxx.xx), pelo que tendo o Dign.º Tribunal “a quo” julgado pela existência de um contrato de seguro e da obrigação da Ré de ressarcir a Autora por força de tal contrato, sem que fundamente a sua decisão no documento escrito essencial: o contrato de seguro! Com isto, violou manifestamente o disposto no artigo 607.º, n.º 3, do CPC.
O. Acresce a todo o exposto, que se encontram previstas, nas alíneas do artigo 568.º do CPC, exceções à produção do efeito cominatório da falta de contestação nos termos acima referidos, onde se encontra, precisamente, o caso de factos para cuja prova se exija documento escrito (cfr. alínea d) do artigo 568.º do CPC) – neste sentido veja-se o Acórdão proferido pelo Insigne Tribunal da Relação de Guimarães, em 14-03- 2019, no âmbito do processo n.º 2212/16.6T8BCL.G1; e o Acórdão proferido por este Insigne Tribunal da
Relação do Porto, em 22-10-2018, no processo n.º 528/11.7TVPRT.P1, ambos disponíveis em xxx.xxxx.xx).
P. A referência à lei espanhola como reguladora das relações estabelecidas pelo alegado Grupo P ...”, onde de acordo com a Autora se insere a referida “P... Ltd”, é levantada, precisamente, pela Autora, pelo que é de se considerar exigível que o Dign.º Tribunal “a quo” tivesse procedido à análise das normas aplicáveis ao caso dos presentes autos à luz da potencial aplicação da lei espanhola, nomeadamente o Artículo quinto da Ley 50/1980, que disciplina os contratos de seguro (o que demonstra, uma vez mais, que sendo o contrato de seguro, celebrado sob a lei espanhola, um contrato formal, por exigência da lei, a existência de um contrato de seguro e o seu conteúdo só poderão ser provados pela junção do documento que o formaliza)
Q. E mesmo que a existência de um contrato escrito de seguro resulta-se dos próprio autos, por ter sido alegada pela Autora e admitida por efeito da revelia, então o Dign.º Tribunal “a quo” não poderia deixar de considerar existente um documento escrito que formalizou o contrato de seguro, pelo que, mesmo que a lei espanhola não dispusesse no sentido de exigir a forma escrita para o contrato de seguro, ou fosse outra a lei aplicável, o documento escrito sempre teria sido constituído como forma ad substantiam e ad probationem por vontade das partes contratantes, o que também seria suficiente para afastar a produção dos efeitos da revelia, por força do disposto na alínea d), do artigo 568.º, do CPC.
R. Ainda que o contrato fosse apreciado à luz da lei portuguesa, o que inadmissível seria, o contrato de seguro seria sempre de se considerar como um documento formal (vide Xxxxxxx proferido pelo Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, em 25-10-2018, no âmbito do processo 82/15.0T8ALJ.G1.S2, disponível em xxx.xxxx.xx), e embora a atual norma sobre a forma do contrato de seguro revista no regime português não se mostre, à primeira vista, tão imperativa como acontecia no regime anteriormente previsto no Código Comercial, será sempre de se considerar que o contrato de seguro é um negócio formal na ordem jurídica portuguesa (neste sentido, o acórdão proferido pelo Insigne Tribunal da Relação de Coimbra, em 26-01-2021, no âmbito do processo n.º 1159/18.6T8GRD.C1, disponível em xxx.xxxx.xx).
S. Tudo isto apenas para a Apelante demonstrar como não concede, por não ser legalmente admissível, que o digníssimo Tribunal a quo não tenha considerado pela essencialidade da junção do contrato de seguro para poder bem decidir sobre a (in)procedência da causa, e por sua vez, ter decidido, mediante uma violação expressa da lei, pela irrelevância da não junção do contrato pela Autora mediante a consideração da aplicação total da ficção que a lei prevê por força do efeito da revelia e que afasta, precisamente, no caso em que os documentos são necessários para a prova dos factos (pelo que não se poderia considerar como provados os pontos 42, 44, 48 e 51 da matéria de facto) e não constando do processo quaisquer meios de prova que permitem sustentar a veracidade de tais factos – que seria o documento em que se formalizou o contrato - , nem pode o efeito da revelia ser operante em relação aos mesmos por força da exceção do artigo 568.º, alínea d), do CPC!
T. Se conhecesse o digníssimo Tribunal a quo do conteúdo do contrato de seguro, saberia que a Apelante apenas celebrou um contrato com a sociedade “P... SL”, na qualidade de Tomadora do Seguro, com sede em Calle ..., ... Madrid, em 19 de dezembro de 2019, à luz da lei espanhola, tendo as partes convencionado o foro espanhol como a jurisdição competente (e esta sociedade é completamente diferente da sociedade indicada pela Autora na sua petição inicial que gira sob a firma “P... Ltd”, tendo também números de
identificação fiscal distintos).
U. Enaltecendo que o referido contrato de seguro, intitulado de “Contrato de Línea Colectiva de Seguro de Caución n.º ...”, foi celebrado ao abrigo do Decreto 99/1996, de 27 de junho da Comunidade Autónoma de Madrid, alterado pelo Decreto 151/2018 de 16 de outubro, que regula o exercício da atividade das Agências de Viagens na Comunidade de Madrid e não ao abrigo do Real Decreto Legislativo n.º 1/2007 de 16 de Novembro, substituído pelo Real Decreto Legislativo n.º 23/2018, de 21 de Dezembro, referidos pela Autora, pelo que o contrato a que se vinculou a Ré não se rege pelos termos e disposições legais invocadas, pelo que não são aplicáveis as obrigações que a Autora entendeu em sede de petição inicial serem aplicáveis ao caso em virtude do referido Decreto Real não ser, na verdade, aplicável ao seguro contratualizado pela Ré.
V. Deste modo, do contrato de seguro que a Apelante, enquanto Seguradora, celebrou com a “P... SL”, na qualidade de Tomadora do Seguro, não deriva qualquer direito indemnizatório ou ressarcitório para a Apelada, nem a obrigação de indemnizar ou ressarcir para a Apelante, uma vez que a sociedade com que a Apelada contratou os serviços não possuía qualquer contrato de seguro celebrado e vigente com a Apelante do qual pudesse derivar algum direito para a Apelada, enquanto cliente ou beneficiária dos serviços da referida “P... Ltd”, sendo sociedades distintas e com personalidades jurídicas também distintas.
W. Pelo que, entende-se muito modestamente que o Tribunal a quo não analisou, nem ponderou devidamente, com a certeza e segurança jurídica que se impunha, os factos alegados, o ónus material da prova dos mesmos e a respetiva aplicação do direito (substantivo e adjetivo), motivo pelo qual, se entende que a sentença proferida terá, com todo o devido e merecido respeito, que ser revogada, substituindo-se por outra que absolva a Apelante do pedido contra si formulado.
- Da necessidade do contrato em resultado do julgamento proferido no Tribunal a quo:
X. Por força do exposto, a Apelante junta às presentes alegações de Recurso o referido Contrato de Seguro, como Doc.1, que ora se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, que o faz por tal junção não ter sido possível até ao momento em virtude do desconhecimento que a Apelante possuía da existência da ação, devendo ser considerado subjetivamente superveniente, bem como, se ter tornado necessária em virtude da matéria de facto vertida pelo digno Tribunal da 1.ª instância, que, sem suporte e imprevisivelmente, considerou pela existência de um contrato que a Autora não juntou nem provou existir, ao abrigo dos artigos 651.º, n.º 1, e 425.º do CPC, bem como por ser absolutamente imprescindível e essencial à boa e justa decisão da causa, uma vez que o mesmo demonstra inequivocamente que a Apelante não é responsável pelo pagamento da indemnização peticionada pela Apelada uma vez que nunca segurou a atividade da sociedade comercial com que a Apelada contratou, nem a relação estabelecida entre as mesmas, uma vez que a outra parte outorgante do contrato de seguro não é a “P... Ltd”, cobrindo apenas, e somente, os riscos derivantes da atividade da “P... SL”.
PELO EXPOSTO:
Y. Resulta de forma absolutamente inequívoca que assiste razão à Apelante, devendo ser o presente recurso de apelação julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se a sentença ora recorrida,
para todos os devidos e legais efeitos, uma vez que a Apelante não celebrou qualquer contrato de seguro com a empresa “P... Ltd” (empresa esta que teria celebrado contrato de transporto – “Contrato de Fretamento” – com a Autora/Apelada).» (sic)
Entende assim a recorrente que deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue o pedido da ação totalmente improcedente.
*
A A. produziu contra-alegações que sintetizou assim:
«1. O Mmo. Juiz a quo julgou a acção procedente condenando a Ré a pagar à Autora a quantia peticionada, acrescida de juros de mora comerciais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
2. A Recorrente alegou a nulidade da citação, a incompetência internacional do Tribunal, a inadmissibilidade da produção dos efeitos da revelia por violação da alínea d) do artigo 568º do Código de Processo Civil e a inexistência de contrato de seguro entre a Recorrente e a sociedade “P... Ltd”.
3. No caso em apreço, não podem ser levantadas quaisquer dúvidas quanto à regularidade da citação nem quanto ao conhecimento da existência da acção uma vez que está documentalmente comprovado que a Recorrente recebeu a carta de citação, redigida em Português e em Inglês, na sua sede em Malta no dia 02.06.2021 (11H39).
4. Na carta de citação, a Recorrente foi advertida que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pela Autora.
5. Mas, se dúvidas existissem quanto ao conhecimento da existência da acção, o certo é que a Recorrente recebeu no dia 25.10.2021 (12H40 uma nova carta registada, redigida em Português e em Inglês, notificando-a que tinha sido proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela Autora.
6. A Recorrente não arguiu a falsidade de nenhum das documentos (citação e notificação) que constam dos autos pelo que é forçoso concluir que a Recorrente foi regulamente citada e que sabia da existência da acção.
7. O despacho a considerar confessados os factos articulados pela Autora despacho transitou em julgado, com todas as consequências legais daí decorrentes.
8. Resulta do nº 1 do artigo 199º do Código de Processo Civil que o prazo para arguição da nulidade conta- se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele.
8. Sucede que a nulidade da citação não foi arguida quando a Recorrente foi notificada do despacho a considerar confessados os factos articulados pela Autora nem quando foi concedido ao ilustre mandatário da Recorrente o acesso aos autos pelo período de 10 dias, pelo que é forçoso que essa nulidade, a ter existido, foi sanada.
9. O Tribunal só deverá proceder à confirmação da citação quando existirem dúvidas quanto à recepção da carta de citação ou ao conhecimento, por parte da Ré, da existência da acção, o que não é manifestamente o caso dos autos.
10. Resulta dos artigos 00x x 00x, xxxxxx x), x 00x, xx 2, todos do Código de Processo Civil que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando tenha sido praticado em território português o
facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram e que, se o réu não tiver residência habitual em Portugal, pode ser demandado no tribunal do domicílio do autor.
11. O artigo 12º do mencionado Regulamento (UE) nº 1215/2012 que estabelece o princípio segundo o qual o segurador pode ser demandado no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu já que estamos perante um seguro de responsabilidade civil, sendo certo que os danos sofridos pela Recorrida resultam do incumprimento do contrato de fretamento que previa a realização de um cruzeiro com início e termo em Portugal.
12. A tese defendida, a título subsidiário, pela Recorrente segundo a qual a acção deveria ter sido intentada junto dos Tribunais espanhóis não colhe porquanto a Recorrente não foi parte subscritora no contrato de fretamento.
13. A Recorrente não arguiu a incompetência internacional do Tribunal após ter sido citada para contestar a acção, nem depois, quando foi notificada de que tinha sido proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela Autora, pelo que não é legítimo nem processualmente admissível vir agora – e só agora – em sede de recurso arguir a incompetência internacional do Tribunal.
14. A Recorrida alegou na p.i. que sabia da existência da Apólice de seguro que tinha sido contratada com a Recorrente, que não a tinha em seu poder e que tentou, através dos seus Advogados em Malta, obter uma cópia da mesma Apólice, mas não teve sucesso, tendo requerido, em sede de requerimento probatória, a notificação da Recorrente para juntar aos autos tal documento.
15. Decorre do nº 2 do artigo 32º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro mas também estabelece o nº 1 do mesmo artigo, que a validade o contrato de seguro não depende da observância de forma especial.
16. Não tendo a Recorrente procedido à junção aos autos de cópia da Apólice quando foi citada para contestar nem quando foi notificada do despacho a considerar confessados os factos articulados na p.i., não é legítimo nem admissível vir agora, em sede de recurso, defender a tese segundo a qual a não junção aos autos de tal documento implicava necessariamente que não podia ser considerado como provada a existência do seguro.
17. O princípio segundo o qual os efeitos da revelia não se aplicam quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito só deve ser aplicado quando estejam em causa documentos autênticos.
18. Quando resultar da lei que um contrato deve ser reduzido a escrito e o documento em causa não for junto ao processo, a prova da existência do contrato pode ser substituída por confissão, judicial ou extrajudicial, da parte a que esse documento aproveita.
19. A posição assumida pela Recorrente configura uma situação de abuso de direito porquanto não contestou nem juntou aos autos uma cópia da Apólice de seguro em causa e vem agora – e só agora – em sede de recurso defender que o Tribunal não podia ter dado como provada a existência do seguro porque a respectiva Apólice não foi junta aos autos.
20. O abuso do direito da Recorrente é confirmado com a junção aos autos da Apólice de seguro – que afinal existia – podendo, quanto muito e se for caso disso, ser discutido o âmbito de cobertura da mesma.
21. Conclui-se, assim, que também se aplicam os efeitos da revelia quando está em causa a prova da
existência de um contrato de seguro porque, se assim não fosse, seria muito fácil a uma seguradora eximir-se das suas responsabilidades perante um terceiro lesado, bastando, para o efeito, não contestar a acção nem juntar aos autos uma cópia da respectiva Apólice.
22. Considera, também, a Recorrida que o despacho de 15.10.2021 que considerou confessados os factos articulados na p.i., que foi notificado à Recorrente a 25 do mesmo mês, transitou em julgado com todas as consequências daí decorrentes e, como tal, não pode ser posto em causa no âmbito deste recurso.
23. O artigo 425º do Código de Processo Civil estabelece o princípio segundo o qual só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
24. Não é manifestamente o caso dos autos porquanto a Recorrida requereu na p.i., em sede de requerimento probatório, a notificação da Recorrente para juntar aos autos cópia integral da Apólice de seguro, mas esta, apesar de regularmente citada para contestar, não contestou nem juntou uma cópia da mesma e também nada fez quando foi notificada do despacho que considerou os factos articulados pela Recorrida.
25. Assim sendo, não é legítima nem aceitável a afirmação da Recorrente segundo a qual só agora, em sede de recurso, lhe foi possível apresentar a Apólice de seguro, pelo que tal documento deve ser desentranhado dos autos e devolvido à procedência.
26. A Recorrente não alega que a Apólice em causa não estava em vigor à data dos factos nem diz que o sinistro em questão não está incluído no âmbito de cobertura da mesma, limitando-se a dizer que referida “P... Ltd” não é beneficiária do seguro titulado pela Apólice junta aos autos.
27. Ficou provado que todos os contactos, prévios à celebração do contrato de fretamento e posteriores ao cancelamento do cruzeiro, foram efectuados com a P ... Espanha (P... SL) mas que, apesar desse facto, o contrato acabou por ser formalmente assinado pela “P... Ltd”, com sede em Malta.
28. Ficou, também, provado que a sociedade “P... Ltd” é uma sociedade “instrumental” que não tem estrutura nem organização, que tem como sócias as sociedades espanholas “P... SL” (com 99,99% do capital), e P ... Holdings, SL” (com 0,01% do capital), que a “P... SL” dedica-se ao exercício das actividades próprias das agências de viagens, tendo como sócias a sociedade “P..., SA” (com 99,99% do capital) e a sociedade P ... Holdings, SL” (com 0,01% do capital) e que todas as sociedades têm sede no mesmo local.
29. Da análise da Apólice de seguro, documento (indevidamente) junto aos autos, resulta que a tomadora do seguro é a sociedade “P... SL” mas que, para além desta sociedade, também outorgam o contrato de seguro as mencionadas sociedades espanholas “P..., SA” e P ... Holdings, SL”, todas representadas pela mesma pessoa (AA).
30. Assim sendo, é forçoso concluir que está certa a afirmação segundo a qual o Grupo P ... celebrou com a Recorrida um contrato de seguro de responsabilidade civil (ponto 42 dos Factos Provados).
31. Sendo assim, é legítimo concluir que o sinistro em causa, consubstanciado na insolvência de todas as empresas do Grupo P ... com o consequente incumprimento do contrato de fretamento que foi celebrado pela Recorrida, está incluído no âmbito de cobertura da Apólice de seguro que foi contratada com a Recorrente.
32. Desta forma, conclui-se que a douta sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura, devendo, por isso, ser confirmada.» (sic)
Pugnou assim pela confirmação da sentença.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 634º e 639º do Código de Processo Civil).
Somos chamados a decidir as seguintes questões:
1. Nulidade da citação;
2. (In)competência internacional do tribunal português;
3. (In)admissibilidade da produção dos efeitos da revelia e erro de julgamento em matéria de facto;
4. Nulidade da sentença;
5. Junção de um documento novo (com as alegações de recurso);
6. Erro na aplicação do Direito.
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III.
O tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria:[1]
1) A Autora é uma sociedade comercial que tem como objecto social o exercício da actividade de prestação de serviços de viagens e turismo.
2) A Ré é uma sociedade de direito maltês que se dedica ao exercício da actividade seguradora.
3) No exercício da sua actividade a Autora foi contratada pelo Grupo R ... para organizar um cruzeiro para comemorar os vinte anos de actividade desta entidade em Portugal.
4) Para o efeito, a 1ª Ré entrou em negociações com o Grupo P ... em Espanha que se dedica ao exercício das actividades próprias das agências de viagem.
5) Não obstante o facto de todos os contactos terem sido efectuados com a P... em Espanha, o certo é que o contrato formal foi celebrado com a sociedade maltesa “P... Ltd”.
6) Este Contrato, denominado “Charter Agreement”, tinha como objecto o fretamento do navio de cruzeiros
..., registado em Malta sob o nº ... (...), com capacidade para o transporte de 2.733 passageiros.
7) Estava previsto que o referido navio de passageiros fosse utilizado na realização de um cruzeiro com saída de Lisboa prevista para o dia 15 de Março de 2020 e regresso ao ponto de partida no dia 18 do mesmo mês.
8) Reafirma-se que, apesar deste Contrato ter sido assinado por uma sociedade maltesa do Grupo P ..., todos os contactos prévios à celebração do mesmo foram realizados com a P ... Espanha.
9) De tal forma que constam do Anexo I do Contrato os nomes e os contactos dos colaboradores da P ... Espanha (BB, CC e DD) que intervieram nas negociações.
10) Estava, também, previsto no nº 14.1 do Contrato que era aplicável era a lei espanhola bem como a jurisdição exclusiva dos Tribunais espanhóis.
11) A sociedade “P... Ltd” é uma sociedade “instrumental” que não tem estrutura nem organização, sendo que, no seu quadro de pessoal, consta apenas o nome de um único colaborador.
12) A referida sociedade tem como sócias a sociedade “P... SL”, detentora de 99,99% do capital, e a sociedade “P..., SA”, detentora dos restantes 0,01%.
13) A “P... SL” é uma sociedade comercial espanhola que se dedica ao exercício das actividades próprias das agências de viagens.
14) Tem como sócias a sociedade “P..., SA”, com uma participação de 99,99% do capital social, e a sociedade P ... Holdings, SL”, que é detentora dos restantes 0,01%.
15) A sociedade “P..., SA” tem como sócia única a sociedade “P ... Holdings, SL”.
16) As referidas três sociedades espanholas têm sede no mesmo local: Calle ..., ..., ..., Madrid.
17) O custo do fretamento do navio ... ascendeu a €1.200.000,00.
18) A Autora procedeu ao pagamento da quantia em causa através de uma transferência bancária efectuada para a conta da “P... Ltd” do Banco 1... (Espanha) no dia 02.07.2019.
19) A Autora pagou, ainda, à “P... Ltd”, através de transferências bancárias para a mesma conta, as seguintes quantias:
a) €76.692,00 que dizia respeito ao “service fee” previsto na alínea (ii) da Secção 5.3 do Anexo III do Contrato;
b) €2.368,00 que dizia respeito ao serviço Wifi para os passageiros, conforme acordado entre as partes.
20) Verifica-se, assim, que o valor total que foi pago pela Autora através de transferências bancárias efectuadas para a conta da “P... Ltd” do Banco 1... (Espanha) ascendeu a €1.279.060,00.
21) A saída de Lisboa do navio de cruzeiros ... estava prevista para o dia 15 de Março de 2020 com regresso ao ponto de partida no dia 18 do mesmo mês.
22) Sucede, porém, que em consequência da declaração de pandemia por parte da OMS o referido navio não chegou sequer a atracar no porto de Lisboa.
23) Por força da pandemia do Covid-19, ficou assim inviabilizada a realização do cruzeiro que estava previsto para os dias 15 a 18 de Março de 2020.
24) Na verdade, foram aprovadas, a nível governamental, diversas medidas decorrentes do estado pandémico em que se encontrava o País, incluindo medidas que impediam a realização de eventos em espaços fechados para mais de 1.000 pessoas bem como o embarque / desembarque nos portos portugueses de passageiros dos navios de cruzeiros.
25) No dia 10 de Março de 2021 a Autora enviou um e-mail à P ... Espanha informando-a acerca da situação em Portugal bem como do teor de um e-mail da R ... solicitando o cancelamento do cruzeiro.
26) Como é do conhecimento público, os problemas existentes em Portugal verificavam-se noutros países europeus, sendo, na altura, bastantes mais graves em Espanha.
27) Na sequência dos contactos com a Autora, no dia 15 de Março de 2020 a P ... Espanha suspendeu a
realização do cruzeiro.
28) Resulta da alínea (ii) do nº 8.1 do Contrato de Fretamento que, em caso de força maior, a Autora tinha o direito de resolver o Contrato.
29) Está previsto no mesmo Contrato que a existência de uma epidemia é considerada como como uma situação de força maior – cfr. alínea (v) do nº 9.
30) Prevê, ainda, o Contrato que o cancelamento do cruzeiro devido a razões inesperadas ou imprevistas deve ser considerado como uma situação de força maior – cfr. nº 9.4.
31) A resolução do Contrato em consequência de um caso de força maior, conferia à Autora o direito ao reembolso das quantias pagas – cfr. alínea (ii) do nº 8.1 (doc. 1).
32) Estava, assim, a referida “P... Ltd”, que faz parte do Grupo P ..., obrigada a devolver à Autora a quantia global de €1.276.692,00, que tinha sido paga através de transferências bancárias efectuadas para a conta do Banco 1... em Espanha.
33) Sucede que, não obstante todos os contactos e insistências efectuadas pela Autora, o reembolso da mencionada quantia nunca chegou a ser realizado.
34) Todos os contactos foram efectuados entre a Autora e a P ... Espanha.
35) No dia 04.05.2020 a Autora aceitou a proposta de reembolso da quantia de €1.279.060,00 em doze prestações mensais, com início em Setembro de 2020, mas exigiu que o acordo fosse reduzido a escrito e que fosse prestada uma garantia bancária.
36) Na sequência dos contactos ocorridos entre a Autora e a P ... Espanha, esta informou no dia 04.06.2020 que não estava em condições de apresentar qualquer garantia bancária que garantisse o bom cumprimento do acordo.
37) Entretanto, começaram a surgir notícias na comunicação social sobre a existência de dificuldades financeiras no Grupo P ....
38) Tais dificuldades acabaram por justificar a apresentação em Tribunal de um processo de insolvência que abrange todas as empresas do Grupo P ....
39) No processo com o nº 1112/2020, que está a correr termos no Juzgado Mercantil de Madrid, também está incluída a mencionada “P Ltd”, conforme resulta do anúncio que foi publicado no dia 23.09.2020.
40) O crédito de que é titular a Autora foi reclamado no âmbito desse processo de insolvência.
41) A Ré é uma sociedade de direito maltês que se dedica ao exercício da actividade seguradora.
42) O Grupo P celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil.
43) A Autora, através dos seus Advogados em Malta, tentou obter junto da Xx uma cópia da Apólice de seguro mas não teve sucesso.
44) A Autora sabe que se trata de um seguro obrigatório que foi contratado por força do disposto no Real Decreto Legislativo nº 1/2007 de 16 de Novembro, que aprovou em Espanha a lei geral de defesa dos consumidores e clientes.
45) Este Real Decreto foi, entretanto, substituído pelo Real Decreto Legislativo nº 23/2018, de 21 de Dezembro.
46) O capítulo V deste Real Decreto diz respeito a garantias a que estão obrigadas as agências de viagens e as empresas que se dedicam à organização de viagens.
47) Resulta do artigo 164º deste Decreto que os organizadores de viagens estão obrigados a constituir uma garantia que poderá passar pela contratação de um seguro de responsabilidade contratual.
48) Este seguro responde pelo bom cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços contratados e constitui uma protecção em caso de insolvência.
49) Na verdade, resulta do artigo 167º do mesmo diploma que as empresa que prestem serviços de viagem devem constituir uma garantia de reembolso de todos os pagamentos que recebam sempre que os serviços contratados não sejam realizados em consequência da sua insolvência.
50) De acordo com a mesma disposição legal, esta garantia poderá ser constituída através da contratação de um seguro
51) Essa Apólice de seguro abrange a actividade desenvolvida por todas as empresas do Grupo P ..., incluindo a mencionada sociedade maltesa “P... Ltd”, com quem a Autora formalmente contratou, apesar de todos os contactos, prévios e posteriores, terem sido efectuados com a P ... Espanha.
52) No caso em apreço, verifica-se que o Grupo P ..., do qual faz parte a mencionada sociedade maltesa “P... Ltd”, não procedeu ao reembolso das quantias que recebeu em consequência da não realização do cruzeiro que estava contratado devido à pandemia (Covid 19) e que está numa situação de insolvência.
53) A realização do cruzeiro numa data futura também está inviabilizada em consequência da insolvência das empresas do Grupo P ....
*
IV.
Apreciação das questões da apelação
1. Nulidade da citação
A R. recorrente alega que a citação é nula, nos termos do art.º 191º, nº 1, do Código de Processo Civil, por violação do disposto no art.º 19º do Regulamento (CE) n.° 1393/2007, por o tribunal não ter procedido à confirmação da sua citação. Na sua perspetiva, o tribunal antes de proferir o despacho de revelia operante, deveria ter confirmado a citação e conhecimento da ação pela apelante.
Vejamos!
O art.º 8º da Constituição da República, em conjugação com outras normas constitucionais, nomeadamente as constantes dos n.ºs 5 e 6 do art.º 7º, acolhe o princípio do primado do Direito Comunitário, e, no seu nº 2, consagrou a doutrina da receção automática das normas de direito internacional particular, isto é, o Direito convencional constante de tratados e acordos em que participe o Estado português, as quais são diretamente aplicáveis pelos tribunais, apenas condicionando a sua eficácia interna à publicação oficial no seguimento de ratificação ou aprovação.
A A. identificou, na petição inicial, a sede da R., em Malta, país Membro da União Europeia.
Destinado a acelerar e facilitar a transmissão dos atos, o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial aos Estados-Membros («citação e notificação de actos»), prevê a transmissão dos atos judiciais, diretamente e no mais breve prazo possível, através de entidades de origem e de entidades requeridas designadas pelos Estados-Membros, permitindo embora outros modos de
transmissão, sem estabelecer qualquer hierarquia entre eles, como a transmissão por via consular ou diplomática em casos excecionais, a citação ou a notificação por agentes diplomáticos ou consulares, a citação ou a notificação através dos serviços postais ou a citação ou a notificação direta por oficiais de justiça a pedido de quaisquer interessados.
Em 18.5.2021, o tribunal expediu carta registada com A/R para citação da R., procedimento de citação acolhido pelo art.º 14º daquele Regulamento, segundo o qual “os Estados-Membros podem proceder directamente pelos serviços postais à citação ou notificação de actos judiciais a pessoas que residam noutro Estado-Membro, por carta registada com aviso de recepção ou equivalente”.
Na parte que aqui agora pode interessar, o art.º 19º, nº 1, al. b), daquele Regulamento (CE), determina que “se tiver sido transmitida uma petição inicial ou acto equivalente a outro Estado-Membro para citação ou notificação nos termos do presente regulamento, e se o demandado não tiver comparecido, o juiz sobrestará na decisão enquanto não for determinado (…) que o acto foi efectivamente entregue ao demandado ou na sua residência (…)” e que, “quer a citação ou notificação, quer a entrega, foi feita em tempo útil para que o demandado pudesse defender-se”.
Resulta da economia geral do Regulamento n.º 1393/2007 que o sistema de citação e notificação que estabelece visa garantir a receção real e efetiva do ato judicial pelo seu destinatário, a qual representa o denominador comum dos diferentes modos de citação ou de notificação postos à disposição dos Estados- Membros. Nesta perspetiva, não se pode admitir uma entrega puramente fictícia, resultante de uma presunção legal decorrente da junção dos atos aos autos.
Devolvido que foi o A/R relativo à citação da R., assinado por pessoa ali identificada, designadamente com nome legível e com inscrição de número de documento de identificação civil, o tribunal teve a R. como regularmente citada e, decorrido o prazo da contestação, com total omissão da prática de qualquer ato processual por parte da R., ao abrigo, do art.º 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, considerou imediatamente confessados os factos alegados na petição inicial e ordenou a notificação das partes para procederem ao exame do processo e alegarem por escrito, de acordo com o nº 2 daquele mesmo preceito legal, antes de proferir sentença.
A celeridade normalmente desejável no processo civil e na resolução das questões de Direito Civil e Comercial, também acolhida como objetivo na aplicação do Regulamento (CE) nº 1393/2007, não dispensa a necessidade de eficácia dos mecanismos de citação e notificação internacionais nos Estados-Membros, como se extrai dos respetivos considerandos 6) e 7). Xxx se apela especialmente à adoção de meios adequados de transmissão rápida dos atos, em condições de legibilidade e fiabilidade dos atos recebidos. Os conflitos privados transfronteiriços aportam compreensíveis dificuldades processuais especiais quando comparados com os conflitos privados internos de cada Estado-membro.
O referido Regulamento (CE) visa eliminar ou, pelo menos, atenuar aquelas dificuldades, adotando mecanismos de uniformização e regulação na transmissão dos atos judiciais e extrajudiciais nas relações transfronteiriças dos Estados.
A inércia da X., designadamente a sua revelia, na sequência das diligências de citação, justificava a confirmação do ato de citação, antes da prolação da sentença. Assim o impõe o art.º 19º, nº 1, al. b), do Regulamento, quando determina que o juiz deve sobrestar na decisão quando o demandado não tiver
comparecido após a transmissão de uma petição inicial ou ato equivalente a outro Estado-Membro para citação ou notificação, designadamente para confirmação de que o ato foi efetivamente entregue ao demandado ou na sua residência.
A proteção dos direitos do demandado revel, prevista mais particularmente naquele artigo 19.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1393/2007, responde ao objetivo prosseguido pelas disposições de outros atos do direito da União relativos à cooperação judiciária em matéria civil e comercial, como o Regulamento n.º 44/2001, cujo artigo 34.º, ponto 2, pressupõe igualmente que o ato em causa foi previamente citado ou notificado ao demandado.[2]
Estamos, assim, perante a omissão de um ato que a lei prevê, suscetível de gerar nulidade processual, nos termos do art.º 191º, nº 1, do Código de Processo Civil.
O prazo para arguir esta nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação (art.º 191º, nº 2, 1ª parte, do Código de Processo Civil); assim, porque se trata de uma citação pessoal cujo vício arguido não é a falta de citação (art.º 188º, nº 1, daquele código), mas de uma irregularidade relativamente a esse ato processual efetivamente praticado. A parte, citada, não o terá sido nas devidas condições, pelo que se lhe impunha a sua invocação no prazo indicado para a contestação, pela verificação imediata da irregularidade. É normalmente o caso de falta de entrega de documentos ou da tradução de documentos no ato de citação, de advertências ou da indicação de prazos para a prática de atos, quando, nos termos da lei, devam ser feitos constar.
Nem no prazo destinado à oposição, nem mesmo posteriormente, após a notificação da R. nos termos e para os efeitos do art.º 567º, nº 2, do Código de Processo Civil, foi arguido qualquer vício da citação.
Com efeito, a arguição da nulidade da citação apenas nas alegações do recurso interposto da sentença é claramente intempestiva, por extemporaneidade.
Sempre se dirá ainda que, não negando a recorrente a citação, mas apenas o ato confirmatório, não era legítimo aguardar por este ato para deduzir a contestação. O prazo da contestação inicia-se com a citação, servindo a confirmação do ato apenas como reforço da garantia de que a citação se efetuou, ou melhor, de que a falta de contestação não resulta da falta de citação.
Seria mesmo um absurdo jurídico declarar a nulidade da citação, por preterição da sua confirmação pelo tribunal do Estado onde corre o processo, quando o próprio réu não nega, antes reconhece, a sua citação pessoal. Não negou, por ex., a localização conhecida da sua sede social, que a carta registada foi enviada para a sua sede ou que foi assinada por um seu representante ou funcionário (aliás, facilmente identificável face à legibilidade da assinatura e do número de identificação civil que, junto dela, também foi aposto no A/R.
Extrai-se, com interesse para o caso, do já citado acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de março de 2017, EE contra Banco 2... S.A. em apreciação de questão prejudicial:
«O Regulamento n.º 1393/2007 deve ser interpretado no sentido de que uma citação ou notificação de um ato que dá início à instância pelos serviços postais é válida mesmo que:
(…)
O ato objeto de citação ou notificação não tenha sido entregue à pessoa do seu destinatário, desde que o tenha sido a uma pessoa adulta que se encontrasse no interior da residência habitual desse destinatário,
na qualidade de membro da sua família ou de empregado ao seu serviço. Cabe ao destinatário, se for caso disso, demonstrar através de todos os meios de prova admissíveis no órgão jurisdicional do Estado-Membro de origem, chamado a pronuncia-se, que não pôde efetivamente tomar conhecimento de que tinha sido proposta contra si uma ação judicial noutro Estado-Membro, ou identificar o objeto do pedido e a causa de pedir, ou dispor de tempo suficiente para preparar a sua defesa.»
Destarte e desde logo por extemporaneidade da arguição, improcede a invocada nulidade da citação.
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2. (In)competência internacional do tribunal português
A recorrente começa por defender a aplicação do art.º 11º, nº 1, al. a), do Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de dezembro, para concluir que deveria ter sido demandada no tribunal onde tem a sua sede, ou seja, em Malta, e não nos tribunais de Portugal, o Estado-Membro onde a A. tem a sua sede.
Nos termos do art.º 59º do Código de Processo Civil, “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.° e 63.° ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.°”.
O Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial[3], foi instituído ao abrigo dos artigos 67º, n.º 4 e 81º, n.º 2, al.s a), c) e e) do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), tendo o mesmo, a nível nacional, a relevância e a primazia que lhe é conferida pelo artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República.
De acordo com o seu art.º 1º, nº 1, tal Regulamento aplica-se, “em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado (“acta jure imperii”)”, estando expressamente excluídas as causas enunciadas no subsequente nº 2. Tem, assim, como seu objeto as relações jurídicas de natureza estritamente privada, na sua vertente civil e comercial, salvo as que ali estão expressamente excluídas.
A regra geral da competência está fixada no art.º 4º: “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro” (nº 1). Já “as pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais” (nº 2). Tratando-se de uma sociedade ou pessoa equiparada (pessoa coletiva, associação de pessoas singulares ou coletivas), determina o artigo 63º do Regulamento que tem domicílio na sua sede social (a), na sua administração central (b) ou no seu estabelecimento principal (c).
O Regulamento confere, assim, alguma primazia à regra do actor sequitur forum rei, ou seja, o autor deve demandar o réu no seu domicílio.
Consta, aliás, dos considerandos do Regulamento Bruxelas I bis que “as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência
tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.” (§ 15)
Segundo o § 16, 1ª parte, dos referidos considerandos, “o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele”.
No respeitante aos contrato de seguros, tal como acontece com os litígios de consumo e de trabalho, determina o considerando 18 que deve ser protegida a parte mais fraca por meios de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.
Com efeito, os art.ºs 7º e 8º do Regulamento estabelecem competências especiais e os subsequentes art.ºs 10º a 16º um conjunto de regras exclusivamente aplicáveis à determinação da competência internacional em matéria de seguros, sem prejuízo da aplicação do disposto nos art.ºs 6º e 7º, ponto 5, do Regulamento que, no caso não relevam.
Uma das situações previstas no art.º 11º é a faculdade concedida ao demandante, contanto que seja tomador do seguro, segurado ou beneficiário do seguro, de demandar o segurador no tribunal do lugar em que o requerente tem o seu domicílio (cf. respetivo nº 1, al. b)).
De acordo com o subsequente art.º 12º, independentemente da qualidade da pessoa do demandante, o segurador também pode ser demandado no tribunal onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil.
Tais normas abrem uma possibilidade de escolha do correspondente foro jurisdicional no âmbito da União Europeia, naquilo que vulgarmente se assinala como “forum shopping”, que também podemos designar como foro de conveniência, que é característico do direito internacional privado.
A jurisprudência do Tribunal Justiça da União Europeia (TJUE), anteriormente designado da Comunidade Europeia (TJCE), tem considerado que os conceitos expressos nos Regulamentos têm caráter autónomo, ou seja, têm um significado e uma leitura no contexto do Direito da União Europeia e não como suporte densificador do Direito Nacional de cada um dos seus Estados-Membros. Como exemplo inicial desse posicionamento, que tem raízes fortes e ancestrais que remontam ao Direito Comunitário, temos o acórdão do TJCE e 14 de outubro de 1976, no caso LTU Lufttransportunternehmen GmbH Co./Eurocontrol, o qual prescindiu da referência ao Direito de qualquer dos Estados interveniente na causa do litígio, partindo antes dos objetivos e do sistema do respetivo instrumento, conjugado com os princípios gerais resultantes do conjunto dos sistemas jurídicos nacionais. O mesmo sucedeu posteriormente com o acórdão do TJCE de 22 de novembro de 1978 no caso Xxxxxxx/Saar-Ferngas, que seguiu essa linha de interpretação autónoma, com a preocupação de garantir a segurança jurídica, bem como a igualdade dos direitos e obrigações das partes.
Percorrendo a petição inicial, dela resulta que a A. é uma sociedade comercial que tem sede na cidade do
Porto, Portugal e que a R. é uma sociedade seguradora que tem sede em Malta, ambos Estados-Membros da União Europeia. Mais se alega ali que a A. é beneficiária de um contrato de seguro que foi celebrado entre o Grupo P ... e a R. como garantia de proteção e bom cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços de viagens contratados com as empresas daquele Grupo, em caso de insolvência. Segundo o mesmo requerimento, a apólice de seguro abrange a atividade desenvolvida pela sociedade maltesa P... Ltd, com quem a A. formalmente contratou o frete do navio, apesar de todos os contactos, prévios e posteriores, terem sido efetuados com a P ... Espanha, ambas pertencentes ao referido Grupo (cf. respetivos artigos 00x, 00x, 00x, 00x, 00x x 00x).
O frete do navio estava destinado à realização/prestação de um serviço de viagem com início/partida e fim/chegada em Portugal.
É à luz da matéria alegada na petição inicial que se fixa a competência do tribunal. É assim no Direito nacional e assim não pode deixar de ser no Direito da União, já que a competência deve ser fixada no início do processo, antes da produção de prova.
Ensina Xxxxxx xx Xxxxxxx[4], citando Redenti, que a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendiun, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se afere em função do pedido do autor. Assim vem sendo entendido também na jurisprudência que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria, para o julgamento de uma ação --- e à semelhança da verificação dos demais pressupostos processuais --- aponta como elementos definidores o pedido e a causa de pedir que lhe está subjacente, seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos elementos subjetivos; os elementos identificadores da causa, tal como o autor a configura (pedido fundado na causa de pedir)[5].
Sem dúvida, a A., ao instaurar a ação nos tribunais portugueses, usou da faculdade que o Regulamento Bruxelas I bis (RB-I bis) lhe concede sob os art.ºs 11º, nº 1, al. b) e 12º, sendo aqueles internacionalmente competentes para conhecer do objeto da ação, respeitante a indemnização por responsabilidade civil emergente da não realização do frete do navio (uma viagem de cruzeiro) --- com início e fim em Portugal, país em que a A. tem a sua sede --- face à insolvência da P... Ltd, a sociedade contratada pela A. para o efeito, integrante do Grupo tomador do seguro.
A apelante alega ainda que o tribunal a quo não atentou no teor do contrato de fretamento do navio, de onde resulta uma cláusula que identifica como exclusivamente competentes os tribunais espanhóis.
É o seguinte o teor da cláusula de jurisdição fixada naquele contrato:
Ou seja, numa tradução livre:
Este contrato será regido exclusivamente pela Lei Espanhola. Todas as controvérsias decorrentes ou relacionadas com este contrato serão submetidas à jurisdição exclusiva dos Tribunais de Justiça espanhóis, sendo que os Tribunais de Madrid terão competência exclusiva qualquer reclamação ou ação judicial decorrente de qualquer controvérsia ou litígio relacionado com a execução deste contrato.
Olvida a apelante que este pacto de jurisdição foi estabelecido apenas entre a A. e a sociedade com a qual contratou o fretamento do navio, sendo, de todo, estranha ao contrato a R. seguradora, razão pela qual tal negócio jurídico não a vincula (princípio da eficácia relativa dos contratos - art.º 405º, nº 2, do Código
Civil).
Ainda com outro fundamento, invoca a apelante que “das Condições Gerais e Especiais da Apólice de Seguro celebrado entre a Ré e a empresa P... SL, tal como acontece com todos os contratos celebrados pela Apelante em território espanhol e com contratantes aí domiciliados, resulta a convenção de uma cláusula de competência jurisdicional, tendo as partes submetido o contrato à jurisdição espanhola, sendo os Tribunais espanhóis exclusivamente competentes para decidir a causa, devendo os beneficiários que não possuem um domicilio espanhol, escolher qualquer tribunal espanhol para o efeito e que melhor lhes sirva. Tal cláusula de competência jurisdicional era possível à luz dos artigos 15.º, n.º 5, por referência ao disposto no artigo 16.º, n.º 5, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.”.
Ocorre ainda referir que, sendo o pacto privativo e atributivo de jurisdição uma fonte de competência internacional (art.ºs 59º e 94º do Código de Processo Civil), cuja violação gera incompetência absoluta do tribunal e absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporta (art.º 99º, nºs 1 e 3, daquele código), nem por isso --- ao contrário da regra estabelecida para a incompetência absoluta --- é do conhecimento oficioso, devendo ser arguida pelas partes (art.ºs 96º, al. a) e 97º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Em regra, toda a defesa deve ser arguida na contestação, sob pena de preclusão do direito. Depois dela só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente (art.º 573º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Nas situações em que a incompetência absoluta é do conhecimento oficioso, esta exceção pode ser suscitadas pelas partes e pelo tribunal enquanto a decisão final relativa ao mérito da causa não transitar em julgado.[6]
A lei do processo não prevê que as partes invoquem a exceção da violação do pacto privativo de jurisdição para além do prazo da contestação, assim também porque não é sequer do conhecimento oficioso e se trata da atribuição de competência que está na disponibilidade das partes.
Se propuser a ação em desrespeito pela convenção celebrada, o autor demonstra não querer observá-la. Como esta incompetência é inoficiosa, ficará na disponibilidade do réu fazer valer tal convenção. Se arguir a incompetência, o juiz irá apreciá-la e decidir em conformidade. Se o réu não arguir, é sinal de que ele próprio pretende deixar cair a convenção.[7]
A R. não deduziu contestação, onde podia e devia ter arguido a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses (falta de jurisdição) por preterição de pacto privativo de jurisdição. Ocorreu assim também preclusão deste seu direito.
Não se esgota aqui a fundamentação das alegações de recurso relativamente à falta de jurisdição internacional dos tribunais portugueses.
Sob a conclusão F), diz ainda a R. apelante:
«Acresce ainda que, das Condições Gerais e Especiais da Apólice de Seguro celebrado entre a Ré e a empresa “P... SL”, tal como acontece com todos os contratos celebrados pela Apelante em território espanhol e com contratantes aí domiciliados, resulta a convenção de uma cláusula de competência jurisdicional, tendo as partes submetido o contrato à jurisdição espanhola, sendo os Tribunais espanhóis
exclusivamente competentes para decidir a causa, devendo os beneficiários que não possuem um domicilio espanhol, escolher qualquer tribunal espanhol para o efeito e que melhor lhes sirva. Tal cláusula de competência jurisdicional era possível à luz dos artigos 15.º, n.º 5, por referência ao disposto no artigo 16.º, n.º 5, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.»
Valem aqui os argumentos acabados de desenvolver para justificar a dissolução dos já apreciados fundamentos de incompetência absoluta.
Por um lado, a A. que, nos termos da petição inicial, é beneficiária do contrato de seguro, não é, no entanto, parte contratante naquela apólice. Não o sendo, não está vinculada ao seu cumprimento, designadamente no que respeita a qualquer cláusula sua de atribuição lícita de competência jurisdicional que haja sido fixada entre os reais contratantes.
Por outro lado e ainda que assim não fosse, reafirma-se que sempre estaria vedado à R. invocar, desta feita, também quanto ao contrato de seguro, a exceção da incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por preterição deste pacto privativo de jurisdição, por lhe impor a lei processual que o faça na contestação; o que não aconteceu, ocorrendo preclusão do direito.
Aqui chegados, há que declarar improcedente a invocada exceção da falta de jurisdição dos tribunais portugueses para a presente ação.
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3. (In)admissibilidade da produção dos efeitos da revelia e erro de julgamento em matéria de facto
Passa depois a recorrente a alegar que o tribunal violou o disposto nos art.ºs 567º e 568º, al. d), do Código de Processo Civil, sendo inadmissível a produção dos efeitos da revelia relativamente à matéria de facto dada como provada nos pontos 42, 44, 48 e 51 e, bem assim, nos pontos 8, 9, 34, 36, 37 e 52, por inexistência de prova documental, designadamente o documento do contrato de seguro, que os sustente, devendo, por isso, ser considerados não provados.
Quanto àquele primeiro grupo de factos impugnados, alega que é falso que a R. tenha celebrado qualquer contrato de seguro com a sociedade P... Ltd, sendo falso também, por falta de prova documental, que várias e distintas empresas integram o mesmo grupo económico. Afirma também que se trata de várias empresas diferentes e com identificações fiscais diversas, conforme resultou dos pontos 8, 9, 34, 36, 37, 42 e 52 da matéria de facto dada como provada.
Vejamos!
Nos termos do art.º 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, “se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.
Citada a R., decorreu o prazo da contestação (com dilação) sem que a mesma tivesse deduzido qualquer oposição e sem que tivesse constituído mandatário ou tivesse intervindo de qualquer forma no processo (art.º 566º do Código de Processo Civil), pelo que é absoluta a sua revelia.
De acordo com o referido art.º 567º, em princípio, a revelia é operante, no sentido de que a falta de contestação do réu, quando regularmente citado, leva a que se considerem confessados os factos articulados pelo autor. Produz-se, assim, pelo comportamento omissivo do réu, o efeito da confissão tácita
ou ficta dos factos alegados pelo autor na petição inicial; assim, um efeito cominatório semipleno; não pleno ou absoluto, porquanto não há aqui confissão em matéria de Direito, continuando o juiz a ter que julgar a causa fazendo o enquadramento jurídico que considerar adequado, julgamento que tanto pode conduzir à procedência da ação como à sua improcedência, conforme o quadro factual fixado na sentença, com a aplicação das normas de Direito material (nº 2 daquele artigo).
Mas mesmo a confissão ficta dos factos alegados na petição inicial comporta exceções relativamente ao efeito cominatório, casos em que aquela confissão é inoperante, assim ocorrendo nas situações descritas sob as al.s a), b), c) e d) do art.º 568º do Código de Processo Civil, das quais merece destaque a al. d), pela sua indiscutível relevância no caso sub judice.
Emerge daquela disposição legal que não se aplica o disposto no art.º 567º, ou seja, os efeitos da revelia, “quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito”. Nestas situações, a ausência de contestação gera a inoperância da revelia, embora apenas quanto aos factos que careçam de prova documental para a sua demonstração; quanto aos demais factos alegados, a revelia é operante.
Dispõe o art.º 364º do Código Civil:
1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
2. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.
Também as partes podem convencionar uma forma especial para a declaração negocial. Presume-se, neste caso, que as partes não se querem vincular senão pela forma convencionada (art.º 223º, nº 1, do Código Civil).
Ora, se a lei ou as partes impuserem uma determinada forma para a emissão de declarações negociais, a lei de processo não pode permitir que a eventual falta de contestação conduza a um resultado contrário ao exigido pela lei substantiva ou pela convenção, aliás, à semelhança do que acontece com o fundamento da exceção à revelia prevista na al. c) do citado art.º 568º que prevê a inoperância da revelia quando a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito que pela ação se pretende obter. Todavia, no caso da al. d), aquela inoperância refere-se, de modo mais restrito, aos factos para cuja prova é indispensável o documento escrito.[8]
Xxxxx a apelante que o tribunal proferiu sentença, considerando confessados, por efeito da revelia, determinados factos relacionados com um contrato de seguro que não foi junto ao processo.
Se a lei exigir, pra prova de certo facto, um documento, de sorte que não possa ele ser provado por outro meio, não pode a prova dele ser feita por confissão.[9]
O art.º 32º, nº 1, da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-lei nº 72/2008, de 16 de abril[10], estabelece que “a validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial”. Todavia, segundo o imediato nº 2, “o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, (…)”, devendo esta ser “datada e assinada pelo segurador”, conforme o nº 3.
Enquanto o art.º 426º do Código Comercial prescrevia a redução a escrito do contrato de seguro, a LCS (revogando aquela norma – art.º 6º, nº 2, al. a) do decreto-lei que a aprovou) deixou de exigir a forma escrita como requisito de validade (ad substantiam) do contrato de seguro, passando a apólice, formalizada no instrumento escrito referido no citado n° 2, primeira parte ou, quando convencionado, em suporte eletrónico duradouro (cf. art.º 34°, n.° 2, da LCS), a assumir o objetivo prático de provar (ad probationem) o contrato.
Como referem Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e outros[11], “continua, assim, a ser exigida a forma escrita para o contrato de seguro, mas apenas para efeito de prova, sabendo-se que a redução a escrito visa, em geral, proporcionar às partes oportunidade de reflectir sobre o seu conteúdo, contribuir para a certeza do teor das cláusulas contratuais e, quando seja o caso, facilitar o seu conhecimento por terceiros; a redução a escrito é particularmente importante quanto à precisa definição das garantias e do funcionamento do contrato”.
Todo o conteúdo do acordado pelas partes, designadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, deve ser formalizado no documento escrito que constitui a apólice.
Segundo o nº 2 do art.º 37º da LCS, da apólice devem constar, pelo menos, os seguintes elementos: “a) A designação de “apólice” e a identificação completa dos documentos que a compõem;
b) A identificação, incluindo o número de identificação fiscal, e o domicílio das partes, bem como, justificando-se, os dados do segurado, do beneficiário e do representante do segurador para efeito de sinistros;
c) A natureza do seguro;
d) Os riscos cobertos;
e) O âmbito territorial e temporal do contrato;
f) Os direitos e obrigações das partes, assim como do segurado e do beneficiário;
g) O capital seguro ou o modo da sua determinação;
h) O prémio ou a fórmula do respectivo cálculo;
O início de vigência do contrato, com indicação de dia e hora, e a sua duração;
j) O conteúdo da prestação do segurador em caso de sinistro ou o modo de o determinar;
l) A lei aplicável ao contrato e as condições de arbitragem.”
De acordo com o subsequente nº 3, “a apólice deve incluir, ainda, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes:
a) As cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes;
b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação;
c) As cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo.”
Mas, como também ensina Menezes Cordeiro[12], no Direito anterior (Código Comercial), “o contrato de seguro devia ser celebrado por escrito. A LCS retirou essa exigência, condição de validade ad substantiam. Manteve a apólice, que deve constar de um instrumento escrito: apenas necessário ad probationem. O regime aplicável, (…), mostra que, faltando a apólice, o contrato de seguro e o seu conteúdo podem ser provados por qualquer meio em Direito admitido”.
Também assim entendemos. A exigência da apólice e a sua relevância enquanto elemento de prova do contrato e das suas cláusulas não exclui a possibilidade do contrato e dos seus elementos serem demonstrados por outros meios de prova, que não necessariamente documental. Tal como não duvidamos da importância muito significativa da documentação da apólice para a demonstração da existência e do conteúdo do contrato, com todo o complexo das suas cláusulas, também assentimos em que o beneficiário do seguro --- que tantas vezes não é o seu tomador ou o segurado e que merece, na legislação em vigor, tal como o segurado, proteção especial (este último como parte mais fraca na relação contratual, desde a formação do contrato --- art.ºs 18º e seg.s da LCS) --- não pode ficar refém de um documento na disponibilidade de terceiros, sem possibilidade de demonstrar o contrato de seguro e a seu conteúdo, por mais difícil que possa ser essa prova em cada caso concreto.
O nº 2 do art.º 32º da LCS apenas determina a obrigação o segurador a formalizar o contrato num instrumento escrito, que designa por apólice de seguro, estabelecendo a obrigação da sua entrega ao tomador do seguro. Compreensivelmente, não proíbe a utilização de outros meios probatórios na demonstração do contrato e da sua apólice. É no sentido da sua enorme utilidade que os autores citados falam em exigência de forma escrita para efeitos de prova, não no sentido da exclusão de outros meios de prova, quaisquer que eles sejam.
Acresce que o já citado art.º 364º, nº 2, do Código Civil, que dispõe sobre a exigência legal de documento escrito nas situações em que aquele documento não é exigido como forma da declaração negocial --- como aqui acontece --- impõe que tal resulte claramente da lei para poder ser substituído apenas por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, nas condições ali previstas.
A exigência de documento escrito para prova de determinados factos, em processo civil, não pode deixar de resultar de uma forma clara, inequívoca ou evidente, da lei. Não acontecendo assim no caso em análise, desde logo e essencialmente à luz do art.º 32º, nº 2, da LCS, há que concluir que não se verifica a exceção aos efeitos da revelia prevista na al. d) do art.º 568º do Código de Processo Civil.
Em consequência, nos termos do art.º 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, têm que se considerar confessados pela R. todos os factos articulados pela A., inclusive os que respeitam à preparação, à formação, à existência e ao conteúdo do contrato de seguro. Já que nada justifica a aplicação das exceções aos efeitos da revelia previstas no referido art.º 568º. Daqui decorre que os pontos 8), 9), 34), 36), 37), 42), 44), 48), 51) e 52), ou seja, todos os factos impugnados, devem ter-se por demonstrados, por confissão ficta da R.
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4. Nulidade da sentença
Numa ligação algo confusa entre o fundamento do erro da decisão em matéria de facto, a aplicação do Direito e a nulidade da sentença, passa a apelante a defender que a sentença é nula nos termos das al.s b) e d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
A sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de Direito da decisão (referida al. b)). O art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta
xxxxx decorre do comando constitucional que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade. Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, que a decisão é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Porém, este vício penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão.[13]
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira.
Como escreve o Professor Xxxxxxx xxx Xxxx[14], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Bem ou mal, independentemente do seu acerto --- não interessa para resolver esta questão --- a decisão recorrida está fundamentada, quer em matéria de facto, pela descrição dos factos que o tribunal considerou relevantes para a decisão, quer em matéria de Direito, pela análise jurídica, ainda que sintética, dos factos dados como provados, assim se tendo justificado a decisão que julgou a procedência da ação.
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. d), além do mais, que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Esta causa de nulidade refere-se a um vício que supõe que se silencie uma questão que o tribunal deva conhecer por força do precedente art.º 608°, nº 2, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Sem que esse dever implique o abordar, de forma detalhada, de todos os argumentos, considerações ou juízos de valor trazidos pelas partes, a nulidade só ocorre quando o juiz olvida a pronúncia sobre as “questões” submetidas ao seu escrutínio pelas partes, ou de que deva conhecer por dever de ofício.
A expressão “questões que devesse apreciar”, cuja omissão integra a dita nulidade, também não abarca as alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito.
São questões os temas, os problemas concretos a decidir, e não simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
Como defendia já Xxxxxxx xxx Xxxx, são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão[15].
Este vício ocorre nas situações em que a decisão não se pronuncia (não aprecia, soluciona ou decide) sobre questões cujo conhecimento se lhe impõe, devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções que oficiosamente lhe cabe conhecer.[16] A questão a decidir está, pois, intimamente ligada ao pedido da providência em correlação com a respetiva causa de pedir[17].
A R. não contestou a ação. Não havia matéria de exceção a conhecer e o tribunal conheceu das questões suscitadas na petição inicial, decidindo a ação.
O tribunal recorrido não ponderou a aplicação a aplicação da al. d) do art.º 568º do Código de Processo Civil, enquanto exceção aos efeitos da revelia. Mas não tinha que o fazer se entendesse que tal norma não tinha aplicação no caso concreto, como efetivamente revelámos já que não tem.
Também não ocorre nulidade por omissão de pronúncia.
A discordância relativa à decisão proferida em matéria de facto e de Direito não justifica a nulidade da sentença.
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5. Junção de um documento novo (com as alegações de recurso)
A R. pretende a admissão de um documento que apresenta com as suas alegações nesta fase de recurso: o suposto contrato de seguro a que a A. se refere na petição inicial. Alega que tal junção só agora é possível “em virtude do desconhecimento que a Apelante possuía da existência da ação, devendo ser considerado subjetivamente superveniente, bem como, se ter tornado necessária em virtude da matéria de facto vertida pelo digno Tribunal da 1ª instância (…) sendo absolutamente imprescindível e essencial à boa e justa decisão a causa (…)” (Conclusão X).
Os recursos correspondem a um reexame da decisão recorrida; neles conhece-se apenas das questões que ali foram apreciadas, com exceção das que sejam do conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado.
Compreende-se, pois, que a regra determine que o tribunal ad quem com poderes de decisão em matéria de facto não possa servir-se dos meios de prova que não tenham sido disponibilizados ao tribunal recorrido em tempo oportuno, ou seja, com o articulado da ação em que se aleguem os factos correspondentes (art.º 423º do Código de Processo Civil).
Só situações excecionais previstas na lei permitem que documentos sejam apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, até ao encerramento da discussão a causa (nºs 2 e 3 do
referido art.º 423º) ou ainda, depois desta, com as alegações de recurso (art.º 651º, nº 1, do Código de Processo Civil). Neste último caso, que agora nos interessa:
- Quando a junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância; ou
- Nas situações excecionais previstas no referido art.º 425º, ou seja, quando não tenha sido possível (objetiva ou subjetivamente) juntar o documento ou os documentos até ao momento do encerramento da discussão a causa.
A apelante não nega nem poderia negar que tinha na sua posse a apólice de um seguro que ela própria já havia contratado quando a ação foi proposta e cujo interesse na respetiva junção não podia ignorar quando podia e devia ter apresentado a sua contestação. Ao contrário do que refere, foi validamente citada para a ação. Se pretendia negar a celebração de qualquer contrato de seguro com a A. e afirmar que o contrato a que aquela se refere não a inclui como segurada ou beneficiária, tinha o ónus de o fazer na contestação, juntando aquele documento com este articulado ou, no limite, até 20 dias antes da data em que tivesse lugar a audiência final, mediante o pagamento de multa (art.ºs 423º, nºs 1e 2, e art.º 573º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Com efeito, é de afastar a superveniência subjetiva do documento, a que se refere o art.º 425º do Código de Processo Civil, já que resulta evidente que a R. tinha tinha acesso ao mesmo quando podia e devia ter efetuado a sua apresentação, com a contestação.
A junção da apólice do seguro também não se tornou necessária em função do julgamento proferido na 1ª instância (art.º 651º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A apresentação de documentos com as alegações justifica-se (e admite-se), à luz da parte final da referida norma, quando se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo, não podendo justificar-se a junção de documentos para prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova.
A jurisprudência anterior ao atual Código de Processo Civil já não hesitava em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.[18] E, como se refere também na citada obra coletiva, “a jurisprudência tem entendido, de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”.
No caso, o que surpreende não é a decisão, mas a junção do documento, face ao ónus que a R. tinha de o fazer com a contestação e ao teor da matéria alegada na petição inicial. Não tendo sequer contestado a ação, é manifesta a extemporaneidade da apresentação do contrato de seguro apenas com as alegações de recurso.
Não se admite o documento, sendo improcedente também esta questão da apelação.
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6. Erro na aplicação do Direito
Defende a apelante que, caso se entenda que é de considerar como provada a existência de um contrato de seguro celebrado entre a R. e a sociedade P..., Lda., e que tal contrato cobria o cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços contratados e uma proteção em caso de insolvência, não poderá o tribunal deixar de indagar sobre o conteúdo do contrato, a extensão da cobertura assegurada pela R., os termos em que o seguro poderia ser acionado, a legitimidade da A. para requerer a devolução do preço pago ao abrigo desse contrato, bem como a duração do contrato de seguro e se este ainda se encontrava validamente em vigor entre as partes no contexto temporal dos autos, elementos que apenas o contrato poderia fornecer.
Mais alega a R. que, por aplicação ao caso da lei espanhola, o contrato de seguro é um contrato formal, só podendo ser provado por documento que o formaliza.
É sobre os factos provados que se impõe a aplicação do Direito, através do respetivo enquadramento jurídico.
Neste âmbito há que determinar, em primeiro lugar, à luz da factualidade demonstrada, qual seja o Direito substantivo aplicável; para o que, tratando-se de relações jurídicas transnacionais, deverão se convocadas as norma de conflitos previstas nos art.ºs 25º e seg.s do Código Civil.
A A., uma sociedade comercial com sede em Portugal, instaurou a ação contra uma sociedade seguradora, com sede em Malta, visando a condenação desta no pagamento de uma indemnização, com base num contrato de seguro de responsabilidade civil em que é beneficiária, sendo partes naquele contrato a R., enquanto seguradora, e o Grupo P ... na qualidade de tomador do seguro, do qual faz parte a sociedade P..., Lda., com a qual a A. contratou o frete do navio de cruzeiro.
O contrato de seguro é “o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer”[19]. Uma pessoa singular ou coletiva (tomador do seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) e a última a efetuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro). É um contrato sinalagmático e oneroso, já que dele resultam obrigações para ambas as partes, consubstanciadas em atribuições e custos patrimoniais (o segurador assume um risco alheio mas encaixa um preço, e o tomador paga um prémio alijando um risco) - mas também contrato aleatório - caracterizado por uma álea intrínseca, onde reina um estado de incerteza quanto ao significado patrimonial do contrato para os contraentes.
Ao celebrarem o contrato, as partes assumem que em consequência de circunstâncias fortuitas, uma delas possa ganhar e outra possa perder, não podendo estas reagir contra o desequilíbrio patrimonial do contrato (ao contrário do que sucede nos contratos cumulativos), porquanto “os negócios aleatórios são negócios de risco (…), e o risco desse desequilíbrio é voluntária e conscientemente assumido, como próprio do contrato”.[20]
O contrato de seguro contém, na sua estrutura lógico-formativa, elementos de natureza pessoal, como sejam o segurador, o segurado, o tomador do seguro e o beneficiário; de natureza natural, humana ou social, que se traduz numa potencialidade de risco, o interesse, no sentido do interesse que o segurado tem no bem exposto ao risco, ou seja a “relação económica existente entre um sujeito e um bem, a qual
tem um valor cuja diminuição ou perda há-de ser compensada pela indemnização do seguro” e, finalmente, como observámos já, o prémio, “contraprestação paga pelo tomador do seguro ou o segurado pela deslocação do risco para o segurador.”[21]
O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro, até ao limite do dano.
O interesse para o efeito relevante haverá de traduzir-se, em termos de expressão de valia económica, numa relação entre o segurado e o bem exposto ao risco que se pretende tutelar, de forma a compensar os prejuízos derivados da frustração das utilidades patrimoniais que esse bem proporciona ao sujeito em causa. Tal interesse é sempre de natureza patrimonial e, no seguro de dano, tem um impacto diferente do que tem nos seguros de pessoas. Xxxxxxx, que aqui releva, assume, por um lado, a forma de relação entre o segurado e o bem exposto ao risco, e, por outro lado, apresenta-se como medida limite do ressarcimento da lesão (do interesse).
Feita esta análise do contrato de seguro e face aos factos provados, é o cumprimento de um contrato de seguro que se discute nos autos, sendo da lei reguladora das obrigações que tratamos, pelo que as normas de conflitos aplicáveis constam dos art.ºs 41º e seg.s do Código Civil.
Aquele art.º 41º, no seu nº 1, consagra o princípio da autonomia da vontade, dando primazia à vontade das partes contratantes, com as limitações que emanam do nº 2, segundo o qual terá de haver sempre, na designação ou referência das partes à lei aplicável, um interesse sério dos declarantes ou uma conexão com algum dos elementos do negócio jurídico atendíveis no domínio do direito internacional privado, de que é exemplo o lugar da celebração do negócio.
Por força do art.º 42º, nºs 1 e 2, do Código Civil, supletivamente, na falta de determinação, pelas partes, da lei aplicável, deve atende-se, nos contratos, à lei da residência habitual comum das partes e, na falta dela, nos contratos onerosos, à lei do lugar da sua celebração.
De relevante para o efeito, resulta da matéria de facto provada:
- O contrato de fretamento do navio foi celebrado entre a A., sociedade de Direito português, com sede em Portugal, e a sociedade maltesa P..., Lda., com sede em Malta;
- Não obstante, todos os contactos prévios à celebração do mesmo foram efetuados coma P ... Espanha;
- No contrato de fretamento ficou acordado entre as partes a aplicação da lei espanhola relativamente à sua matéria;
- A sociedade P..., Lda. é uma sociedade instrumental, que não tem estrutura nem organização, sendo que, no seu quadro de pessoal, consta apenas o nome de um único colaborador;
- E tem como únicas sócias duas sociedades espanholas: a P..., SA e a P ... Holdings, SL, sendo que a primeira tem como sócia única a segunda;
- Estas três sociedades têm sede no mesmo local, na Calle ..., ..., ..., em Madrid e são todas elas integrantes do Grupo P ...;
- O contrato de seguro de responsabilidade civil acionado pela A. foi celebrado entre o Grupo P ... e a R., sociedade de direito maltês do ramo segurador;
- Este seguro responde pelo bom cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços contratados e constitui uma proteção em caso de insolvência;
- A respetiva apólice abrange a atividade desenvolvida por todas as empresas do Grupo P ..., incluindo a mencionada sociedade maltesa “P... Ltd”, com quem a A. formalmente contratou.
- Trata-se de um seguro obrigatório contratado por força da aplicação do Direito espanhol;
Decorre do exposto que, quanto ao contrato de seguro, não só há um elemento de conexão muito forte com Espanha, por as empresas do Grupo P ... que contratou o seguro, terem sede em Madrid, como as próprias partes contratantes, ao fazê-lo ao abrigo e em cumprimento de uma exigência da legislação espanhola, claramente tiveram em vista a aplicação dessa legislação (art.º 41º, nº 1, in fine, do Código Civil).
Diz-nos a R. que, por aplicação ao caso da lei espanhola, o contrato de seguro é um contrato formal, só podendo ser provado por documento que o formaliza.
Sobre o que se provou e não provou, já foi tomada posição. Os efeitos da revelia operam por aplicação do nosso direito processual. Como vimos, os factos alegados na petição inicial consideram-se provados, por confissão ficta, incluindo a matéria do contrato de seguro.
O Decreto 99/1996, de 27 de junio, regula o exercício das atividades próprias das agências de viagens da Comunidade de Madrid, onde têm sede as empresas do Grupo P ....
No seu art.º 14º, sob a epígrafe Garantia, dispõe:
1. Las agencias de viajes organizadoras, entendiéndose por tales tanto las agencias mayoristas, como mayoristas-minoristas y minoristas estarán obligadas a constituir con carácter previo al ejercicio de la actividad y mantener de forma permanente una garantía para responder con carácter general del cumplimiento de las obligaciones derivadas de la prestación de sus servicios frente a los contratantes de viajes combinados, en especial en los casos de insolvencia y repatriación.
La garantía, podrá revestir tres formas:
a) Garantía individual: mediante un seguro, un aval u otra garantía financiera.
Durante el primer año de ejercicio de la actividad, esta garantía debe cubrir un importe mínimo de 100.000 euros. A partir del segundo año de ejercicio de la actividad, el importe de esta garantía debe ser equivalente, como mínimo al 5 % del volumen de negocios derivado de los ingresos por venta de viajes combinados alcanzado en el ejercicio anterior, y en cualquier caso el importe no puede ser inferior a
100.000 euros.
En el caso de que la garantía fuese ejecutada, deberá reponerse xx xx xxxxx xx 00 días, hasta cubrir el importe total de la misma.
b) Garantía colectiva: puede constituirse una garantía colectiva, a través de las asociaciones empresariales legalmente constituidas, mediante aportaciones a un fondo solidario de garantía.
La cuantía de esta garantía colectiva será de un mínimo del 50 por 100 de la suma de las garantías que las agencias de viaje individualmente consideradas deberían constituir de acuerdo con el apartado anterior. En ningún caso el importe global del fondo podrá ser inferior a 2.500.000 euros
c) Garantía por cada viaje combinado: Se contrata un seguro para cada usuario de viaje combinado.
La garantía individual y la garantía colectiva no podrán ser canceladas durante la tramitación de un expediente de revocación, renuncia o baja definitiva, ni hasta después de transcurridos dos años desde que la resolución del expediente sea firme.
2. En el momento en que el viajero efectúe el primer pago a cuenta del precio del viaje combinado, se le facilitará un certificado que acredite el derecho a reclamar directamente al que sea garante en caso de insolvencia, el nombre de la entidad garante y sus datos de contacto.
Ou seja, numa tradução livre para português:
1. As agências organizadoras de viagens, entendidas como agências grossistas, grossistas-retalhistas e retalhistas, ficam obrigadas a constituir previamente à realização da atividade e a manter permanentemente uma garantia de resposta geral ao cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos seus serviços a contratantes de viagens organizadas, especialmente em casos de insolvência e repatriamento.
A garantia pode assumir três formas:
a) Garantia individual: através de seguro, fiança ou outra garantia financeira.
Durante o primeiro ano de exercício da atividade, esta garantia deve cobrir um montante mínimo de
100.000 euros. A partir do segundo ano de exercício da atividade, o valor desta garantia deve ser equivalente a pelo menos 5% do volume de negócios derivado dos rendimentos da venda de viagens combinadas realizados no ano anterior, e em qualquer caso o valor que não pode ser inferior a 100.000 euros.
Caso a garantia seja executada, deverá ser substituída no prazo de 15 dias, até que o valor total da garantia seja coberto.
b) Garantia coletiva: pode ser constituída uma garantia coletiva, através de associações empresariais legalmente constituídas, através de contribuições para um fundo de garantia solidária.
O montante desta garantia coletiva será um mínimo de 50% do somatório das garantias que as agências de viagens individualmente consideradas deverão constituir de acordo com a secção anterior. Em nenhum caso o valor global do fundo pode ser inferior a 2.500.000 euros
c) Garantia para cada viagem combinada: O seguro é contratado para cada usuário de viagem combinada. A garantia individual e a garantia coletiva não podem ser canceladas durante o processamento de um processo de revogação, renúncia ou remoção definitiva, nem antes de decorridos dois anos desde que a resolução do processo seja definitiva.
2. No momento em que o viajante efetuar o primeiro pagamento por conta do preço da viagem combinada, ser-lhe-á fornecido um certificado que atesta o direito de reclamar diretamente ao fiador em caso de insolvência, o nome da entidade fiadora e seus dados de contato.
O subsequente art.º 22º dispõe assim sobre o cumplimiento del contrato:
22.1. Las agencias de viajes vienen obligadas a facilitar a sus clientes la totalidad de los servicios contratados con las condiciones y características estipuladas.
Sólo eximirá de esta obligación la fuerza mayor o la causa suficiente. Se considerará causa suficiente, los
supuestos en que las agencias, a pesar de actuar con la previsión y diligencia debidas, no puedan facilitar los servicios contratados por razones que no les sean imputables.
22.2. Si existiera imposibilidad de prestar alguno de los servicios en las condiciones pactadas, la agencia ofrecerá al usuario la posibilidad de optar por el reembolso total de lo abonado o su sustitución por otro de similares características en cuanto a categoría y calidad. Si de esta sustitución el servicio resulta de inferior categoría o calidad, la agencia deberá reembolsar esta diferencia.
22.3. Si la causa suficiente o la fuerza mayor se producen antes del inicio del viaje, impidiendo el cumplimiento de la operación, el cliente tendrá derecho al reembolso del total de lo abonado, salvo los posibles gastos que, bajo esta condición, se hubieran pactado.
Si tales causas sobrevienen, después de iniciado el viaje, la agencia vendrá obligada a proporcionar a su cliente, en su caso, el regreso hasta el punto de origen y a devolver las cantidades que proporcionalmente correspondan.
Ou seja, numa tradução livre para português:
22.1. As agências de viagens são obrigadas a prestar aos seus clientes todos os serviços contratados nas condições e características estipuladas.
Apenas força maior ou causa suficiente isentará esta obrigação. Será considerada justa causa nos casos em que as agências, apesar de agirem com a devida prudência e diligência, não possam prestar os serviços contratados por motivos que não lhes sejam imputáveis.
22.2. Caso seja impossível prestar qualquer um dos serviços nas condições acordadas, a agência oferecerá ao usuário a possibilidade de optar pelo reembolso integral do valor pago ou sua substituição por outro de características semelhantes em termos de categoria e qualidade. Caso essa substituição resulte em uma categoria inferior ou serviço de qualidade, a agência deverá reembolsar essa diferença.
22.3. Caso o motivo suficiente ou força maior ocorra antes do início da viagem, impossibilitando a realização da operação, o cliente terá direito ao reembolso do valor total pago, ressalvadas as eventuais despesas que, nesta condição, tenham sido acordadas.
Se tais causas surgirem, após o início da viagem, a agência será obrigada a fornecer ao seu cliente, se for o caso, o retorno ao ponto de origem e devolver os valores correspondentes proporcionalmente.
A definição de “viagem combinada” foi fornecida pelo art.º 2º, nº 1, da Lei 21/1995, de 6 de julio, já revogada, segundo o qual:
«Viaje combinado»: la combinación previa de, por lo menos, dos de los siguientes elementos, vendida u ofrecida en venta con arreglo a un precio global, cuando dicha prestación sobrepase las veinticuatro horas o incluya una noche de estancia: a) transporte, b) alojamiento, c) otros servicios turísticos no accesorios del transporte o del alojamiento y que constituyan una parte significativa del viaje combinado.
Ou seja, numa tradução livre:
«Viagem combinada»: a anterior combinação de, pelo menos, dois dos seguintes elementos, vendidos ou colocados à venda a preço global, quando o referido serviço ultrapasse vinte e quatro horas ou inclua uma noite de estada: a) transporte, b) alojamento, c) outros serviços turísticos que não sejam acessórios de
transporte ou alojamento e que constituam parte significativa da viagem combinada.
Tal definição foi alterada e consta atualmente do art.º 151º, nº 1, al. b), do Decreto nº 23/2018, de 21 de deciembre, segundo o qual:
b) ‘‘Viaje combinado’’: la combinación de, al menos, dos tipos de servicios de viaje a efectos del mismo viaje o vacación, si esos servicios:
1.º son combinados por un solo empresario, incluso a petición o según la selección del viajero, antes de que se celebre un único contrato por la totalidad de los servicios, o
2.º con independencia de la celebración de contratos distintos con diferentes prestadores de servicios de viaje, esos servicios:
i) son contratados en un único punto de venta y seleccionados antes de que el viajero acepte pagar,
ii) son ofrecidos, vendidos o facturados a un precio a tanto alzado o global,
iii) son anunciados o vendidos como «viaje combinado» o bajo una denominación similar,
iv) son combinados después de la celebración de un contrato en virtud del cual el empresario permite al viajero elegir entre una selección de distintos tipos de servicios de viaje, o
v) son contratados con distintos empresarios a través de procesos de reserva en línea conectados en los que el nombre del viajero, sus datos de pago y su dirección de correo electrónico son transmitidos por el empresario con el que se celebra el primer contrato a otro u otros empresarios con quienes se celebra otro contrato, a más tardar veinticuatro horas después de la confirmación de la reserva del primer servicio de viaje.
La combinación de servicios de viaje en la que se combine como máximo uno de los tipos de servicios de viaje a que se refieren los apartados 1.º, 2.º o 3.º de la letra a) con uno o varios de los servicios turísticos a que se refiere su apartado 4.º, no se considerará un viaje combinado si estos servicios turísticos no representan una proporción igual o superior xx xxxxxxxxxxx xxx xxxxxx xxx xxxxx xx xx xxxxxxxxxxx y no se anuncian o no constituyen por alguna otra razón una característica esencial de la combinación, o si solo han sido seleccionados y contratados después de que se haya iniciado la ejecución de un servicio de viaje contemplado en los mencionados apartados 1.º, 2.º o 3.º
Ou seja, numa tradução livre:
b) «Viagem combinada»: a combinação de pelo menos dois tipos de serviços de viagem para efeitos da mesma viagem ou férias, se esses serviços:
1º são combinados por um único empregador, mesmo a pedido ou de acordo com a seleção do viajante, antes da celebração de um único contrato para todos os serviços, ou
2.º independentemente da celebração de diferentes contratos com diferentes prestadores de serviços de viagens, estes serviços:
i) sejam contratados em um único ponto de venda e selecionados antes que o viajante concorde em pagar,
ii) são oferecidos, vendidos ou faturados a um preço fixo ou único,
iii) são anunciados ou vendidos como "viagens organizadas" ou sob um nome semelhante,
iv) são combinados após a celebração de um contrato ao abrigo do qual o empresário permite ao viajante escolher entre uma seleção de diferentes tipos de serviços de viagem, ou
v) sejam contratados com diferentes empregadores através de processos de reserva online conectados em
que o nome do viajante, dados de pagamento e endereço de e-mail são transmitidos pelo empregador com quem o primeiro contrato é celebrado a outro ou outros empresários com quem outro contrato é celebrado, o mais tardar vinte e quatro horas após a confirmação da reserva do primeiro serviço de viagem.
A combinação de serviços de viagem em que no máximo um dos tipos de serviços de viagem referidos nas seções 1, 2 ou 3 da letra a) é combinado com um ou mais dos serviços turísticos referidos na seção 4, uma viagem combinada não serão considerados se estes serviços turísticos não representarem uma proporção igual ou superior a vinte e cinco por cento do valor do conjunto e não forem publicitados ou não constituírem, por qualquer outro motivo, uma característica do conjunto, ou se eles só foram selecionados e contratados após o início da execução de um serviço de viagem contemplado nas seções 1, 2 ou 3 acima mencionadas.
A garantia a que se refere o art.º 14º, nº 1, do Decreto 99/1996, de 27 de junio, pode ser constituída através de contrato de seguro, nas condições ali previstas, designadamente para situações de insolvência, sendo uma das suas formas possíveis a o contrato de seguro por cada usuário de viagem combinada (al. c)).
Compreende-se a necessidade de constituir garantias entre as várias partes contratantes na teia de relações comerciais que se estabelecem entre os vários operadores turísticos de viagens, já que se impõe, em última linha, dar proteção efetiva ao consumidor final, o que, no direito espanhol é assegurado pelo Real Decreto Legislativo nº 1/2007, de 16 de noviembre, alterado, designadamente pelo já citado Decreto Legislativo nº 23/2018, de 21 de deciembre, que reformulou A Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários[22], com destaque para os respetivos art.ºs 164º, 165º e 167º.
Também ali aquele art.º 164º exige aos organizadores e revendedores de viagens combinadas estabelecidos em Espanha a obrigação de constituir uma garantia, possível, entre outras formas, pela contratação de um seguro, que seja efetiva e cubra o valor dos pagamentos efetuados diretamente pelos viajantes, ou por terceiros em seu nome, em caso de insolvência, considerando-se esta verificada logo que, por falta de liquidez dos organizadores ou retalhistas, os serviços de viagem deixam de ser executados, não vão ser executados ou vão ser executados apenas em parte, ou quando os serviços dos prestadores de serviços exigem que os viajantes paguem por eles. Ocorrendo a insolvência, a garantia deve estar disponível e o viajante pode facilmente aceder à proteção garantida, sem prejuízo de lhe ser oferecida a continuação da viagem combinada (nº s 1, 2 e 3 daquele artigo).
O imediato art.º 165º estabelece a obrigação dos organizadores e os retalhistas de viagens combinadas constituírem uma garantia que geralmente responde pelo cumprimento das obrigações derivadas da prestação dos seus serviços perante os contratantes de uma viagem combinada. E o art.º 167º determina no seu nº 1 que os empresários que prestem serviços de viagem associados constituam uma garantia de reembolso de todos os pagamentos que recebam dos viajantes, na medida em que um dos serviços de viagem incluídos não seja executado por insolvência, podendo ela ser prestada de várias formas, entre elas, mais uma vez, o contrato de seguro, ficando em qualquer caso, a exigência da garantia sujeita ao disposto na Lei 20/2013, de 9 de dezembro.
Segundo o nº 3 do mesmo art.º 167º, a insolvência entender-se-á como produzida logo que se verifique que por falta de liquidez dos empresários os serviços de viagem, entre outras situações ali previstas,
deixam de ser executados. A garantia deve estar disponível naquela situação do empresário e o viajante deve poder aceder a ela, para reembolso, facilmente e sem atrasos indevidos.
Esta indispensável tutela rápida e efetiva do consumidor de viagens justifica também a constituição das garantias referidas entre as empresas participantes na sua organização, não apenas em função do que despendeu de valores a favor de outra empresa para pagamento de serviços, mas até como forma de melhor assegurar a realização efetiva do interesse do próprio consumidor, pela proteção de inexistência de quebra de garantias entre todos os prestadores dos serviços que devam beneficiar da reparação de danos. Com efeito, é naquela legislação que o contrato de seguro obrigatório invocado pela A. e celebrado entre o Grupo P ... --- em que também é segurada a P... Ltd, enquanto parte do Grupo --- e a R. encontra fundamento.
De acordo com o art.º 1156º do Código Civil espanhol[23], o cumprimento constitui uma das formas de extinção das obrigações. Uma dívida não se considera paga enquanto não estiver completamente entregue a coisa ou o objeto da prestação em que consiste a obrigação (art.º 1157º)
Segundo os art.ºs 1254º e 1255º, existe contrato quando uma ou várias pessoas acordam em se obrigarem entre si a fornecer alguma coisa ou a prestar algum serviço, podendo as partes acordar, estabelecer cláusulas e condições que tenham por convenientes, sempre que não sejam contrárias às leis, à moral e à ordem pública.
As obrigações com origem contratual têm força de lei entre as partes contratantes e devem ser cumpridas de acordo com os mesmos (art.º 1091º).
Eis o essencial: Independentemente da junção do contrato escrito de seguro (a apólice), saber se os factos provados traduzem o dever da R. cumprir a obrigação cujo cumprimento é peticionado na ação.
Resulta do contrato de fretamento do navio celebrado entre a A. e a P..., Lda. que, em caso de força maior, assiste à A. o direito de resolver o contrato, designadamente m caso de epidemia. Compreensivelmente, também resulta daquele contrato que o cancelamento do cruzeiro devido a razões inesperadas ou imprevistas deve ser considerado como uma situação de força maior e que tal situação confere à A. o direito ao reembolso das quantias pagas.
O frete foi cancelado em consequência da declaração de pandemia do vírus Covid 19, motivo de força maior, ficando assim inviabilizada a realização do cruzeiro previsto para os dias 15 a 18 de março de 2020. Porém, a A. havia já entregado à P..., Lda. a totalidade do respetivo preço, de €1.279.060,00, que nunca lhe foi restituído, apesar de solicitado e de a P ... Espanha ter aceitado a proposta de reembolso daquele valor em doze prestações mensais, com início em setembro de 2020, não dando, porém, as garantias exigidas pela demandante.
As dificuldades económicas do Grupo P ... levaram todas as empresas do Grupo a uma situação de insolvência, incluindo, portanto, a contratante P..., Lda., justificando a apresentação e o curso em tribunal espanhol de um processo de insolvência, onde a A. já reclamou o seu crédito.
A situação de insolvência daquela sociedade segurada tornou definitivamente inviável a realização futura da viagem de cruzeiro.
Em todo o caso, o Grupo P ... havia celebrado com a R., no exercício da sua atividade seguradora, um
contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil obrigacional que abrange a atividade desenvolvida por todas as empresas daquele Grupo, para situações em que estas deixem de assumir as suas responsabilidades relativas ao reembolso de todos os pagamentos que recebam sempre que os serviços contratados não sejam realizados em consequência da sua situação de insolvência.
Este contrato tem suporte nas disposições legais de Direito espanhol acima citadas e transcritas enquanto modo de constituição de uma garantia daqueles reembolsos.
Está reconhecidamente em dívida à A. a referida quantia de €1.279.060,00 que o Grupo P ... cobrou à A. e não pôde restituir, face à sua insolvência.
Os factos provados traduzem os elementos essenciais à responsabilização da R. pela quantia peticionada, designadamente o contrato de seguro relativamente a atos da segurada P..., Lda. no exercício da sua atividade e, com base nele, a cobertura da garantia do reembolso à A. da referida quantia, também com base na lei que o qualifica e regula como um seguro obrigatório.
Não tendo sido oferecida contestação, onde toda a defesa da R. deveria ter sido produzida, designadamente a invocação de matéria de exceção, faltam de todo factos de onde se possa excluir a responsabilidade da seguradora (art.º 573º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Está, por isso, correta a fundamentação da sentença quando, ainda que numa análise jurídica muito singela, expõe o seguinte raciocínio:
«O Grupo P ... celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil.
Este seguro responde pelo bom cumprimento das obrigações decorrentes da prestação dos serviços contratados e constitui uma protecção em caso de insolvência.
A Apólice de seguro abrange a actividade desenvolvida por todas as empresas do Grupo P ..., incluindo a mencionada sociedade maltesa “P... Ltd”, com quem a Autora formalmente contratou, apesar de todos os contactos, prévios e posteriores, terem sido efectuados com a P ... Espanha.
No caso em apreço, verifica-se que o Grupo P ..., do qual faz parte a mencionada sociedade maltesa “P... Ltd”, não procedeu ao reembolso das quantias que recebeu em consequência da não realização do cruzeiro que estava contratado devido à pandemia (Covid 19) e que está numa situação de insolvência.
Assim sendo, havendo um contrato de seguro que garantia a responsabilidade contratual do Grupo P ..., assiste o direito da A. em ser ressarcida dos danos sofridos à custa da R.»
Aqui chegados, resta-nos julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma- se a sentença recorrida.
Oportunamente desentranhe-se o documento junto com as alegações de recurso.
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Custas da apelação, por nela ter decaído totalmente, e do incidente de desentranhamento do documento, pela R. recorrente, sem prejuízo da taxa de justiça paga pela interposição do recurso (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 4 de maio de 2022 Xxxxxx Xxxxxx
Judite Pires
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